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6967030 Kant Immanuel Critica Da Razao Pura

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Text of 6967030 Kant Immanuel Critica Da Razao Pura

Retrato de lmmanuel Kant (1724-1804), pintado em 1768 por J. W. Beker (1744-1782) por encomenda do livreiro de Kant em Knigsberg.

CRTICA DA RAZO PURA Immanuel KantTraduo de

MANUELA PINTO DOS SANTOSe

ALEXANDRE FRADIQUE MORUJOIntroduo e notas de

ALEXANDRE FRADIQUE MORUJO

5 E D I O

SERVIO DE EDUCAO E BOLSAS

FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN

Traduo do original alemo intitulado KRITIK DER REINEN VERNUNFT de IMMANUEL KANT, baseada na edio crtica de Raymund Schmidt, confrontada com a edio da Academia de Berlim e com a edio de Ernst Cassirer.

Reservados todos os direitos de harmonia com a lei Edio da Fundao Calouste Gulbenkian Av. de Berna I Lisboa 2001

PREFCIO DA TRADUO PORTUGUESA

A Crtica da Razo Pura, de que apresentamos esta traduo em lngua portuguesa, um monumento nico na histria da filosofia, traduzindo uma verdadeira revoluo no pensamento ocidental, e resultado de uma longa e profunda meditao. Tradicionalmente, divide-se a atividade filosfica de Immanuel Kant (1724-1804) em duas fases. Na fase inicial, designada por pr-crtica, as reflexes incidem predominantemente sobre problemas da fsica e, naturalmente, tambm sobre questes estritamente metafsicas dentro dos cnones racionalistas de Leibniz-Wolff, embora j se note, para o final do perodo, a influncia da leitura de Hume e, com ela, aflorarem aspectos de uma nova atitude filosfica, por exemplo, em Os sonhos de um visionrio explicados pelos sonhos da metafsica (1764) e no artigo Sobre os primeiros princpios das diferenas das regies no espao (1768). Mas na pequena dissertao latina, De mundi sensibilis arque intelligibilis forma et principiis (1770), expressamente elaborada para concorrer ctedra de lgica e metafsica, que se apresentam nitidamente pontos de vista anunciadores da segunda fase, a poca de maturidade, que se inicia com o 'opus magnum' da Crtica da Razo Pura. Logo aps a defesa da dissertao, empenha-se Kant em meditar e redigir a obra que abrangia todas as suas novas concepes. Em carta a Marcus Herz (7 de junho de 1771), amigo com quem disputou, nas provas pblicas, segundo o uso acadmico de ento, a tese latina De mundi sensibilis... e seu confidente intelectual, d notcia de que trabalha num estudo sobre os limites da sensibilidade e da razo, em que dever

estudar no s os conceitos fundamentais e as leis relativas ao mundo sensvel, como ainda dar "um esboo do que constitui a natureza do gosto, da metafsica e da mora . Em resumo, nesse estudo rene-se o que mais tarde constituir a matria das trs Crticas. Mas a prioridade dos problemas tericos em breve se far anunciar. Assim, em. carta ao mesmo Marcus Herz (21 de Fevereiro de 1772), procura Kant, antes de mais, encontrar o segredo da metafsica at hoje no revelado; "pergunto-me: em que bases se funda a relao com o objeto daquilo que designamos por representao? . E esclarece o seu correspondente: `encontro-me agora a ponto de formar uma critica da razo pura, atinente natureza da conscincia, tanto terica como prtica, na medida em que simplesmente intelectual; elaborarei primeiro uma parte sobre as fontes da metafsica, seus mtodos e limites; e public-la-ei talvez dentro de trs meses . Nesta carta anuncia-se, pela primeira vez, o ttulo da primeira critica, Crtica da Razo Pura, embora concebida como um todo, englobando a segunda das crticas, a Crtica da Razo Prtica. Mas tambm surge j delineada a independncia da primeira critica, ao afirmar que o estudo compreender "uma crtica, uma disciplina, um cnone e uma arquitetnica da razo pura." A meditao kantiana no vai demorar trs meses, mas dez longos anos e a obra que a condensa, a Crtica da Razo Pura, redigida apressadamente em quatro ou cinco meses, foi editada em Riga, por Hartknoch, no ano de 1781. Em carta a Mendelssohn (16 de Agosto de 1783) afirma Kant ter posto "grande ateno no contedo, mas pouco cuidado na forma e em tudo o que respeita fcil inteleco do leitor." 4 Pressentia, por isso, o filsofo de Knigsberg e comunicao ao seu amigo Marcus Herz (11 de Maio de 1781) que, dada a novidade e a dificuldade dos seus pontos de vista, com poucos leitores poderia contar ao princpio 5 . Efetivamente, os espritos formados no racionalismo das luzes consideraram a obra obscura e imprpria para principiantes. Outros (por exemplo, ________________ Kant's gesammelte Schriften, herausgegeben von der Kniglich Preussischen Akademie der Wissenchaften, Band X, Zweite Abtei1ung: Brietwechsel, erster Band, zweite Auflage, 1922, p. 123. 2 Ibidem, p. 130. 3 Ibidem, p, 132. 4 Ibidem, p. 345. 5 Ibidem, p. 269.

