51
303 comparação com a métrica observada nos desenhos que constam do projecto original 85 . Observem-se então, os princípios de composição do projecto de António Varela. 6.4.2.2. A bandeira do pórtico de entrada da administração Como foi referido anteriormente, através das observações efectuadas no local, foi possível confirmar, no que diz respeito ao aspecto formal do conjunto do edificado, a utilização de uma “lógica elementar e purista das linhas horizontais e verticais” (Fernandes, 1993, p.58), e na qual se destacam pontualmente alguns elementos iconográficos, como os logótipos da empresa colocados a baixo-relevo nas platibandas das fachadas e sempre presentes de qualquer ponto de vista do exterior. Efectivamente, são facilmente observáveis, no desenho geral do conjunto, certos princípios modernistas preconizados por António Varela por esta altura, ao encontro da contenção e sobriedade na utilização das linhas, dos efeitos cromáticos, dos materiais e das texturas, numa linguagem onde impera essa ideia dos «grandes lisos» 86 . 85 “A geometria, diferentemente da medida, é auto-reguladora e quaisquer erros podem ser vistos imediatamente.” In PENNICK, Nigel, Geometria Sagrada – Simbolismo e intenção nas estruturas religiosas, Editora Pensamento, São Paulo, 1998 [seg. ed. original, Sacred Geometry – Symbolism and Purpose in Religious Structures, 1980]. 86 Segundo uma expressão de Carlos Ramos, pela mesma época. V. supra, 3.3.2.

6.4.2.2. A bandeira do pórtico de entrada da administraçãourbanismo-portugal.net/files/upload/teses/hugo_cerqueira_part3.pdf · In PENNICK, Nigel, Geometria Sagrada – Simbolismo

Embed Size (px)

Citation preview

303

comparação com a métrica observada nos desenhos que constam do

projecto original85.

Observem-se então, os princípios de composição do projecto de

António Varela.

 

6.4.2.2. A bandeira do pórtico de entrada da administração

Como foi referido anteriormente, através das observações efectuadas

no local, foi possível confirmar, no que diz respeito ao aspecto formal do

conjunto do edificado, a utilização de uma “lógica elementar e purista das

linhas horizontais e verticais” (Fernandes, 1993, p.58), e na qual se

destacam pontualmente alguns elementos iconográficos, como os logótipos

da empresa colocados a baixo-relevo nas platibandas das fachadas e

sempre presentes de qualquer ponto de vista do exterior.

Efectivamente, são facilmente observáveis, no desenho geral do

conjunto, certos princípios modernistas preconizados por António Varela

por esta altura, ao encontro da contenção e sobriedade na utilização das

linhas, dos efeitos cromáticos, dos materiais e das texturas, numa

linguagem onde impera essa ideia dos «grandes lisos»86.

85 “A geometria, diferentemente da medida, é auto-reguladora e quaisquer erros podem ser vistos imediatamente.” In PENNICK, Nigel, Geometria Sagrada – Simbolismo e intenção nas estruturas religiosas, Editora Pensamento, São Paulo, 1998 [seg. ed. original, Sacred Geometry – Symbolism and Purpose in Religious Structures, 1980]. 86 Segundo uma expressão de Carlos Ramos, pela mesma época. V. supra, 3.3.2.

304

Fig.  237  –  Lázaro  Lózano,  AEL,  primeiro  logótipo  da  empresa,  por  cima  da  entrada  da  administração  [foto  de  1999].    

Fig.  238  –  Lázaro  Lózano,  AEL,  segundo  logótipo  da  empresa,  na  platibanda    da  fachada  da  secção  de  fabrico  [foto  de  1999].    

A ornamentação do conjunto edificado resume-se apenas às

intenções publicitárias do conjunto iconográfico dos logotipos da empresa,

a alto-relevo nas fachadas do exterior, assim como no interior. No total, os

logotipos encontrados são apenas dois: o primeiro logotipo da empresa e o

segundo, posterior ao primeiro na data de sua concepção.

O primeiro apresenta-se sob forma de «diamante» hexagonal em

baixo-relevo, incorporando as inicias da empresa em perspectiva cónica

com dois pontos de fuga. Data da fundação da empresa nos Anos Vinte e

foi criado por Lázaro Lózano [fig.297].

O segundo apresenta-se sob forma de um triângulo representando

uma vela latina, em cima, e o seu respectivo reflexo na água, estilizado por

linhas horizontais, em baixo, sendo o todo englobado por um círculo que

confere unidade ao conjunto. É posterior ao segundo, e data

aproximadamente da segunda parte dos Anos Vinte, tendo sido criado por

Lázaro Lózano87. Normalmente apresentado em artes gráficas sob fundo

branco, surge na fachada da secção de fabrico com fundo amarelo [fig.

238] e na fachada da secção de cheio a branco com contorno azul.

Este segundo logotipo foi maioritariamente utilizado pela empresa,

substituindo o primeiro na maior parte dos suportes onde foi utilizado

(fábricas, embarcações, latas, publicidade, etc.)88, pelo que se depreende

com natural evidência a sua utilização sistemática no projecto de António

Varela em Matosinhos.

Já o primeiro apenas surge na fachada exterior, por cima da entrada

da administração, junto à Praça Passos Manuel, assinalando as iniciais da

empresa: «A.E.L.» [fig.237].

87 V. supra, 6.1.e fig.170. 88 Ibidem.

305

Fig.  240  –  Metrologia  da  bandeira  do  pórtico  da  administração  [foto  de  1999].    

Fig.  239  –  Metrologia  da  bandeira  do  pórtico  da  administração  [foto  de  1999].    

Contudo, ao se acederem os degraus de acesso ao átrio da

administração89, depara-se ao observador outra figura, aparentemente em

nada comparável com qualquer tipo de imagens veiculadas pela empresa

noutro locais [fig.239-240.

Trata-se da anteriormente referida bandeira do pórtico que delimita o

interior do edifício do átrio exterior com saída para a praça Passos Manuel.

O conjunto do átrio é assim composto pelo vão da porta [fig.241] colocado

debaixo do vão superior, sendo este mais largo do que o vão da porta,

constituindo a sua bandeira [fig.239-240].

Esta bandeira apresentava-se com secções de vidro, actualmente

destruídas, intercaladas no suporte da caixilharia em cimento anteriormente

referida. Convém referir que este desenho da bandeira é inexistente em

toda a iconografia da empresa, não se encontrando nenhuma analogia com

quaisquer das outras imagens veiculadas por esta, tanto no que respeita

outras unidades fabris anteriores, assim como na sua frota, publicidade,

objectos diversos, etc. Neste contexto, pertence unicamente à fábrica da

autoria de António Varela, e parece enquadrar o logótipo da empresa numa

configuração geométrica mais complexa.

Destas considerações surge uma primeira pergunta: qual a razão que

terá levado Varela a utilizar um desenho aparentemente diferente, quando

o próprio emprega sistematicamente o principal logotipo da empresa na

composição geral do projecto90? Sendo a empresa detentora de uma

imagem de marca «forte e depurada»91, integrando um «espírito moderno»

89 À data de elaboração do nosso levantamento efectuado em 1999 e até à presente data permanece esta entrada da fábrica pela praça Passos Manuel completamente murada (tal como o resto dos acessos ao interior de todo o quarteirão, assim vedados devido ao seu estado de ruína), e é impossível a sua visualização a partir da rua. Nestas condições, o seu acesso e completa observação apenas se pode efectuar pelo interior, através de um acesso à AEL pela Rainha do Sado, que comunica no seu interior com os armazéns de 1941. 90 Assinale-se que este desenho da caixilharia não consta do desenho do alçado da administração entregue por Varela com vista a aprovação do projecto, em 1938. No entanto, apesar de não ter sido encontrado nenhum desenho de pormenor do autor sobre este desenho da caixilharia em particular, somos levados a considerar que devido a um grande número de analogias com outros desenhos encontrados neste e noutros contextos de obras comprovadas do autor, a evidência de sua paternidade poderá ser considerada como certa. 91 V. supra, 6.1 e 6.3.1.

306

Fig.  241  –  Metrologia  da  vão  do  pórtico    da  administração  [foto  de  1999].    

veiculado por uma geração de artistas colaboradores, porque razão surge

aqui este caso particular?

Tendo em conta todo o cuidado aplicado pelo autor na imagem geral

do edifício, revelando o seu espírito metódico e racional, não nos parece

ser esta solução formal, – ainda mais tratando-se da “entrada nobre” do

edifício – o simples produto de uma razão meramente ornamental, o que

não parece fazer sentido se tivermos em conta o espírito de seu autor.

Parece aqui ter existido uma intenção evidente ao colocar uma entrada de

luz na parte superior deste vão, e, à primeira vista, a composição com base

no elemento circular também parece estabelecer uma analogia evidente

com o segundo logotipo da empresa, que também era ordenado com base

no círculo [fig.170-238]. É também óbvia a integração do logotipo

empresarial, à semelhança dos exemplos de outras fábricas, como é

possível observar na entrada da administração da conserveira Pinhais, uma

das poucas unidades ainda em actividade em Matosinhos, situada alguns

quarteirões acima.

Contudo, o conjunto da caixilharia revela uma geometrização que se

desenvolve para além do elemento circular que originalmente integrava o

logótipo e ao qual este é manifestamente extemporâneo [fig.234]. Seria

então necessário «compreender» esta figura geométrica que aqui surge «do

nada», aparentemente sem qualquer vínculo residual, e que «emerge» de

forma insólita exactamente no lugar mais representativo do espaço: a

entrada da administração.

Para compreender seria então necessário observar o seu traçado

geométrico.

307

Fig.  242  –  AEL,  estudo  metrológico  da  bandeira  do  pórtico  de  entrada  da  administração,  com  base  no  levantamento  efectuado  no  local.    

Em termos gerais, pode considerar-se a caixilharia da bandeira uma

composição de três momentos, representados por três formas geométricas

regulares: um círculo, inserido num quadrado ladeado por quatro

quadrados menores (um em cada canto), perfazendo o todo um rectângulo

maior na sua periferia exterior. É uma composição regular, simétrica e

concêntrica. Até este ponto revela-se o objecto em plena conformidade

com os princípios compositivos do autor, no que respeita a utilização de

formas puras, tanto tridimensional como bidimensionalmente, assim como

pelo uso de um esquema concêntrico e unitário.

Coloca-se deste modo a conjectura, equacionando o que de facto

poderá ter presidido a esta insólita composição uma intenção do autor, ao

assinalar, formalmente, uma presença simbólica de seu método

compositivo, como forma de assinatura pessoal. Nesse caso estar-se ia

então perante uma atitude ritualista, podendo assemelhar-se – embora sem

um carácter «vinculativo» –, à tradição do ofício do artesão, perante a qual

este assinava a obra feita e da qual são exemplo as siglas ou marcas dos

pedreiros medievais92.

92 «Les marques d’appartenance», ou marcas de obediência, segundo designação de Franz Rziha: veja-se a este respeito RZIHA, Franz, Études sur les marques des tailleurs de pierre – La Géométrie secrète – l’histoire, les rites & les symboles des Compagnos tailleurs de pierre du Saint-Empire Romain Germanique & de la Grande Loge de Strasbourg, ed. francesa: Éditions de la Maisnie/La Nef de Salomon, Paris, 1993, [segundo a edição original alemã de 1883].

308

Fig.  243  –  AEL,  vista  frontal  da  bandeira  do  pórtico  da  administração.    

Seguindo esta analogia, convém relembrar alguns estudos efectuados

sobre este assunto, tendo-se verificado uma regra segunda a qual uma sigla

pessoal é composta com base numa rede, matriz ou traçado regulador,

correspondente à «casa-mãe», corporação ou confraria à qual cada

indivíduo pertenceria. Através deste sistema codificado também era

possível reconhecer e contabilizar o trabalho pessoal realizado numa obra

colectiva. Nos finais do século XIX, Franz Rziha elaborou um extenso

estudo pioneiro sobre marcas de pedreiros, considerando duas grandes

categorias que integravam diferentes tipologias: Rziha também distingue

na sua obra dois grandes tipos de marcas: as marcas «utilitárias» e as

marcas de «obediência»93.

Por analogia, considerando o carácter tanto pessoal como simbólico

da marca de António Varela na bandeira do pórtico de entrada da

administração da fábrica, somos levados a colocar a hipótese de defini-la

com um duplo carácter: utilitário e simbólico.

Utilitário, porque pode ser considerada como uma marca de origem,

designando o próprio autor; simbólico, porque designante de um sistema

hierofânico, logo sagrado em essência, pertencente a um sistema

geométrico canónico em particular94.

