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SEGUNDA PARTE: 2.1 O discurso do Bom Pastor Nesta parte de nosso trabalho nos deteremos nas expressões ou nos termos gregos com os significados pelos quais passaram sua evolução semântica no decorrer da História e o que hoje significa para nós. Os termos mudaram? O significado para os gregos era o mesmo que para os orientais? A que eqüivalem esses mesmos termos para nós ocidentais? 2.1.1 evgw, eivmi (Eu Sou) - uma auto-definição A expressão “evgw,, eivmi” (Eu Sou - vv.11.14) é correta da seguinte forma: “o bom pastor sou eu” (vv.11.14), como simples fórmula explicativa, do mesmo modo que nos versículos 7.9 1 . Esta expressão conforme se encontra nos vv.11 e 14 - evgw,, eivmi (Eu Sou) - aparece cerca de 48 vezes no NT, assim distribuídas: 5 vezes em Mateus (14,27; 22,32; 24,5; 26,22.25); 3 vezes em Marcos (6,50; 13,6; 14,62); 4 vezes em Lucas (1,19; 21,8; 22,70; 24,39); 7 vezes em Atos dos Apóstolos (9,5; 10,21; 18,10; 22,3.8; 26,15.29); 24 vezes em João (4,26; 6,20.35.41.48.51; 8,12.18.24.28.58; 9,9; 10,7.9.11.14; 11,25; 1 KITTEL. v. X. col. 1219-1220.

6.2 Segunda Parte · 2018-01-31 · bom pastor sou eu” (vv.11.14), como simples fórmula explicativa, do mesmo modo que nos versículos 7.9 1 . Esta expressão conforme se encontra

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Page 1: 6.2 Segunda Parte · 2018-01-31 · bom pastor sou eu” (vv.11.14), como simples fórmula explicativa, do mesmo modo que nos versículos 7.9 1 . Esta expressão conforme se encontra

SEGUNDA PARTE:

2.1 O discurso do Bom Pastor

Nesta parte de nosso trabalho nos deteremos nas expressões ou nos termos gregos

com os significados pelos quais passaram sua evolução semântica no decorrer da História e

o que hoje significa para nós. Os termos mudaram? O significado para os gregos era o

mesmo que para os orientais? A que eqüivalem esses mesmos termos para nós ocidentais?

2.1.1 evgw, eivmi (Eu Sou) - uma auto-definição

A expressão “evgw,, eivmi” (Eu Sou - vv.11.14) é correta da seguinte forma: “o

bom pastor sou eu” (vv.11.14), como simples fórmula explicativa, do mesmo modo que nos

versículos 7.91. Esta expressão conforme se encontra nos vv.11 e 14 - evgw,, eivmi (Eu

Sou) - aparece cerca de 48 vezes no NT, assim distribuídas: 5 vezes em Mateus (14,27;

22,32; 24,5; 26,22.25); 3 vezes em Marcos (6,50; 13,6; 14,62); 4 vezes em Lucas (1,19;

21,8; 22,70; 24,39); 7 vezes em Atos dos Apóstolos (9,5; 10,21; 18,10; 22,3.8; 26,15.29);

24 vezes em João (4,26; 6,20.35.41.48.51; 8,12.18.24.28.58; 9,9; 10,7.9.11.14; 11,25;

1 KITTEL. v. X. col. 1219-1220.

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13,19; 14,6; 15,1.5; 18,5.6.8) e 5 vezes no Apocalipse (1,8.17; 2,23; 21,6 [neste versículo,

aparece implícito: evgw, {eivmi} to. ;Alfa... - “Eu sou o Alfa”...] e em 22,16. A

expressão é utilizada por João, somente no Evangelho, a metade do número de vezes (24)

que o é pelos outros evangelistas (também 24). Levando-se em consideração o Apocalipse

ter sido escrito por João, contabilizamos 29 vezes esta expressão, contra 19 dos outros

escritos neotestamentários2.

“Eu Sou”: expressão usada com freqüência em respostas, geralmente afirmativas,

sob a forma evgwge3. Em João, a expressão evgw. eivmi, “Eu Sou”, pode ser frase de

discurso comum, eqüivalente a “Sou Eu”. Esta fórmula não é singular no NT, mas seu uso,

solene e sagrado já é utilizado no AT, no gnosticismo e nos escritos religiosos greco-

pagãos. Bultmann ao estudá-la apresentou-a com quatro diferentes usos4. Distingue-se três

tipos de uso da fórmula evgw. eivmi, em João:

2 A estatística das perícopes mencionadas foram pesquisadas em Bible Work. 3 A GREEK-ENGLISH LEXICON. Liddell and Scott, 477. 4 Apresentaremos a classificação de Bultmann: a) Präsentationsformel, ou introdutória, respondendo à questão: “Quem é você?” - “Eu sou El Shaddai.” - Gn 17,1; b) Qualifikationsformel, ou descrição do sujeito, ao responder à questão: “O que você é?” - “Eu sou um deus”, dito pelo rei de Tiro - Ez 28,2; c) Identifikationsformel , onde o que fala identifica-se a si próprio com alguma pessoa ou coisa. Bultmann cita um dito de Isis: “Eu sou tudo que foi, que é, e que será.” O predicado compreendia a identidade do sujeito. d) Rekognitionsformel - ou uma fórmula que distingue o sujeito de outros e responde à questão: “Quem é aquele que... ? que tem como resposta: “Sou eu.” Neste caso, o “Eu” é realmente um predicado. BROWN, R.E. The Gospel according to John, 533.

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a. Uso absoluto sem predicado:

8,24 - “Se não crerdes que EU SOU, morrereis em vossos pecados”.

8,28 - “Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que “EU

SOU”.

8,58 - “Antes que Abraão existisse, EU SOU”.

13,19 - “...Para que, quando acontecer, creiais que EU SOU”.

