51
Capítulo 3 Trabalho e alienação A história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do homem pelo homem. Max Horkheimer No Capítulo 1 – Natureza e cultura, vimos a importância do trabalho e da linguagem, por meio dos quais o ser humano entra no mundo da cultura e se distingue do animal.Além de humanizar a natureza, além de proceder à "comunhão" (à união) das pessoas, o trabalho transforma o próprio ser humano. "Todo trabalho trabalha para fazer um homem ao mesmo tempo que uma coisa", disse o filósofo personalista francês Emmanuel Mounier. Pelo trabalho, o indivíduo se autoproduz: desenvolve habilidades e imaginação; aprende a conhecer a natureza para melhor fazer uso dela; conhece as próprias forças e limitações: convive com pessoas e experimenta os afetos de toda relação; impõe-se uma disciplina. Com o trabalho, o ser humano não permanece o mesmo, porque modifica a percepção do mundo e de si próprio. Se em um primeiro momento a natureza se apresenta como destino, o trabalho será a condição da superação dos determinismos: nesse sentido, a liberdade humana não é dada, mas resulta da ação transformadora, a partir de projetos. No entanto, nem sempre prevalece essa concepção positiva, sobretudo quando as pessoas se encontram enredadas em dificuldades nascidas das relações econômicas que as lançam no desconforto do trabalho alienado. PRIMEIRA PARTE - Trabalho e Lazer 1. História do trabalho A concepção de trabalho sempre esteve ligada a uma perspectiva negativa. Na Bíblia, Adão e Eva vivem felizes até que o pecado provoca sua expulsão do Paraíso e a condenação ao trabalho com o "suor do rosto".A Eva coube também o "trabalho" 1

61473913 58147 Trabalho e Alienacao

Embed Size (px)

Citation preview

Captulo 3

Trabalho e alienao

A histria dos esforos humanos para subjugar a natureza tambm a histria da subjugao do homem pelo homem.

Max Horkheimer

No Captulo 1 Natureza e cultura, vimos a importncia do trabalho e da linguagem, por meio dos quais o ser humano entra no mundo da cultura e se distingue do animal.Alm de humanizar a natureza, alm de proceder "comunho" ( unio) das pessoas, o trabalho transforma o prprio ser humano. "Todo trabalho trabalha para fazer um homem ao mesmo tempo que uma coisa", disse o filsofo personalista francs Emmanuel Mounier. Pelo trabalho, o indivduo se autoproduz: desenvolve habilidades e imaginao; aprende a conhecer a natureza para melhor fazer uso dela; conhece as prprias foras e limitaes: convive com pessoas e experimenta os afetos de toda relao; impe-se uma disciplina. Com o trabalho, o ser humano no permanece o mesmo, porque modifica a percepo do mundo e de si prprio.

Se em um primeiro momento a natureza se apresenta como destino, o trabalho ser a condio da superao dos determinismos: nesse sentido, a liberdade humana no dada, mas resulta da ao transformadora, a partir de projetos. No entanto, nem sempre prevalece essa concepo positiva, sobretudo quando as pessoas se encontram enredadas em dificuldades nascidas das relaes econmicas que as lanam no desconforto do trabalho alienado.

PRIMEIRA PARTE - Trabalho e Lazer

1. Histria do trabalho

A concepo de trabalho sempre esteve ligada a uma perspectiva negativa. Na Bblia, Ado e Eva vivem felizes at que o pecado provoca sua expulso do Paraso e a condenao ao trabalho com o "suor do rosto".A Eva coube tambm o "trabalho" do parto. A palavra trabalho deriva etimologicamente do vocbulo latino tripaliare e do substantivo tripalium, aparelho de tortura formado por trs paus, ao qual eram atados os condenados, e que tambm servia para manter presos os animais difceis de ferrar. Da a associao do trabalho com tortura, sofrimento, pena, labuta.

Na Antiguidade grega, o trabalho manual desvalorizado por ser Feito por escravos, enquanto as pessoas da dite, desobrigadas de se ocuparem com a prpria subsistncia, dedicam-se ao "cio digno", que, para os gregos, significa a disponibilidade de gozar do tempo livre e cultivar o corpo e o esprito. No por acaso, a palavra grega schol, da qual deriva "escola", significava inicialmente cio". Para Plato, por exemplo, a finalidade das pessoas livres justamente a "contemplao das idias", na medida em que a atividade terica considerada a mais digna, por representar a essncia fundamental de todo ser racional. Voltaremos a analisar esse aspecto no Captulo 10 - Teoria do conhecimento.

Tambm a Roma escravagista desvaloriza o trabalho manual. significativo o fato de a palavra negotium indicar a negao do cio: a nfase posta no trabalho como "ausncia de lazer" o distingue do cio, prerrogativa das pessoas livres.

Na Idade Mdia, Santo Toms de Aquino procura reabilitar o trabalho manual, dizendo que todos os trabalhos se equivalem, mas, na verdade, a prpria construo terica de seu pensamento, calcada na tradio grega, tende a valorizar a atividade contemplativa. Muitos textos medievais consideram a ars mechanica (arte mecnica ou trabalho mecnico) uma ars inferior.

Cena de trabalho medieval, detalhe do Teto de Poccetti. Na Idade Mdia, muitos artesos trabalhavam em casa, auxiliados pelas pessoas da famlia, situao que foi alterada com o advento das fbricas.

Na Idade Moderna, a situao comea a se alterar: o crescente interesse pelo trabalho justifica-se pela ascenso dos burgueses, vindos de segmentos de antigos servos, acostumados ao trabalho manual, que compram sua liberdade e dedicam-se ao comrcio.

A burguesia nascente procura novos mercados, estimulando as navegaes. No sculo XV os grandes empreendimentos martimos culminam com a descoberta de outro caminho para as ndias e das terras do Novo Mundo. O interesse prtico em dominar o tempo e o espao faz com que sejam aprimorados os relgios e a bssola. Com o aperfeioamento da tinta e do papel e a descoberta dos tipos mveis, Gutenberg inventa a imprensa. Todas essas mudanas indicam a expectativa com relao a novas formas do agir e do pensar humanos, s quais se acrescentam, no sculo seguinte, as revolues do comrcio e da cincia.

No sculo XVII, Pascal inventa a primeira mquina de calcular; Torricelli constri o barmetro; surge o tear mecnico. Galileu, ao valorizar a tcnica e a experincia, inaugura o mtodo das cincias da natureza, fazendo nascer duas novas cincias: a fsica e a astronomia. A mquina exerce tal fascnio sobre a mentalidade moderna que Descartes explica o comportamento dos animais como se fossem mquinas e vale-se do mecanismo do relgio como modelo caracterstico do Universo. Deus seria "o grande relojoeiro".

Como se v, est ocorrendo uma mudana de enfoque na relao entre o pensar e o fazer. Enquanto na Idade Mdia uma hierarquia privilegia o saber contemplativo em detrimento da prtica, no Renascimento e na Idade Moderna d-se a valorizao da tcnica, da experimentao, do conhecimento alcanado por meio da prtica.

2. Nascimento das fbricas

Na passagem do feudalismo para o capitalismo, ocorrem marcantes transformaes na vida social e econmica, como o aperfeioamento das tcnicas e a ampliao dos mercados. O capital acumulado torna possvel a compra de matrias-primas e de mquinas, obrigando muitas famlias, que desenvolviam o trabalho domstico nas antigas corporaes e manufaturas, a disporem de seus antigos instrumentos de trabalho e, para sobreviver, a venderem sua fora de trabalho em troca de salrio.

Com o aumento da produo, aparecem os primeiros barraces das futuras fbricas, onde os trabalhadores so submetidos a uma nova ordem, a da diviso do trabalho com ritmo e horrios preestabelecidos. O fruto do trabalho deixa de pertencer aos trabalhadores e a sua produo passa a ser vendida pelo empresrio, que retm os lucros. Est ocorrendo o nascimento de uma nova classe: o proletariado.

No sculo XVIII, a mecanizao no setor da indstria txtil sofre impulso extraordinrio na Inglaterra, com o aparecimento da mquina a vapor, que aumenta significativamente a produo de tecidos. Outros setores se desenvolvem, como o metalrgico; tambm no campo se processa a revoluo agrcola.

No sculo XIX, o resplendor do progresso no oculta a questo social, caracterizada pelo recrudescimento da explorao do proletariado e das condies subumanas de vida. A nova classe submetida a extensas jornadas de trabalho, de dezesseis a dezoito horas, sem direito a frias, sem garantia para velhice, doena e invalidez. As condies de trabalho nas fbricas so insalubres, por serem elas escuras e sem higiene.

Embora todos sejam mal pagos, crianas e mulheres so arregimentadas como mo-de-obra mais barata ainda. Os trabalhadores moram em alojamentos inadequados e apertados, nos quais no se consegue evitar a promiscuidade.

Em decorrncia desse estado de coisas, surgem no sculo XIX os movimentos socialistas e anarquistas, que denunciam a explorao e propem formas para a modificao das relaes de produo.

3. Taylorismo e fordismo

Nos sistemas domsticos de manufatura, era comum o trabalhador conhecer todas as etapas da produo, desde o projeto at a execuo. A partir da implantao do sistema fabril, no entanto, isso deixa de ser possvel, devido crescente complexidade da diviso do trabalho.

Chamamos dicotomia concepo-execuo do trabalho ao processo pelo qual um pequeno grupo de pessoas concebe, cria, inventa o produto, inclusive a maneira como vai ser produzido, enquanto outro grupo obrigado simples execuo do trabalho, sempre parcelado, pois a cada um cabe apenas parte do processo.

No final do sculo XIX, o norte-americano Frederick Taylor (1856-1915), no livro Princpios de administrao cientfica, j estabelecera os parmetros do mtodo cientifico de racionalizao da produo. Esse mtodo, da em diante conhecido como taylorismo, visa o aumento de produtividade com economia de tempo, supresso de gestos desnecessrios no interior do processo produtivo e utilizao mxima da mquina.

A diviso do trabalho foi intensificada por Henry Ford (1863-1947), que introduziu a linha de montagem na indstria automobilstica, procedimento que mais tarde ficou conhecido como fordismo.

O sistema foi implantado com sucesso no incio do sculo XX nos EUA e logo extrapolou os domnios da fbrica, alcanando as empresas, os esportes, a medicina a escola e at a atividade da dona-de-casa. Por exemplo, um ferro de passar fabricado de acordo com os critrios de economia de tempo e de gasto de energia; na cozinha, a localizao da pia e do fogo visa favorecer a mobilidade; os produtos de limpeza devem ser eficazes em um piscar de olhos.

Taylor parte do princpio de que o trabalhador indolente, gosta de "fazer cera" e realiza movimentos de forma inadequada. Ao observar seus gestos, estuda a simplificao deles, de tal forma que a devida colocao do corpo, dos ps e das mos possa aumentar a produtividade. Tambm a diviso e o parcelamento do trabalho se mostram importantes para a maior rapidez do processo. So criados cargos de gerentes especializados em treinar operrios e vigi-los cronometrando o desempenho de suas funes. Os bons funcionrios so estimulados com recompensas, os indolentes, sujeitos a punies.Taylor tentava convencer os operrios de que tudo isso era para o bem deles, porque, em ltima anlise, o aumento da produo reverteria em beneficio de todos, gerando a sociedade da opulncia.