Pelos exemplos encontrados na obra do António Varela, tudo leva a

crer que este «padrão» pode entender-se como uma forma de «assinatura»

do autor nas suas composições, no que poderá dizer respeito a pelo menos

determinado período de sua carreira. Para além de outros projectos de sua

93 Segundo Franz Rziha, estas tipologias estruturam-se do seguinte modo: 1) nas marcas utilitárias: a) as marcas de propriedade, que designam o proprietário; b) as marcas de origem, designando o autor do objecto; c) os sinais comerciais, que identificam o objecto durante o seu transporte; d) os ideogramas científicos, de carácter matemático, geométrico, astronómico, químico, etc.; e) os símbolos de manipulação na obra, sendo estes portanto os símbolos habitualmente utilizados pelos operários par indicar a colocação das peças no seu devido local da obra, tais como utilizadas pelos carpinteiros ou pelos pedreiros; f) os sinais secretos ou numerados, utilizados como escrita ou sistema codificado. 2) nas marcas de obediência: a) as marcas pessoais, utilizadas por diversas pessoas, fosse para marcar a sua designação específica de obediência a uma determinada loja ou confraria, fosse como forma de “cachet” actual; b) as marcas de família, utilizadas maioritariamente pela burguesia, como símbolo da casa ou da propriedade familiar, como contraponto aos símbolos heráldicos utilizados pela nobreza; c) os sinais do domínio da simbólica, e em particular as formas geométricas de estrutura regular e concêntrica: o círculo, o triângulo, o quadrado, o hexagrama, o pentagrama, etc, assim como as suas composições. Idem, ibidem, pp.1-2. 94 V. infra, 6.4.2.2.1.

309

Fig.  244  –  António  Varela,  guache    sobre  papel  (ass.  “António  Jorge”,  s.d.)    

autoria nos quais foi possível identificar o mesmo «modus operandi»95,

poderá ainda assinalar-se o único quadro assinado pelo próprio [fig.244] –

e simultaneamente talvez o mais enigmático –, no qual se pode observar

um padrão geométrico similar ao da bandeira do pórtico [fig.243], e que se

apresenta sob modo de «óculo»96.

Existem indícios que podem levar a considerar esta singular

composição como um auto-retrato do período de juventude, pintado por

volta de finais dos Anos Dez ou princípios de Vinte, onde a atmosfera é

mais uma vez preenchida por traços de melancolia ou um eventual

sentimento de «perda», numa personagem enigmática que olha para fora

do quadro como quem interroga ou escuta a obscuridade, numa paisagem

deserta e sob um horizonte quase imperceptível de uma floresta densa,

numa vigília próxima da atmosfera lunar ou paulista que também parece

sobressair do seu retrato pintado por Eduardo Viana [fig.50]. Os signos são

«densos», mas os seus significados poderão ser múltiplos. Seja como for –

auto-retrato, ou não? –, os limites da sua interpretação tornam-se

especulativos (o onírico, a temática lunar, a palidez cromática, a

vestimenta e a morfologia, etc.) pelo que nos fica a percepção sígnica da

sua geometria.

95 V. infra, Cap.7: Outras obras à luz de uma mesma interpretação. 96 Tema recorrente no projecto da Casa da rua de Alcolena. Veja-se a este respeito 7.4. A casa da rua de Alcolena e a colaboração com Almada Negreiros: maturidade e crepúsculo para um novo «começar».

310

Já por esse caminho pode considerar-se o seu simbolismo

marcadamente em torno da figura do círculo, que parece ter sido uma

verdadeira «obsessão» geométrica de Varela, tendo-se exprimido através

de vários elementos na sua produção arquitectónica mais emblemática,

onde se pode incluir – para além da fábrica de Matosinhos –, a Fábrica da

Afurada, o Mercado de Coimbra, a Mirante e a Casa da rua de Alcolena97.

Poderá mesmo parecer que, à semelhança de Jorge Segurado – na

«adopção» icónica da figura do quadrado e do quadrado rodado –, terá

Varela «adoptado» o círculo como sua «figura-mater», ou como sua

«assinatura».

Tais «signos» parecem sobretudo enquadrar-se nos processos de

padronização dos «elementos geométricos psíquicos»98 que, pela mesma

altura, Fernando Pessoa febrilmente estudou, não sendo de estranhar a

identificação na obra de Varela de processos típicos do «grupo fechado» a

que pertencia, à imagem de Almada Negreiros e Jorge Segurado.

Sendo a simbologia do círculo esotericamente conotada como

«uterina»99 ou «celestialmente unitária»100, poderá talvez simbolizar a

manifestação de quem o adoptou, ao querer «abraçar» uma «plenitude», ou

uma reintegração espiritual do «ser». Não nos parece, de qualquer modo e

no contexto psíquico e místico destas complexas personagens, um simples

«fait-divers» a ignorar.

Consequentemente, na evidência da mesma forma representada,

poderá considerar-se o mesmo padrão geométrico utilizado por analogia;

deste modo é possível abordar a sua observação conforme uma

97 No que designamos, expressamente, como a «família simbólica» das obras do autor. Veja-se a este respeito o Capítulo 7: Outras obras à luz de uma mesma interpretação. 98 Cf. FREITAS, Lima de, Pintar o Sete: ensaios sobre Almada Negreiros, o Pitagorismo e a Geometria Sagrada, Colecção Arte e Artistas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1990, p.57 [1ª Ed. 1977]. V. supra, 2.5. De Pessoa a Almada: «a invenção do dia claro» como legado hermético na construção da modernidade portuguesa, nota 49. 99 Veja-se a este respeito DURAND, Gilbert, Les structures anthropologiques de l'imaginaire – introduction à l'archétypologie générale, Dunod, Paris, 1992 [1ª ed. 1960] e idem, Beaux-arts et archétypes – la religion de l’art, Presses Universitaires de France, Paris, 1989, entre outros. 100 Idem, ibidem.

311

Fig.  245  –  Piet  Mondrian,    Composição  com  quatro    

linhas  e  cinza,  óleo  sobre    tela,  1926.      

metodologia de Geoffrey Broadbent101, segundo o qual o processo de

analogia pode manifestar-se através de dois modos:

1) por processo da Razão, pelo estudo das relações canónicas.

2) por processo da Metáfora, pelo estudo das relações icónicas.

Através desta estrutura é possível observar que o desenho canónico

decorre do processo de analogia da razão, enquanto que o desenho icónico

decorre da analogia da metáfora.

Contudo, tal não significa que a determinado desenho canónico não

corresponda uma conotação metafórica ou mesmo simbólica, enquanto

portadora de um ou de múltiplos significados, seja por intenção deliberada

do seu transmissor, seja pela possibilidade de interpretação livre, o que é

inerente à propriedade de transmigração não restritiva do seu potencial

conteúdo.

Importa referir que qualquer estudo de um elemento geométrico

torna-se objectivo por via canónica, e subjectivo por via icónica, sendo o

processo de analogia o meio de análise operativa ou especulativa, ou ainda

complementar, consoante o caso.

Devido às suas propriedades operativas particulares, as figuras

geométricas puras, (triângulos pitagóricos e sólidos platónicos, por

exemplo) eram consideradas desde a Antiguidade como manifestações da

ordem do Cosmos, por transferência do mesmo arquétipo: a manifestação

do «Uno Divino» no espaço físico. Icónicamente e canonicamente, foram

também um tema recorrente da modernidade plástica por via do

101 Veja-se a este respeito BROADBENT, Geoffrey, e al., Metodologia del diseño arquitectónico, Editora Gustavo Gili, Barcelona, 1971, e BROADBENT, Geoffrey, Design in Architecture. Architecture and the Human Sciences, David Fulton Publishing, Londres, 1988. Muito embora o autor estabeleça ainda outros critérios de análise ao processo de concepção do desenho arquitectónico, retemos estes dois (razão e metáfora), dentro do quadro do estudo canónico e icónico das obras de António Varela, assim como pelo que permitem uma aproximação à reflexão almadiana, entre o Logos e o Mito (v. supra, 2.5: De Pessoa a Almada: «a invenção do dia claro» como processo de construção da modernidade portuguesa, e infra, Cap.7: Outras obras à luz de uma mesma interpretação).

312

abstraccionismo geométrico, na exploração dos seus limites cognitivos e

meta-simbólicos102 [fig.245-248].

Assiste-se, no presente caso particular da «marca» de António

Varela, a uma transferência de um mesmo arquétipo, pela dupla analogia

de uma entidade simultaneamente icónica, mas também, como tudo leva a

crer, canónica.

Vejamos então e em primeiro lugar, a questão do Cânone.  

 

6.4.2.2.1.  Estudo  do  Cânone

Deste modo, tendo em conta que os objectivos desta parte se

enquadram no estudo de «representação» da fábrica, procurou-se o traçado

regulador subjacente à composição do desenho da bandeira do pórtico da

administração, no sentido de se compreender o «modus operandi» do autor

na composição geral da fábrica.

Como foi referido, o desenho da bandeira é uma figura regular,

simétrica e concêntrica; assim sendo, somos confrontados, à partida, com

duas constatações:

Em primeiro lugar, de que se trata de uma estrutura polar103

[fig.246], com base no círculo inscrito.

102 Sobre a questão mítico-simbólica e os ideais teosóficos de Piet Mondrian, veja-se o Cap.3, nota 78. 103 Segundo Matila Ghyka, deve-se a Ernst Moessel a divulgação, no século XX, de uma teoria combinatória, denominada por hipótese de Moessel, na sua obra Die Proportion in Antike und Mittelalter, [ed. C.H.Beck, Munique]. Esta teoria de Moessel apresenta-se, segundo Ghika, como um ponto de vista prático e racional, e consiste na partição ou segmentação polar do círculo fundamental ou círculo de orientação. Graças a este sistema de verificação ou ajuste proporcional gráfico, é possível, de certo modo, sintetizar e conciliar as leis da analogia, da repetição da forma fundamental, da identidade e da variedade, do Igual e do Semelhante: “distintas denominações de um mesmo princípio ou de uma mesma comprovação, derivam, com efeito, dos conceitos de simetria e de analogia, tal como os entendiam os antigos. (...) A proporção geométrica (...) significava para eles, o mesmo que em Vitrúvio, ou seja, a comensurabilidade entre o todo e as partes, correspondência determinada por uma medida comum entre as diferentes partes do conjunto, e entre estas partes e o todo (é a definição de Vitrúvio, e a palavra simetria conserva, de todo diferente da sua significação actual, desde os finais do século XVII).” [trad. do autor], In GIKHA, Matila C., El Numero de Oro – ritos y ritmos pitagoricos en el desarrolo de la civilizacion

313

Fig.  246  –  Figura  básica  de  uma    estrutura  geométrica  polar.    

Fig.  247  –  Figura  básica  de  uma    estrutura  geométrica  recticular.    

Em segundo lugar, de que se trata, igualmente, de uma estrutura

reticular [fig.247], pela delimitação de um quadrado, sendo este inscrito

num rectângulo maior. Este rectângulo incorpora ainda, quatro quadrados

menores.

A forma de se poder desenhar com rigor uma trama polar e reticular

simultaneamente, será sobrepondo as duas, mantendo o centro geométrico

comum, o que decorre, por um lado, das propriedades geométricas do

sistema polar e, por outro, da manifestação arquetípica da hierofania, ou

«simbolismo do centro»104.

Numerosos padrões, matrizes, ou sistemas com propriedades

concêntricas foram estudados por vários autores de referência (Ernst

Moessel, Frederik Lund, Jay Hambidge, Matila Ghyka, entre outros).

Destas matrizes geométricas universais destacam-se duas principais, tendo

sido inicialmente reunidas e publicadas por Franz Rziha em 1883 [fig.249],

e apelidadas pelo autor como as «figuras-mãe» de todos os sistemas

combinatórios da corporação medieval da Bauhütte105. Segundo Rziha,

estas duas matrizes organizam-se segundo sistemas generativos, sendo

estes, o sistema «Ad Quadratum106» e o sistema «Ad Triangulum».

occidental, Editorial Poseidon, Barcelona, 1978, Primeiro volume – os ritmos, pp. 13 -14 [conforme a edição original francesa, Le nombre d’or]. Veja-se ainda a este respeito Cap.2, nota 74. 104 V. infra, 6.4.2.2.2. 105 RZIHA, Franz, Études sur les marques des tailleurs de pierre – La Géométrie secrète – l’histoire, les rites & les symboles des Compagnons tailleurs de pierre du Saint-Empire Romain Germanique & de la Grande Loge de Strasbourg, ed. francesa: Éditions de la Maisnie/La Nef de Salomon, Paris, 1993, p.48 [segundo a edição original alemã de 1883]. 106 Sobre o sistema da quadratura, veja-se, em particular, LUND, F. Macody, Ad Quadratum, [2 vols.], ed. Batsford, Londres e ed. Morançé, Paris, 1922; a segunda parte, Ad Quadratum II, foi editada pela Aktiesel det Lundske Forlag, Farsund, Noruega.