Percebe-se que estas declarações são incompletas; como exemplo, em 8,25 os

judeus respondem perguntando: "Então, quem és tu?". Este uso por ir além do falar

ordinário, é reconhecido por todos que o absoluto evgw. eivmi tem especial função

reveladora em João5. No contexto das passagens joânicas, parece que Jesus fala de

messianidade. Uma explicação mais comum é a de associar o uso joânico com evgw.

eivmi como o nome divino do AT e do judaísmo rabínico6.

b. O uso onde um predicado pode ser reconhecido, se bem não expresso:

6,20 - Os discípulos na barca assustam-se porque vêem alguém caminhando para

eles sobre a água. Jesus lhes assegura, “evgw. eivmi, não tenham medo”.

5 Segundo Brown, Daube e T. W. Manson propuseram que a fórmula realmente signifique: “Eis aqui o Messias”, significado também sugerido por Mc 13,6 (Lc 21,8): “Muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou Eu’”; que Mt 24,5 fornece um predicado “Eu sou o Messias”. BROWN, R.E. The Gospel according to John, 533. 6 BROWN, R.E. The Gospel according to John, 533

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Aqui, a expressão pode significar simplesmente: “Sou eu, alguém que vocês

conhecem, e não um ser sobrenatural ou um fantasma”. Salientamos que a teofania divina

no AT geralmente tem esta fórmula: Não tenham medo, Eu sou o Deus de vossos

ancestrais. Pode ser que João transmita uma cena de epifania, jogando com ambos os usos;

o ordinário e o sagrado, de evgw. eivmi.

18,5 - Às autoridades que chegaram ao jardim do Cedron anunciando que estavam

procurando Jesus para o prender, Jesus responde: “evgw. eivmi” significando “Sou Eu”;

mas o fato de que aquele que ouve isto cai por terra quando ele responde, faz pensar uma

forma de teofania que faz os homens se prostrarem no temor diante de Deus. Aqui também

se tem a impressão de que João joga com o duplo uso do evgw. eivmi7.

c. Uso com predicado nominativo; por sete vezes Jesus fala de si mesmo

figuradamente:

6,35.51 - “Eu sou o pão da vida [pão vivo]”

8,12 (9,5) - “Eu sou a luz do mundo”

10,7.9 - “Eu sou a porta [das ovelhas]”

10,11.14 - “Eu sou o bom pastor”

11,25 - “Eu sou a ressurreição e a vida”

14,6 - “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”

15,1.5 - “Eu sou a [verdadeira] videira”

212 BROWN, R.E. The Gospel according to John, 533-534

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Limitando este grupo das declarações com “Eu sou”, há duas outras: 8,18: “Eu dou

testemunho de mim mesmo”; e 8,23: “Eu sou do alto”8. Os que pensam que a frase “Eu

sou” com um predicado deriva de fontes proto-mandéias sustentam que no Evangelho,

Jesus quis contrapor a sua proclamação de ser o pão, o pastor, etc às reivindicações

avançadas dos proto-mandeus. O contraste mais evidente é sugerido pelo contexto do

Evangelho. “Eu sou o pão” se encontra em um contexto em que a multidão exprime a

opinião de que o maná dado por Moisés fosse o pão do céu (6,31). A proclamação na Festa

dos Tabernáculos: “Eu sou a luz” foi provavelmente para contrastar com a luz festiva que

ardia na corte das mulheres no Templo. A dupla reivindicação: “Eu sou a porta” e “Eu sou

o pastor” foi provavelmente para contrastar com os fariseus mencionados no final do

cap. 99.

O acento nas proclamações de “Eu Sou” relatam a não exclusividade sobre o “Eu”,

visto que Jesus deseja enfatizar o predicado que revela seu papel. O predicado é mais uma

descrição do que ele é em relação ao homem. Em sua missão Jesus é fonte da vida eterna

para os homens (“vinha”, “vida”, “ressurreição”); o meio através do qual os homens

encontram vida (“caminho”, “porta”). Ele os conduz à vida (“pastor”), ele revela aos

213 Examinando esta frase com “eu sou” à luz das quatro fórmulas citadas acima, Bultmann acredita que, como se apresentam no Evangelho, cinco das sete pertencem a seu grupo (d), significando que Jesus quis dizer: “Eu sou o pão, o pastor etc, e este predicado não vale para nenhuma outra pessoa ou coisa”. Zimmermann está de acordo que o uso seja exclusivo; o acento é sobre o “Eu” eo predicado é somente um desenvolvimento – assim, este tipo de sentença “Eu sou” é relacionado para om uso absoluto. BROWN, R. E. The Gospel according to John, 534. 9 Bultmann acredita que duas das proclamações “Eu sou”, 11,25 e 14,6, pertencem ao grupo (c) das fórmulas “Eu sou” em que o predicado identifica o sujeito. Essas proclamações não são um contraste com outras reivindicações de ser a ressurreição, a vida, o caminho, e a verdade. Na opinião de Brown, não é justo mas provável que, nas cinco frases que Bultmann atribui a (d) tenham aspectos que pertençam a parâmetros de (c). BROWN, R.E. The Gospel according to John, 534.

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homens a verdade (“verdade”) que alimenta suas vidas (“pão”). Esses predicados revelam

o divino compromisso compreendido no Pai e transmitido pelo Filho10.

Outras indicações confirmam a necessidade do predicado, nessas afirmações.

Os discursos associados com as afirmações “Eu Sou” esclarecem o predicado; as

explanações sobre o pão, a porta, o pastor, e a vinha são claras. Além disso, há o

paralelismo entre esta classe de afirmações do “Eu Sou” e as parábolas sinóticas que

começam com “O reino dos céus [Deus] é semelhante...”. Certamente, na parábolas

sinóticas, a força da comparação está no centro de uma explanação sobre o simbolismo ao

qual o Reino dos céus é comparado.

Percebemos ainda uma afirmação “Eu Sou” com predicado nominal no Apocalipse

tanto quanto em João. Mas, enquanto em João os predicados são adaptações do

simbolismo do AT (pão, luz, pastor, e vinha são todos usados simbolicamente para

descrever as relações de Deus com Israel), os predicados no Apocalipse são freqüentemente

tomados direto das passagens do AT. Notamos os seguintes exemplos: Ap 1,8: “Eu sou o

Alfa e o Ômega”; 1,17: “Eu sou o primeiro e o último, e o único vivente” (cf. Is 41,4; 44,6;

48,12);2,23: “Eu sou o único que procura mente e coração” (cf. Jr 11,20)11.