4. A flexibilizao da produo

Com a implantao da tecnologia avanada da automao, da robtica, da microeletrnica, surgem novos padres de produtividade, a partir das dcadas de 1970 e 1980. A tendncia nas fbricas de quebrar a rigidez do fordismo, caracterizada pela linha de montagem e produo em srie, e do taylorismo, centrado na produo em massa. Essa mudana j vinha sendo impantada em diversos lugares, mas costuma-se destacar a atuao da fabrica de automveis Toyota, no Japo, ao criar novo mtodo de gerenciamento que passou a ser conhecido como toyotismo.

Essa revoluo administrativa adaptou-se melhor economia global e ao sistema produtivo flexvel, evitando a acumulao de estoques ao atender aos pedidos medida da demanda, com planejamentos a curto prazo. Para tanto, ao contrrio do que se defendia no taylorismo e no fordismo, privilegia-se o trabalho em equipe, a descentralizao da iniciativa, com maior possibilidade de participao e deciso, alm da necessidade de poIivalncia da mo-de-obra, j que o trabalhador passa a controlar diversas mquinas ao mesmo tempo.

Apesar da atuao mais participativa do trabalhador e da exigncia de sua melhor qualificao - o que pressupe a maior intelectualizao do trabalho -, o sistema capitalista depende de uma impondervel "lgica do mercado" para as decises fundamentais sobre "o que fazer, quanto e quando fizer", fatores que ainda cerceiam a autonomia do trabalhador. Alm disso, como a flexibilizao depende da demanda flutuante, algumas tarefas so encomendadas a empresas "terceiras" subcontratadas. Essa terceirizao atomiza os empregados, antes unidos nos sindicatos, o que provocou seu enfraquecimento no final da dcada de 1980, repercutindo negativamente na capacidade de reivindicao de novos direitos e manuteno das conquistas realizadas. Os temores mais freqentes dessa nova gerao de trabalhadores da era da automao so o desemprego e o excesso de trabalho decorrente do "enxugamento" realizado pelas empresas em processo de "racionalizao" de atribuio das tarefas.

5. A sociedade ps-industrial

Vimos que o capitalismo provocou importantes alteraes sociais, advindas da implantao do sistema fabril, por meio da qual se deu o deslocamento da centralizao no setor primrio (agricultura) para o setor secundrio (indstria). A partir de meados do sculo XX, porm, surge o que chamamos de sociedade ps-industrial, caracterizada pela ampliao dos servios (setor tercirio). Isso no significa que os outros setores tenham perdido importncia, mas que as atividades agrcolas e industriais tambm dependem do desenvolvimento de tcnicas de informao e comunicao. O cotidiano de todos ns, seja no campo ou na indstria passa a ser marcado pelo consumo de servios de publicidade, comunicao, pesquisa, comrcio, finanas, sade, educao, lazer, turismo etc.

A mudana de enfoque descentraliza a ateno, antes voltada para a produo (capitalista versus operrio), e orientando-a agora para a informao e o consumo. A atividade da maioria dos trabalhadores se encontra nos escritrios, ampliada por uma comunicao gil, quase instantnea, veiculada em mbito mundial pela expanso das redes de telefonia e das info-vias. Os recursos da microeletrnica tm provocado outra transformao, qual seja, a do teletralho (trabalho a distncia), possibilitando aos empregados adquirirem mais autonomia e flexibilidade de horrio e desobrigando-os de se dirigirem diariamente a locais fixos, o que, em alguns casos, viabiliza a realizao do trabalho no prprio domiclio.

Outra novidade est no esforo de algumas empresas para garantir formas mais solidrias de relacionamento, alm da preocupao com a tica e o compromisso com a qualidade de vida. Se essas intenes podem co-existir com o esprito capitalista, centrado desde sempre no lucro, o que se ver com o tempo. O importante destacar que, pelo menos em termos de discurso, exigncias desse tipo tm sido objeto de reflexes.

Desde as dcadas de 1980 e 1990, outra tentativa em direo tica e qualidade de vida est na efetiva ampliao das empresas do terceiro setor, assim chamadas por no serem gestadas nem pelo setor governamental (o Estado) nem pelo mercado econmico, que visa lucro. Trata-se das organizaes no-governamentais (ONGs) que representam uma forma de atuao privada, mas com funes pblicas e sem fins lucrativos. Tais instituies ocupam-se do atendimento de causas coletivas e sobrevivem de doaes, que so aplicadas nas atividades-fins e no pagamento dos especialistas contratados.

Na segunda parte deste captulo, veremos os riscos da alienao no trabalho e no lazer, mas tambm os esforos de reflexo para que a humanidade possa garantir o gosto pelo trabalho e pelo cio criativo.

6. O lazer

O lazer uma criao da civilizao industrial e aparece como fenmeno de massa com caractersticas especficas que nunca existiram antes do sculo XX, ou seja, como contraponto explcito ao perodo de trabalho. J vimos que, na Grcia Antiga e na Idade Mdia, o cio criativo era privilgio da nobreza. Em contraposio, cabia aos escravos ou aos servos, conforme a poca, ocuparem-se com as atividades manuais penosas.

Na Idade Moderna, os burgueses enriquecidos pelo comrcio tambm podiam se dar ao luxo de aproveitar o tempo livre expandido. Enquanto isso, os artesos e camponeses que viviam antes da Revoluo Industrial seguiam o ritmo da natureza: trabalhavam desde o clarear do dia e paravam ao cair da noite, j que a deficiente iluminao no permitia outra escolha. Obedeciam seqncia das estaes: a semente exige o tempo de plantio, tanto quanto a colheita deve ser feita na poca certa. Nos "dias sem trabalho" podiam repousar, embora no muito, pois geralmente os feriados, previstos pela Igreja, exigiam a participao em prticas religiosas e rituais. As festas dos dias santos ou as que marcavam o fim da colheita eram atividades coletivas de importante sentido na vida social.

O advento da era industrial e o crescimento das cidades alteram o panorama. Com a introduo do relgio, o ritmo do trabalho deixa de ser pessoal. A mecanizao, diviso e organizao das tarefas exigem que o tempo de trabalho seja cronometrado, e as extensas jornadas de dezesseis a dezoito horas mal deixam tempo para a recuperao fisiolgica. As reivindicaes dos trabalhadores, porm, vo lentamente obtendo alguns xitos. A partir de 1850 estabelecido o descanso semanal; em 1919 votada a lei das oito horas: progressivamente a semana de trabalho se reduz para cinco dias. Depois de 1930, outras conquistas, como descanso remunerado, frias e, concomitantemente, a organizao de "colnias de frias" fazem surgir no sculo XX o tempo do "aps-trabalho". o incio de uma nova era, que tende tomar contornos mais definidos com a intensificao da automao do trabalho. Estamos nos dirigindo a passos largos para a "civilizao do lazer".

No Brasil, a legislao trabalhista demorou mais tempo, uma vez que tambm o processo de industrializao brasileiro foi posterior ao de pases com economia mais avanada. Foi tardia igualmente a organizao sindical, que ocorreu de forma paternalista apenas na dcada de 1930, no governo populista de Getlio Vargas, quando os trabalhadores conquistaram a regulamentao de oito horas dirias de trabalho e outros benefcios.

A diminuio da jornada de trabalho cria o tempo liberado, que no pode ser confundido ainda com o tempo livre, pois aquele gasto com transporte, obrigaes familiares, sociais, polticas ou religiosas, afazeres domsticos, higiene, alimentao e sono, s vezes at com um "bico" para ganhar mais alguns trocados. O tempo propriamente livre, de lazer, aquele que sobra aps a realizao de todas as funes que exigem obrigatoriedade.

O que lazer, ento? Segundo o socilogo francs Dumazedier, "o lazer um conjunto de ocupaes s quais o indivduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informao ou formao desinteressada, sua participao social voluntria ou sua livre capacidade criadora, aps livrar-se ou desembaraar-se das obrigaes profissionais, familiares e sociais".

H, portanto, trs funes solidrias no lazer:

descanso e, em decorrncia, liberao da fadiga;

divertimento, recreao, entretenimento e, conseqentemente, uma complementao que d equilbrio psicolgico, compensando o esforo no trabalho; o lazer oferece, no bom sentido da palavra, a evaso pela mudana de lugar, de ambiente, de ritmo, quer seja em viagens, jogos ou esportes ou ainda em atividades que privilegiam a fico, tais como cinema, teatro, romance, e que exigem o recurso exaltao da nossa vida imaginria;

participao social mais livre e, com isso, possibilidade de desenvolvimento pessoal; procura desinteressada de amigos, de aprendizagem voluntria, o que estimula a sensibilidade e a razo e favorece o surgimento de condutas inovadoras.

De tudo isso, fica claro que o lazer autntico ativo no resulta de um "deixar passar o tempo" livre , mas requer uma atividade em que a pessoa escolhe algo que d prazer e que a modifica como ser humano. O que no significa simplesmente separar de antemo aquilo que seria uma boa ou m ocupao do tempo livre: podemos participar ativamente de qualquer tipo de lazer quando assumimos uma atitude seletiva, somos sensveis aos estmulos recebidos e procuramos compreender o que vemos, sentimos e apreciamos.

A questo da utilizao do tempo de lazer tem adquirido importncia cada vez maior, configurando-se como um grande desafio do terceiro milnio. Embora os prognsticos de que a automao diminuiria o tempo de trabalho nem sempre tenham se configurado como uma realidade, continuam a haver fortes indcios de que o tempo de lazer tende a se ampliar. Mais do que nunca ser preciso refletir sobre a utilizao desse tempo de maneira criativa, a fim de prevenir o surgimento de graves distrbios psicolgicos e sociais.

Voltaremos a essa questo no final da segunda parte deste captulo.

Leitura complementar

Trabalho e vida

Quando trabalhamos,

devemos trabalhar. Quando nos

divertimos, devemos nos divertir. De nada

serve procurar misturar as duas coisas.

O nico objetivo deve ser aquele de executar

o trabalho e ser pago por t-Io executado.

Quando o trabalho termina, ento

pode vir a diverso, no antes.

Henry Ford

Quem mestre na arte de

viver distingue pouco entre o

trabalho e o seu tempo livre, entre a

sua mente e o seu corpo, a sua

educao e a sua recreao, o seu amor

e a sua religio. Dificilmente sabe o que

cada coisa vem a ser. Persegue

simplesmente a sua viso de excelncia

em qualquer coisa que faa, deixando

aos outros decidir se est trabalhando

ou se divertindo. Ele pensa sempre

em fazer ambas as coisas juntas.Pensamento Zen

Pessoalmente, creio que muitas das atuais disfunes da famlia, da sociedade e dos indivduos decorram mesmo da forada separao entre trabalho e vida, imposta pelo modo de produo industrial.

Ter amontoado durante duzentos anos os operrios nas fbricas, os empregados e executivos nos escritrios condicionou no apenas a sua atividade profissional, mas toda a sua existncia. Com o tempo ocorreram muitas mudanas na organizao empresarial, mas, embora profundas, elas nunca afetaram a separao entre locais de trabalho e de vida. Essa separao no indolor, que destruiu famlias, comunidades e personalidades, estava implcita na estrutura e na cultura da indstria. Junto com os muitos danos causados, ela diligenciou tambm o progresso de que todos ns podemos gozar hoje.