314

Fig.  249  –  As  quatro  chaves  da    quadratura  e  as  quatro  chaves    da  triangulação,  segundo  o  estudo  de  Franz  Rziha  sobre  a  Bauhütte,1883.    

Fig.  250  –  Divisão  geomértrica  do  quadrado.    

Fig.  248  –  Piet  Mondrian,  composição    com  traços  cinzentos,  óleo  sobre    tela,  1918.    

Estas «chaves» [fig.249] terão evoluído no espaço e no tempo, de

forma que foi possível a Rziha restabelecer os seus sistemas combinatórios

do período renascentista, já com a integração de elementos circulares:

daqui derivam o sistema quadrilobado e o sistema trilobado, de maior grau

de complexidade – que se podem observar, a título de exemplo, na

composição manuelina –, os quais não será necessário abordar no presente

estudo107.

Todo um sistema combinatório deriva destas duas «figuras-mãe»,

fundadas pela utilização sistemática do quadrado, do triângulo e do círculo.

De acordo com Rziha, as siglas mais antigas remontam na sua utilização ao

período romano e românico, tendo a sua origem no sistema da quadratura,

pela simples divisão geométrica do quadrado. São por isso apelidadas de

«figuras-mãe», com base na quadratura, e importa aqui especificar: a

utilização do quadrado ou quadratura, decorre, ao longo do tempo, de

quatro processos de utilização:

1). A divisão geométrica do quadrado [fig.250].

107 RZIHA, Franz, Études sur les marques des tailleurs de pierre – La Géométrie secrète – l’histoire, les rites & les symboles des Compagnons tailleurs de pierre du Saint-Empire Romain Germanique & de la Grande Loge de Strasbourg, ed. francesa: Éditions de la Maisnie/La Nef de Salomon, Paris, 1993, p.65 [segundo a edição original alemã de 1883].

315

Fig.  251-­‐252-­‐253  –  Princípio  gráfico  dos    

quadrados  reduzidos  ou  quadratura  reduzida,  por  potencialização.    

Fig.  254  –  Princípio  de  rotação  do  quadrado  de  origem  ou  princípio  de  interpenetração  de  

quadrados  da  mesma  dimensão.    

Fig.255-­‐256-­‐257-­‐258-­‐259  –  Exemplos  de  progressão  da  quadratura  combinada.    

Por simples divisão do quadrado pelas suas diagonais principais

formam-se quatro menores, traçando-se as suas diagonais internas forma-

se uma «figura-mãe» na qual é possível integrar toda uma série de marcas

lineares do período romano, românico e princípio do período gótico108.

2). A inscrição de quadrados menores em quadrados maiores ou

princípio gráfico dos quadrados reduzidos [fig.251-252-253].

Este procedimento, também denominado de quadratura reduzida,

constrói-se com base nas diagonais e linhas divisórias do quadrado de

origem, obtendo-se um novo traçado que se pode expandir ad infinitum: é

uma forma de potencialização da chave109.

3). A rotação ou interpenetração dos quadrados ou princípio de

rotação do quadrado de origem ou ainda princípio de interpenetração de

quadrados da mesma dimensão [fig.254].

Este traçado é facilmente observável em inúmeras tipologias

arquitectónicas concêntricas e octogonais, como por exemplo, no caso das

cidades estrelares renascentistas ou nas charolas templárias. É ainda outra

forma de potencialização da chave110.

4). A quadratura combinada [fig.255-256-257-258-259].

Ao retomar-se numerosas vezes a divisão, a redução e a rotação,

obtêm-se figuras mais complexas que, no entanto, fazem coexistir as

propriedades geométricas das anteriores num mesmo padrão, no qual se

podem arbitrar vários segmentos consoante a necessidade111.

108 Idem, ibidem, p.49. 109 Idem, ibidem, p.49. 110 Idem, ibidem, p.50. 111 Idem, ibidem, p.50.

316

Fig.260  –  Princípio  de  redução    

Fig.261  –  Princípio  de  rotação    

Fig.262  –  Quadratura  combinada  de  1º  grau:  sobreposição  dos  dois  movimentos  anteriores  num  só  padrão.    

Fig.263  –  Quadratura  combinada  de  2º  grau:  o  terceiro  duplo  quadrado  (interior)  projecta  os  seus  vértices  no  primeiro  duplo  quadrado  (exterior),  reintegrando  com  este  movimento  ternário  a  récticula  linear    de  1/1  no  sistema  polar  e  dinâmico  da  razão  √2,  harmonizando  o  mensurável  e  o  incomensurável.        

O que significa que na quadratura combinada podem sintetizar-se

dois princípios, designadas como potencializações da chave112:

1. O princípio da redução, por inscrição de quadrados menores

em quadrados maiores ou princípio gráfico dos quadrados

reduzidos [fig.260].

2. O princípio de rotação, por interpenetração dos quadrados

[fig.261].

Estes dois movimentos combinam-se geometricamente no que

poderemos convencionar de quadratura combinada de primeiro grau

[fig.262].

É a partir do primeiro grau da quadratura combinada que podem

construir-se outros níveis de complexidade, redefinindo os dois

movimentos de redução e de rotação, tanto para o interior, como para o

exterior (movimento de contracção e movimento de expansão) [fig.263].

Este segundo grau é particularmente rico em propriedades

geométrico-aritméticas, na medida em que permite a integração da

récticula estática de razão 1/1 [fig.247] no sistema dinâmico da razão 1/√2

e que implicitamente decorre do princípio de rotação [fig.261],

harmonizando, deste modo e num único e mesmo sistema operativo, o

«mensurável» e o «incomensurável», integrando rectângulos √2

comensuráveis e em íntima relação com o quadrado e rotações angulares

primárias. [fig.263].

Assim se torna possível toda uma organização de esquematizações

de carácter misto e de propriedades diversas: estático e dinâmico,

mensurável e incomensurável, polar e recticular, etc., consoante as

«necessidades» de composição do desenho.

112 Veja-se ainda este respeito, idem, ibidem, p.59.

317

Fig.264-­‐265  –  Sobreposição  da  vista  frontal  da  bandeira  da  fábrica  da  AEL  na  quadratura  combinada  de  2º  grau  e  esquema  geométrico  da  sua  caixilharia  com  base  na  mesma  matriz.      

Como se pode observar pela sobreposição da vista frontal na matriz

[fig.262], pode considerar-se possível que Varela tenha utilizado o método

da quadratura combinada, na elaboração do desenho da caixilharia da

bandeira da fábrica de Matosinhos [fig.264-265].

Esta matriz, padrão, «rede» ou «chave» parece, assim, constituir-se

como a «figura-mãe» dos traçados reguladores que presidem aos

mecanismos de pré-composição do autor, na organização do processo

compositivo do desenho arquitectónico, como adiante se poderá verificar.

6.4.2.2.2. Estudo do ícone

6.4.2.2.2.1. Simbologia da quadratura

A quadratura combinada de segundo grau [fig.88] tem um

significado particular, pois estabelece analogias com vários exemplos de

iconografia simbólica, em particular sobre a figura geralmente designada

como o triplo recinto (Triple Enceinte ou Emblème des Trois Enceintes)113.

Aqui tratamos da sua organização simbólica, não sendo o estudo abrangido

pelo rigor geométrico, mas pelas analogias arquetipais que podem decorrer

da manifestação da sua essência.

113 Sobre a Triple Enceinte ou Emblème des Trois Enceintes, veja-se CHARBONNEAU-LASSAY, Louis, L’Ésotérisme de quelques symboles géométriques chrétiens, Éditions Traditionnelles, 11, Quai Saint-Michel – Paris Ve, 1985, pp.1-3.

318

Fig.  266-­‐267-­‐268-­‐269-­‐270-­‐271  –  várias  representações  do  triplo  recinto  em  diferentes  lugares  e  em  diferentes  épocas  segundo  Louis  Charbonneau-­‐Lassay.  De  cima  para  baixo:  disco  funerário  ou  roda  solar  em  osso  de  uma  sepultura  merovíngia  em  Amailoux,  dois  grafites  templários  da  torre  de  menagem  do  castelo  de  Chinon  (1308);  grafite  sobre  pedra  da  antiga  torre  de  menagem  redonda  de  Loudun  (Viena));  decoração  de  uma  das  pedras  da  antiga  Igreja  de  Ardin  (St.  André-­‐sur-­‐Sèvres)  segundo  o  princípio  da  quadratura  reduzida,  e  grafite  da  Abadia  de  Seuilly  (séc.  XIV-­‐XV).      

Embora seja impossível reunir em toda a sua abrangência este vasto

tema em tão curto espaço, aqui se sintetizam algumas considerações,

segundo alguns autores apontados como referências fundamentais na

matéria.

Se considerarmos os estudos levados a cabo por René Guénon e

Louis Charbonneau-Lassay, consideram-se como sendo algumas das

hipóteses mais prováveis do significado da «Triple Enceinte», desde os

tempos mais remotos, a representação do Homem em diferentes estados de

sua vida, ou ainda “une sucéssion de trois principaux degrés d’initiation”

(Charbonneau-Lassay, p.7) 114, tendo-se registado a sua presença em

espaços tão diversificados como pedras neolíticas ou templos, como é o

caso do Parténon ou do Templo de Saturno – assim o relata o filósofo

Cébes, no século V a.C115 [fig. 265-267-268-269-270-271].

Platão também descreve a Atlântida como uma composição de três

círculos concêntricos, ligados por pontes no sentido dos quatro pontos

cardeais. O «Triplo Recinto» também é representado no simbolismo

judaico-cristão pela disposição espacial da Jerusalém Celeste, que seria

composta, segundo o Apocalipse de S. João, “por uma planta baixa de

formato quadrado e muralhas que formavam três vezes quatro portões”

(Jung, 1992, p.243)116.

Poderiam multiplicar-se ad infinitum as referências à mesma figura,

pois do ponto de vista da antropologia do imaginário, são numerosos os

exemplos construídos ou simplesmente idealizados quando se trata de

processos de esquematização de estruturas arquetipológicas universais. É a

mesma figura arquetípica que se encontra nas mandalas: as traduções

tibetanas revelam o seu significado profundo apelidando-a literalmente de

centro. Segundo Jung, representam o «Eu» do Homem transposto para um

plano cósmico de dimensão iniciática. Da mesma forma se encontram nos 114 CHARBONNEAU-LASSAY, Louis, L’Ésotérisme de quelques symboles géométriques chrétiens, Éditions Traditionnelles, Quai Saint-Michel – Paris Ve, 1985, p.7. 115 Idem, ibidem, pp.8-9. 116 JUNG, Carl Gustav, O Homem e os seus Símbolos, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1991 p.243. [ed. original: Man and his symbols, Dell Publisher, Nova Iorque, 1964].

319

Fig.  272  –  pedra  de  Suèvres,  período  neolítico,  desenho  de  Louis  Charbonneaux-­‐Lassay.        

mitos indianos da criação do mundus, no mito da fundação da Roma

quadrata117 descrita por Plutarco, assim como nas rosáceas românicas e

góticas, como manifestação hierofânica:

“Toda a construção, religiosa ou secular, baseada no plano de uma mandala é uma projecção da imagem arquetípica do interior do inconsciente humano sobre o mundo exterior. A cidade, a fortaleza e o templo tornam-se símbolos da unidade psíquica e, assim, exercem influência específica sobre o ser humano que entra ou vive naquele lugar.” (Id., ibid., p.242)118.

Jung e o seu comentador Jolan Jacobi insistiram particularmente

sobre a importância universal do simbolismo da mandala: Jung descreve o

fenómeno do seguinte modo:

“Estas coisas não podem ter sido inventadas, devendo ressurgir de profundezas esquecidas para expressar as mais elevadas percepções e as mais sublimes intuições do espírito, unindo assim o carácter singular da consciência moderna com o passado milenar da humanidade.” (Id., ibid., p.243).

Segundo Gilbert Durand, discípulo de Gaston Bachelard, esta figura

encontra-se ligada a toda uma simbólica floral, labiríntica, assim como ao

simbolismo da casa, servindo de receptáculo dos deuses, sendo o próprio

«palácio» dos deuses. Nas religiões monoteístas é assimilada à imagem do

Paraíso, no centro do qual reina o deus supremo, e no qual o tempo é

abolido por uma inversão ritual de transformação da terra mortal e

corruptível em «terra de diamante» incorruptível, actualizando desta forma

a noção de «paraíso terrestre»119.

