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    ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos

    e os outsiders: sociologia das relaes de

    poder a partir de uma pequena comunidade.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2000.

    Os estabelecidos e os outsidersnasceu de um estudo realizadopor Norbert Elias e John L. Scotson durante aproximadamentetrs anos em uma rea de construes suburbanas de uma grandecidade industrial prxima de Leicester, regio central da Inglaterra,no final da dcada de 1950 e incio da dcada de 1960. Duranteesse perodo, Scotson era professor de uma escola dessa rea,enquanto Elias trabalhava para um Programa de Educao deAdultos na regio. Foi um trabalho desenvolvido atravs de dadoscoletados a partir de estatsticas oficiais, relatrios governamentais,documentos jurdicos e jornalsticos, entrevistas e, principalmente,observao participante.

    Inicialmente o estudo buscava esclarecer os diferenciais dedelinquncia juvenil entre os bairros da regio, mas, pouco a pouco,os problemas encontrados ali foram exercendo um determinadofascnio nos autores, devido a seu carter paradigmtico. Perce-

    beram que os problemas daquele microcosmo eram comumenteencontrados, em escala muito maior, na sociedade como um todo.Isso deslocou o interesse da pesquisa para um problema mais geral,o das relaes de poder entre as diferentes zonas da comunidade.

    Segundo Elias e Scotson, o deslocamento do foco da pesqui-sa evitou o que poderia ter sido uma perda de tempo, j que noterceiro ano da investigao os diferenciais de delinquncia entreos bairros, que inicialmente os haviam norteado, praticamentedesapareceram. Mesmo assim os dois bairros mais antigos conti-nuaram a estigmatizar o bairro mais novo como uma rea de altadelinquncia. Entender o porqu das opinies persistirem, apesarda mudana dos fatos, alm de entender por que os fatos, em si,haviam mudado, foram questes que se apresentaram no decorrerda pesquisa.

    O livro apresentado aqui foi fruto desse trabalho, o qual foiconduzido de maneira relativamente aberta, sem decises preesta-

    belecidas em relao ao problema a ser pesquisado, nem em relaoa um prazo fixo, deixando-os livres para mudar o rumo da pesquisa

    LazloRahmeier

    Bacharel em Msica pelaUniversidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS),mestrando em Educao,Arte e Histria da Cultura pelaUniversidade PresbiterianaMackenzie SP.

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    da maneira que lhes parecesse mais interessante, o que, segundoos autores, ajudou a neutralizar qualquer ideia preconcebida sobreo que era ou no significativo no estudo de uma comunidade.

    Com uma populao de menos de 5.000 habitantes, WinstonParva nome fictcio dado comunidade estudada era dividida

    em trs bairros, sendo a Zona 1 uma rea residencial de classemdia e as Zonas 2 e 3 reas operrias. Os habitantes das Zonas2 e 3 eram praticamente iguais em relao sua renda, ocupaoprofissional, nacionalidade, ascendncia tnica, cor ou raa envel educacional. Todos os indicadores comumente usados comodiferenciais estruturais das relaes de poder apontavam para umalinha divisria entre a Zona 1 e as duas Zonas operrias, mas nofoi o encontrado. A diviso estava justamente entre as Zonas 2 e3, sendo que sua nica diferenciao aparente era o fato de a Zona

    2 ser um bairro operrio antigo enquanto a Zona 3 era um bairrooperrio constitudo recentemente.

    Os habitantes da Zona 2 (chamada de aldeia), na maioria,eram membros de famlias que j viviam ali h algum tempo,duas ou trs geraes, e sentiam-se estabelecidos, como donos dolocal. Os habitantes da Zona 3 (loteamento) haviam chegado hpouco tempo a Winston Parva. Os primeiros imigrantes chega-ram atrados pela oferta de empregos na regio. Posteriormente, apartir de 1939, devido mudana da situao do pas, mais preci-

    samente aps a crise de Munique, chegaram tambm as famliasdos militares lotados num regimento prximo; depois ainda, como bombardeio de Londres, uma fbrica de equipamentos londrina,

    juntamente com seus empregados, tambm mudaram-se para l.Ainda, a expanso de algumas indstrias locais teve sua contribui-o em atrair outras pessoas de diferentes partes do pas.

    O grupo recm-chegado era um grupo difuso, anmico, comfamlias que no se conheciam, vindas de diferentes lugares daInglaterra, famlias que, alm de estranhas para os aldees, eram

    estranhas entre si. O grupo da aldeia era extremamente integrado,coeso, nmico; era um grupo de antigos residentes, membros defamlias que se conheciam h mais de uma gerao, que haviamcriado um estilo de vida em comum e se orgulhavam disso.