10 Jesus é isto para os homens porque Ele e o Pai são um (10,30); Ele possui o poder de dar a vida do Pai (5,21). A afirmação de Jesus “Eu sou a verdade, a luz, ...” pode ser relatada pela semelhante afirmação sobre a relação do Pai com os homens: “Deus é Espírito” (4,24); “Deus é luz” (1Jo 1,5); “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). BROWN, R.E. The Gospel according to John, 535. 216 BROWN, R.E. The Gospel according to John, 535.

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2.1.2 Origem do termo poime,n (pastor)

Entende-se o termo grego poimh,n, poime,noj (pastor) - 1. Hdn. Gr.2.717: por

pastor (também boiadeiro), quer de ovelhas ou de bois. Od. 10.82-5, al.; opp. senhor ou

proprietário (a;nax), 4.87. 2. Após Homero sempre pastor, bouko,loi kai. poimh,n

(condutores e pastores) E. Ba. 714,cf. Cratin. 281, Pl. Tht.174d, R.343a, Lg.734b,etc.

poimh,n proba,twn (pastor das ovelhas). LXX Ge.4.2. Eur., Plat. II. metaforicamente,

pastor do povo, habitualmente de Agamenon, vAgame,nona poimh,n law/n (Agamenon

pastor do povo) Il.2.243, al.: geralmente, comandante, capitão, chefe, ib,85,al., S.Aj.360

codd. (lyr.) etc. 2. Nos LXX e no NT, pastor, mestre, professor, instrutor, Jr 2,8 e Ef 4,11,

entre outros12.

O termo poime,n é freqüentemente empregado em metáforas como: líder,

governante, comandante (Homero, Platão)13. Usado também como alternativa para

nomeuj,, traduzido também como pastor, legislador. poimai,nw - significa pastorear, ser

pastor; como uso metafórico significando cuidar de. poi,mnh ou poi,mnion - é o rebanho,

especialmente o de ovelhas. Na antigüidade Platão compara os governos da cidade-estado

aos pastores que cuidam de seu rebanho (Rep.4,440d), porque o pastor é cópia do pastor

divino e legislador (Política 271e); no Antigo Oriente - ‘pastor’ é título honorífico somente

217 LIDDELL, H. G., SCOTT,R. A Greek-English Lexicon, 1430. 218 BROWN, C. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. v. III, 469. 219 BROWN, C. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. v. III, 469.

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aplicado a soberanos e divindades. Nas listas dos reis sumérios, nos registros da corte da

Babilônia e nos textos das pirâmides (livro dos mortos), encontramos o uso deste termo

(pastor) de forma estereotipada; costume seguido em toda antigüidade. A figura do pastor

era muito empregada na poesia, principalmente em Teócrito, Idílios (sec. III a.C.). Todo o

mundo helenístico muito se utilizava da terminologia pastoral. No AT - poi,mhn (pastor) e

poimai,nw (pastorear, cuidar) são o eqüivalente ao termo hebraico rā‘âh; poi,mnion

(rebanho), de forma predominante, traduz şō’n. poi,mnh (rebanho) aparece só em

Gn 32,17[16] e Zc 13,7, traduzindo o hebraico ‘ēder14.

poime,n (pastor) - do heb. zagal. Aquele que se dedica à vida pastoril e à guarda

dos animais. Abel (Gn 4,2) era pastor de rebanho. Jabel, filho de Lamec, descendente de

Caim, inaugura a vida pastoril, como pastor de gado (Gn 4,20). Os patriarcas eram pastores

(Gn 13,7-8; 26,20; 29,18; 30,31). Jacó se queixa da dureza desse ofício (Gn 31,40).

No Egito, por serem pastores, eram os hebreus odiados pelos egípcios (Gn 46,32-35; 47,3).

Moisés apascentava os rebanhos de seu sogro Jetro (Ex 3,1). A fixação dos israelitas em

Canaã marca sua adoção da vida agrícola e sedentária, mas os grandes proprietários

conservavam numerosos rebanhos (1Rs 22,17; 2Sm 7,8; Am 7,14; Sf 2,6 etc). A situação

de ovelhas sem pastor indica o mais lamentável estágio social (Nm 27,17; 1Rs 22,17;

Mt 9,36).

O nome de pastor também é dado a quem exerce qualquer autoridade sobre o povo

(Is 44,28; Jr 2,8; 3,15 etc), a Deus mesmo (Gn 48,15; Sl- 23[22],1; Is 40,11; Ez 34,11;

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Os 4,16); ao Messias (Ez 34,23: 37,24; Jo 10,11); enfim àquele que será o vigário de Cristo

na terra (Jo 21,15-17; Mt 9,36; 10,6; 25,32; Lc 15,3-6; Jo 10,2-16; entre outros)15.

poime,n (pastor) - em sentido espiritual, aquele que exerce, junto às almas, a

função do pastor em relação as suas ovelhas. Deus é o pastor por excelência (Ez 34,23).

E o pastor de Israel (Gn 48,15; 49,24). Vezes sem conta foram infiéis os chefes de seu

povo, procurando apenas proveito próprio à custa das ovelhas (Jo 10,11-16.27-29; 23,1-2;

Ez 34,1-22); Deus, porém, promete que, em um futuro messiânico, lhes dará pastores fiéis

(Jr 3,15; 23,3-4; Ez 34,23-31). O Messias, ao chegar, encontrou seu povo como ovelhas

sem pastor (Mt 9,36; Mc 6,34). Jesus se apresentou como o Bom Pastor, conhecedor de

suas ovelhas, delas conhecido e sacrificando sua vida por elas (Jo 10,11-16.26-29),

prometendo aumentar seu rebanho com as ovelhas que ainda estão fora. Simão Pedro foi

constituído pastor do rebanho de Cristo (Jo 21,15-17) e, depois dele, aqueles que o

sucederam em seu múnus (1Pd 5,2-4; Ef 4,11). Os cristãos devem obediência aos seus

pastores (1Pd 5,5; Hb 13,17; 1Ts 5,12)16.

poime,n (pastor) - em sentido simbólico, pastor é o guia ou condutor de almas.