Mas, enfim, para milhes de trabalhadores cada vez mais escolarizados e capazes de trabalhar autonomamente, o trabalho transformou-se em imaterial e ubquo, as tecnologias habituais transformaram-se em eletrnicas, as matrias-primas a manejar consistem exclusivamente em informaes. Hoje, portanto, possvel trabalhar e viver como e onde se prefere. Muitas pessoas que vemos telefonando com celulares - no carro, na rua, nas praias, nos estdios - so teletrabalhadores sem o saber, exatamente como o personagem de Molire que no sabia falar em prosa. Para todas essas pessoas o trabalho e o tempo livre j so uma coisa s, entrelaada e cmoda.

Essa desestruturao do tempo e do espao representa uma nova revoluo existencial que, junto com a organizao do trabalho, mudar tambm a organizao e a qualidade da vida. Mesmo porque, radical e global, essa revoluo aterroriza, embora seja salvadora.

Os peixes de aqurio habituam-se a girar na estreita bolha de vidro que os aprisiona e por algum tempo continuam a nadar em crculo quando soltos no mar aberto. Do mesmo modo, milhes de colarinhos brancos continuam a rodar na recluso do seu aqurio mesmo que as mil amigveis tecnologias eletrnicas lhes permitam perambular pelo mundo e adequar-se aos seus biorritmos.

Quando as organizaes respirarem, a ferida que separa o trabalho da vida cicatrizar e as nossas esquizofrenias sero aplacadas.DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho, fadiga e cio na sociedade ps-industrial. Rio de Janeiro, Jos Olympio/ Braslia, Ed. da UnB. 1999. p. 276-277.

Atividades

Questo de compreenso

1. Os tpicos relacionados a seguir visam verificar a compreenso dos temas abordados no captulo, Explique cada um deles:

a) conceito antropolgico do trabalho;

b) taylorismo, fordismo e toyotismo;

c) a sociedade ps-industrial;

d) o lazer.

Questes de interpretao e problematizao

2. Pesquise sobre as histrias a respeito da origem do trabalho: por exemplo, a expulso do Paraso, segundo o relato bblico, ou o mito grego de Prometeu.

A partir do texto seguinte, responda s questes 3 e 4.

"O poeta Mrio Quintana, no poema Das ampulhetas e das clepsidras, diz: "Antes havia os relgios d'gua, antes havia os relgios de areia, O Tempo fazia parte da natureza. Agora uma abstrao unicamente denunciada por um tic-tac mecnico, como o acionar contnuo de um gatilho numa espcie de roleta-russa. Por isso que os antigos aceitavam mais naturalmente a morte".

3. Aplique a referncia do poeta ao uso do cronmetro fazendo uma avaliao do sistema taylorista das fbricas.

4. Aceitar mais naturalmente a morte" seria uma forma de morrer bem. Em que sentido, a partir do novo ritmo de trabalho estaramos condenados a "morrer mal?.

5. Se o trabalho humaniza, discuta em que medida o movimento feminista, ao desencadear a nfase na necessidade de profissionalizao da mulher, foi responsvel tambm por sua valorizao pessoal, social e poltica.

6. Considerando ainda a proposta da questo anterior, discuta em que sentido podemos rebater afirmaes tradicionais que atribuem o trabalho domstico a uma vocao "feminina".

7. Segundo um relatrio de 1990, enquanto na Blgica um operrio da indstria automobilstica dispendia cerca de 1.600 horas por ano de trabalho, na fbrica japonesa da Toyota esse tempo se estendia a 2.300 horas. No por acaso, de acordo com Ricardo Antunes, uma decorrncia das condies de trabalho no Japo o karoshi, expresso que significa "morte sbita no trabalho, provocada pelo ritmo e intensidade, que decorrem da busca incessante do aumento da produtividade". A partir desse exemplo, comente em que medida o sistema de produo tem desvirtuado o significado humano do trabalho.

8. O advento da era da flexibilizao do trabalho exige que os trabalhadores sejam todos alfabetizados, mas tambm que seja desenvolvido outro tipo de educao para os jovens, diferente do tradicional. Explique por qu.

9. Faa uma pesquisa sobre as organizaes no-governamentais (ONGs), esclarecendo as formas de seu funcionamento e dando exemplos de atividades-fins de que se ocupam. Discuta tambm de que maneira essas atividades representam nova estrutura de trabalho.

10. Comente a frase do filsofo das cincias, Alexandre Koyr: "No do trabalho que nasce a civilizao: ela nasce do tempo livre e do jogo".

Questes sobre a leitura complementar

Tendo em vista a leitura complementar, e as citaes que a antecedem, responda s questes 11 e 12.

11. Leia a frase de Henry Ford e explique em que difere do pensamento Zen.

12. De Masi confia que uma nova organizao do trabalho poder melhorar a qualidade de vida do trabalhador. Uma parte da classe argumentar a favor da posio do autor e a outra se posicionar contra.

Dissertao

13. Tema: "Escolher uma profisso: e agora?"

Seminrio

14. Tema: a atuao dos trabalhadores nos sindicatos.

Dividir a classe em grupos e incumbir cada um de pesquisar determinado assunto referente ao tema proposto, Por exemplo: sindicatos (surgimento); sindicatos (situao atual); conquistas trabalhistas; caractersticas e funes das greves etc.

SEGUNDA PARTE - A alienao

A primeira razo pela qual os homens servem com boa vontade porque nascem servos e como tal so criados. Como que o chefe ousaria pular em cima de vs, se vs no estivsseis de acordo?

tienne de Ia Botie

A desvalorizao do mundo humano aumenta em proporo direta com a valorizao do mundo das coisas.

Karl Marx

Introduo

Hegel, filsofo alemo do sculo XIX, faz uma leitura otimista da funo do trabalho na clebre passagem "do senhor e do escravo", descrita na Fenomenologia do esprito. O filsofo se refere a dois indivduos que lutam entre si e um deles sai vencedor, podendo matar o vencido; este, no entanto, prefere se submeter, no ousando sacrificar a prpria vida. A fim de ser reconhecido como senhor, o vencedor "conserva" o outro como "servo". Depois disso, o servo submetido que tudo faz para o senhor; mas, com o tempo, o senhor descobre que no sabe fazer mais nada, porque, entre ele e o mundo, colocou o escravo, que domina a natureza. O ser do senhor se descobre como dependente do ser do escravo e, em compensao, o escravo, aprendendo a vencer a natureza, recupera de certa forma a liberdade. O trabalho surge, ento, como expresso da liberdade reconquistada.

Marx retoma a temtica hegeliana, mas critica essa viso otimista do trabalho, demonstrando como o objeto produzido pelo trabalho se torna estranho ao produtor, no mais lhe pertencendo: trata-se do fenmeno da alienao.

Hegel tambm tratara do conceito de alienao, mas, segundo sua perspectiva, ela corresponde ao momento em que o esprito "sai de si" e se manifesta na construo da cultura. A ciso provocada pelo esprito que se exterioriza na cultura por meio do trabalho superada pelo trabalho da conscincia. Segundo Marx, ao privilegiar a conscincia, Hegel perde a materialidade do trabalho, o que se compreende se considerarmos o carter idealista do pensamento hegeliano.

A posio de Marx sobre a alienao no significa que o trabalho deixe de ser visto como condio da liberdade. Ao contrrio, esse o ponto central do seu raciocnio. Para ele, a pessoa deve trabalhar para si o que no significa trabalhar sem compromisso com os outros, pois todo trabalho tarefa coletiva , no sentido de que deve trabalhar para fazer-se a si mesma um ser humano. Ora, o trabalho alienado desumaniza. Vejamos portanto em que consiste a alienao no trabalho.

1. Conceito de alienao

H vrios sentidos para o conceito de alienao:

juridicamente, significa a perda do usufruto ou posse de um bem ou direito pela venda, hipoteca etc.; nas esquinas da cidade costumamos ver cartazes chamando a ateno dos motoristas: "Compramos seu carro, mesmo alienado";

do ponto de vista da psiquiatria, o alienista o mdico de alienados mentais;

a alienao religiosa e um fenmeno de idolatria, quando um povo cria dolos e a eles se submete;

segundo a concepo poltica de Rousseau, a soberania do povo inalienvel, isto , pertence somente ao povo, que no deve outorg-la a nenhum representante, devendo ele prprio exerc-la. este o ideal da democracia direta;

na linguagem comum, alienadas so as pessoas desinteressadas de assuntos importantes, tais como questes polticas e sociais.

Em todos os sentidos, h algo em comum no uso da palavra alienao: no sentido jurdico, perde-se a posse de um bem; para a psiquiatria, o alienado mental aquele que perde a dimenso de si na relao com os outros; pela idolatria, perde-se a autonomia; segundo a concepo de Rousseau, o povo no deve perder o poder; a pessoa alienada perde a compreenso do mundo em que vive e torna-se alheia a segmentos importantes da realidade em que se acha inserida. Etimologicamente a palavra alienao vem do latim alienare, alienus, "que pertence a um outro". Alius o outro. Portanto, sob determinado aspecto, alienar tornar alheio, transferir para outrem o que seu.

Para Marx, que analisou esse conceito bsico, a alienao no puramente terica, manifesta-se na vida real, a partir da diviso do trabalho, quando o produto do trabalho deixa de pertencer a quem o produziu. Todo o resto decorrncia disso. Retomando a discusso da Primeira parte deste captulo, ao se confinar o operrio fabrica, retirando dele a posse do produto, ele prprio que perde o centro de si mesmo. No escolhe o salrio embora isso lhe aparea ficticiamente como resultado de um contrato livre , no escolhe o horrio nem o ritmo de trabalho e passa a ser comandado de fora, por foras que lhe so estranhas. Ocorre ento o que Marx chama de fetichismo da mercadoria e reificao do trabalhador.

O fetichismo o processo pelo qual a mercadoria, um ser inanimado, passa a ser considerada como se tivesse vida. Assim, os valores de troca (o que a mercadoria vale no mercado) se tornam superiores aos valores de uso (o que a mercadoria vale por sua utilidade) e determinam as relaes humanas, ao contrrio do que deveria acontecer. Ou seja, a relao entre produtores no aparece como relao entre eles prprios (relao humana), mas entre os produtos do seu trabalho (a mercadoria). Por exemplo, as relaes que prevalecem no so aquelas entre alfaiate e carpinteiro, mas entre casaco e mesa.

A mercadoria adquire valor superior ao indivduo ao serem privilegiadas as relaes entre coisas que, por sua vez, vo definir relaes materiais entre pessoas. Com isso, a mercadoria assume formas abstratas (o dinheiro, o capital), que deixam de ser intermedirias entre indivduos para se converterem em realidades soberanas e tirnicas. Em conseqncia, a "humanizao" da mercadoria leva desumanizao da pessoa, sua coisificao, reificao (do latim res, "coisa"), sendo ela prpria transformada em mercadoria.