Hamann) apontaram-no como o "Hume prussiano e, depois das recenses de Garve e de Feder, foi a doutrina exposta na Crtica da Razo Pura identificada com o idealismo subjetivo de Berkeley. Kant no ficou satisfeito com a recepo do seu livro. Se nos Prolegmenos a toda a metafsica futura que se queira apresentar como cincia (1783), vasados nos moldes da Popularphilosophie da poca, pretende apresentar uma iniciao ao seu pensamento, na segunda edio da Crtica, hin und wieder verbesserte (1787), suprime, acrescenta, encurta, altera, com a finalidade de melhor esclarecer a sua doutrina. So ampliadas a introduo e algumas passagens da "esttica transcendental". Refunde-se totalmente a deduo dos conceitos puros do entendimento e, parcialmente, o captulo "Da distino de todos os objectos em geral em fenmenos e nmenos". Na "Analtica dos princpios" acrescenta-se a "Refutao do idealismo" e a "Observao geral sobre o sistema dos princpios". refundido e encurtado o captulo relativo aos "Paralogismos da razo pura". Este novo texto, que pretende escapar crtica de idealista com as correes introduzidas, foi da em diante o nico a ser reproduzido na terceira edio (1790), na quarta edio (1794), na quinta (1799) e nas duas edies pstumas de 1818 e 1828. Mas j em 1815 lamentava Jacobi que na segunda edio faltassem algumas passagens da primeira, a seu ver imprescindveis para uma suficiente inteligncia do idealismo kantiano. E Schopenhauer, por seu turno, apoiando a impugnao kantiana da coisa em si, considerava uma concesso ao realismo a crtica a Berkeley que se desenvolve na segunda edio, concluindo pela importncia da primeira e considerando a segunda "um texto mutilado, corrompido e, de certo modo, no autntico". Estas opinies opostas levaram os futuros editores a apresentar as duas edies da Crtica. Assim, Rosenkranz (1838) vai reproduzir a primeira edio como fundamental e apresentar em suplemento as variantes mais importantes da segunda edio. Uma edio das obras completas, devida a Hartenstein e do mesmo ano de 1838, toma como base o texto de 1787, acrescentando em notas as variantes menores de 1781 e em apndice os trechos respeitantes deduo dos conceitos puros do entendimento e aos paralogismos da razo pura. A Kantphilologie, florescente na segunda metade do sculo passado, ajudou a fixar o texto do filsofo e, assim, Benno Erdmann, na sua quinta edio da Crtica da Razo

Pura, integrada nas obras completas editadas pela Academia. Real das Cincias da Prssia (posteriormente Academia Real das Cincias de Berlim) como vol. II, refazendo parcialmente a histria do texto kantiano, demonstrou a exigncia de nos aproximarmos do texto genuno de Kant, que o de 1787; mas tambm sublinhou a necessidade de se apresentar um texto que torne possvel o estudo das diferenas entre as duas edies consideradas fundamentais. Por isso, nessa mesma edio da Academia das Cincias, consagra o terceiro volume primeira edio da Critica, at ao fim dos paralogismos da razo pura ("Reflexo sobre o conjunto da psicologia pura em conseqncia destes paralogismos"), parte onde residem as grandes discrepncias atuais. 'A partir desta edio ficou estabelecido o cnone da Crtica da Razo Pura: texto de base o da segunda edio, apresentando as variantes da primeira. * * *