O nome pastor, metaforicamente, era aplicado desde a antigüidade aos reis primitivos que

Homero chama "pastores de povos". No AT, Pastor é nome messiânico com que os

15 VINCENT, A. Dicionário Bíblico, 503. 221 VINCENT, A. Dicionário Bíblico, 387. 222 PEREZ-RIOJA, J. A. Diccionario de símbolos y mitos, 340.

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profetas anunciavam o Rei Salvador. O Bom Pastor, com a ovelha sobre seus ombros,

representa o símbolo de Jesus, que assim aparece no NT e na arte paleo-cristã17.

2.1.3 O sentido de ginw,skein (conhecer)

Como o Pai me conhece (ginw,skeij) e eu conheço (ginw,skw) o Pai...

Para o conhecimento do Filho (pastor), em relação, tanto ao mandamento, quanto ao

conhecimento propriamente dito de seu Pai, João se utiliza da palavra ginw,skw

(conheço), do verbo ginw,skein “conhecer”. “Conhecer” (ginw,skein) e “crer”

(eivde,nai), em muitas passagens, são intercambiáveis: Jo 17,8, por exemplo, coloca em

paralelo o conhecimento (“compreensão” = ginw,skein) - “conheceram que saí de ti, e

creram (evpi,steusan do verbo pisteu,ein) que tu me enviaste”, com o sentido que Jesus

vem do Pai e a fé de que Jesus veio a mando do Pai. Há semelhanças entre os dois verbos -

“saber” (ginw,skein e eivde,nai) e o “crer” (pisteu,ein), como por exemplo em 14,7 e

14,10. Concluímos que a área semântica coberta por estes verbos é, em parte, a mesma.

Enquanto podemos dizer que Jesus conhece o Pai (10,15), não diremos jamais que ele crê

no Pai. Só Jesus conhece o Pai diretamente e, através de seu conhecimento, ele no-Lo

oferece (14,7). Enquanto os escritos “joânicos”, no evangelho, utilizam o verbo “conhecer”

223 Brown expressa a opinião de De la Potterie que sustenta a necessidade da dis t inção entre os dois verbos.

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em suas duas formas ginw,skein e eivde,nai (o primeiro 56 vezes e o segundo 85), não

usam mais o substantivo gnw/sij, “conhecimento”18. ginw,skein é o preferido por João

para a consciência que Jesus adquire enquanto humano (4,1 e 6,15). Contudo, não é fácil

ter certeza que o evangelista queria fazer pensar que Jesus tenha adquirido conhecimento

com meio humano. Exemplificando em 5,5 Jesus sabe que o aleijado estava doente há

muito tempo; em 16,19 ele sabe que os discípulos querem questioná-lo. Nesses casos,

seriam um conhecimento ordinário ou uma habilidade divina para ler os corações dos

homens (2,25)? Devemos estar atentos quanto a estas distinções para que não hajam

dúvidas quanto ao significado de ginw,skein19. eivde,nai é usado com freqüência para

indicar o conhecimento intuitivo que Jesus tem do Pai e das coisas de Deus. A distinção é

menor quando levamos em conta que ginw,skein é usado em muitos dos mesmos casos em

que usamos eivde,nai.

Para ele, ginw,skein indica aquisição de conhecimento, na área do conhecimento empírico que o homem adquire através de um longo esforço e eivde,nai, simplesmente saber, uma certeza com segurança. Este argumento tanto é defendido por Spicq (Deus e o homem), como por Abbott. Vocabulary §§ 1621-29 traduz ginw,skein como “adquirir consciência de”, e eivde,nai como “saber tudo de”. BROWN, R. E. Giovanni. Commento al Vangelo spirituale, 1457. 19 Como exemplo de profundo conhecimento espiritual obtido através da experiência se encontra no uso que Pedro faz de ginw,skei em 6,69: “Nós reconhecemos que tu és o Santo de Deus”. BROWN, R. E. Giovanni. Commento al Vangelo spiritual, 1457.

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Tomemos como exemplos:

- Jesus conhece o Pai (eivde,nai) em 7,29; 8,55; ginw,skein em 10,15; 17,25.

- Jesus conhece (eivde,nai) todas as coisas ou todos os homens - 16,30; 18,4;

ginw,skein em 2,24.

- “Se conhecêsseis (eivde,nai) a mim, conheceríeis (eivde,nai) também a meu Pai”:

eivde,nai em ambas as partes de 8,19; ginw,skein e eivde,nai em 14,7.

- O mundo ou os pecadores não conhecem (eivde,nai) o Pai ou Jesus: eivde,nai em

7,28; 8,19; 15,21; ginw,skein em 1,10; 16,3; 17,25; 1 Jo 3,1.6.

Pode ser que João tenha se utilizado dos dois verbos, indiferentemente, somente

como questão de acento20.

20 BROWN, R. E. Giovanni. Commento al Vangelo spiritual, 1456-1457.

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2.1.4 fwnh, (voz) , como comunicação

A palavra fwnh, (voz), é um dos principais elementos de comunicação entre os

homens, senão o mais importante deles21. Ao longo dos tempos, os mais renomados

filólogos tentaram definir o verbete voz (fwnh,). Dentre os mais clássicos destacamos

Koogan-Houaiss22, o Dicionário Novo Aurélio23 e, em Liddell-Scott24, “é produto de um

som ou tom, propriedade dos homens, falar alto ou claramente, ou simplesmente falar”.

Segundo Aristóteles, “a fwnh, (voz) é o meio característico dos animais para a

compreensão recíproca”25.