117 A descrição da Roma quadrata por Plutarco é interpretada por Jung da seguinte forma: “A cidade fundada sob esta cerimónia solene tinha uma forma circular. No entanto, a velha e famosa descrição de Roma refere-se à urbs quadrata, à cidade quadrada. De acordo com uma teoria que tenta explicar esta contradição a palavra quadrata deve ser entendida como quadripartida, isto é, a cidade circular dividida em quatro partes por duas artérias principais que corriam de norte a sul e de este a oeste . o ponto de intersecção coincidia com o mundus mencionado por Plutarco. De acordo com outra teoria, a contradição pode ser entendida como um símbolo, isto é, como a representação visual do problema matematicamente insolúvel da quadratura do círculo, que tanto preocupava os gregos e que deveria ocupar um lugar tão significativo na alquimia. Estranhamente, também Plutarco, antes de descrever a cerimónia do traçado do círculo por Rómulo, refere-se a Roma como Roma Quadrata. Para ele Roma era, a um tempo um círculo e um quadrado.” Idem, ibidem, p.242. 118 V. infra, 6.4.2.3. 119 Cf. DURAND, Gilbert, Les structures anthropologiques de l’imaginaire – introduction à l’archétypologie générale, Dunod, Paris, 1992, p.282.

320

Durand, que apesar de concordar com a interpretação holística de

Jung, considera, no entanto, que a interpretação primordial da mandala

deverá manter-se “plus mesurée et ne signifier que la quête d’un labyrinte

initiatique” (Durand, 1992, p.282), sendo mais uma forma de suficiência da

«intimidade psíquica» do que um movimento egocêntrico de afirmação.

Nesse sentido, as concepções aritmológicas ou zodiacais da quadripartição

do universo serão sempre subordinadas à figura mística da mandala como

centro isomórfico do repouso «suficiente na profundidade» da psique120.

6.4.2.2.2.2. Interpretação aritmológica da bandeira do pórtico

“Pour trois raisons, le ciel se manifeste rond. La première est semblance: parce que notre monde sensible est fait à la ressemblance du monde archétypique et ideal qui est dans l’entendement divin: et ce monde là n’a ni commencement ni fin. La deuxième est utilité: car parmi les corps isopérimètres, le sphérique est le plus approprié. Et puisque le monde contient toutes choses, cette figure lui convient. La troisième est nécessité: car si le monde avait une autre figure, triangulaire ou quadrangulaire, il s’ensuivrait que certaines places seraient sans corps, et certains corps sans place. Ce qui est impossible. Cela devient bien apparent dans les figures angulaires se mouvant alentour.” (Freitas, 1993, p.90) 121

O significado celeste da figura arquetípica do círculo encontra-se

desta forma explicada pelo astrónomo e matemático português do século

XVI: o céu é portanto redondo por «semelhança» arquetípica, por

«utilidade» enquanto contentor, e por «necessidade».

120 Cf. idem, ibidem, p.282: mais «silenciosa», esta qualificação de Gilbert Durand parece enquadrar-se no perfil reservado e no modus operandi de António Varela. 121 NUNES, Pedro, Tratado da Esfera do Mundo, in FREITAS, Lima de, 515 Le lieu du mirroir – Art et numérologie, Albin Michel, Paris, 1993, p.90.

321

Na mesma linha de raciocínio, Lima de Freitas comenta que esta

necessidade decorre da capacidade própria do círculo em inscrever os

ângulos de todas as figuras geométricas concêntricas, pela razão de que o

número de polígonos que se podem inscrever no círculo é infinito, assim

como pelo facto dos polígonos simbolizarem, segundo o conhecimento

pitagórico, toda a manifestação do Ser enquanto limite ou cristalização de

uma das inesgotáveis possibilidades contidas no círculo:

“Si l’on considère ainsi les divisions régulières du cercle, génératrices des polygones parfaits qu’il est possible d’y inscrire, et si l’on accepte leurs qualifications symboliques et métaphysiques comme découlant du nombre de côtés, de la valeur des angles et des proprietés géométriques de ces figures, on concevra aisément que les polygones réguliers constituent, en quelque sorte, des figures archétypiques «Qui sont dans l’intelligence divine» (ou tridimensionellement les polyèdres réguliers, appelés «corps platoniques»). Ensuite, on comprendra qu’elles règlent, à leur tour, en tant que modèles parfaits, l’apparition d’un nombre infini de figures imparfaites, précisément celles dont est composé le monde crée.” (Id., ibid., pp.90-91).

É possível notar, através do estudo aritmológico, que o número de

lados das figuras regulares ou perfeitas (ou o número correspondente de

divisões iguais do círculo) traduz o arquétipo em correspondências

numerais (assim como o traçado dos polígonos regulares o traduz em

figuras geométricas)122.

Do mesmo modo, é possível constatar que uma figura geométrica

perfeita, assim como o número dos seus lados, exprime uma mesma

realidade através de duas linguagens diferentes: a aritmologia estrutural e a

aritmologia dimensional.

A artimologia, como estudo da simbólica dos números e da

geometria das formas simples, apresenta-se como um “ramo derivado do

conhecimento matemático pitagórico donde retém todo o carácter

simbólico e religioso” (Cunha, 1997, p.11). A aritmologia divide-se

também em dois caminhos distintos: a aritmologia estrutural e a

aritmologia dimensional, donde importa definir com mais exactidão estes

dois termos:

122 Veja-se a este respeito, JOUVEN, Georges, Les nombres cachés, Dervy, Paris, 1978 e idem, La Forme Initiale – Symbolisme de l’Architecture Traditionelle, Dervy, Paris, 1985.

322

Fig.  273  –  relação  das  unidades  da  bandeira  da  AEL  com  o  quadrado  mágico  do  Sol.      

A aritmologia estrutural diz respeito ao estudo da simbólica das

formas ou figuras geométricas simples ou regulares: a recta, o quadrado, o

duplo quadrado, o círculo, os polígonos regulares, o cubo, a esfera “que

pela sua pureza os arquitectos tradicionais utilizam para desenhar a

estrutura das edificações, tanto em planta como nos planos elevados” (id.,

ibid., p.12), sendo “fisicamente observável por qualquer um que se

disponha a fazê-lo.” (id., ibid., p.12).

A aritmologia dimensional diz respeito ao “valor das cotas das

medidas da aritmologia estrutural, expressa em números privilegiados em

unidades de medidas sagradas” (id., ibid., p.211). Pela mesma razão, a

aritmologia dimensional “só é perceptível aos que conhecem os números

privilegiados e o valor das unidades em presença” (id., ibid., p.211).

Se o estudo da aritmologia estrutural relativo à bandeira do pórtico da AEL

pôde ser efectuado através das figuras 264 e 265, paralelamente, também

será necessário ter em conta o seu estudo dimensional.

Como foi anteriormente observado, a caixilharia da bandeira forma

um círculo inscrito num quadrado, que por sua vez se inscreve num

rectângulo maior, onde se podem observar quatro quadrados menores [fig.

273].

Consequentemente, a mais pequena unidade observável à vista é

aquela que forma os quadrados menores, o que significa que também é

possível regular o conjunto por aquilo que parece constituir a unidade de

base.

Neste caso obtêm-se a leitura de um rectângulo de seis por quatro e,

tendo em conta o seu traçado regular com base na quadratura, também se

pode considerar o seu prolongamento numa figura quadrada com a mesma

unidade de base: deste modo obtêm-se um quadrado de seis por seis, que

323

Fig.274  –  quadrado  mágico  do  Sol  ou  de  Ouro.      

em aritmologia dimensional pode ser referente ao «quadrado mágico do

Sol»123. [fig.274].

Através deste princípio, é fácil observar que o módulo deste

quadrado, sendo composto por seis unidades de lado, integra no total 36

casas [6x6=36]. A soma interna de 36 é nove, sendo que o quadrado

mágico de nove [3x3] é o primeiro de todos os quadrados mágicos.

Contudo, o simbolismo do número nove é bastante complexo: com

efeito, pelo estudo da aritmosofia verifica-se que quanto mais elevado for

um número, maior o seu grau de complexidade, pelo que nos limitaremos a

descrever as suas conotações simbólicas mais comums.

Sendo nove a «totalidade dos princípios criadores»124, é também

«3x3», ou seja, a tripla soma da Trindade, representando a manifestação

divina em três planos: o Espírito, a Alma e a Matéria125.

Outra conotação essencial do nove, intimamente ligada à anterior,

reside no seu carácter de renovação de um ciclo, pois ele é oito (a plenitude

da matéria) mais o Uno Divino, sendo de todos os sistemas de numeração o

último número simples que marca o começo do desenvolvimento da série

numérica: de facto, nove é o último ternário da série de números126.

Consequentemente, do ponto de vista metafísico, o nove representa a

solidariedade cósmica, também expresso pela união do quatro (a forma, a

matéria) com o cinco (o elemento formado, a fundação do reino, o

pentagrama, o anima mundi). O nove será assim “a integração do ser na

fonte comum de todos os seres” (Serro, 1997, p.104), ou ainda como

definido por Duns Scott, (1273-1308): “relação extrínseca do corpo às

partes do centro resultando da disposição das partes no corpo” (id., ibid.,

p.107), etc.

123 Veja-se a este respeito GANDRA, Manuel, Da face oculta do rosto da Europa – Prolegómenos a uma História Mítica de Portugal, Hugin, Lisboa, 1997, pp.128-129. 124 Veja-se a este respeito SERRO, Luís, O Número de Ouro como reitor da concepção arquitectónica, Universidade Lusíada, Lisboa, 1997, p.101. 125 Idem, ibidem, p.101. 126 Idem, ibidem, p.101.

324

Numa tentativa de síntese, é possível pensar que será sobretudo

devido ao simbolismo do quaternário terreno aliado ao quinto elemento,

que se poderá eventualmente entender a relação iconográfica entre o

círculo e os quatros elementos quadrados, como arquétipo que preside à

composição desenhada por António Varela.

Com efeito, se o quatro é de facto entendido essencialmente como o

simbolismo da terra, já o cinco corresponde ao elemento formado, ou seja,

ao Homem como arquétipo supremo da criação. Do mesmo modo, e como

o faz observar Carl Jung, se o quatro ou o quaternário surge na história dos

símbolos como expansão do Uno, já a estrutura pentagonal do cinco coloca

em evidência o Uno como centro do quadrado: a este respeito comenta

Marie-Louise von Franz:

“Cette quintessence ne vient pas seulement s’ajouter comme cinquième aux quatre éléments habituels, mais elle représente l’unité des quatre la plus raffinée et la plus subtilment spirituelle que l’on puisse imaginer. Elle est soit inicialement présente en eux et extraite d’eux, soit produite par la circulation de ces éléments l’un dans l’autre. Tandis que le pentagone, avec ses cinq angles, géométrise le nombre cinq dans sa force quantitative et additive, la quintessence est représentée par le quinconce comme centre de quatre.” (Freitas, 1993, p.93)127

Este significado do cinco representado como um quatro centrado

marca a emergência da consciência do conhecimento que,

simultaneamente, divide e distingue as diferentes polarizações da

totalidade do «continuum» universal reunificando-as na visão do sujeito,

ou seja, o ser humano consciente do «Anima Mundi»: “Le cinq est le

centre du quatre. Le carré représente la totalité du royaume ainsi que

chaque temple; on l’utilisait comme élément de base pour tracer tous les

camps militaires et les plans des villes.”(id., ibid., p.93).

127 FRANZ, Marie-Louise von, Nombre et temps – psichologie des profondeurs et physique moderne, ed. La Fontaine de pierre, Paris, 1978, in FREITAS, Lima de, 515 Le lieu du mirroir – Art et numérologie, Albin Michel, Paris, 1993, p.93.

325

Fig.  275  –  Consagração  de  um  altar  dos  cristãos  primitivos,  segundo  Gérard  de  Champeaux  e  Dom  Sébastien  Sterckx.      

Fig.  276  –  Pormenor  de  All  Saints  Church,  Hawkhurst,  Kent,  Grã-­‐Bretanha.      

Fig.  277  –  Estandarte  de  Las  Navas  de  Tolosa,  séc.  XIII,  Mosteiro  de  las  Huelgas,  Burgos,  Espanha.      

Símbolo da «quinta-essência» nas religiões orientais, também assim

foi considerado na tradição neopitagórica e neoplatónica no ocidente, como

número do conhecimento. Na tradição ocidental, o cinco, como símbolo da

fundação do reino divino, preside e orienta a consagração do altar cristão.

O altar constitui assim um microcosmo e a sua consagração no

macrocosmo, tanto pela disposição dos elementos como pela própria

liturgia128 [fig.275].