Tem sido afirmado, e com razo, que o modelo da cincia da natureza que se encontra na base da filosofia de Kant. Esta no seria mais do que a filosofia considerada possvel para o mestre de Knigsberg em poca impregnada de fervor cientfico. Na verdade, todo o pensamento kantiano tem presente essa cincia exata, emergente na Idade Moderna e que se vai impondo, progressivamente, a todos os domnios do real. A matemtica e a lgica, como afirmado no prefcio da segunda edio da Crtica da Razo Pura, j entre os gregos tinham iniciado o caminho seguro da cincia e no sculo XVII a fsica comeara a trilhar a mesma via, alcanando a perfeio nos Principia Philosophiae Naturahs de Newton. A filosofia necessitaria tambm, imperiosamente, de se esquivar multiplicidade de opinies antagnicas e de se elevar, por sua vez, a um estatuto cientfico que lhe conferisse um rigor indesmentvel. Com - Descartes j se pretendera construir a filosofia sobre a base de um minimum quid firmum et inconcussum, o cogito, a partir do qual se. deduziriam, por um discurso maneira dos matemticos, todas as outras verdades do sistema. Esse minimum quid, ainda no propriamente um princpio, um proton, pois em Descartes h um recurso a Deus para fundamentar a sua verdade. A experincia ontolgica da causalidade alheia ao cogito e da o recurso omnipotente causalidade e

infinita perfeio divina . Mas, pondo de lado toda a conceitualizao tradicional, o discurso cartesiano transforma-se numa mathesis universalis, cincia da proporo, que inclui, como caso particular, as relaes algbricas. Esta posio, passando por Leibniz, vai amadurecendo e com Wolff atingimos a perfeio racionalista. A filosofia transforma-se numa cincia, cujo mtodo no difere do matemtico. Processa-se em anlise que repousa nos princpios de identidade e da contradio. este mtodo matemticocartesiano de Wolff que vai ser abordado pela crtica empirista que culmina no cepticismo de Hume. A noo de substncia afastada em benefcio de um sujeito meramente "psicolgico", simples agente de associaes de representaes sensveis. E mesmo que essas associaes expliquem, de certo modo, o mecanismo do conhecimento, no podero fundar--lhe o valor objetivo. As criticas s idias do eu, da substancia e da existncia em Hume conduzem noo de fenmeno como objeto formal do conhecimento 2 . Fenmeno que puro contedo de conscincia, desprovido de qualquer propriedade ontolgica; representao pura e simples. Os racionalistas tinham transformado a causa em necessidade analtica e identificavam-na com a razo suficiente (Grund). Agora com Hume a relao de causalidade, longe de se nos impor por um princpio a priori, tem por base um "hbito" criado em ns pela repetio do mesmo processo psicolgico. Deve fazer-nos concluir de um termo existente a existncia objetiva de um segundo termo. Por outras palavras, "estende o carcter existencial de percepes atuais s percepes evocadas; percepes atuais e percepes evocadas so ou foram elementos de experincia imediata, externa ou interna" 3 . H uma crena na legitimidade dessa extenso. Assim, o fundamento da causalidade passa a residir no sujeito psicolgico, puramente subjetivo. Kant afirma que a filosofia passa por trs fases: a dogmtica, de que modelo o sistema wolffiano, a cptica representada em grau eminente por Hume e a critica, que ele prprio inaugura. No perodo dogmtico cada _______________ Cf. o excelente estudo de J. ENES, Dois discursos ontolgicos, in "Arquiplago", Revista da Universidade dos Aores, Srie de Cincias Humanas, n. VI, Janeiro de 1984, pp. 91-126. JOSEPH MARECHAL S. J., Le point de dpart de la mtaphysique, cahier III. Le conflit du racionalisme et de l'empirisme dans la philosophie moderne avant Kant. Paris, 1944, pp. 248-249. Ibidem, p. 238.