As discusses a respeito da alienao preocuparam autores marxistas como Lukcs, Erich Fromm e Althusser, entre outros, e filsofos como o existencialista Sartre, o cristo personalista Mounier e o no-marxista Heidegger, que descreveram os modos inautnticos do existir humano.

A seguir, examinaremos a alienao na produo, no consumo e no lazer.

2. Alienao na produo

Na Primeira parte deste captulo, vimos que as propostas de racionalizao do taylorismo e do fordismo, que introduziram, entre outras coisas, a linha da montagem na produo fabril, acentuam a dicotomia concepo-execuo do trabalho. Com isso, o setor de planejamento se desenvolve, provocando intensa burocratizao. O planejamento e a burocracia se apresentam com a imagem de neutralidade e eficcia da organizao, como se estivessem baseados em um saber objetivo, competente, desinteressado. Essa imagem de neutralidade mascara um contedo ideolgico eminentemente poltico: trata-se, na verdade, de uma tcnica social de dominao.Vejamos por que.

No fcil submeter o operrio ao trabalho rotineiro e repetitivo, reduzindo-o a gestos estereotipados. Se no compreendemos o sentido da nossa ao e se o produto do trabalho no nosso, bem difcil nos dedicarmos com empenho a qualquer tarefa. O taylorismo substitui as formas de coao visveis, de violncia direta, pessoal, de um "feitor de escravos", por exemplo, por maneiras mais sutis que tornam o operrio dcil e submisso. um sistema que impessoaliza a ordem, que no aparece mais, com a face de um chefe que oprime, diluindo-a nas ordens de servio vindas do "setor de planejamento". Retira toda iniciativa do operrio, que cumpre ordens, modela seu corpo segundo critrios exteriores," cientficos", e cria a possibilidade da interiorizao da norma, cuja figura exemplar a do operrio-padro, at a um certo tempo atrs objeto de prmios e modelo a ser seguido por todos. Ainda hoje o recurso a gratificaes e promoes para se obter ndices cada vez maiores de produo gera a "caa" aos postos mais elevados na empresa e estimula a competio em vez da solidariedade. A fragmentao dos grupos e do prprio operrio facilita ao dono da empresa o controle do produto, final.

O ser humano, reduzido a gestos mecnicos, tornado esquizofrnico" pelo parcelamento das tarefas, foi retratado em tempos modernos, filme clssico de Charles Chaplin, o popular Carlitos. Nessa comdia, datada de 1936, o artista denuncia a desumanizao do operrio.

interessante lembrar que no foram apenas os pases capitalistas a lanar mo do taylorismo. A racionalizao da produo tambm foi introduzida na antiga URSS por Lnin.

Com a justificativa de que o produto do trabalho no seria apropriado pelo capitalistaj que a propriedade privada dos meios de produo fora eliminada com a revoluo de 1917 - e que, portanto, o sistema no seria utilizado para a explorao do trabalhador, mas para sua libertao. O que resultou desse empenho, porm, no foi a empresa burocratizada, foi o prprio Estado burocrtico. No faltaram crticas de grupos anarquistas, de 'intelectuais de esquerda em geral, acusando Lnin de ter esquecido o princpio da realizao do socialismo a partir de organizaes de base, ao introduzir relaes hierrquicas de poder dentro do prprio processo de trabalho.

A chamada racionalizao do processo de trabalho traz em si uma irracionalidade bsica, na medida em que desvaloriza o sentimento a emoo o, desejo.

As pessoas que aparecem nas fichas do setor de pessoal so vistas de modo impessoal, sem amor nem dio. O burocrata-diretor torna-se um profissional que as manipula como se fossem cifras ou coisas.

Talvez pudssemos pensar que a situao do trabalhador seria outra nos processos de trabalho mais flexveis como no toyotismo, conforme tratamos anteriormente neste captulo, isso porque esse novo gerenciamento exige um trabalhador qualificado participativo, capaz de tomar iniciativa, o que rompe com a rgida hierarquia do fordismo. No entanto, como vimos, o trabalho no deixa de ser alienado, na medida em que as decises no dependem do trabalhador. mas da "lgica do mercado". Mesmo porque, com a difuso das redes mundiais de empresas nem sempre se pode falar em um "patro" responsvel pelo controle do processo de produo.

3. Alienao no consumo

Marx viveu no perodo em que a explorao capitalista sobre o proletariado era muito explcita. e por isso achava que o antagonismo entre as classes chegaria ao ponto crucial em que o crescente empobrecimento do operariado levaria tomada de conscincia da dominao e conseqente superao dela por meio da revoluo. Na chamada "sociedade opulenta" dos pases economicamente mais desenvolvidos (no pensemos em termos de Brasil!) deu-se, ao contrrio, a tendncia de diminuio da explorao econmica das massas tal como tinha sido conhecido no sculo XIX.

Com a ampliao do setor de servios aumentou a classe media, multiplicaram-se as profisses de forma inimaginvel e nos aglomerados urbanos os escritrios passaram a abrigar milhares de funcionrios executivos e burocratas em geral. Na nov'a organizao acentuam-se as caractersticas de individualismo que levam atomizao e disperso dos indivduos, o que faz aumentar o seu interesse pelos assuntos da vida privada, enquanto diminui o envolvimento pessoal com as questes pblicas e polticas.

Alm disso, acentua-se a procura hedonista da busca de prazer, da satisfao imediata e da fruio do prazer, talvez justamente porque a alegria lhes tenha sido negada no trabalho alienado.

Assim a explorao e a alienao, embora continuem existindo no aparecem como atributos da esfera da produo, mas da esfera do consumo. Ao prosperarem materialmente, os trabalhadores compartilham do "esprito do capitalismo", sucumbindo aos apelos e promessas da sociedade de consumo, como veremos a seguir. A ato do consumo um ato humano por excelncia pelo qual atendemos necessidades mais amplas que no se restringem simplesmente s orgnicas.

De subsistncia. De fato, as necessidades humanas nunca so apenas aquelas essenciais sobrevivncia, mas tambm as que facilitam o crescimento humano em suas mltiplas e imprevisveis direes e do condies para a transcendncia. No ato de consumo participamos como pessoas inteiras, movidas pela sensibilidade, imaginao, inteligncia e liberdade. Por exemplo, no comemos e bebemos apenas para matar a fome ou a sede, mas escolhemos nossas refeies, temos preferncias e usamos de imaginao para criar novos pratos e bebidas. Igualmente, quando compramos roupas, diversos fatores so considerados: a proteo do corpo contra o frio e o calor; o resguardo por pudor ou a busca de uma maneira para nos sentirmos mais bonitos ou para atrair olhares; usamos de imaginao na combinao das peas, mesmo quando seguimos as tendncias da moda; desenvolvemos um estilo prprio de vestir; no compramos apenas uma pea, procuramos variar cores e modelos ou, ento, passamos a nos vestir de forma despojada, dando pouca importncia a esse tipo de preocupao.

Nesse sentido, as necessidades de consumo variam conforme a cultura e tambm dependem de cada indivduo. Enfim, o consumo consciente supe, mesmo diante de influncias externas, que a pessoa mantenha a possibilidade de escolha autnoma, no s para estabelecer suas preferncias como para optar por consumir determinado artigo ou no. Alm disso, o consumo no-alienado nunca um fim em si, mas sempre um meio para outra coisa qualquer.

No mundo em que predomina a produo alienada, no entanto, tambm o consumo tende a ser alienado. A produo em massa tem por corolrio o consumo de massa. a problema da sociedade de consumo que as necessidades so a artificialmente estimuladas, sobretudo pelos meios de comunicao de massa, levando os indivduos a consumirem de maneira alienada.

A organizao dicotmica do trabalho a que nos referimos - pela qual se separam a concepo e a execuo do produto - reduz as possibilidades de o empregado encontrar satisfao na maior parte da sua vida, enquanto se sente obrigado a realizar tarefas desinteressantes.

Da a importncia que assume para ele a necessidade de se dar prazer pela posse de bens.

Vimos que na sociedade ps-industrial a ampliao do setor de servios desloca a nfase da produo para o consumo de servios. Multiplicando-se as ofertas de possibilidade de consumo. A nica coisa a que no se tem escolha no consumir. Os centros de compras se transformam em "catedrais do consumo", verdadeiros templos cujo apelo constante ao novo torna tudo descartvel e rapidamente obsoleto. Vendem-se coisas, servios, idias. Basta ver como em tempos de eleio "vendida" a imagem dos polticos.

O modelo vermelho, Ren Magritte, 1953, leo sobre tela, 55,9 X 45,8 em. Nesta pintura, vemos a metamorfose de um p, que se transforma em sapato (ou vice-versa?) Na sociedade de consumo nosso corpo tambm transfigurado pela roupa que veste.

A estimulao artificial das necessidades provoca aberraes do consumo: monta-se uma sala completa de som, sem se gostar de msica; compra-se biblioteca "a metro", deixando volumes intocados nas estantes; adquirem-se quadros famosos, sem saber apreci-los (ou para mant-los no cofre). A obsolescncia dos objetos, rapidamente postos "fora de moda", exerce tirania invisvel, instigando a compra de televiso, refrigerador ou carro porque o design se tornou antiquado ou porque nova engenhoca se mostra "indispensvel". Quando se escolhe o refrigerante, nem sempre se bebe com o paladar: bebe-se o slogan, muitas vezes o costume de outras terras, imitando o esteretipo de jovens cheios de vida e alegria.

O consumo se torna alienado quando passa a ser um fim em si e no um meio, criando dessa forma desejos nunca satisfeitos, um sempre querer mais, um poo sem fundo. A nsia do consumo perde toda relao com as necessidades reais, o que faz com que as pessoas gastem sempre mais do que tm. O comrcio Facilita a realizao dos desejos propiciando o parcelamento das compras, o uso de cartes de crdito promovendo liquidaes e ofertas de ocasio instituindo dias dedicados s mes, s crianas s secretrias etc.

Como contraponto importante de consumo suprfluo e artificial - notado no s na propaganda, mas nos programas e nas novelas televisivos - descobrimos uma grande parcela da populao com baixo poder aquisitivo, reduzida apenas ao desejo de consumir. O que faz com que essa massa desprotegida no se revolte? Mecanismos na prpria sociedade impedem a tomada de conscincia: as pessoas tm a iluso de que vivem numa sociedade com mobilidade social e que, pelo empenho no trabalho, pelo estudo, ser possvel a mudana, ou seja, acreditam que "um dia se chega l". E se no se chega, " porque no se teve sorte ou competncia". preciso no esquecer, tambm, que essa mesma viso acaba favorecendo a opo de alguns pelos caminhos tortuosos da corrupo e por outras formas que garantem o enriquecimento ilcito.

Por outro lado, uma srie de escapismos na literatura descompromissada e nas telenovelas t1zem com que as t1ntasias dessa massa de desfavorecidos sejam realizadas de forma imaginria; isso sem falar na esperana semanal de enriquecimento pelas loterias. Alm disso, h sempre o recurso ao ersatz, ou seja, imitao barata da roupa, da jia, da loua fina da rica senhora.