“L’autel constitue un microcosme et sa consécration préfigure et commence de réaliser liturgiquement celle de l’univers. Par deux fois, le pontife trace sur la table d’autel cinq croix: nous savons que c’est le schéma de l’expansion spatiale; la première au centre, là où le ciel touche la terre, là où la présence divine se communique aux hommes et transmute la matière absolue transparente aux échanges spirituels; les quatre autres selon deux diagonales rayonnant en étoile autour du centre et joignant les coins de l’autel, dont la table rectangulaire tient lieu de la totalité spatiale. Pour la premier tracé, le pontife se sert d’eau bénite, et c’est à une purification qu’il procède: il refait le déluge et ramène le cosmos à son état préformel [...] il le baigne en même temps dans l’eau de vie et renouvelle le mystère de la genèse d’une nouvelle humanité issue de Noé [...] qui va repeupler la terre en rayonnant autour de l’autel élevé à Dieu sur la Montagne du salut où l’arche l’a abordé. La prière que le consécrateur récit alors exprime que tout cela est inclus dans le geste de Jacob dressant sa pierre, l’oignant et faisant d’elle un lieu de sacrifice et une porte du ciel. Ce qui fait le lien avec le second tracé des cinq croix, cette fois-ci avec l’huile dite des catéchumenes.” (id., ibid., pp.95-96)129.

Pela observação do mesmo gesto arquetípico, o desenho de António

Varela parece aparentar-se à representação dos quatro elementos e da

quinta-essência, pela presença dos quatro quadrados menores e do círculo

interior, representando os quatro elementos terrenos e a quinta-essência ou

quinto elemento, o uno indivisível, como podem ser observados em

numerosas composições mandálicas de disposição concêntrica segundo o

«princípio do 4+1»130.

De duas figuras apresentadas como exemplos, destacaríamos a

primeira, pela proporção geométrica com base na quadratura [fig. 276] e a

128 Idem, ibidem, p.95. 129 CHAMPEAUX, Gérard de, e STERCKX, Dom Sébastien, Introduction au monde des symboles, Éd. Zodiaqe, Paris, 1966, in idem, ibidem, pp.95-96. 130 Idem, ibidem, p.95.

326

Fig.  278  –  Alçado  do  vão  exterior  da  entrada  da  administração  da  fábrica:  levantamento  cotado  (em  metros),  do  conjunto  da  bandeira,  vão  da  porta  e  escadas,  a  partir  da  cota  de  passeio  da  praça  Passos  Manuel.      

segunda, pela sua semelhança ao nível da composição do círculo inscrito

num quadrado ligados por quatro eixos ou «braços» [fig. 277], sem no

entanto estes últimos cruzarem o interior do círculo, respeitando deste

modo o princípio do «uno indivisível», regendo-se da mesma forma que o

centro da cruze celta. Note-se ainda que a mandala musulmana integra no

interior do seu círculo a quadratura combinada no primeiro grau.

No caso da bandeira da A.E.L., do mesmo modo é possível

considerar, que à metáfora iconográfica parece acrescentar-se a relação

canónica, facilmente observável nesta mesma figura, que indica, no seu

centro, a sua matriz: ou seja, o princípio da quadratura combinada.

Mas se também se trata de um sistema canónico, seria necessário

considerar a verificação da métrica do alçado do vão de entrada no seu

todo pelo mesmo modus operandi, ou seja, através da observação da

composição geométrica do autor, efectuada, como tudo leva a crer, com

base na mesma matriz: o sistema «ad Quadratum», potencializado na sua

combinação de segundo grau [fig. 263].

6.4.2.3. Estudo geral do pórtico de entrada da administração

327

Fig.  279  –  Ideograma  de  Anu,  deus  do  céu  assírio.      

6.4.2.3.1. Sobre a questão da ubiquidade do centro

Sendo o processo um sistema operativo, por excelência, verificam-se

os mesmos métodos compositivos como formas de «orientar» o espaço a

edificar, fazendo corresponder à obra uma identificação sagrada, interior e

singularizada, por oposição a um espaço profano, exterior131. Este

fenómeno constitui, em si mesmo, o que se designa por hierofania:

convém relembrar, a este respeito, uma reflexão de Mircea Eliade:

“(...) a dialéctica da hierofania supõe uma escolha mais ou menos manifesta, uma singularização. Um objecto torna-se sagrado na medida em que incorpora (...) «outra coisa» que ele próprio. Por agora, pouco importa que essa «outra coisa» se deva simplesmente à sua forma regular, à sua eficiência ou à sua «força» (...) o que pretendemos evidenciar é que uma hierofania supõe uma escolha, um nítido desprendimento do objecto hierofânico em relação ao restante meio (...). O desprendimento do objecto hierofânico faz-se, na maior parte dos casos, a respeito de si mesmo, visto que ele apenas se torna uma hierofania no momento em que deixa de ser um simples objecto profano, e adquire uma nova «dimensão»: a da sacralidade.” (Eliade, 1964, p.25)132.

Esta nova «dimensão», sacralizada, implica portanto a existência de

um centro gerador: “É «centro» todo o espaço consagrado, isto é, todo o

espaço no qual podem ter lugar as hierofanias e as teofanias” (id., ibid.,

p.314). O simbolismo do centro, como arquétipo, abarca múltiplas noções,

entre as quais a do “espaço «criacional» por excelência, o único onde pode

começar a Criação” (id., ibid., p.318) [fig. 279]. Do mesmo modo, “Nada

pode começar, fazer-se, sem uma orientação prévia, e toda a orientação

implica a aquisição de um ponto fixo” (id., 1965, p.113)133. Ao considerar-

se esse ponto como uma manifestação simbólica do sagrado, poder-se-á

131 Segundo Nigel Penick, “Os princípios norteadores da geometria sagrada transcendem as considerações religiosas sectárias. (...) A aplicação universal dos princípios idênticos de geometria sagrada em lugares separados no tempo, no espaço e por crenças diferentes atesta a sua natureza transcendental. Assim, a geometria sagrada foi aplicada nos templos pagãos do Sol, nos relicários de Ísis, nos tabernáculos de Joevá, nos santuários de Marduk, nos santuários erigidos em honra dos santos cristãos, nas mesquitas islâmicas e nos mausoléus reais e sagrados. Em todos os casos, uma cadeia de princípios imutáveis conecta essas estruturas sagradas.” In PENNICK, Nigel, Geometria Sagrada – Simbolismo e intenção nas estruturas religiosas, Editora Pensamento, São Paulo, 1998, p.9 [ed. original, Sacred Geometry – Symbolism and Purpose in Religious Structures, 1980]. Da extensa bibliografia sobre o tema, para além das obras de Carl Jung, Mircea Eliade, Gaston Bachelard e Gilbert Durand, veja-se ainda CENTENO, Yvette, e FREITAS, Lima de, A simbólica do Espaço – Cidades, Ilhas, Jardins, Editorial Estampa, 1991, e ROSENAU, Helen, A Cidade Ideal – Evolução Arquitectónica na Europa, 1982, Editorial Presença, Lisboa, 1988. 132 ELIADE, Mircea, Traité d’histoire des religions, Payot, 1964, p.25. 133 ELIADE, Mircea, Le sacré et le profane, Gallimard, 1965, p.113.

328

Fig.  280  –  Lima  de  Freitas,  Traçado  regulador  da  Vesica  Piscis,  comummente  designada  por  «amêndoa  mística»  ou  ainda  «o  olho  do  peixe».  Tinta  e  aparo  s/  papel,  s.d.      

revelar não só no seu centro geométrico (o seu «axis-mundi»134), assim

como na sua representação no múltiplo, pela observação do mesmo gesto

arquetípico.

Se bem que, tal como nas composições mandálicas, o quadrado se

encontre de forma inextricável ligado ao círculo, parece, no entanto, que

certas diferenças observadas por individualidades como Guénon, Jung,

Arthus ou Bachelard deveriam ser tomadas em consideração. Segundo

Durand, alguns autores demonstraram existirem alguns aspectos

diferenciados no simbolismo do centro, pela procura de diferenças

semânticas entre as figuras fechadas circulares e as figuras angulares:

Gaston Bachelard135 também estabelece uma nuance subtil entre o refúgio

quadrado e o refúgio circular, sendo este a imagem do refúgio natural, ou

do ventre feminino.

As figuras fechadas quadradas ou rectangulares acentuam o seu

simbolismo nos temas psicológicos da defesa da integridade interior (o

recinto quadrado é o símbolo da cidade, da fortaleza ou da citadela – veja-

se o caso da Jerusalém Celeste). Por outro lado, o espaço circular

representa o jardim, o fruto, o ovo ou o ventre materno (veja-se o caso da

figura da Vesica Piscis136 ) [fig.280], deslocando a acentuação simbólica

para a voluptuosidade secreta da intimidade: segundo Durand, “Il n’y a

guère que le cercle ou la sphère qui, pour la rêverie géométrique, presente

un centre parfait.” (Durand, 1992, p.284). O mesmo autor nota que também

Arthus define o carácter do círculo: “de chaque point de la circonférence le

regard est tourné vers le dedans. L’ignorance du monde extérieur permet

134 De origem pitagórica, designa, simbolicamente, o eixo de fundação de um determinado espaço através da sua representação num ponto fixo. 135 Veja-se a este respeito Chap. X – La phénoménologie du rond, in BACHELARD, Gaston, La poétique de l’espace, Presses Universitaires de France / Quadrige, Paris, 2004, pp.208-214 [1ª ed. 1957]. 136 Sobre a figura da Vesica Piscis, também denominada por olho de peixe, amêndoa mística ou amêndoa dos iniciados, vejam-se ainda os vários ensaios de Lima de Freitas sobre neopitagorismo e geometria sagrada, dois quais convém destacar o texto da comunicação Le point de la Bauhütte et la Vesica Piscis, apresentada no convénio de Roma sobre Números e formas geométricas com base da simbologia, em 1978, e inserido no volume Pintar o sete – Ensaios sobre Almada Negreiros, o Pitagorismo e a Geometria Sagrada, pp.151-175 [compilação do autor sobre conferências e ensaios da década de 70 mas somente editados pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda em 1990]; veja-se ainda, do mesmo autor e sobre o mesmo tema, Almada e o Número, Editora Soctip, Lisboa, 1990, pp.96-105 [1ª edição, Arcádia, 1977].

329

l’insouciance, l’optimisme...”(id., ibid., p.284)137, o espaço curvo, fechado

e regular, apresenta-se desta forma como símbolo de «paz e segurança»138.

Durand, à semelhança de Eliade, também qualifica o simbolismo do centro

pela sua qualidade de fenómeno de repetição:

“L’espace sacré possède ce remarquable pouvoir d’être multiplié indéfiniment. L’histoire des religions insiste à juste titre sur la facilité de multiplication de «centres» et sur l’ubiquité absolue du sacré: la notion d’espace sacré implique l’idée de répétition primordiale qui a consacré cet espace en le transfigurant. L’homme affirme là son pouvoir d’éternel recommencement, l’espace sacré devient prototype du temps sacré (...). C’est précisément dans ce phénomène d’ubiquité du centre que l’on saisit bien le caractère psychologique de ces organisations archétypales pour lesquelles l’intention psychique, l’obsession du geste ordinaire, compte toujours plus que la démarche objective et que les objections positivistes”139.

É através da repetição deste gesto primordial que se desenvolve o

Mito do Eterno Retorno, como paradigma metafísico do mesmo arquétipo.

Deste fenómeno de ubiquidade decorre o princípio metafísico de que «o

Uno se manifesta no Múltiplo», sendo «Uno» e «Múltiplo»

simultaneamente (coincidentia opositorium)140. Do mesmo modo podem

considerar-se vários «centros» na composição de António Varela, sendo

estes, no entanto, a representação do mesmo «uno indivisível», pela

observância do mesmo gesto arquetípico, revelando princípios

compositivos idênticos em diferentes ordens de grandeza quantitativas, e

mantendo a estrita observação das mesmas propriedades qualitativas, tanto

a pequena escala como a grande escala, ou seja: quer a nível do pórtico da

entrada, como paradigma do microcosmo, quer a nível de todo o complexo

fabril, como paradigma do macrocosmo.

137 ARTHUS, Le Village. Test d’activité créatrice, Hartman, Paris, 1949, p.265, in DURAND, Gilbert, Les structures anthropologiques de l’imaginaire – introduction à l’archétypologie générale, Dunod, Paris, 1992, p.284. 138 Cf. Idem, ibidem, p.284. 139 Idem, ibidem, pp.284-285. 140 Ou «coincidência dos opostos», sendo esta, exactamente, a propriedade ubíqua que decorre da multiplicidade dos centros interpretativos.

330

Fig.  281-­‐282  –  Sobreposição  do  alçado  do  vão  interior  da  entrada  da  administração  da  fábrica  no  sistema  da  quadratura  combinada  de  segundo  grau  e  comparação  com  a  figura  geométrica  da  bandeira,  aumentada  três  vezes  (razão  1/3).        