metafsica apresenta as suas teses como algo que no pode ser objeto de dvida. Ora, a uma filosofia dogmtica opem-se outras filosofias, cujas teses tambm so dogmticas e da a luta entre sistemas, degenerando na anarquia correspondente fase cptica. Alas ningum se pode desinteressar da metafsica, que se encontra radicada na natureza humana e da procurar Kant princpios adequados ao pensamento metafsico. Por isso classifica a sua filosofia conto crtica, cuja tarefa fundamental vai consistir na crtica da prpria razo: averiguar, como em tribunal, quais as exigncias desta que so justificadas e eliminar as pretenses sem fundamento. Previamente constituio de um sistema metafsico, conhecimento pela razo pura das coisas em si, dever-se- investigaro que ser tarefa da Crtica da Razo Pura o que pode conhecer o entendimento e a razo, independentemente de toda a experincia. Trata-se de criticar, de encontrar os limites de todo o conhecimento puro, a priori, isto , independentemente de qualquer experincia. Deste modo se abrir um caminho certo para a metafsica que lhe obtenha o consenso dos que se ocupam de filosofia, pois se encontram garantidas a necessidade e universalidade desse saber; estaremos em face de uma cincia. A revoluo operada no campo do saber, graas qual foi possvel a constituio da nova cincia da natureza, consiste, para Kant, em que a natureza no se encontra dada como um livro aberto onde apenas bastar ler. A cincia constitui-se e desenvolve-se por um projeto adequado, que nos torne possvel interrogar a natureza e for-la a uma resposta. Algo de semelhante tem que se operar em filosofia para esta se colocar no caminho seguro da cincia, para obter no seu domnio resultados to certos como os obtidos nas diferentes disciplinas cientficas. E esse rigor nos processos corresponde a uma misso fundamentadora da cincia, isto , a de revelar o que torna possvel este saber, "o projeto fundamental que d a possibilidade de interrogar a natureza de maneira sistemtica e de for-la a responder" 4 . Se a filosofia quer realizar essa misso, cumpre desviar-se da idia de verdade, prpria da onto-gnoseologia clssica. A verdade como adaequatio rei et intellectus pe em jogo dois sentidos de intellectus e, assim, duas interpretaes de adaequatio: adequao da coisa ao intelecto, significando que a coisa se h-de conformar________________________

Walter BIEMEL, De Kant a Hegel, in ''Convivium Filosofia, Psicologia, Humanidades", Barcelona, 1962, n. 1314, pp. 88.

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idia do intelecto divino; a coisa foi criada por Deus conforme a uma idia. Pelo contrrio, falar da adequao do intelecto coisa supe o intelecto humano e, se possvel esta segunda adequao, graas ordenao da coisa e do intelecto humano segundo o plano divino da criao. Simplesmente, embora continue a manter-se esta definio de verdade, deixa de ter vigncia a considerao do intelecto divino. Mas desde que a metafsica um saber a priori, isto , independente da experincia, e se o conhecimento se deve orientar pelas coisas, qual o objeto (ou objectos) da metafsica? impossvel dizer o que quer que seja que no tenha a experincia por fonte. Kant vai imprimir uma viragem essencial ao saber metafsico. Tinha mostrado Coprnico que, afastada a hiptese geocntrica e admitindo que os corpos celestes giram em torno do Sol ou se, em vez dos corpos celestes (e com eles o Sol) gravitarem em volta do observador, considerarmos que este ltimo se desloca em torno do Sol, os movimentos dos corpos celestes poderiam ser melhor explicados. Agora Kant realiza algo de semelhante que designa por revoluo copernicana. Assim, afirma na introduo Crtica da Razo Pura 5 : "Se a intuio tiver que se guiar pela natureza dos objectos, no vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrrio, o objeto (como objeto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuio, posso perfeitamente representar essa possibilidade." Para alm do saber a posteriori, extrado da experincia, haver um saber de outra ordem, saber a priori, que precede a experincia e cujo objeto no nos pode ser dado pela experincia. Um objeto desta ordem ser o prprio sujeito, a estrutura do sujeito, e esta estrutura que torna possvel a experincia. Embora todo o nosso conhecimento tenha incio na experincia, no significa que todo ele provenha da. Certamente que h conhecimentos hauridos na experincia, que se traduzem em juzos sintticos, em que o predicado se acrescenta ao sujeito, enriquecendo-o, tendo como base desse enriquecimento a experincia; juzos vlidos, portanto, unicamente nos domnios desta e apenas particulares e contingentes. Ao lado destes, ao jeito tradicional, apresenta Kant os juzos analticos, em que o predicado no mais do que uma nota extrada por anlise da prpria noo do _________________p. 20 da presente traduo. A paginao utilizada ser sempre relativa a esta traduo.5