O torvelinho produo-consumo em que nos achamos mergulhados nos impede de ver com clareza essa explorao e essa perda de liberdade, de tal forma ficamos reduzidos a uma s dimenso, segundo o conceito de unidimensionalidade do filsofo Frankfurtiano Marcuse. Ao deixarrmos de ser o centro de ns mesmos, perdemos a dimenso de contestao e crtica, destruindo-se em ns a possibilidade de fazermos oposio nos campos da poltica, da arte, da moral. Talvez por isso, seja to difcil nesse mundo achar um lugar para a filosofia, que , por exceIncia, o discurso ela contestao.

4. Alienao no lazer

No mundo em que a produo e o consumo so alienados, difcil evitar que o lazer tambm no o seja. A passividade e o embrutecimento nessas atividades repercutem no tempo livre. Sabe-se que pessoas submetidas a trabalho mecnico e repetitivo tem o tempo livre ameaado mais pela fadiga psquica do que fsica, tornando-se incapazes de se divertir. Ou, ento, exatamente ao contrrio, procuram compensaes estimulantes e at violentas que as recuperem do amortecimento dos sentidos.

A propaganda da bem-montada indstria do lazer, ao contribuir, por sua vez, com esse processo de alienao, orienta as escolhas e os modismos, manipula o gosto, determinando os programas. Dependendo da poca, elegem-se atividades, como boliche, patinao esportes radicais, destacam-se danceterias e barzinhos especficos, filmes da moda, locais de viagem.

At aqui, tratamos de determinado segmento social que dispe do tempo e do dinheiro para o lazer. Resta lembrar, ainda, que as cidades no oferecem infra-estrutura que garanta aos mais pobres a ocupao do seu escasso tempo livre em atividades gratuitas: lugares onde ouvir msica, praas para passeios, vrzeas para o joguinho de futebol, clubes populares, locais de integrao social espontnea. Essa restrio torna muito reduzida a possibilidade do lazer ativo, no-alienado, ainda mais se lembrarmos que as pessoas se encontram submetidas a vrias formas de massificao pelos meios de comunicao.

Vimos que o lazer ativo se caracteriza pela participao integral da pessoa como ser capaz de escolha e de crtica. Dessa forma, o lazer ativo permite a reformulao da experincia, o que no ocorre com o lazer passivo, no qual a informao recebida ou a ao executada no se reorganizam, de modo que nada acrescentam de novo, ao contrrio, reforam comportamentos mecanizados. bom lembrar que o carter de atividade ou passividade nem sempre decorre do tipo de lazer em si. Assim, duas pessoas que assistem ao mesmo filme podem ter atitude ativa ou passiva, dependendo da maneira pela qual se posicionam como capazes ou no de comparar. apreciar,julgar e decidir por si mesmas e no influenciadas por modismos ou propagandas massificantes.

5. Crtica sociedade administrada

Ao tratarmos da produo humana, fizemos referncia ao poder de transformar a natureza e usIa em funo de nossos interesses. E desde que a cincia possibilitou a revoluo tecnolgica, esse poder vem sendo ampliado enormemente. Se at aqui demos conta apenas dos prejuzos que a tcnica pode causar pessoa submetida alienao, preciso no esquecer que a prpria natureza tem sofrido com o abuso exercido sobre ela. A exaltao indiscriminada do progresso quase nunca rem respeitado a sua integridade. a ponto de organizaes de defesa do meio ambiente denunciarem desde muito tempo as ameaas sobrevivncia do planeta.

Chegamos ao impasse que nos deixa perplexos diante tcnica - apresentada de incio como libertadora - e que pode se mostrar, afinal, artfice de uma ordem tecnocrtica opressora. Ao se submeter passivamente aos critrios de produtividade e desempenho no mundo competitivo do mercado, o indivduo perde muito do prazer em sua atividade produtora, que passa a ser regida por princpios aparentemente "racionais". Mais ainda na sociedade da total administrao, segundo a expresso de Horkheimer e Adorno, os conflitos foram dissimulados, pois a oposio deixa de acontecer, na medida em que o ser humano perdeu sua dimenso de crtica.

Sem assumirmos a posio ingnua da acusao gratuita da tcnica, preciso nos preocuparmos com a absolutizao do "esprito da tcnica": essa razo instrumental predominantemente tcnica, usada na organizao das foras produtivas que visam atingir nveis altos de produtividade e competitividade. Onde a tcnica se torna o princpio motor, a pessoa se encontra mutilada, porque reduzida ao anonimato, s funes que desempenha, e nunca um fim, mas sempre meio para qualquer coisa que se acha fora dela. Enquanto prevalecerem as funes divididas daquele que pensa e do que s executa, ser impossvel evitar a dominao, pois sempre existir a idia de que s alguns sabem e so competentes e portanto decidem, enquanto a maioria que nada sabe incompetente e deve obedecer.

O filsofo alemo Habermas, herdeiro da tradio da Escola de Frankfurt, detm-se na anlise dos efeitos perversos do sistema de produo, opondo os conceitos de razo instrumental e razo comunicativa, referentes a dois aspectos distintos da realidade social. Para ele, a lgica da razo instrumental no a mesma da razo vital, que prevaleceria no mundo vivido das experincias pessoais e da comunicao entre as pessoas. Ora, a irracionalidade no mundo moderno - e a sua patologia - decorre da sobreposio da lgica da razo instrumental em setores que deviam ser regidos pela razo comunicativa.

Dessa forma no se pretende negar o valor da razo instrumental, mas resgatar o que foi perdido em termos de humanizao, quando a razo tcnica se sobrepe razo vital. Nem se pretende considerar o ser humano indefeso diante de um determinismo a que no pode fugir. A questo fundamental, hoje, a da necessidade da reflexo moral e poltica sobre os fins das aes humanas no trabalho, no consumo, no lazer, nas relaes afetivas, observando se esto a servio do ser humano ou da sua alienao.

Atividades

Questo de compreenso

1. Os pontos a seguir visam verificar a compreenso dos temas abordados no captulo. Explique cada um deles: conceito de alienao; alienao na produo, no consumo e no lazer; condies para superar a alienao.

Questes de interpretao e problematizao

2. Dentre as fbulas de La Fontaine, "A cigarra e a formiga" bem representativa da nfase burguesa no trabalho e na condenao do cio: Explique como essa fbula faz sentido na poca em que foi criada (sculo XVIII) e como hoje a cigarra poderia ser reabilitada e a formiga ser vista com outros olhos.

3. O Brasil pioneiro na elaborao do Cdigo de Defesa do Consumidor. Informe-se sobre sua importncia no s no efetivo cumprimento da lei, mas tambm por ter ampliado a conscincia dos direitos do consumidor.

4. A partir do conceito de alienao no consumo, interprete o que o poeta Thiago de Mello diz no Artigo XIII de Os estatutos do homen: Fica decretado que o dinheiro no poder nunca mais comprar o sol das manhs vindouras.

5. Comente a frase de Goethe no romance Werther: "A espcie humana de uma desoladora uniformidade; a sua maioria trabalha durante a maior parte do tempo para ganhar a vida, e, se algumas horas lhe ficam, horas to preciosas, so-lhe de tal forma pesadas que busca todos os meios para as ver passar. Triste destino o da humanidade!".

6. Discuta a diferena entre a arte e o entretenimento da cultura de massa, a partir da seguinte citao: "Contra a concepo de natureza como objeto disponvel e manipulvel para a explorao, os frankfurtianos propem a gratuidade da fruio esttica e da arte. [...] A arte testemunha de um outro princpio de realidade que no o da submisso produtividade, ao desempenho no mundo competitivo do trabalho e da renncia ao prazer. Trata-se de um princpio que reconcilia o homem com a natureza exterior, interior e com a histria". (Olgria Matos)

Dissertao

7. Tema: "A desvalorizao do mundo humano aumenta em proporo direta com a valorizao do mundo das coisas. (Marx)

Seminrio

8. O lazer no sculo XXI.

Discutir sobre a importncia do aproveitamento do tempo de lazer, diante da possibilidade da ampliao do tempo de cio e da multiplicao das formas de ocupar o tempo livre.

Captulo 5

A ideologia

Jogamos os jogos da vida, obedecendo a livros de regras escritos com letra invisvel ou com um cdigo secreto.

Arthur Koestler

1. Senso comum e bom senso

Chamamos senso comum ao conhecimento adquirido por tradio, herdado dos antepassados e ao qual acrescentamos os resultados da experincia vivida na coletividade a que pertencemos.Trata-se de um conjunto de idias que nos permite interpretar a realidade, bem como de um corpo de valores que nos ajuda a avaliar, julgar e, portanto, agir. O senso comum, porm, no refletido e se encontra misturado a crenas e preconceitos. um conhecimento ingnuo (no-crtico), fragmentrio (porque difuso, assistemtico e muitas vezes sujeito a incoerncias) e conservador (resistente s mudanas).

Com isso no queremos desmerecer a forma de pensar do indivduo comum, mas apenas enfatizar que o primeiro nvel de conhecimento precisa ser superado em direo a uma abordagem crtica e coerente, caractersticas que no precisam se restringir necessariamente s formas mais requintadas de conhecer, tais como a cincia ou a filosofia.

Em outras palavras, o senso comum precisa ser transformado em bom senso, entendido como elaborao coerente do saber e como explicitao das intenes conscientes dos indivduos livres. Segundo o filsofo Gramsci, o bom senso "o ncleo sadio do senso comum". Qualquer pessoa, estimulada no exerccio de compreenso e crtica, torna-se capaz de juzos sbios, porque vitais, isto , orientados para sua humanizao.

Geralmente os obstculos passagem do senso comum ao bom senso resultam da excluso do indivduo das decises importantes na comunidade em que vive. Em sociedades no democrticas, as informaes no circulam igualmente em todas as camadas sociais, por isso nem todos tm igual possibilidade de consumir e produzir cultura. No Brasil, por exemplo, muitas crianas em idade escolar esto excludas da educao, isso sem falar da pirmide educacional, dos que no conseguem permanecer na escola no decorrer do processo, fazendo restar uma porcentagem muito pequena de estudantes que atingem os nveis superiores de escolarizao.

No entanto, no so apenas as pessoas menos instrudas que nem sempre conseguem passar do senso comum para o bom senso. Funcionrios de empresas, empresrios, sacerdotes, professores cientistas, especialistas de qualquer rea, podem estar restritos a formas fragmentrias do senso comum quando, em determinados setores de sua vida pessoal, encontram-se presos a preconceitos, a concepes rgidas, sucumbindo ao massificante dos meios de comunicao ou ao peso da tradio.

Outras vezes, renunciamos ao exerccio do bom senso quando nos submetemos ao poder dos tecnocratas, seduzidos pelo "saber do especialista". Basta observar a timidez de deciso dos pais que, ao educarem os filhos, delegam poderes a psiclogos, pedagogos, pediatras. Ao dizer isso, no estamos desvalorizando a importante contribuio de cientistas e tcnicos, apenas ressaltamos que o leigo no precisa permanecer passivo diante do saber do tcnico,demitindo-se de certas aes quando ele prprio poderia exerc-las. Ele tem o direito, por exemplo. De informa-se ativamente a respeito do tratamento mdico a que se acha submetido e sobre seus efeitos. Em.ltima anlise, convm desmistificar. a tendncia de cultuar as pessoas "estudadas" em detrimento das que so "sem letras" ou simplesmente no-especialistas.