No mundo grego - fwnh, (voz) - som audível produzido pelos seres animados.

fwnh, (voz) é distinto de yo,foj - rumor inarticulardo - e de fqo,ggoj que indica ainda o

21 Lilia Nunes afirma que a primeira manifestação da voz na História da Humanidade está registrada na Bíblia (Gn 1,3): “Faça-se a luz, e a luz se fez...” O homem pré-histórico, através de sons e gestos, exprimia suas necessidades vitais. Ele percebeu que os sons emitidos inconscientemente (no esforço, na luta ou na dor) exteriorizavam seus sentimentos. A voz tinha, para esse homem primitivo, um poder sobrenatural pois era meio de comunicação com os espíritos aos quais atribuíam todas as paixões humanas, essas afastadas os atraídas segundo prática das magias orais. Palavras cabalísticas curavam moléstias, venciam inimigos, afastavam demônios, ordenavam os fenômenos da natureza como o sol e a chuva. através de fórmulas misteriosas julgavam alcançar todos os seus desejos. A palavra surgiu da necessidade de comunicação dos seres semelhantes. A preocupação constante das civilizações, desde as mais remotas, é o aprimoramento intelectual do homem, que se dá com o aperfeiçoamento da linguagem. Deus se auto-comunica aos homens através da voz e dos prodígios que bem entende e, principalmente, através da sua Palavra - Jesus Cristo. NUNES, L. Cartilhas de Teatro. v. II. Manual de Voz e Dicção. p. 1 22 KOOGAN-HOUAISS. Enciclopédia e Dicionário digital. Koogan e Houaiss definem o verbete voz (fwnh, ): [s.f.], conjunto de sons que os animais (especialmente o homem) emitem pela boca: voz harmoniosa; faculdade de falar. 23 Dicionário da Língua Portuguesa. Novo Aurélio - Século XXI (Digital). Voz - (fwnh,) do latim voce. Entre as muitas fórmulas, apresentamos as seguintes definições: [s.f.] som ou conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador; faculdade de falar, fala; clamor; ordem em voz alta; manifestação verbal, palavra 24 LIDDELL, H. G., SCOTT, R. A Greek-English Lexicon, 1967. 230 KITTEL. v. XV, col. 281.

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som da voz humana, porém usado mais amplamente; fwnh, - significa o grito dos animais;

o canto do rouxinol (Homero) e também o chilrear da andorinha (Anacreonte). fwnh,

distingue-se da voz humana pela uniformidade: o homem comunica por intermédio da

fwnh, articulada (Aristóteles). fwnh, significa tanto a voz do homem (órgão vocal), quanto

seu som (Platão). fwnh, é a voz alta, o brado de batalha (Homero). Não havia vocábulo

próprio para indicar a linguagem qual forma específica da existência humana. Na época

antiga, fwnh, já indicava a capacidade de falar; donde falar é uma articulação da voz

(Platão). fwnh, significa mensagem. Deus é invisível ao homem, mas se revela através da

voz: “ainda que me seja invisível, ouço a tua voz” (Sófocles). Ao introduzir os princípios

de direito sagrado e dizer: “esta lei foi proclamada por minha voz, mas sancionada pela

mente dos deuses”, Antioco (séc. I A.C.) atenua este conceito (Ditt., Or I 383,121s.). O rei

é inspirado e, como tal, porta-voz de Deus26.

“A Sagrada Escritura atribui a voz não só aos homens, mas antropomorficamente

também a Deus. A voz de Deus fez-se ouvir de Adão (Gn 3,8), de Abraão (Gn 25,5), de

Moisés (At 7,31), no batismo de Jesus (Mt 3,17; Mc 1,11; Lc 3,22), na transfiguração

(Mt 17,5) e uma vez no Templo (Jo 12,28). De ordinário, a voz de Deus designa suas

ordens, os mandamentos a que se deve obediência (Ex 4,1 Dt 4,30; Hb 3,7)”27.

Nos LXX (AT), fwnh, (voz) traduz , na maior parte dos casos, o hebraico qôl,

raramente o aramaico qol. No AT indica tudo que pode ser ouvido (Ex 9,23.29.33s.; 19,16; 26 KITTEL. v. XV, col. 282-286. 232 VINCENT, A., Dicionário Bíblico. 500. 233 KITTEL. v. XV, col. 286-297.

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20,18; 1Sm 12,17ss; Jó 28,26; 38,25 etc). qôl é o som da voz humana: qôl ’ādām

(2Rs 7,10; Dn 8,16). A auto-revelação de Deus começou por via acústica; ele não pode ser

visto, pode somente ser ouvido. Ao se referirem ao acolhimento da palavra de Deus, os

profetas clássicos se retêm na mensagem da palavra de YHWH; somente na visão da

vocação, e no momento da missão, Isaías (6,8) e Ezequiel (1,28s., cf. 10,5) mencionam a

voz de YHWH, significando que qôl é apelo ou chamada à presença de Deus.

O Deuteronômio reforça os fenômenos visíveis da teofania do Sinai (44.11s; 5,22s.), porém

são decisivos a voz de Deus e o acolhimento da palavra, cujo povo é testemunha (cf.

Dt 5,4; 9,15 com Ex 3,2; 33,11), onde só se percebe o som da palavra (4,12). Deus faz

ouvir sua voz para instruir Israel (4,36); pronuncia o decálogo do meio do fogo (4,12s.33;

5,22-24). A expressão “escutar a voz de Deus” vem, estereotipada, na parenese e na

pregação; uma vez que a revelação fundamental do querer de Deus remonta indireto no

tempo, deve ser atualizada na pregação e anunciada como convite de Deus hic et nunc (aqui

e agora)28.

O uso de qôl e seus eqüivalentes, nos escritos apocalípticos, é o mesmo do uso

vétero-testamentário, especialmente em Qumran. A voz do homem, qôl, é importante

como expressão vocal do homem, em forma de júbilo, ao exaltar os grandes

empreendimentos de Deus (1QH 11,25s.; test Ios. 8,5). A concepção apocalíptica de voz

de Deus tem como vertente a revelação escatológica, acrescida da transcendência divina.

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Moisés particularmente viu a glória de Deus e ouviu a sua voz (Ecclus 45,3-5, cf.

Pseud. Filon) e é considerado mestre e intérprete dessa experiência. O anúncio do juízo

final tem validade universal (ad es. in 4 Esdr. 5,7) e ainda em 4 Esdr. 6,13-29, uma potente

voz é reconhecida por seu conteúdo, como a voz do juiz do mundo (6,18-29)29.

Nos escritos rabínicos, qôl tem o mesmo âmbito semântico do AT; significando

qualquer fenômeno acústico: rumor, som, voz. qôl no sentido de voz humana indica a voz

segundo a qual o homem torna-se perceptivo (b. Ber.24b). qôl é o princípio da

individuação: quanto a aspecto e pensamento a voz é um sinal essencial de cada um

(b.Sanh.38a)30.