sujeito e deste modo explicitada. Grande parte da atividade da nossa razo consiste precisamente nesse trabalho de anlise de conceitos que j possumos das coisas. Com estes juzos explicita-se o j implicitamente sabido, mas no se criam conhecimentos novos. So contudo a priori. Mas um saber autntico no se pode procurar neste tipo de juzos. O a priori que se busca diz respeito estrutura do sujeito, a qual torna possvel a experincia. Esta contribui para o conhecimento atravs dos sentidos, que nos fornecem impresses. Faltando estas, a faculdade de conhecer no tem matria. Ordinariamente o conhecimento assim constitudo pela matria e pela elaborao que esta sofre graas estrutura do sujeito. Encontramo-nos, de um modo espontneo, voltados para as coisas. A viragem copernicana obriga-nos a orientar no sentido oposto e a voltarmo-nos para o sujeito, procurando neste as faculdades que tornam possvel o conhecimento. A filosofia deixa de ser uma ontologia, ultrapassa o cepticismo empirista e transforma-se em filosofia transcendental, transmuda-se num conhecimento que, citando as palavras do prprio Kant, "se preocupa menos dos objectos do que do modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possvel a priori" 6 . Este conhecimento especial no pode repousar na experincia, nem redutvel anlise. Ser o que Kant designa por conhecimento sinttico a priori. Ora, como pensar o mesmo que julgar, o problema central, a tarefa geral da Critica resumir-se- em averiguar como so possveis os juzos sintticos a priori. A sntese, em tais juzos, obra da faculdade do entendimento e fundamenta-se na espontaneidade desta. O entendimento humano no , pois, intuitivo e, ao lado dele, Kant coloca uma outra faculdade, esta sim, intuitiva, que permite o acesso imediato aos dados: a sensibilidade. Designa-se por fenmeno o objeto indeterminado da intuio. Nele se distingue a matria (correspondente sensao, aos mltiplos dados sensoriais) e a forma, que ordena a matria segundo diferentes modos e perspectivas. Se a matria de todo o fenmeno dada a posteriori, a forma ordenadora processa-se a dois nveis diferentes; a um nvel inferior opera a forma a priori da sensibilidade (o espao e o tempo), puramente receptiva e espontnea, que nos fornece uma representao; esta, ________________6

Critica da Razo Pura, p. 53.

por sua vez, matria para a sntese a priori do entendimento, unifica-dom de representaes sob a forma de objeto. Saber o que so as coisas obriga, pois, ao concurso da sensibilidade e do entendimento. Mas a coisa, tal como a conhecemos, no simples imagem de algo real. A coisa, tal como se pode compreender graas s faculdades que o homem possui, a coisa na medida em que me aparece; i. , dada pelas formas da sensibilidade o espao e o tempo ou seja, o fenmeno. Igualmente o mundo em que vivemos e nos acessvel o que aparece graas s nossas faculdades do conhecimento. Do mesmo modo o mundo cientfico, que surge pela contribuio do sujeito, fenomnico. Ao lado de fenmeno utiliza Kant o conceito de nmeno que significa a coisa no conhecida, pois s se conhece na medida em que nos aparece, mas pensada. A coisa que no est submetida s condies do conhecimento a coisa em si 7 . Uma anlise mais atenta da forma do conhecimento mostra-nos que as formas a priori da sensibilidadeo espao e o tempo no so conceitos, mas intuies, isto representaes singulares, e quando falamos em espaos ou tempos no plural, no queremos significar espaos gerentes, mas partes de um espao ou de um tempo nicos. Ambos so intuies necessrias e, por isso, s podemos conhec-las como as formas originrias da experincia externa e da experincia interna. So formas cognitivas, formas a priori, com as quais se constri a geometria (o espao) e a aritmtica (o tempo). So elas o fundamento dos juzos sintticos a priori, garantia da universalidade e necessidade destas disciplinas. Kant fala da idealidade transcendental do espao ligada sua realidade emprica. Significa isto que as coisas apenas se podem dar como extensas (realidade emprica do espao), mas se abstrairmos das condies da experincia, o espao j no nada. Quando pensamos "coisas em si" no podemos fazer apelo ao espao. Este pertence, pois, ao sujeito. Todas _________________Sobre uma caracterizao mais precisa das diferenas entre os conceitos de nmeno e de coisa em si ver, do tradutor, Fenmeno, nmeno, coisa em si. Notas sobre trs conceitos kantianos, in "Revista Portuguesa de Filosofia", XXXVII (1981), pp 225-248.7