Qualquer indivduo, se no foi ferido em sua liberdade e dignidade, ser capaz de desenvolver a autoconscincia, de elaborar criticamente o prprio pensamento e de analisar a situao em que vive. sob esse aspecto que o bom senso se aproxima de filosofia. Da filosofia de vida, como entendemos no Captulo 8 A reflexo filosfica. Porm, no automtica a passagem do senso comum ao bom senso e um dos obstculos ao processo encontra-se na difuso da ideologia, entendida no seu sentido restrito como abordaremos no item 3 deste captulo.

2. Ideologia: sentido amplo

H vrios significados para a palavra ideologia. Em sentido amplo, o conjunto de idias, concepes ou opinies sobre algum ponto sujeito a discusso. Quando perguntamos qual a ideologia de determinado pensador. estamos nos referindo doutrina, ao corpo sistemtico de idias e ao seu posicionamento interpretativo diante de certos fatos. assim que falamos em ideologia liberal ou ideologia marxista.

Ainda podemos considerar a ideologia como teoria, no sentido de organizao sistemtica dos conhecimentos que antecedem a ao efetiva, tal como nos referimos ideologia de uma escola, que orienta a prtica pedaggica; ideologia religiosa, que d regras de conduta aos fiis; ideologia de um partido poltico. que fornece diretrizes de ao a seus filiados. A expresso atestado ideolgico nos remete declarao exigi da sobre a filiao partidria de algum. No Brasil, durante o recrudescimento do poder autoritrio da ditadura militar. rgos como o Deops (Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social) exigiam em certas circunstncias inclusive para ser contratado para o servio pblico, como professor, por exemplo a apresentao de atestados desse tipo, a fim de controlar a adeso s ideologias marxistas, ento consideradas perigosas segurana nacional.

3. Ideologia: sentido restrito

O conceito de ideologia tem outros sentidos mais especficos, elaborados por autores como Destutt de Tracy, Comte, Durkheim, Weber, Manheim.Mas sobretudo com Marx que a explicitao do conceito veio enriquecer o debate em torno do assunto e de sua aplicao. Para ele, diante da tentativa de explicar a realidade e dar regras de ao, preciso considerar tambm as formas de conhecimento ilusrio que levam ao mascaramemo dos conflitos sociais. Segundo a concepo marxista, a ideologia adquire um sentido negativo, como instrumento de dominao.

Isso significa que a ideologia tem influncia marcante nos jogos do poder e na manuteno dos privilgios que plasmam a maneira de pensar e de agir dos indivduos na sociedade. A ideologia seria de tal forma insidiosa que at aqueles em favor de quem ela exercida no perceberiam o seu carter ilusrio.

A concepo de Gramsci

Segundo o filsofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) preciso distinguir entre ideologias orgnicas e ideologias arbitrrias. As primeiras so historicamente necessrias porqueorganizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquire conscincia de sua posio, lutam etc.". Para Gramsci, pode-se dar ao conceito de ideologia "o significado mais alto de uma concepo de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econmica, em todas as manifestaes de vida individuais e coletivas" e que tem por funo conservar a unidade de todo o bloco social.

Portanto, Gramsci considera que, em um primeiro momento, como concepo de mundo, a ideologia tem a funo positiva de atuar como cimento da estrutura social. Quando incorporada ao senso comum, ela, ajudar a estabelecer o consenso, conferindo hegemonia a determinada classe, que passar a ser dominante. Evitando a concepo mecanicista, Gramsci considera que os dominados no permanecem submissos indefinidamente, j que podem desenvolver elementos de bom senso e de valores de pertencimento classe, que, por sua vez, formaro aos poucos a sua ideologia. Da a necessidade de intelectuais da prpria classe subalterna capazes de organizar coerentemente a concepo de mundo dos dominados.

Conceituao de ideologia

Vejamos agora a definio dada pela professora Marilena Chaui: "a ideologia um conjunto lgico, sistemtico e coerente de representaes (idias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela , portanto, um corpo explicativo (representaes) e prtico (normas, regras, preceitos) de carter prescritivo, normativo, regulador, cuja funo dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicao racional para as diferenas sociais, polticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenas diviso da sociedade em classes, a partir das divises na esfera da produo. Pelo contrrio, a funo da ideologia a de apagar as diferenas, como as de classes, e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade. a Liberdade, a Igualdade, a Nao, ou o Estado".

Observamos ento que a ideologia apresentada com as seguintes caractersticas fundamentais:

Constitui um corpo sistemtico de representaes que nos ensinam a pensar e de normas que nos ensinam a agir;

Assegura determinada relao dos indivduos entre si e com suas condies de existncia, adaptando-os s tarefas prefixadas pela sociedade;

As diferenas de classe e os conflitos sociais so camuflados, ora com a descrio da "sociedade una e harmnica", ora com a justificao das diferenas existentes;

Assegura a coeso social e a aceitao sem crticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da "vontade de Deus" ou do "dever moral" ou simplesmente como decorrncia da "ordem natural das coisas";

Mantm a dominao de uma classe sobre outra.

interessante observar que a ideologia no uma mentira que os indivduos da classe dominante inventam para subjugar a classe dominada, porque tambm os que se beneficiam dos privilgios sofrem a influncia da ideologia, o que lhes permite exercer como natural sua dominao, aceitando como universais os valores especficos de sua classe. Portanto, a ideologia se caracteriza pela naturalizao, na medida em que so consideradas naturais situaes que na verdade resultam da ao humana e, como tal, so histricas e no naturais: por exemplo, quando se considera natural que a sociedade esteja dividida em ricos e pobres ou que uns mandem e outros obedeam.

Outra caracterstica da ideologia a Universalizao, pela qual os valores de quem detm o poder so estendidos aos que a ele se submetem. assim que a empregada domstica "boazinha" no discute salrio nem reclama se trabalha alm do horrio. Tambm os missionrios que acompanhavam os colonizadores s terras conquistadas certamente no percebiam o carter Ideolgico da sua ao ao imporem a religio e a moral estranhas s do povo dominado.

A universalidade das idias e dos valores resulta de uma abstrao, ou seja, as representaes ideolgicas no se referem ao concreto, mas ao aparecer social. Por exemplo, a "sociedade una e harmnica" uma abstrao, porque, ao analisarmos concretamente as relaes sociais, descobrimos a diviso de classes e os conflitos de interesses.

A universalizao e a abstrao supem uma lacuna ou o ocultamento de alguma coisa que no pode ser explicitada sob pena de desmascaramento da ideologia. Por isso a ideologia ilusria, no no sentido de ser "falsa" ou "errada", mas como aparncia que oculta a maneira pela qual a realidade social foi produzida. Sob o aparecer da ideologia existe a realidade concreta que precisa ser descoberta pela anlise da gnese do processo.

Vejamos outros exemplos.

A afirmao de que "o trabalho dignifica" difcil de ser contestada. Como j vimos em outro captulo, ns nos distinguimos do animal pelo trabalho, com o qual humanizamos a natureza e a ns mesmos. No entanto, essa afirmao torna-se ideolgica quando se baseia em uma abstrao, ou seja, quando consideramos apenas a idia de trabalho, independentemente da analise da situao concreta e histrico-social em que de fato realizado. Nesse caso, o que descobrimos pode ser exatamente o contrrio: o embrutecimento e a reificao (coisificao) do ser humano, e no a condio de sua dignidade.

Ao dizer que o salrio paga o trabalho, podemos estar diante de uma lacuna quando analisando a gnese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-valia e, portanto, o artifcio do qual deriva a explorao do trabalhador, que produz a sua alienao e oculta a diferena de condio de vida das pessoas da comunidade.

A educao um direito de todos uma verdade e at indica uma obrigao do Estado, j que h exigncia legal de todo cidado completar o ensino fundamenta. Mas essa afirmao se torna abstrata e lacunar ao apresentar como universal o que, de fato, no beneficia a todos: as estatsticas confirmaram a evaso e o baixo ndice de freqncia escolar por parte dos segmentos sociais desfavorecidos. Mesmo que sejam dadas explicaes para esse insucesso, em funo das dificuldades de adaptao, da necessidade de trabalhar desde cedo e at do desinteresse ou preguia dos alunos, o que permanece oculto que h contradio entre os que produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e os que se apossam dessas riquezas, de cujo beneficio so excludos os seus produtores. Portanto, a educao aparece como direito de todos. mas, analisando a gnese da produo e o usufruto dos bens, descobre-se que a educao est restrita, em grande parte, aos, que detm o poder.

Alm disso, a ideologia representa a realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da realidade posto como produto e vice-versa; o que efeito passa a ser considerado causa, o que determinado tido como determinante. Para a ideologia burguesa, por exemplo, a desigualdade social resulta de diferenas individuais: a desigualdade natural seria a causa da desigualdade social. Ora, na verdade, as desigualdades sociais estabelecidas pela diviso social do trabalho e pelas relaes de produo que e de fato so causas das desigualdades individuais. Por exemplo, se o filho de operrio no melhora o padro de vida, isto explicado como resultado da sua incompetncia, falta de fora de vontade ou disciplina, quando na realidade ele joga um jogo de cartas marcadas em que suas chances de melhorar no dependem dele, mas de quem detm os meios de produo.

Com isso, no desconsideramos as diferenas que de fato existem entre indivduos, em termos de interesse, aptido, inteligncia. Pelo enfoque ideolgico, porm, o sucesso das pessoas parece depender apenas da competncia do indivduo, sem que sejam levadas em conta as dificuldades decorrentes da diviso de classes.

Outra inverso prpria da ideologia a maneira pela qual se estabelecem as relaes entre teoria e prtica, em que a teoria considerada superior prtica, porque a antecede e "ilumina". As idias tornam-se autnomas e so consideradas causa da ao humana, e no o contrrio. A diviso hierrquica entre o pensar e o agir se encontra tambm na dicotomia da sociedade, em que um segmento se dedica ao trabalho intelectual e outro, ao trabalho manual. Sob esse esquema, uma classe sabe pensar, enquanto a outra "no sabe pensar" e portanto s executa o que lhe mandam fazer. Dessa forma, aos indivduos dos segmentos privilegiados cabe decidir, porque "sabem", e, aos demais, apenas obedecer.

4. O discurso no-ideolgico

A ao e o pensamento humanos nunca se acham totalmente determinados pela ideologia. Sempre haver espaos de crtica e fendas que possibilitem a elaborao do discurso contra ideolgico. No simples, no entanto, o trabalho de desvelamento do real, porque a ideologia penetra em setores insuspeitados: na educao familiar e escolar, nos meios de comunicao de massa, nas igrejas, nos hospitais psiquitricos, nas prises, nas indstrias, impedindo de todas as formas a flexibilidade entre o pensar e o agir, determinando a repetio de frmulas prontas e acabadas.

Por outro lado, exatamente nesses mesmos espaos que veiculam a ideologia que poder ser iniciado o processo de conscientizao. O que distingue, portanto, o discurso ideolgico do no-ideolgico, ao qual podemos chamar simplesmente de teoria?