No judaísmo helenístico, os LXX seguem o uso vétero-testamentário de qôl,

traduzindo o vocábulo quase sempre por fwnh, (voz), embora este termo, em grego, seja

mais limitado às expressões dos seres vivos. Em Gn 11,1, há uma concessão grega

traduzindo debārîm, e em Dt 28,49, traduzindo lāšôn, ambas usando fwnh, (voz), para

significar língua. A revelação de Deus vem somente transmitir a palavra31.

No NT fwnh, significa, na maior parte das narrativas, principalmente onde há

influência do AT, o rumor e o som. fwnh, é o assobiar do vento (Jo 3,8 e At 2,6); a melodia

dos instrumentos musicais, das flautas e cítaras (1Co 14,7); o sinal das trombetas

(1Co 14,8), distindo de fqo,ggoj que é simplesmente, som. Fwnh, (voz), por um lado é o

ressoar da trombeta (Ap 1,10; 4,1; 8,13), o som dos arpistas que cantam (Ap 14,2), das

29 KITTEL. v. XV, col. 287-302. 30 KITTEL. v. XV, col. 302-309. 31 KITTEL. v. XV, col. 309-316.

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cítaras, cantores, flautistas e trombetistas (Ap 18,22); por outro, designa o ressoar das

palavras pronunciadas (Lc 1,44; Hb 12,19) e o grito de dor (Mt 2,18); no Ap 10,3 o “gritar

em alta voz” indica a semelhança com o rugido do leão. fwnh, é a voz humana, que varia

de indivíduo para indivíduo: as ovelhas conhecem a fwnh, (voz) do pastor, que as chama

(fwnei/) pelo nome (Jo 10,3ss). Em citações vétero-testamentárias, fwnh, significa voz; no

EvJo, o ministério de João Batista é tão bem conceituado, que o próprio Batista se designa

como “a voz que clama no deserto”, indicando sua missão escatológica (Jo 1,23). mega,lh

fwnh, (voz alta) atém-se ao louvor de Deus (Lc 17,15; 19,37; Ap 7,10). Assim o brado

mega,lh fwnh, ressoa como o rugido de um leão (Ap 10,3 cf. Am 1,2; Os 11,10), como o

som de uma trombeta (Ap 1,10) e o ruído de muita água (Ap 1,15; 14,2; 19,6, cf. Ez 1,24;

43,2)32.

O poder miraculoso de Deus sobre o homem pode exprimir-se mediante uma forte

voz. fwnh, (voz) é o brado com seu conteúdo específico, a palavra importante, normativa, a

solene profissão de fé e a língua. No NT, há referência à voz de Deus da mesma forma que

na tradição sinaítica; o discurso escatológico de Deus transmite Cristo e devia tanto vir

ligado à espera apocalíptica de um encontro direto com Deus no tempo final como ser

afirmado em oposição ao dogma rabínico da definitiva e insuperável revelação do Sinai.

A pretensão judaica de possuir exclusividade e compreender plenamente a vontade de Deus

é repelida no EvJo. Aparentemente contrário a Dt 4,12, o Jesus de João declara aos judeus:

32 KITTEL. v. XV, col. 309-316. 238 KITTEL. v. XV, col. 316-334.

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“jamais ouvistes a sua voz , nem contemplastes a sua face” (Jo 5,37). João vê, na Escritura,

uma revelação profética e um pré-anúncio da mensagem de Cristo. Para ele, a voz de Deus

se faz sentir no presente com o testemunho do Filho, e é importante escutar a voz de Jesus

(Jo 5,25.28; 10,3.16.27; 18,37); de fato com o aparecimento do Logos, o evento da

revelação alcança o ápice crítico que decide ainda o futuro. Isto é um protesto contra a fé

judaica cuja obediência à Torah produz a vida. O aprofundamento da interpretação de

avkou,w th/j fwnh/j domina o discurso do pastor (Jo 10): escutar a voz do pastor

(vv.2s.16.27) significa eivde,nai th.n fwnh.n auvtou/, “conhecer a sua voz”, e segui-la

(v.4); ao contrário, as ovelhas se esquivam e fogem à voz desconhecida de um estranho

(v.5). Limites nacionais são eliminados: também as de fora do rebanho, aqui, são ovelhas

que ouvem a voz do pastor e por isso chegam para se agregar ao rebanho (v.16). Só quem

retorna ao número dos eleitos pode ouvir a voz de Jesus e recebê-la com fé e obediência

como palavra escatológica da graça e da verdade. A voz do revelador está implícita,

provavelmente em Jo 3,8, quando o evangelista recorre à imagem do vento para descrever o

milagre do renascer pelo Espírito: “o vento sopra onde quer e dele ouço a voz, mas não sei

de onde vem nem para onde vai”. O Logos pertence ao mundo do Espírito e os judeus não

sabem de onde vem nem aonde vai (8,14), esses ouvem só a sua fwnh,33.

Nos escritos gnósticos, é evidente o influxo da concepção judaica, especialmente o

do angelus interpres, da apocalítica. O verdadeiro Deus, para os gnósticos, é distante do

mundo e desconhecido, e a sua voz não pode ser ouvida diretamente. Entre os mandeus, a

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transcendência da chamada salvífica é apresentada em termos espaciais: essa vem do reino

superior, do alto, do oculto, do lugar da luz etc. A origem não mundana e o efeito salvífico

desta chamada ou da voz é expressa mediante adjetivos: a voz é clara, majestosa, pura,

maravilhosa, suave, amorosa, alta. A chamada provém da figura salvífica: Mandā dě

Hayyē que, dos confins da terra chama os eleitos, enviando-lhes a luz e outros mensageiros

celestes, os conselheiros e acompanhantes da alma, o pastor e o pescador puro. Entretanto,

a primeira santa chamada, a grande chamada, é Cristo (Livro dos Salmos 138,7).