as representaes das coisas exteriores esto naturalmente em ns e o que est em ns subordina-se ao nosso sentido interno e, por conseguinte, sua forma ou condio, o tempo. Estas consideraes sobre o espao e o tempo encontram-se englobadas na pane da "Crtica da Razo Pura" designada por "Esttica Transcendental". Temos pois que a critica funda a aritmtica e a geometria, a cincia matemtica portanto. Esta matemtica aplica-se experincia, conforme o prova a fsica de Newton. Agora aparece a justificao: estas disciplinas tm por objeto construes de conceitos a partir do espao e do tempo, formas a priori da sensibilidade. A experincia sensvel no escapa, assim, s leis da matemtica, que determinam o quadro da experincia. No podem essas leis, contudo, determinar as qualidades sensveis; s as sensaes as podem fornecer. Ao lado da sensibilidade, que nos d a intuio, temos o entendimento que nos fornece o conceito. Por isso, "Esttica" se segue a "Lgica Transcendental, que vai esclarecer a possibilidade do conhecimento a priori e o alcance da sua validade. Limita-se esta lgica, na sua primeira parte (Analtica transcendental), aos conceitos, no natural-mente aos conceitos empricos, que podemos extrair da experincia. mas aos conceitos e aos princpios que possumos de um modo a priori no entendimento. Este uma funo unificadora, que se traduz no ato de julgar. Kant estabelece uma tbua de classificao dos juzos e deste modo possui o inventrio de todas as formas lgicas possveis, de todos os pontos de vista segundo os quais se unem sujeito e predicado num juzo, por outras palavras, a tbua das categorias. Estas deixam de ser, como em Aristteles, as propriedades mais gerais das coisas para se transformarem em funes do entendimento que reduzem de diferentes maneiras as percepes unidade de um objeto. As categorias so assim para Kant os diferentes pontos de vista, segundo os quais o entendimento executa a sntese dos dados mltiplos da intuio, formando o objeto. E num dos captulos mais difceis e centrais da Crtica da Razo Pura (a deduo transcendental das categorias) vai explicar o modo como estes conceitos a priori se aplicam experincia. Porque que o entendimento humano possui estas categorias em vez de outras? Kant apenas sabe responder que se trata de um fato primeiro: impossibilidade de deduo de um princpio superior. A crtica no pode ir mais alm.

Um problema se pe: se as categorias e os fenmenos so heterogneos, de natureza diferente, as primeiras de ordem intelectual e os segundos de ordem sensvel, como podem aplicar-se as categorias aos fenmenos? Aqui recorre Kant noo de esquema, produto da imaginao, intermedirio entre os planos do sensvel e do entendimento. O esquema, ao contrrio do que se poderia supor, no uma imagem, mas um mtodo de construir uma imagem em conformidade com um conceito. Teremos assim que o esquema ser uma determinao do tempo segundo as exigncias de cada categoria. Obter-se-o assim tantos esquemas quanto o nmero de categorias. O esquema da causalidade consistir na sucesso irreversvel dos fenmenos no tempo; o da substancia, pelo contrrio, a permanncia de um fenmeno num certo intervalo de tempo, etc. Resultado importante da "Analtica transcendental" o de mostrar que as categorias fundam os juzos sintticos a priori da fsica. A natureza constituda pela aplicao das categorias aos fenmenos. Na base de todo o saber da natureza devem aparecer regras que no fim de contas traduzem que todo o conhecimento do real sinttico, ou seja, que todo o objeto deve estar subordinado s "condies necessrias da unidade sinttica do diverso da intuio numa experincia possvel". As categorias permitem pr a priori as leis gerais da natureza. Mas, sem os dados da intuio sensvel, no passariam de formas vazias e nada permitiriam conhecer. O entendimento nada mais pode fazer do que antecipar a forma de uma experincia possvel; logo, tem os seus limites estabelecidos na sensibilidade. O uso das categorias, para empregar a expresso kantiana, s pode ser imanente e no transcendente. A coisa em si, a que acima j nos referimos e que a sensibilidade supe como fonte das suas impresses, no pode ser conhecida; o entendimento pode unicamente pens-la; e a coisa em si pensada o que se designa por nmeno. certo que seria objeto de uma intuio intelectual se realmente a possussemos. Assim, desprovidos de uma tal intuio, permanece-nos inteiramente incognoscvel. O entendimento humano capaz de conhecimento, de cincia, mas limitado ao domnio da sensibilidade, da experincia possvel. certo, tambm, que a coisa em si est sempre suposta como fonte de impresses sensveis, mas nada mais; a intuio apenas enquadra essas impresses graas s formas a priori do espao e do tempo, criando-se o fenmeno. A inteligibilidade do fenmeno devida unicamente s categorias, formas a priori do entendimento. So elas que tornam o objeto possvel, podemos dizer que concedem