6.4.2.3.2. Estudo metrológico do pórtico

Pelo mesmo processo, poder-se-á considerar, através de uma

observação aritmológica, o mesmo processo mental para verificação da

métrica a diferentes escalas, não só na área da bandeira, como foi

anteriormente demonstrado, como de todo o conjunto do pórtico de entrada

da administração, em toda a largura como em toda a altura, do primeiro

degrau ao tecto, com base na mesma matriz geradora do desenho da

caixilharia da bandeira da entrada: a quadratura combinada de segundo

grau [fig.281-282] e, finalmente, de todo o conjunto da fábrica141.

Representa-se neste caso o centro da quadratura no centro

geométrico do alçado do pórtico, como omphalus da figura antropomórfica

desenhada, fazendo coincidir a proporção do quadrado exterior com a

altura máxima do alçado, incluindo a escada, a partir da cota do passeio e

até ao tecto, imediatamente por cima do remate superior da caixilharia da

bandeira [fig. 281].

Já na figura 282 pode observar-se a razão de 1/3 entre a proporção

do círculo da bandeira e a largura total do vão do pórtico considerado em

141 V. infra, 6.4.2.4. e fig. 287-289-290-293.

331

Fig.  283  –  sobreposição  tripla  do  alçado  do  pórtico  de  entrada  da  administração,  da  quadratura  combinada  de  segundo  grau,  do  pentágono  e  do  seu  pentagrama  potencializado,  com  base  no  mesmo  centro  geométrico  comum,  correspondente  ao  centro  do  pórtico.      

toda a sua largura, representado pela mesma imagem do círculo aumentado

três vezes. Esta proporção também se encontra na altura do vão da porta,

sendo a altura desta a dimensão da altura do módulo da bandeira repetido

duas vezes, para o baixo, o que perfaz em três módulos de bandeira

sobrepostos em altura desde a cota do átrio exterior até ao tecto.

No entanto, se tivermos em conta a tradição pitagórica, será o

pentágono a figura-mãe que preside a todas as matrizes regulares e esta

razão de 1/3 compreende-se ao considerarem-se algumas das algumas

propriedades deste último, pois segundo a mesma tradição, todos estes

sistemas matriciais (o ad Quadratum, o ad Triangulum, o sistema

quadrilobado ou o sistema trilobado) podem determinar-se segundo o

mesmo [fig.283].

6.4.2.3.2.1.  Método  do  pentágono  

Designa-se por pentagrama a estrela de cinco pontas incluída no

pentágono, e iniciaticamente denominada «Penta-Alfa» segundo a mesma

tradição pitagórica. Por potencialização desenvolve-se no seu interior uma

segunda estrela: esta relação entre a grande estrela e a pequena estrela

332

evidenciando, nas suas partes, proporções áureas, é conhecida desde a

Antiguidade. É bem sabido que o seu conhecimento foi transmitido a

Pitágoras durante o seu período de estadia no Egipto, sendo mais tarde

divulgado na civilização helénica através da Escola Pitagórica, da qual nos

ficam os testemunhos de Heródoto. Platão estabelece no Timeu o seu

modelo filosófico com base no «Número de Ouro», tendo o seu

conhecimento sido disseminado por todo o Mediterrâneo, prevalecendo nas

confrarias romanas, assim como, mais tarde, nas confrarias medievais.

Ficam alguns testemunhos escritos deste último período, como os

desenhos de Villard de Honnecourt, no século XIII, de Piero della

Francesca, Luca Paccioli, Leonardo da Vinci, até aos estudos de carácter

arqueológico de Franz Rziha no século XIX e, já no século XX, através da

divulgação de obras de autores como Matila Ghyka, René Guénon, Jay

Hambidge, Frederik Lund, Ernst Moessell, Dom Néroman142, entre outros,

assim como nas obras pictóricas e de investigação dos portugueses Almada

Negreiros, Lima de Freitas e Paulo-Guilherme d’Eça Leal143, já no fim do

Século XX, entre os numerosos estudos levados a cabo desde então.

Contudo, por não considerarmos oportuno aprofundar aqui as

numerosas propriedades aritmológicas do pentágono e do pentagrama,

assim como o estudo do número de ouro, restringir-nos-emos à sua relação

directa com o alçado do pórtico da fábrica, mantendo-nos, da forma mais

simples possível, no universo do presente objecto de estudo (a fábrica da

AEL e os princípios de composição de António Varela).

Das numerosas propriedades do número de ouro, retenhamos a sua

principal propriedade, a que Leonardo da Vinci apelidou de Divina

Proporção, ou seja, a relação ou secção áurea, pela sua dupla progressão,

aritmética e geométrica: «A relação áurea exprime-se pela divisão de um

segmento de forma a que a parte menor esteja para a parte maior assim

como a parte maior está para o todo». 142 Veja-se a este respeito Cap.2.5. 143 Para além das obras dos autores anteriormente mencionados, veja-se ainda LEAL, Paulo-Guilherme d’Eça, O Dilúvio de Quéops – novas comunicações sobre a esquecida ciência egípcia, Livros Horizonte, Lisboa, 1993.

333

Deste modo, ao considerar-se a parte maior como uma unidade, o

total do segmento será Φ (phi) e a parte menor (ou resto), o seu inverso

[1/Φ]. Donde se obtém a seguinte equação:

Considerando as suas demonstrações como passíveis de grande

ocupação de espaço, restringir-nos-emos à aceitação das suas veracidades

axiomáticas, ou seja: sendo Φ um número irracional ilimitado, ou dízima

infinita não periódica, é o resultado da expressão:

Φ = 1+√5 = 1,618034...e, do mesmo modo: 1 = 1 -√5 = 0,618034... 2 Φ 2

Outra propriedade importante do número de ouro reside no facto de

ser o único número do qual o seu quadrado é igual à soma de si próprio

mais a unidade:

Através do estudo tanto estrutural como dimensional, parece

evidenciar-se uma aproximação da métrica observada no conjunto do

pórtico, com as proporções áureas do pentágono e do seu pentagrama

inscrito, pelo que seria interessante centrar a observação nas larguras dos

três vãos presentes, que consideraremos, respectivamente: módulo a),

módulo b) e módulo c) [fig.284].

Φ = 1+(1/Φ)

Φ2 = Φ+1

334

Fig.  284  –  relação  da  proporção  áurea  com  as  três  medidas  dos  vãos,  observados  em  largura:  a):  largura  do  vão  total  da  entrada;  b):  largura  do  vão  da  bandeira;  c):  largura  do  vão  da  porta.        

Sendo:

a) largura do vão total da entrada ≈ envergadura do pentagrama

médio.

b) largura do vão da bandeira ≈ lado do pentágono médio.

c) largura do vão da porta ≈ envergadura do pentagrama menor.

Coloca-se deste modo em evidência a métrica destes três vãos

através da proporção áurea da figura canónica, ou seja: pela relação da

envergadura do pentagrama médio com o lado do pentágono médio, igual à

relação do lado do pentágono médio com a envergadura do pentagrama

menor, ou seja:

a_ = b = Φ b c

Por analogia, será então possível considerar que a largura do vão

total da entrada está para a largura do vão da bandeira aquilo que a largura

335

do vão da bandeira está para a largura do vão da porta, nesse caso,

considera-se:

a_ ≈ b ≈ Φ b c

Contudo – e ao contrário da perfeição da figura canónica –, sendo

esta relação apenas aproximada e nunca absoluta, é possível, no entanto,

definir a sua margem de aproximação a Φ através da tradução destes

valores pelos valores das cotas reais observadas durante o levantamento no

terreno [fig.278], a que se recorre, visto não terem sido encontrados os

desenhos originais desta parte do projecto do autor144.

Considerando:

– largura do vão total da entrada: a = 2,50 m.

– largura do vão da bandeira: b = 1,68 m.

– largura do vão da porta: c = 1,02 m.

Obtém-se desta forma:

2,50_ = 1,488... e: 1,68 = 1,647... 1,68 1,02

Donde se pode observar que estes valores tendem para o valor

absoluto de Φ, ou seja, aproximadamente 1,618 (considerando por

aproximação: 1,488...< Φ >1,647...).

De facto, o valor do número de ouro não é numerologicamente

possível de exprimir, pelo que somente a geometria o torna observável, de

forma que os valores encontrados durante o levantamento nunca seriam

perfeitos, mesmo tratando-se do caso de uma construção exemplar que não

tivesse sofrido descompensações145. Contudo, através da conhecida série

144 A que se recorre, visto não terem sido encontrados os desenhos originais desta parte do projecto do autor. 145 V. supra 6.4.2.1

336

de Fibonacci, é facilmente observável que a sua evolução tende a

aproximar-se de Φ: a série desenvolve-se somando o resultado de um

número com o seu anterior, começando por 1:

1; 1; 2; 3; 5; 8; 13; 21; 34; 55; 89; 144; 233; 377; 610; 987; 1597;

2584; 4181; etc...

Esta série tem uma relação com o número de ouro, o que se deve ao

facto do resultado do quociente entre dois termos sucessivos (a razão)

tender, no infinito, para este, por aproximações sucessivas da relação de

duas razões sucessivas, reduzindo cada vez mais as suas margens de

aproximação:

1/1=1; 2/1= 2; 3/2 =1,5; 5/3=1,666; 8/5=1,6; 13/8=1,625;

21/13=1,615; 34/21=1,619; 55/34=1,617; 89/55=1,6181; 144/89=1,6179;

233/144=1,61805; etc…

Pelo que se pode concluir que a relação entre a largura do vão da

bandeira e a largura do vão da porta (quociente 1,647...) é mais

aproximado de Φ do que a relação entre a largura do vão total da entrada e

a largura do vão da bandeira (quociente 1,488...), encontrando-se no

entanto os dois valores perto do princípio da série fibonacciana, entre a

razão 3/2 e a razão 5/3:

razão 3/2 =1,5 enquanto que: razão 5/3=1,666...

No entanto, seria necessário voltarmos a salientar que estas

aproximações são estruturalmente imperfeitas, o que se deve às

imprecisões da construção e não ao princípio compositivo do projecto de

Varela, sendo este verificável na sua essência como estrutura geométrica

canónica perfeita, logo, em harmonia com o Número de Ouro.

Contudo, verifica-se que a razão 3/2 e a razão 5/3 são o inverso

aritmético dos harmónicos 2/3 (diapente) e 3/5, (respectivamente 0,666... e

0,6). Efectivamente, no meio musical ou harmónico, 2/3 equivale a uma

quinta dominante e 3/5 a uma sexta menor. Considerando o âmbito deste

337

estudo, não nos cabe aqui aprofundar esta demonstração, pelo que nos

limitamos a uma verificação geral que se pode retirar desta observação146.

Em suma, se considerarmos como aceitáveis os valores observados como

aproximações harmónicas, também se podem verificar as relações dos

valores dos vãos como progressão geométrica do Número de Ouro.

Convém também referir que a progressão aritmética é, por definição,

uma sucessão de números dos quais cada termo se obtém adicionando ao

termo anterior um valor constante, ou seja, a razão da progressão:

(1; 1+r; 1+2r; 1+3r; 1+4r...)147.

A progressão geométrica também é, por definição, uma sucessão de

números, dos quais cada termo se obtém multiplicando o termo anterior

pelo valor constante, sendo este a razão da progressão:

(1; r; r2; r3; r4...)148.

O que significa que se considerarmos c como 1 (primeiro valor da

série), b como Φ (a razão) e a como Φ2 (a progressão da razão), obtém-se,

por analogia, a progressão geométrica do pórtico, tendo em conta a

progressão geométrica do número de ouro, ou seja:

Se c =1 então b = 1,618... e a = 2,618...

146 Sobre as relações do número de ouro entre o meio musical, o meio artimético e o meio geométrico, vejam-se, entre outros, NÉROMAN, Dom, Le Nombre d’Or – Clé du monde vivant, Dervy, Paris,1981; GHIKA, Matila, El Numero de Oro – ritos y ritmos pitagoricos en el desarrolo de la civilizacion occidental, Editorial Poseidon, Barcelona, 1978 [seg. ed. original francesa, Le nombre d’or] e DOCZI, György, The Power of Limits – Proportional Harmonies in Nature, Art, and Architecture, Shambhala – Boston and London, 1994. 147 Sobre a progressão aritmética e geométrica do número de ouro, veja-se, entre outros, NÉROMAN, Dom, Le Nombre d’Or – Clé du monde vivant, Dervy, Paris, 1981, p.27. 148 Idem, ibidem, p.27.

338

Fig.  285  –  disposição  dos  módulos  a),  b)  e  c)  por  diversos  segmentos  do  alçado  do  pórtico:  estudo  dimensional  aproximado,  com  margem  de  erro  máxima  observada  inferior  a  5%,  nomeadamente  na  relação  do  módulo  c)  com  a    altura  da  bandeira  e  na  relação  do  módulo  b)  com  a  largura  do  degrau  de  soleira.  Note-­‐se  que  o  vão  também  é,  na  sua  totalidade,  um  duplo  quadrado,  ou  rectângulo  ½.        