Se o discurso ideolgico abstrato e lacunar, faz uma anlise invertida da realidade e separa o pensar e o agir, o discurso no-ideolgico aquele que visa o preenchimento das lacunas pela procura da gnese do processo. Isso no significa que se deva contrapor ao discurso lacunar um discurso "pleno", mas sim a elaborao da crtica, do contradiscurso que revele a conrtradio interna do discurso ideolgico e que o faa explodir. Alm disso, a teoria estabelece uma relao dialtica com a prtica, ou seja, uma relao de reciprocidade e simultaneidade, e no a relao hierrquica, como no discurso ideolgico. Explicando: existe uma relao indissolvel entre teoria e prtica, porque todo agir humano antecedido por um projeto, da mesma forma que a teoria no algo que se produza independentemente da prtica, pois seu fundamento a prpria prtica. Ns conhecemos as coisas na medida em que as produzimos, da toda teoria se torna lacunar - e portanto ideolgica -, sem o vai-e-vem entre o fato e o pensado.

Ora, o saber que resulta do trabalho um saber instituinte e, portanto, vivo, mvel, com toda a fora decorrente do processo dinmico de se fazer. Ao contrrio, o saber ideolgico o saber institudo que, se no for acompanhado pelo vigor da crtica, poder se tornar esclerosado. Por isso, importante o papel da filosofia para romper as estruturas petrificadas que justificam as formas de dominao.

Se a ideologia permeia o tecido social e se radica em instncias insuspeitadas das relaes humanas, preciso reconhecer, no entanto, que no se torna de uma fora a que as pessoas se submeteriam de maneira irrevogvel. Cabe ao empenho aplicado em diversos espaos - na famlia, na escola. no trabalho, na mdia etc. - faz-los funcionar como micropolticas voltadas para a democratizao das relaes humanas e no para a manuteno de formas hierarquizadas e imobilistas.

Na seqncia deste captulo, veremos com mais detalhes como a ideologia se enraza em diversos setores do nosso cotidiano.

5. A ideologia em ao

A ideologia na escola

Desde o final do sculo XIX e na primeira metade do sculo XX, pedagogos influenciados pelas teorias da chamada escola nova defenderam a idia otimista de que a educao teria funo democratizadora, como fator de mobilidade social. Ao contrrio das expectativas, porm. constataram-se altas taxas de repetncia e evaso escolar, sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade. Embora os ndices fossem mais perversos nos pases em desenvolvimento, como o caso do Brasil, essa distoro acontecia tambm em outras regies do mundo.

Por volta de 1970, tericos franceses passaram a admitir que a escola no equalizadora, mas reprodutora das diferenas sociais. Segundo alguns desses pensadores, o prprio funcionamento da escola repetiria a estrutura hierarquizada do sistema, reproduzindo as relaes autoritrias existentes fora dela. Mais ainda, ao acentuar a dicotomia entre teoria e prxis, a escola desvaloriza o trabalho manual, privilegia o trabalho intelectual. Como tambm torna a prpria teoria estril, j que a mantm distanciada da prtica. Em decorrncia dessas concepes pessimistas a respeito da atuao da escola, outros estudiosos passaram a investigar o carter ideolgico da produo da literatura infanto-juvenil e dos livros didticos.

A partir dessa anlise, porm, no devemos generalizar apressadamente, reduzindo a escola e o material didtico em instrumentos de ideologia. por ser uma posio por demais redutora. Se os tericos crtico-reprodutivistas nos alertaram para o Fato de a prxis educativa no ser neutra, mas se achar vinculada sociedade em que atua, s relaes de produo, ao sistema poltico. isso no significa que ficamos reduzidos a peas de engrenagem e sem fora de ao, uma vez que ningum joguete passivo de mistificao,

Alm disso, as boas escolas so crticas do sistema e cada vez mais buscam aproximar ensino e vida; e os bons autores, tanto de livros didticos como de fico, ao lado da discusso sobre valores humanos considerados importantes, tm sabido abordar, com sutileza, sem moralismos, os temas que revelam os riscos e perigos dos desvios em que envereda muitas vezes a humanidade. Sempre haver na escola e nos livros a possibilidade de professores, autores e alunos inventarem prticas que se tornem crticas da inculcao ideolgica.

A escola um espao possvel de luta, de ,denncia da domesticao e de procura de solues criativas.

A ideologia nas histrias em quadrinhos

Os quadrinhos so um fenmeno caracterstico da cultura de massa e tm sua principal, divulgao no sculo XX, quando comeam a aparecer nas publicaes dirias dos jornais. Como expresso complexa da produo contempornea, alm da funo de entretenimento lazer, tm tambm a funo mtica e fabuladora tpica das obras de fico, alm de preencherem funes estticas, representantes que so de urna nova linguagem artstica.

Nossa abordagem do tema parte da reflexo acerca da ambigidade de toda produo cultural: ao mesmo tempo que serve conscincia, pode servir alienao; tanto leva ao conhecimento como escamoteao da realidade; tinto pode ser criativa como paralisadora.

No incio de 1970 - na mesma dcada em que os tericos da educao desenvolveram a tese da escola reprodutora do sistema -, dois chilenos, ArieI Dorfman e Armand Mattelart, defenderam a tese de que a leitura das histrias em quadrinhos no era to inocente assim como se pensava. Fizeram impiedosa crtica aos quadrinhos, da qual no escaparam desde os super-heris at os aparentemente inofensivos personagens de Walt Disney.

Esses autores denunciam a ideologia subjacente aos quadrinhos, nos quais as histrias escamoteiam os conflitos. transmitem uma viso deformada do trabalho e levam passividade poltica. Para eles, na maioria das histrias em quadrinhos a sociedade aparece como una, esttica e harmnica e a "ordem natural" do mundo quebrada apenas pelos viles, que, encarnando o mal, atentam geralmente contra o patrimnio (roubo de bancos, jias e caixas-fortes). A defesa da legalidade dada e no-questionada feita pelos "bons", com a morte dos "maus" ou com a integrao desses norma estabelecida.

Resulta dai um Maniquesmo simplista, que reduz todo conflito luta entre o bem e o mal; sem considerar quaisquer nuanas de uma sociedade em que as pessoas e os grupos possam ter opinies e interesses divergentes.

Segundo essa viso crtica elaborada na dcada de 1970, o que observado para as histrias em quadrinhos pode ser estendido para a produo literria dos chamados romances B (de puro entretenimento), para o cinema e programas de tev, sejam novelas ou quadros humorsticos.

A fim de no sermos injustos com a imensa variedade de produo artstica, convm atenuar essa leitura que, muitas vezes, se torna extremamente simplista. No campo dos quadrinhos, por exemplo, preciso considerar aqueles que no so ideolgicos, na medida em que, mesmo sem perder a dimenso de divertimento e prazer, propiciam uma viso crtica da sociedade e de ns mesmos.

Um exemplo j clssico o da Mafalda, de Quino, pseudnimo do argentino Joaquim Salvador Lavado (1932) que, de forma bem-humorada, questiona os costumes, a poltica, o conformismo e os preconceitos humanos, na esperana de um mundo melhor. Seus amiguinhos representam os esteretipos criticveis da alienao, do excessivo pragrnatismo e do egocentrismo, bem como os tipos da contestao e da criatividade.

Nos Estados Unidos, Charles M. Schulz (1927-2000) criou histrias que revelam as dificuldades de relacionamento humano, a partir de personagens como Charlie Brown, menino de bom corao, mas tmido, desastrado e um pouco deprimido; Snoopy, o co beagle que age como um adulto bem-sucedido e capaz de "filosofar" sobre a vida; Lucy, mandona, egosta e sarcstica; Linus, inseguro, com seu inseparvel cobertorzinho. Outro quadrinheiro famoso Bill Watterson que, com a dupla Calvin e seu tigre Haroldo, faz crticas ao mundo adulto. No por acaso, o nome do menino rebelde Calvin foi inspirado em Calvino, lder religioso protestante do sculo XVI, e na verso original o nome do tigre Hobbes, meno explcita ao filsofo do sculo XVII que tinha uma viso pessimista da natureza humana.

No entanto, nos pases em "vias de desenvolvimento", continua a dificuldade de implantao dos quadrinhos nacionais, devido fora de difuso das multinacionais dos quadrinhos. Apesar disso, muitos artistas. tais como Angeli, Glauco, Fernando Gonsales, Ziraldo, irmos Caruso, Laerte, seja em tiras ou em charges, recuperam nossa realidade vivida, com o aproveitamento de temas e situaes a partir do imaginrio nacional. Alm disso, esse trabalho se efetiva no apenas como reproduo do pensar brasileiro, mas tambm como questionamento dele.

Outros espaos de ao ideolgica

A ideologia se faz presente nos mais diversos Campos de atuao. Um deles a propaganda. Como vimos no Captulo 3 - Trabalho e alienao, vivemos em uma poca de consumismo explcito, em que as pessoas so levadas a comprar muito mais do que necessitam e pressionadas por desejos artificialmente estimulados.

Tudo bem que possamos entender a propaganda como uma maneira de divulgar ao provvel consumidor a variedade e a qualidade do que produzido, o que por sinal muito bem feito pelas competentes agncias de propaganda. No entanto, estamos aqui falando das situaes em que o indivduo perde o centro de si mesmo e passa a depender de valores de posse que acabam por determinar outras escolhas importantes de sua vida pessoal, como nas reas do trabalho e das relaes afetivas.

A propaganda no vende apenas produtos, mas tambm idias. Compramos o "sonho americano", o desejo de "subir na vida", os estilos de vida, as convices polticas e ticas que de certa forma so veiculadas sub-repticiamente nos comerciais. Isso sem falar nas campanhas de governos ou no marketing dos candidatos a qualquer cargo pblico.

O impacto do "mundo dos produtos" em nossas vidas tem se acelerado, na medida em que vem se acentuando o processo de globalizao, pelo qual modelado um tipo de cultura calcado na produo e no consumo. No se trata mais de um pas fabricar um produto inteiro, mas, por questes econmicas e de variaes locais, os produtos passam a ser fabricados em partes e em vrios lugares: Um carro esporte Mazda desenhado na Califrnia, financiado por Tquio o prottipo criado em Worthing (Inglaterra) e a montagem feita nos Estados Unidos e Mxico. usando componentes eletrnicos inventados em Nova Jrsei, Fabricados no Japo. [...] Um filme-global, realizado para um pblico, alvo mundial, produzido [...] em Hollywood, dirigido por um cineasta europeu, financiado pelos japoneses, contm no elenco vedetes internacionais, e a cenas passam por vrios lugares do planeta.

Evidentemente, a essa padronizao na produo, que torna o mundo cada vez idntico, corresponde um esforo de propaganda para atingir o pblico em todos os lugares, seja pela veiculao de campanhas publicitrias universais. seja pela adaptao do produto a certas especificidades nacionais, mas sempre tendo em vista a sua insero no mercado mundial. Como conseqncia, d-se uma homogeneizao dos hbitos de consumo.

Outro espao possvel de ao da ideologia o da mdia, pela qual tomamos conhecimento d noticirio, por meio de jornais, revistas, tev, internet. No entanto, sempre que temos acesso a uma notcia, preciso lembrar que j estamos diante de uma escolha que fizeram por ns, porque muitos outros acontecimentos so descartados como no to importantes para serem divulgados.