O mensageiro divino pode ser denominado chamada (199,9). A idéia da chamada domina

o dualismo gnóstico. Ao contrário da voz dos mensageiros celestes e da chamada salvífica

são vozes das forças do mal: a chamada rebelde ou chamada falsa (vã). Opostos à

chamada, se encontram os planetas e os signos do zodíaco, que são chamados que têm

assumido formas de seres concretos (90,26-34)34.

Quanto à História da Igreja, Inácio se utiliza da imagem do coro que canta em

uníssono para reforçar a unidade dos membros da comunidade e que, mediante Cristo deve

louvar o Pai (Ef 4,2). Inácio pode designar-se instrumento da voz de Deus, quando o bispo

inspirado mega,lh fwnh/, qeou/ fwnh/ “a grande voz, com voz de Deus”, procura reunir

os membros da comunidade ao bispo, ao presbítero, aos diáconos (Fl 7,1). Policarpo,

pouco antes de ser martirizado, ouve uma fwnh. evx ouvranou/, “voz do céu”, perceptível

só aos cristãos, que brada: “seja forte, Policarpo, e o demonstra aos homens”. Os

apologistas combinam o uso lingüístico grego e o vétero-testamentário: fwnh, (voz) é a 239 KITTEL. v. XV, col. 339-340. 240 KITTEL. v. XV, col. 339-340.

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palavra pronunciada contraposta à ação (Iust. dial.131,2) e a língua (apol. 31,1.3.4; Tat.,

or. Graec.1,3; 37,1). A fwnh. tou/ qeou/, “voz de Deus”, anteriormente proclamada pelos

profetas, é retomada pelos apóstolos de Cristo. (Iust. dial.119,6). fwnh, (voz) é ainda a

chamada com que Cristo convidou Abraão a sair do ambiente malvado (Gn 12,1), e do

mesmo modo, ele mesmo chama os cristãos (119,5). Papias designa a tradição oral de

Jesus como voz viva: ele avalia que “as coisas transmitidas de viva voz pelos sobreviventes

as quais transmitiram dos livros os discursos... dos anciãos”, que constituem para ele, a

tradição verdadeira e fiel (Eus., hist. eccl. 3,39,4)35.

Quanto à fwnh, (voz) do pastor, John Gill36 observa: “...a qual é a voz do amor, da

graça, da misericórdia; a qual proclama a paz, o perdão, a liberdade, a vida, a retidão e a

salvação; a qual revivifica a alma, atraindo, deleitando, refrigerando e consolando; essa voz

o povo de Cristo é levado a ouvir, não apenas externamente, mas também internamente, a

ponto de compreendê-la, deleitando-se nela e distinguindo-a de qualquer outra voz”.

Refletindo sobre a palavra em questão - fwnh, (voz) - concluímos que, mesmo

hoje, no início do século XXI, seu significado para nós continua sendo o mesmo: é através

da voz que, tanto o homem simples quanto o erudito, troca idéias com os seus. É através da

voz que os magistrados sancionam sentenças as mais variadas possíveis, exprimindo o

241 GILL, J. Dr. Gill's Commentary. Baker Book House. Grand Rapids. Edição baseada numa publicação de 1851.

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veredictum de seus jurados. É através das juras (palavras) de amor que os casais se

descobrem em suas individualidades e se casam na esperança de, através de seus filhos,

perpetuarem a espécie e não deixarem seu nome sem descendência. É através da voz e do

gesto que o sacerdote37 dá o perdão dos pecados àqueles que o procuram, sinceramente

arrependidos, para que possam seguir no caminho da fé ou, através de sua última confissão,

descansarem em Deus na sua última morada. É através da voz que são iniciadas as guerras

(os brados de guerra) e, após as conversações de costume, muitas vezes intermediados por

outros, assinados os tratados de paz. É através da voz que o pastor chama suas ovelhas e

elas o seguem porque conhecem sua voz...

A fwnh, (voz) comunica à medida que o ouvinte esteja atento à mensagem que lhe

foi enviada pela palavra. A receptividade à fwnh, (voz) é condição essencial para a

transformação de seu intelecto (inteligência) e seu coração (sentimentos), no sentido de

uma mudança radical em suas atitudes e em sua própria comunicação, não somente com

seus semelhantes mas, primordialmente, em sua abertura ao encontro com Deus Pai Criador

e seu filho Jesus Cristo, através do Espírito.

242 Neste ponto fazemos uma ressalva aos sacerdotes: 1. Mudos - que não deixam de, em razão de sua deficiência, perdoar os pecados. 2. Surdos-mudos - neste caso, ainda mais específico, estes “ouviriam” as confissões através da linguagem dos sinais, específica aos portadores de deficiência auditiva e lhes daria a absolvição. 243 CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo. v.2, 444.

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2.1.5 Dar (ti,qhmi) ou reter (kate,cein) a vida

Esta declaração de Jesus pode significar, literalmente, depositar a própria vida.

Pode simplesmente significar morrer (Hipócrates); como expressão (dar a vida), pode ter o

sentido de pagar juros (Demóstenes); pagar um preço (alguns escritores clássicos).

Os LXX usam a expressão (dar a vida) ao traduzir Jz 12,3, como arriscar a própria vida.

O pastor arrisca sua própria vida, sempre disposto a dá-la se necessário, por ser o guardião

de suas ovelhas38.

O vocábulo - ti,qhmi (sacrifica) - verbo, reforça, no EvJo o modo pelo qual

Cristo dá sua vida; ele dá sua vida em sacrifício, sacrifica sua vida. Há ainda outros

significados para este verbo: expor, por, dispor, depositar. O termo di,dwmi é utilizado

pelos Sinóticos mais do que por João, para significar o “oferecer sua vida” de Cristo;

entretanto João o usa em 3 passagens: 10,28, 13,34 e 14,27, além de Lc 4,6 e 19,8; At 3,6; 1