    Esse grupo coeso, que se conhecia h mais tempo, que tinhaseus costumes, suas normas, viu chegar sua porta um outro gru-po, com pessoas de costumes e valores diferentes dos seus. Maisque isso, em um sentido metafrico, viu o outro adentrar sua

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    prpria casa. Com o temor de uma infeco aos bons costumes, tradio que tanto prezavam, qual se identificavam e tambmeram identificados, os aldees levantaram barreiras excluindo ehumilhando os inimigos. Para isso desenvolveram como armauma ideologia que enfatizava e justificava sua prpria superio-

    ridade, e que rotulava os membros do outro grupo como sendode categoria inferior. Essa ideologia de status disseminou-se e foimantida por um fluxo constante de fofocas que se apegava a qual-quer acontecimento, por mais isolado que fosse, capaz de reforara imagem negativa do grupo outsider, ao mesmo tempo em que seagarrava a qualquer acontecimento da aldeia que pudesse ajudara engrandecer sua prpria imagem.

    O poder do grupo estabelecido era to grande que, com o tem-po, essa imagem de inferioridade foi capaz de penetrar at mesmo

    na autoimagem do grupo estigmatizado. Essa diferena de forasElias atribui diferena de coeso dos grupos envolvidos.

    A alta coeso do grupo estabelecido permitia ao mesmo reser-var a seus indivduos posies de maior poder na sociedade, refor-ando sua coeso e excluindo dessas posies qualquer membrode outro grupo, enquanto a falta de coeso do grupo estigmatizadotornava-o vulnervel.

    dentro desse contexto que, mais tarde, a delinquncia juvenilsurge, como forma de manifestao reativa dos jovens outsiders fren-

    te excluso e coero exercida pelos estabelecidos. A ausnciade suporte familiar, assim como a ausncia de polticas pblicasque oferecessem atividades culturais, de lazer e de recreao aesses jovens, atividades encaradas como luxo pelas autoridades,contriburam para a formao desse quadro. A delinquncia e osatos de vandalismo passam a ser a forma particular que alguns

    jovens encontraram para manifestar o sentimento de inferioridadesocial largamente enraizado desde a sua infncia, no interior desuas famlias e nas inter-relaes com as outras crianas de sua

    comunidade. Evidencia-se aqui a relevncia e o papel fundamentalque atividades extraescolares e extraprofissionais, que gerem satis-fao, tm na construo identitria dos jovens e em sua condutasocial e escolar.

    Isso reverberava tambm nos processos de aprendizagem dosjovens. No incio da pesquisa, a maioria desses jovens figuravaentre os piores alunos, tirando as notas mais baixas. Alm disso,

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    insubordinao com os professores, danos propriedade escolar,brigas e uso de linguagem obscena, eram problemas frequentes.

    Elias explica que, por mais que queiramos buscar um culpadopara a situao por ele apresentada, importante deixar claro quea relao estabelecida aconteceu ao acaso, no houve um plano

    deliberado de ao em um determinado sentido. A postura tomada,por exemplo, pelos aldees, foi uma reao involuntria a umasituao especfica, conforme a toda a estrutura, toda a tradio eviso de mundo da comunidade alde. As tenses eram o conco-mitante normal de um processo durante o qual dois grupos antesindependentes tornam-se interdependentes (p. 64).

    Temos que entender a configurao das relaes de poder,entender as configuraes da comunidade, compreender a naturezados laos de interdependncia que unem, separam e hierarqui-

    zam indivduos e grupos sociais. No h como entender o maucomportamento sem entender o bom. No h como entendero indivduo sem entender a relao entre-indivduos, que formao indivduo e , ao mesmo tempo, formada por ele. Essa relaoentre indivduos, que formam uma comunidade, que formam oindivduo, que vai formar novamente a comunidade um padrosempre mutante de relaes entre as pessoas. Como uma dana.Nenhum dos grupos de Winston Parva poderia ter-se transforma-do no que era independentemente do outro. Evidencia-se nesse

    estudo o quo fictcios so os pressupostos tericos que implicama existncia de indivduos ou atos individuais sem a sociedade,assim como outros que implicam a existncia de sociedades semos indivduos.

    Winston Parva apresentada aqui como um paradigma comoum modelo que indica a impotncia com que as pessoas podem cairna cilada de situaes de conflito por fora de desenvolvimentosespecficos. Ao demonstrar e, at certo ponto, explicar a naturezadessa armadilha, talvez o modelo nos ajude, sendo mais desen-

    volvido, a aprender pouco a pouco como desmont-la e enfrentarmelhor os problemas que ela suscita.

    Recebido: 05/11/2012 | Aprovado: 21/11/2012