Quadro  4:  comparação  entre  os  valores  da  progressão  geométrica  do  número  de  ouro  e  os  valores  observados  nos  três  vãos  do  pórtico  da  fábrica  da  A.E.L.  de  Matosinhos.        

Ao retomarmos as medidas dos vãos do pórtico, verificamos que os

valores reais multiplicados tendem a aproximar-se de uma relação

constante:

Pelo que também se verifica uma aproximação geométrica ao

número de ouro.

Partindo das relações observáveis entre as três larguras dos vãos em

estudo, foi possível identificar essas mesmas três dimensões noutras partes

da construção: o que significa que estas três medidas podem constituir os

três módulos que presidem à composição do alçado, sendo possível

identificá-los noutros segmentos [fig.285].

Valores  da  progressão  geométrica               Valores  observados    

do  número  de  ouro:                   nos  três  vãos  do  pórtico    

            [fig.  278]:  

 

c  =  1               c  =  1,02  m.    

b  =  1,618...           b  =  1,68  m.  

a  =  2,618...           a  =  2,50  m.  

339

Fig.  286  –  Verificação  da  proporção  áurea  no  pórtico  pelo  método  do  duplo  quadrado  (margem  de  erro:  3,2%,  entre  A’D’  segmento  real  e  AD  segmento  geométrico).      

Quadro  5  –  correspondência  entre  os  valores  absolutos  da  progressão  geométrica  do  Número  de  Ouro  e  os  valores  métricos  relativos  à  diagonal  do  vão  do  pórico  da  A.E.L.  (segundo  a  fig.  286).        

6.4.2.3.2.2. Método do duplo quadrado

Uma outra forma de observação da proporção áurea no pórtico

consiste em tomar em consideração a aproximação de suas dimensões

máximas ao rectângulo harmónico de 1/2, ou seja, o rectângulo√4, também

denominado de rectângulo de duplo quadrado149. De facto, através do

levantamento efectuado, verificou-se que o perímetro do alçado não

totaliza exactamente a proporção do duplo quadrado. No entanto, a

margem de aproximação não excede os 3,2%, verificável entre a diagonal

real A’D’, e a diagonal geométrica AD do duplo quadrado, o que se

considerou como negligenciável, pelo que se optou por evidenciar os

valores (em metros) da diagonal do alçado, representados com a sua

correcçã

o

149 DOCZI, György, The Power of Limits – Proportional Harmonies in Nature, Art, and Architecture, Shambhala, Boston and London, 1994, p.9.

Valores  absolutos  da  progressão    

geométrica  do  número  de  ouro    

pelo  duplo  quadrado  para:  

bc  =  1     (lado  do  quadrado)            

ab  =  0,618...  (1/Φ)              

ac  =  1,618...  (Φ)  

       

bc          =        ac      =      Φ                                                    bc ab

Valores  métricos  relativos  à  

diagonal  do  vão  do  pórtico  (por  

aproximação):  

         bc  =  2,50  m.    

         ab  =  1,54  m.    

         ac  =  4,05  m.  

 

 2,50      ≈      4,05      ≈    1,62    ≈    Φ                  1,54                2,50  

340

geométrica, com vista a facilitar a observação [fig.286 - quadro 5].

Para os valores da progressão geométrica de AC = Φ, BC = 1 e AB

= 1/Φ, verifica-se, por analogia, que o segmento real A’C tende a

aproximar-se do valor de Φ, o segmento real BC tende a aproximar-se do

valor de 1 e o segmento real A’B tende a aproximar-se de 1/Φ,

considerando deste modo A’C como o todo, BC como a parte e A’B como

o resto, pelo que se pode igualmente verificar a aproximação geométrica

do pórtico ao número de ouro, através do método do duplo quadrado150.

6.4.2.4. Estudo geral da fábrica

A observação do traçado regulador do pórtico de entrada da

administração e de sua bandeira, como composição decorrente do sistema

«ad Quadratum» levaram à identificação do mesmo processo a outras

escalas e em outros desenhos. Através deste processo é possível reconhecer

a regra de simetria, no sentido clássico e operativo do termo, ou seja, no

que respeita uma repetição das mesmas proporções a diferentes escalas e

em diferentes partes do conjunto.

6.4.2.4.1. Planta geral da fábrica

Como foi observado, o sistema «Ad Quadratum» integra

simultaneamente as propriedades de um sistema polar assim como de um

sistema reticular: deste modo, para se poderem confirmar as propriedades

da quadratura na planta geral da fábrica, será necessário e suficiente

reconhecer-lhe:

1. Um centro gerador, conforme a propriedade polar do

sistema.

2. Um módulo estrutural, conforme a propriedade reticular do

mesmo sistema

150 Sobre a verificação do Número de Ouro pelo método do duplo quadrado, veja-se, entre outros, NÉROMAN, Dom, Le Nombre d’Or – Clé du monde vivant, Dervy, Paris, 1981, pp. 63-65.

341

De facto, a composição da fábrica revela-se de forma clara pela

observação da planta: uma disposição dos espaços que se organizam de

jusante (entrada da matéria-prima, pela rua Heróis de França) a montante

(armazém de cheio, com saída pela rua Roberto Ivens), encadeando

sucessivamente no seu interior as diferentes secções de fabrico,

transformação, armazenamento, etc151. Face à evidência de uma disposição

destes módulos numa organização em série e em cadeia, é possível denotar

uma evidente disposição do conjunto deste complexo fabril em torno da

secção de fabrico, fruto de um gesto elementar que caracteriza a modelação

da maior parte das tipologias fabris.

A secção de fabrico, como elemento nuclear do conjunto, define-se

em planta como um grande rectângulo: este rectângulo é um duplo

quadrado (1/2), encontrando-se geometricamente inscrito num quadrado

maior que se estende para sul. Este quadrado maior é coincidente no seu

canto de sueste com a creche e no seu canto de sudoeste num ponto situado

fora dos limites do terreno, já na rua João Chagas.

Por analogia, este quadrado maior, (que inscreve o duplo quadrado

definindo a secção de fabrico), pode ser tomado como o mesmo módulo do

quadrado que inscreve o círculo da bandeira a pequena escala152. Deste

modo é possível retomar a mesma sobreposição da figura 66, segundo o

módulo que define o quadrado que inscreve o círculo, pelo que se denota

ser o comprimento da fachada da secção de fabrico o módulo linear da

composição a esta escala maior [fig. 287].

151 V. supra, 6.4.5. 152 V. supra, fig. 282.

342

Fig.  287-­‐288  –  Progressão  geométrico-­‐aritmética  do  sistema  ad  quadratum  e  do  traçado  da  bandeira  e  do  pórtico  de  entrada  da  administração  com  a  planta  geral  da  fábrica  segundo  o  projecto  original  de  António  Varela:  os  dois  traçados  em  conjunto  regulam  os  módulos  da  composição  da  fábrica.    De  notar  que:    16,6666667...  =  [5/3]x10;  e:  [5/3]  =1,6666667...(terceira  razão  da  série  de  Fibonacci).  Deste  modo  obtém-­‐se,  em  ordem  crescente:  1x3x[5/3]x10  =  [5/3]x30  =  50;  e  em  ordem  decrescente:                    ___50  ___      =  1  [5/3]x30  

     

A coincidência do traçado com o desenho da planta (fig.287) revela

um processo de analogia com o modus operandi (fig.288) observado na

bandeira e no alçado do pórtico da administração, à razão de 1/50. Esta

nova coincidência parece justificar a composição geral dos módulos, assim

como a repartição essencial do interior – o que não significa que a sua sub-

articulação siga invariavelmente um processo de mimetismo do traçado

geométrico –, antes justificando a sua acção como «fio condutor» no

desenvolvimento geral da métrica, assumindo-se como um mecanismo

fundador e essencialmente regulador da composição.

343

Fig.  289  –  Alçado  norte:  correspondência  do  mesmo  traçado  com  a  métrica  dos  vãos  e  de  outros  elementos  desenhados,  sobreposto  à  mesma  escala  da  planta    (v.  Fig.111].  

     

 

 

6.4.2.4.2. Alçado norte

Verificando-se a analogia do sistema da quadratura como acção

reguladora da métrica na composição da planta, torna-se interessante

observar a sua operatividade no alçado da secção de fabrico (alçado

«principal», por excelência, junto à avenida), no qual a correspondência da

métrica ao sistema «Ad Quadratum» e à figura geométrica da bandeira

pode ser observada com clareza. O eixo horizontal define um friso ao

344

Fig.  290  –  Continuidade  do  sistema  ad  quadratum  na  composição  dos  armazéns  de  1941,  situados  entre  a  AEL  e  a  sua  congénere,  a  Rainha  do  Sado:  os  eixos  dos  quadrados  geométricos  a  sul  do  anterior  limite  da  fábrica  (alçado  sul  do  projecto  de  1938)  regulam  a  definição  da  métrica  dos  três  módulos  dos  armazéns.      

     

longo de todo o conjunto, delimitando o piso superior, em cima, do piso

inferior, em baixo [fig.289].

 

6.4.2.4.3. Planta dos armazéns

Também é possível observar os armazéns desenhados por António

Varela, como ampliação do projecto inicial da fábrica, inaugurada em

1939, prosseguindo na mesma leitura espacial e geométrica. Estes dois

armazéns definem o espaço do terreno da ampliação em todo o seu

comprimento e largura, desde o limite do lote, rematando na rua Roberto

Ivens, a nascente, até ao pátio com saída para a rua Heróis de França, a

poente, e destinavam-se ao armazenamento e estiva de produto para

exportação, devido a um aumento exponencial da produção face à

encomenda massiva no contexto bélico da Segunda Guerra Mundial.

Varela tem aqui um problema essencialmente de composição de fachadas,

na necessidade de conferir alguma homogeneidade ao conjunto edificado.

Estes armazéns compõem-se por dois módulos rectangulares, sendo

interligados por um módulo quadrado, subdividido entre um átrio a céu

aberto e um espaço interior inicialmente destinado à estiva153.

153 V. supra, 6.3.4.2.

345

Fig.  291  –  Armazéns  de  1941,  vista  do  lado  da  rua  Roberto  Ivens,  articulando-­‐se  em  continuidade  com  a  fachada  da  1ª  fase  [secção  de  cheio,  1938].      

     

Pela junção do desenho da planta geral da fábrica com o desenho da

planta dos armazéns, foi possível observar que os três módulos que

compõem esta ampliação de 1941 sugerem uma continuidade do mesmo

modus operandi, através do prolongamento dos eixos dos quadrados da

estrutura geométrica da figura de origem, delimitando desta forma as

dimensões dos três módulos (dois rectângulos √2 e um quadrado central)

[fig.290].

 

6.4.2.4.4. Alçados dos armazéns

Os alçados dos armazéns sugerem uma simplicidade de linhas de

aparência neoclássica. São duas fachadas de desenho idêntico, uma a

nascente, confinando com a rua Roberto Ivens e outra a poente, recuada em

relação a rua Heróis de França, intercalada por um pátio de forma

trapezoidal de acesso à rua154, constituindo-se assim como os limites

exteriores do volume prismático que se prolonga no interior.

154 Idem.

346

Fig.  292  –  António  Varela,  armazéns  de  1941  (pormenor  do  alçado  sul).        

     

Fig.  293  –  AEL,  armazéns  de  1941,alçado  da  rua  Heróis  de  França,  a  poente  :  correspondência  com  o  sistema  ad  quadratum  e  a  bandeira  do  pórtico  da  administração.        

       

Em comparação com o projecto da fábrica, de 1938, o que mais se

destaca à vista é a nítida diferenciação do remate superior destas peças,

onde já não impera o denteado escalonado de influência «Art Déco» que se

pode observar no vasto prisma da secção de fabrico, situada a norte, mas

um frontão curvo mas que confere ao conjunto um aspecto geral

marcadamente clássico [fig.291-292].

A curvatura do frontão é gerada pelo traçado da circunferência

original que rege a quadratura, confirmando a presença de um ângulo de

dezasseis graus pela sua triangulação, segundo o mesmo princípio

canónico que regula a inclinação do denteado escalonado da secção de

fabrico.

Se, por um lado, este frontão curvo contrasta, em aparência, com o

denteado escalonado da secção de fabrico datado de 1938, verifica-se,

contudo, que os ângulos formados pela triangulação do escalonamento dos

frontões da secção de fabrico do projecto anterior também perfazem

dezasseis graus de lado, pelo que tudo leva a crer que decorrem do mesmo

347

gesto arquetípico, como forma de analogia para com princípios de

composição clássicos [fig.293]. Por outro lado, convém referir que a

utilização do frontão curvo poderá ser um indício de «contaminação» – ou

de um exercício experimental, por mimesis, nesta ampliação para a A.E.L.