Co 7,25 e 2 Co 8,10. o` poimh.n o` kalo.j th.n yuch.n auvtou/ ti,qhsin u`pe.r tw/n

proba,twn\ (o bom pastor sacrifica sua vida pelas ovelhas - v.10). Desta forma, além do

v.11, aparece em mais 4 passagens: Jo 2,10; 13,4 e Lc 8,16; 11,33. kaqw.j ginw,skei me

o` path.r kavgw. ginw,skw to.n pate,ra( kai. th.n yuch,n mou ti,qhmi u`pe.r tw/n

proba,twnÅ (como o Pai me conhece e eu conheço o Pai, sacrifico minha vida pelas

ovelhas). A revelação do sacrifício de

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Cristo, o verdadeiro pastor (ti,qhmi th.n yuch.n auvtou/)39 está especificada no contexto

como um crescendo: no início da perícope, primeiramente Cristo fala na 3ª pessoa (ele, o

pastor, sacrifica sua vida) para, logo depois, no v.15 continuar: e (eu) sacrifico minha vida

pelas ovelhas (o discurso muda para a 1ª pessoa do singular). O bom pastor sacrifica sua

vida pelas ovelhas, isto é, ele se expõe para salvar suas ovelhas do ataque dos lobos, para

preservar a integridade de seu rebanho. Ele não retém a vida em favor de si próprio, não se

esconde na esperança do inimigo desistir de sua presa. Por ser o verdadeiro pastor, ele

pressente o perigo ao ver o inimigo se aproximar, contrariamente ao mercenário que foge

porque as ovelhas não são suas (vv.12-13) e realiza seu trabalho por dinheiro. Ele, o

verdadeiro pastor, e de quem são as ovelhas, sacrifica de boa vontade sua vida; ele não

pensa em si mesmo, seu primeiro pensamento é para aqueles que dele dependem e ele não

mede sacrificar-se por eles, não só porque tem um grande amor pelas ovelhas, pois seu

rebanho para ele é precioso, mais ainda porque lhe foi dado pelo Pai (v.29).

2.1.6 A antítese: reunir e ou dispersar

Quando várias pessoas têm interesse por um assunto comum, elas se reúnem para

se comunicar e passam a discutir a melhor forma de explorá-lo, em benefício da

39 ti,qhmi th.n yuch.n auvtou/ nunca significa “dar a vida” no sentido de entregar-se à morte e sim “arriscar” ou “expor” a vida em um perigo momentâneo pois, se o pastor morre, não tem condição de defender suas ovelhas e o lobo as ataca e dispersa. Quanto ao sentido de “dar a vida” entregando-se à morte, o grego se utiliza dos verbos evkpne,w, avfi,hmi, proba,llw e di,dwmi. LÉON-DUFOUR, X. Lectura del Evangelio de Juan. Jn 5-12. II, 291 e nota 95.

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comunidade. O pastor, quando reúne suas ovelhas, demonstra que deseja o melhor para

elas; se ele é o proprietário dessas ovelhas e as ama, este desvelo será ainda maior,

inclusive, se necessário for, com o sacrifício de sua vida40. Na narrativa do Bom Pastor, o

pastor “tornará a unir ou unirá outra vez o que estava unido e se separou” (v.16)41. Reunirá

aqueles que estavam em outro redil, ao seu próprio, formando um só rebanho e um pastor,

ultrapassando o limite de suas fronteiras e nação, pois seu cuidado com as ovelhas é de

caráter universal, deixando para traz a noção de “povo escolhido ou de raça eleita”. Seu

amor pelas ovelhas é tão grande que ele não hesitará em “sair pelo mundo buscando as

ovelhas que estão sem pastor”42. Conciliará todas as dificuldades e “chamará as ovelhas

pelo nome”(cf. 10,3) para que se unam e se agreguem num mesmo redil onde encontrarão,

certamente, não só interesses comuns, mas um imenso amor.

O que leva as pessoas à dispersão? Primeiramente verificaremos o sentido da

palavra dispersão43: fazer ir para diferentes partes; pôr em debandada; dissipar, desfazer,

fazer sair, desviar ou espalhar-se para diversos pontos. Muitas vezes nós induzimos o outro

a “ir para diferentes partes ou lugares, desviar-se ou espalhar-se por diversos lugares” por

causa da rigidez de nossos conceitos e de nossas atitudes.

40 Dicionário da Língua Portuguesa. Novo Aurélio - Século XXI. Segundo Aurélio, reunir nada mais é do que re + unir, juntar o que estava disperso, agrupar. 41 Dicionário da Língua Portuguesa. Novo Aurélio - Século XXI. 247 Mc 6,34, cf. Jr 23,3. 248 Dicionário da Língua Portuguesa. Novo Aurélio - Século XXI.

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Agimos normalmente com o intelecto, como se fôssemos os “donos da verdade”.

Somente com a razão não atinamos que nosso próximo tem as mesmas necessidades de

atenção e carinho como nós. Jesus nos deixou seu exemplo. Ele nos ordena: “amai-vos uns

aos outros como eu vos amei”44. Na sociedade individualista em que vivemos, não

“perdemos tempo” para escutar o que o outro precisa dizer, não paramos mais para

conversar e dar a devida atenção a nosso semelhante. É justamente a falta de um ponto de

interesse comum, de um elo de ligação com uma finalidade específica, que faz com que a

dispersão aconteça de forma mais acentuada e, muitas vezes de modo irreversível: “ai do

pastor que afugentar a ovelha ferida para longe de meu redil”45. O individualismo do mau

pastor, do mercenário que trabalha por dinheiro, que só pensa em seu próprio benefício, e

não se interessa pelo bem estar das ovelhas é denunciado pela práxis do Bom Pastor. As

ovelhas dispersas, indo em diferentes direções, deviam-se do bom caminho, porém

suspiram por “encontrarem verdes pastagens em que possam repousar”46. O desinteresse

desses maus pastores faz com que as ovelhas se espalhem, saiam do redil em diferentes

direções. Desviando-se do bom caminho, vão no caminho oposto ao do verdadeiro pastor,

sem direção definida, a fim de procurarem um lugar “em que possam descansar com

segurança”47. A estas, o verdadeiro pastor chamará, apontar-lhes-á o caminho que será de

unidade, de paz e de fraternidade no mesmo redil, antes “de julgar entre ovelha e ovelha...”48.

249 Jo 15,12. 250 Ez 34,21. 251 Jo 10,9, cf. Sl 23,2. 252 Jo 10,9, cf. Sl 23,2. 253 Ez 34,22.