Trata-se de conduta necessria, dado o espao no jornal ou o tempo de locuo. s vezes, porm, ocorre uma "ocultao" voluntria, em que certos fatos importantes no so veiculados. Por exemplo, no tempo da ditadura no Brasil, sobretudo no governo do presidente Mdici, greves e manifestaes contra o governo no eram noticiadas, muito menos prises arbitrrias e torturas.

Alm disso, ao "contarmos um fato", destacamos o que consideramos relevante, o que sempre supe um vis pessoal que no permite neutralidade total. No estamos sequer falando da m-f, que voluntariamente distorce os acontecimentos a partir de interesses pessoais ou de classe, mas da inevitvel interpretao que fazemos de qualquer evento. Nesse sentido, a imprensa falada e escrita formadora de opinio, o que representa algo positivo, desde que, numa sociedade plural, tenhamos acesso a diversos veculos de informao a fim de poder comparar a diversidade de posicionamentos e ento assumir uma posio crtica pessoal. Sabemos que nem sempre ISSO acontece, porque somente os grandes jornais tm condies de se impor, enquanto os pequenos alternativos nem sempre suportam a concorrncia.

As distores ocorrem quando a empresa jornalstica determina o que deve ser considerado notcia. Por exemplo, na propaganda pr-guerra contra o Iraque, em 2003, a mdia favorvel ao militar dos EUA ressalta os aspectos negativos do governo desptico de Saddam Hussein, associando os iraquianos ao "eixo do mal" ou identificando todos os rabes com um s modelo a ser desqualificado.

H distoro tambm quando a notcia manipulada por meio de recursos lingsticos. Por exemplo, ao noticiar uma greve de professores, a manchete :Milhares de crianas sem aula", e no caso de greve de operrios" Milhes de dlares de prejuzo", o que j fornece uma "chave" interpretativa para a notcia, que induz o leitor a ficar contra a greve. Da mesma forma, quando so utilizados adjetivos carregados de juzos de valor, como "baderneiros", "perturbadores da ordem", "fanticos" etc.

Pode ocorrer tambm que a mdia sucumba presso de grupos que lhe garantem as verbas de publicidade, o que significa se submeter lgica do mercado. Alm disso, quanto s notcias internacionais, muitas vezes h a dependncia de correspondentes estrangeiros que monopolizam os fluxos informativos.

A diferena entre a informao ideolgica e a no-ideolgica que a primeira impede o pluralismo, veicula interesses e se transforma em instrumento de poder J a informao no-ideolgica est aberta discusso e dispe de espaos para opinies diversificadas. Bem sabemos como a atuao da mdia tem sido importante em situaes histricas vividas por ns no combate corrupo, aos desmandos polticos e exigncia de medidas saneadoras.

Outro grande problema que a maioria da populao no leitora nem tem acesso ao debate de opinies.

Como vimos, a ideologia est presente no cotidiano, na propaganda, na mdia nas atividades que julgamos incuas, como ler quadrinhos, romances classe B, assistir televiso, ler jornais e revistas, bem como em instituies s quais confiamos a nossa formao e a de nossas crianas: a escola. Contudo, precisamos lembrar que tarefa de cada um questionar esse discurso, onde ele existe, a partir da vivncia concreta, da procura por teorias que nos levam a aprender a analisar o mundo ao nosso redor, do trabalho crtico que empreendemos ao construir nossa existncia.

Os produtos culturais, os bens e os servios nossa disposio. as instituies, como escolas, hospitais, fabricas, centros de cultura, imprensa etc.,

Podem ser uma forma de alienao do mundo real em que vivemos, ao nos passarem a iluso de que as desigualdades sociais, econmicas, polticas e culturais so naturais e que no nos caberia mud-Ias. Mas tambm podem ser instrumentos para aguar a sensibilidade, para desenvolver a capacidade de aprender, refletir e mudar.

Leituras complementares

I

Bom conselho

Chico Buarque (1972)

Oua um bom conselho

Que eu lhe dou de graa

Intil dormir que a dor no passa

Espere sentado

Ou voc se cansa

Est provado, quem espera nunca alcana

Venha, meu amigo

Deixe esse regao

Brinque com meu fogo

Venha se queimar

Faa como eu digo

Faa como eu fao

Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrs do tempo

Vim de no sei onde

Devagar que no se vai longe

Eu semeio vento

Na minha cidade

Vou pra rua e bebo a tempestade.

II

[A desterritorializao da cultura]

Enzensberger conta a histria de um executivo alemo que foi mandado ChIna para projetar uma grande instalao industrial. Durante algumas semanas, devido s exigncias de sua profisso, ele se v obrigado a viver uma experincia amarga. No fala chins, desconhece os costumes locais, ressente-se da falta dos automveis, encontra-se na contingncia de partilhar um modesto quarto de hotel com outro viajante qualquer. De retorno a Hong Kong, sua conexo para voltar Europa, respira aliviado. A paisagem que o cerca sua velha conhecida. Mas por que um alemo "sente-se em casa" em Hong Kong? O que lhe to familiar neste lugar longnquo?

A histria de Enzensberger, talvez uma fbula, recoloca o tema da desterritorializao. [...]

[...] Nos pontos mais distantes, Nova York, Paris, Zona Franca de Manaus, na sia ou na Amrica Latina nos deparamos com nomes conhecidos - Sony, Ford, Mitsubitschi, Phillips, Renault, Volkswagen. Qual o significado disso? Que a mundializao no se sustenta apenas no avano tecnolgico. H um universo habitado por objetos compartilhados em grande escala. So eles que constituem nossa paisagem, mobiliando nosso meio ambiente. As corporaes transnacionais, com seus produtos mundializados e suas marcas facilmente identificveis, balizam o espao mundial. Biscoitos Nabisco, iogurte Danone, chocolate Nestl, cerveja Budweiser, tnis Reebok mapeiam nossa familiaridade. Sem essa modernidade objeto, que impregna os aeroportos internacionais (so idnticos em todos os lugares), as ruas do comrcio (com suas vitrinas e mercadorias em exposio), os mveis de escritrios, os utenslios domsticos, dificilmente uma cultura teria a oportunidade de se mundializar. a esta presena cheia, de um espao desterritorializado, que Enzensberger se refere. A China Popular, para nosso executivo alemo, um "mundo" distante, inspito. Em seu territrio, tudo lhe estranho. Em contrapartida, Hong Kong representa algo prximo, um recanto povoado por coisas de sua vida prosaica (hotis, padro de refeio e de conforto, txis etc.). Envolvido por uma mirade de objetos-moblias, ele sente-se vontade neste mundo-mundo. Familiaridade que se realiza no anonimato de uma civilizao que minou as razes geogrficas dos homens e das coisas.ORTIZ, Renato. Mundializao e cultura.

So Paulo, Brasiliense, 1994. p. 105, 107-108.

Atividades

Questo de compreenso

1. Faa o fechamento do captulo. Principais temas: senso comum, conceito de ideologia, campos de ao da ideologia: escola, quadrinhos propaganda, mdia.

Questes de interpretao e problematizao

2. Explique sob que aspectos o contedo das frases a seguir pode ser ideolgico. Aplique os conceitos adequados (lacuna, inverso, aparecer social, universalizao, abstrao). Justifique sua resposta.

a) O Estado uma instituio que est a servio de todos os cidados,

b) Se este comportamento est estabelecido por lei, conclumos que justo e legtimo.

c) Uma vida bem-sucedida depende apenas do esforo de cada um.

d) Desde que h mundo, existem pobres e ricos.

3. Analise o aspecto ideolgico da seguinte afirmao: "As mulheres deveriam preferencialmente permanecer no lar para cuidar dos filhos; se, por motivos econmicos precisarem complementar a renda familiar, devem escolher profisses que estejam de acordo com sua ndole feminina, tais como enfermeira, professora, costureira, tecel etc.".

4. Os provrbios tm um valor positivo por expressarem a sabedoria popular. Dependendo da situao em que so aplicados, porm, Podem adquirir contornos ideolgicos. Justifique a afirmao, comentando os provrbios a seguir e comparando-os com a letra da msica "Bom conselho", transcrita como leitura complementar:

Em boca Fechada no entra mosca;Cada um por si, Deus por todos;Cada macaco no seu galho;Quem semeia vento, colhe tempestade;Quem espera sempre alcana;devagar se vai Longe;Quem brinca com fogo pode se queimar.

5. Analise os versos a seguir, de um poema do dramaturgo e poeta marxista 'Bertolt Brecht, usando os conceitos aprendidos: "Ns vos pedimos com insistncia: / Nunca digam - Isso natural! / [...] A. fim de que nada passe por ser imutvel".

6. Analise os seguintes fragmentos de textos usados no ensino fundamental e identifique a ideologia subjacente no primeiro trecho; em seguida, explique por que o segundo texto pode ser interpretado como no ideolgico.

a) "Piero vai visitar o av na fundio... [O av diz para o netinho:] - Eu tambm, Piero, entrei por curiosidade na fundio quando era menino. E me pareceu tudo to bonito... que aqui fiquei. belo amar o trabalho que a gente faz. Estou velho e ao bom Deus s peo uma coisa: quero ficar aqui, na fundio, at o ltimo dia dos meus dias. E vov levantou os olhos para o cu, em direo s estrelas."

b) O autor conta a conversa do av com um menino que no dia seguinte iria partir para estudar em outra cidade.

"Meu av me convidou, naquela tarde, para me assentar ao seu lado nesse banco cansado. Pegou minha mo e, sem tirar os olhos do horizonte, me contou:

'O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai devorando tudo, sem piedade. O tempo no tem pena. Mastiga rios, rvores, crepsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a lua, as estrelas. Ele o dono de tudo. Pacientemente ele engole todas as coisas, degustando nuvens, chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histrias e saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo. As madrugadas, assanhas, as decises, duram pouco na boca do tempo. Sua garganta traga as estaes, os milnios, o ocidente, o oriente, tudo sem retomo. E ns, meu neto, marchamos em direo boca do tempo.

Meu av foi abaixando a cabea e seus olhos tocaram em nossas mos entrelaadas. Eu achei serem pingos de chuva as gotas rolando sobre meus dedos, mas a noite estava clara, como tudo mais. (Bartolomeu Queirs)

7. Faa um levantamento das propagandas de carro veiculadas no. momento e observe o tipo de apelo usado. Quem sai "ganhando" pelo uso do produto e o que ganha? Faa a crtica a partir do que foi estudado no captulo.

8. Lendo em alguns jornais as notcias sobre a atuao do MST (Movimento dos Sem-Terra), percebe-se que o termo usado o de "invaso da propriedade rural", enquanto os ativistas preferem se referir "ocupao de terras improdutivas". Explique o significado da diferena de enunciados.

Questes sobre a leitura complementar

9. A partir do texto "Desterritorializao da cultura" responda.

a) Explique com suas palavras por que o executivo alemo se sente "em casa" na distante e oriental Hong Kong.

b) A partir da experincia pessoal ao visitar shoppings de diferentes cidades no seu estado e/ou no Brasil, identifique as caractersticas de homogeneizao sob diversos aspectos.

c) Levando em coma as especificidades da regio em que voc habita, identifique produtos regionais em que foram esquecidos em funo do consumo de produtos internacionais.

Dissertao