–, do alçado principal da fábrica da Afurada que por essa altura Varela

também elaborou, sendo bastante nítidas as analogias entre os dois

desenhos155.

De qualquer modo, também se verifica neste alçado o que foi

possível verificar na planta dos armazéns156, ou seja: que Varela, ao

compor este novo projecto para a firma, elaborou um desenho que, apesar

de diferente pela utilização do elemento do frontão curvo ao invés de

elementos angulares, operou sempre – e ainda – em continuidade com o

traçado do projecto anterior.

O regime de continuidade manifesta-se através de um processo de

analogia no que respeita à utilização do mesmo traçado regulador,

mantendo deste modo a relação harmónica do edificado, embora alterando

a sua plasticidade pela inclusão de elementos novos, mas que apesar de

tudo parecem complementar-se num jogo de continuidades. Este «jogo»,

que poderá parecer à primeira vista algo eclético nada tem de arbitrário,

sendo aqui extremamente subtil em matéria de conjugação formal. Convém

não esquecer que Varela era, também, à sua maneira, um «esteta», e talvez

seja através destes pequenos gestos que melhor se pode compreender a

«filosofia conceptual» do autor, que como modernista do seu «tempo»,

aqui parece ter operado na consciência da lógica pitagórica, nos problemas

de continuum e do descontínuo, de avanços e recuos de uma

«modernidade», e poderá dar indícios, numa leitura mais profunda, de um

processo hermeticamente «pneumático».

Tendo em vista uma maior clarificação dos processos compositivos

de Varela, para além deste caso, afigura-se da maior pertinência o estudo

dos mecanismos compositivos noutros projectos de sua autoria, por 155 V. infra, 7.2. 156 V. supra, fig.290.

348

analogias, metamorfoses ou rupturas, num «sistema» que parece ter

evoluído no espaço e no tempo. Foi neste sentido que também se

observaram outras obras que elaborou pela mesma época e nos anos

seguintes, nas quais também foi possível identificar, por analogias

sistémicas, correspondências ou coincidências entre esquemas

compositivos: por esta razão, também considerámos fundamental a questão

do estudo da fábrica da Matosinhos como objecto, pela recorrência, por

parte do seu autor, a um modus operandi que parece sistémico, num

«diálogo» constante entre o círculo e a quadratura. Assim,

convencionámos apelidá-lo, e unicamente para efeitos do presente estudo,

de «cânone de Varela».

Através da métrica observada no pórtico de entrada da

administração, na planta geral e nos alçados da fábrica de Matosinhos da

AEL, tornou-se possível compreender que o seu autor terá recorrido a um

traçado regulador particular, o sistema «Ad Quadratum», como matriz ou

rede que rege a composição através de propriedades simétricas, sendo as

partes comensuráveis ao todo.

O seu autor recorre à analogia canónica, através de um processo

racional e operativo.

Recorre igualmente à analogia icónica, através de um processo

metafórico e simbólico, qualificativo do espaço.

Estes dois processos mentais de metodologia de projecto encontram-

se indissociados e são complementares, pelo que decorrem do mesmo

gesto arquetípico, que parece manifestar-se através de uma metodologia

operativa e simbólica, como foi possível observar pelo estudo aritmológico

do pórtico de entrada da administração.

Foi nesse sentido que se observou a métrica de outras obras que o

autor elaborou pela mesma época, onde foi possível identificar

correspondências entre alguns desenhos e o sistema «Ad Quadratum».

Infelizmente em alguns desses casos há uma ausência dos desenhos

349

originais de António Varela. Algumas destas obras encontram-se em

avançado estado de ruína, como é o caso da fábrica de conservas de

Manuel Pereira Júnior, junto à foz do rio Douro, no sítio da Afurada. Esta

fábrica também é focalizada no capítulo seguinte157, revestindo-se de um

particular interesse, pois permite compreender de que modo evoluiu a

abordagem modernista de António Varela na arquitectura industrial,

iniciada pioneiramente com a complexidade do projecto da Fábrica nº6 da

Algarve Exportador Limitada.

Esses outros casos também permitem identificar analogias que pela

sua evidência nos devolvem à fundamentação do estudo da fábrica da AEL

como momento «operativo», pelo recurso, por parte do seu autor, a

esquematizações bastante similares em torno dos «elementos geométricos

psíquicos»158.

Fica assim observado que António Varela, arquitecto da primeira

geração modernista portuguesa, terá procurado, a partir deste período de

sua carreira, uma via «pessoal», ou um «caminho próprio», uma

«interpretação» da modernidade, estabelecendo relações de continuidade

entre esta, marcada pelo estudo explícito do seu carácter maioritariamente

funcionalista, e o uso implícito de uma metodologia de desenho que se

orientou, como tudo leva a crer, para valores e princípios próprios da

«Tradição» pitagórica. É sobre este paradigma que parecem evoluir

algumas das obras e dos projectos mais marcantes do autor, sendo objecto

de estudo do último capítulo, os quais, muito embora com programas

diferentes, parecem «geneticamente» reagrupáveis, e talvez permitam, à

luz deste contexto, serem identificados como «a família simbólica» de

Varela.

157 V. infra, 7.2. 158 Segundo a terminologia de Fernando Pessoa. V. supra: 2.5: De Pessoa a Almada: «a invenção do dia claro» como legado hermético na construção da modernidade portuguesa, nota 49.

350

Fig.  294  –  Almada  Negreiros,    Auto-­reminisciência,  tinta  e  aparo  sobre  papel,  espólio  de  António  Varela  com  dedicatória  do  autor,    

ass.  e  dat.:  Paris,[19]49.  

350  

OUTRAS OBRAS À LUZ DE UMA MESMA INTERPRETAÇÃO

 

 

 “Encontrar  sem  buscar  é  coisa  difícil  e  rara.  

Achar  aquilo  que  se  procura  é  coisa  cómoda  e  fácil.  

Ignorar  e  buscar  (aquilo  que  se  procura)  é  impossível.”1  

 

Arquitas  de  Tarento  

Procurou-se organizar neste capítulo um fio condutor, uma lógica

que possa conduzir a um olhar convergente sobre o pensamento de

António Varela. Pelas leis da geometria, leituras de lugares e de programas

diferentes parecem associar-se, senão em torno de uma regra, pelo menos

na procura de uma «direcção única».

Aparentemente paradoxal, essa mesma «direcção», tal como no olhar

da Vesica, ou do Ponto da Bauhütte, embora de aparência complexa, não é

estática, parecendo desdobrar-se numa multiplicidade de manifestações ou

de «centros» interpretativos. Mas este segundo movimento não é restritivo

e parece mesmo admitir a contradição, a negação, evitando o falso

paradoxo, excluindo-se a ideia de um Varela «refém» da interpretação de

uma modernidade dogmática ou de hermenêuticas redutoras.

Convém esclarecer que o aspecto de «invisibilidade» dos traçados é,

no fundo, bastante natural. Na sua relação com a concepção do desenho

arquitectónico, é bem possível que não tenham sido sistematizados de

forma tão «directa» pelo autor, tal como aqui se ensaiam, existindo antes

como esquemas mentais que utilizaria no todo ou apenas com recurso a

algumas das suas propriedades, consoante as necessidades de cada caso.

Em termos gerais, é necessário compreender que os traçados

geométricos fazem parte de «esquemas mentais» mais ou menos 1 In NEGREIROS, José de Almada, Ver, Editora Arcádia, Lisboa, 1982 [ed. original do autor, Lisboa, 1943].

CAPÍTULO 7

351

Fig.  295  –  António  Varela,  desenho,  caneta  sobre  papel,  s.d.  

conscientes, que na maior parte das vezes nem chegam a materializar-se e,

quando tal acontece, apenas se manifestam sob esquissos, e quase

imediatamente se tornam dispensáveis a partir do momento em que se

«fixa» um determinado desenho ou composição. Daí a sua invisibilidade

ou inexistência como prova documental: não sendo um fim em si mesmos,

mas pontos de partida que servem para fixar uma determinada ordem na

composição, fazem parte de elementos aparentemente pouco relevantes,

entre outros facilmente degradáveis ou mais ou menos «descartáveis» que,

salvo raras excepções, mais facilmente se excluem na maior parte dos

arquivos pessoais, espólios ou legados particulares (fig.295).

Mas esta condição de meio, e não de fim, não inviabiliza o ensaio e a

verificabilidade de padrões que pelo seu potencial de síntese, permitem

análises de determinadas propriedades geométrico-artiméticas e podem

fornecer indícios de esquematizações operativas que «geneticamente»

permitem relacionar obras que só na aparência parecem diferentes, sendo o

carácter especulativo destas análises inversamente proporcional ao grau de

verificabilidade objectiva que decorre da demonstração geométrico-

aritmética, assim como do número ou do tipo de analogias que permitem

estabelecer dentro ou fora da mesma obra. Tal nos parece ser o valor e a

relevância do estudo geométrico.

Reconhecendo antes a capacidade multiplicadora desses vários

«centros», parece o conjunto destas obras de Varela comungar da «unidade

plural» do pensamento do autor, contribuindo para uma tentativa de leitura

de síntese do seu trajecto pessoal, que nasce, como tudo indica, da

multiplicidade do uno.

352

Fig.  296  –  António  Varela,  Mercado  de  Coimbra,  alçado  nascente,  1937.  

     

7.1. A PROPOSTA PARA O MERCADO DE COIMBRA

 

A singularidade deste projecto de 1937 reside em vários aspectos:

primeiro, tem a particularidade de ser um exercício individual de Varela,

datado da década em que colaborava assiduamente com Jorge Segurado.

Em segundo lugar, parece preceder de um ano a concepção do projecto da

fábrica de Matosinhos e permite a comparação de traçados no que respeita

a uma outra interpretação do sistema da quadratura combinada.

A sua observação só é possível graças à sua publicação na mesma

revista Arquitectura e Edificação e Cerâmicas / Reunidas2, onde também

se publicou a Fábrica de Matosinhos da A.E.L.3 e o Lar da Misericórdia

das Caldas da Rainha4. Projecto não edificado, tem o interesse de revelar, à

semelhança da fábrica, valores de organização funcional e uma

composição que revela semelhanças não só com esta, mas também com a

Fábrica da Afurada, entre outras analogias possíveis que se podem

estabelecer, tal como se pode verificar.

A encomenda deste equipamento destinava-se a completar o sistema

abastecedor da cidade de Coimbra num bairro residencial localizado num

terreno de cota elevada e em declive no sentido poente/nascente. O

trabalho topológico de Varela parece orientar-se segundo esta característica

essencial do lugar e permitiria deste modo criar um miradouro

direccionado para o sol nascente. Podemos ser levados à consideração de

se tratar de um momento simbólico do percurso, sobretudo tendo em conta 2 Cf. A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação / Reunidas (A.P.C.E./R), n° 41, 3° série, Agosto de 1938, pp.14-19. 3 V. supra, 6.3.4. 4 V. supra, 4.3.3.

353

Fig.  297  –  António  Varela,  Mercado  de  Coimbra,  corte  longitudinal  norte-­‐sul,  1937.  

     

que este tipo de equipamento «vive» sobretudo com o despertar do «astro-

rei» e rege a sua actividade segundo o seu ciclo ascendente. Parece, em

todo o caso, revestir-se este momento poético de uma conotação simbólica

não-restritiva. Do ponto de vista do programa, este miradouro também

previa o apetrecho das dependências subsidiárias do mercado: os armazéns

das lojas, o espaço de armazenamento dos utensílios do mercado, a

habitação do guarda, os armazéns frigoríficos e as instalações sanitárias

que, situadas no exterior, serviriam a um tempo tanto o mercado como os

visitantes do miradouro.

O sistema construtivo foi desenvolvido em parceria com o

engenheiro Pacheco de Sousa e consistiria, à semelhança da fábrica de

Matosinhos, edificada um ano depois, de uma estrutura de pilares e vigas

em betão armado e uma cobertura em fibro-cimento assente sobre asnas

metálicas [fig.297]. As paredes seriam de alvenaria de pedra e as

guarnições dos vãos em «cantaria da região»5. No interior, previa-se um

revestimento dos pavimentos e das paredes laváveis, composto por

elementos cerâmicos até quatro metros de altura, o que parece justificar-se

por motivos de higiene e limpeza. No resto do edifício seria aplicado o

«sistema cavanite» projectado, típico da época, como substituição do

recurso à pedra natural, e que permitiria – tal como mais tarde viria a

empregar nas fachadas da Fábrica de Matosinhos –, a expressão

esterotómica de um aparelho regular.

5 O artigo não menciona nenhum outro indício a este respeito, embora pareça tratar-se de um aparelho de granito.