a objetividade ao fenmeno, que o tomam objeto. Com Hume a substncia tinha-se despido da sua necessidade analtica, o princpio de causalidade reduzido a simples "belief" baseado no hbito; radicavam pois no sujeito psicolgico. Kant continua a considerar a substncia, a causalidade, como algo que enraza no sujeito, mas num sujeito agora transcendental, condio a priori da possibilidade do conhecimento radicado na experincia, com validade objetiva, mas limitada a uma experincia possvel. Assim fica esclarecido como so possveis as matemticas e a fsica newtoniana. Mas, se a filosofia deve dar a fundamentao da cincia, tambm a limitou ao campo fenomnico. E que acontece metafsica Poder-se- constituir como cincia graas a uma crtica da razo? na segunda parte da "Lgica transcendental", a Dialtica, que Kant vai demonstrar em pormenor a impossibilidade de uma metafsica dogmtica. At agora temos falado em sensibilidade e em entendimento. Na "Dialtica" pe Kant em evidncia uma nova faculdade, a razo. esta que confere aos conhecimentos do entendimento a maior unidade possvel: "Todo o nosso conhecimento comea pelos sentidos, da passa para o entendimento e termina na razo, acima da qual nada se encontra em ns mais elevado que elabore a matria da intuio e a traga mais alta unidade do pensamento" 8 . Como o ato prprio da razo o raciocnio, e este consiste em ligar juzos uns aos outros, segundo relao de princpio a conseqncia, temos que a razo no tem que ver diretamente com a experincia, diferena do que acontece ao entendimento, mas com os juzos a que este ltimo se reduz. Desempenha assim o papel de instrumento que, subindo de condio em condio, alcana um primeiro termo, o qual, por sua vez, incondicionado ou absoluto. E este movimento traduz uma necessidade do esprito humano: a de unificar os conhecimentos dispersos. A razo, dirigida para o incondicionado, busca essa unidade total, tem por funo dar ao entendimento uma unidade mais completa. Os conhecimentos do entendimento so sempre conhecimentos condicionados. Se o entendimento possui conceitos prprios (as categorias) pergunta-se: e a razo? tambm possuir conceitos prprios? Kant responde afirmativamente ________________8

Crtica da Razo Pura, p. 289.

e designa-os por idias, definindo a idia como "um conceito necessrio da razo ao qual no pode ser dado nos sentidos um objeto que lhe corresponda" 9 . Como sabemos que s h trs tipos de raciocnio, o categrico, o hipottico e o disjuntivo, tambm s haver trs idias da razo: a unidade absoluta do sujeito pensante (a idia de alma), a unidade absoluta da experincia externa (a idia de mundo) e, finalmente, a unidade absoluta de todos os objectos do pensamento, "a condio suprema da possibilidade do todo" (a idia de Deus). Destas idias no podemos ter um conhecimento. Para que este se realize necessria a conjugao da sensibilidade e do entendimento, e as idias so como conceitos hiperblicos, que no podem encontrar na experincia contedo adequado. Delas no pode haver conhecimento objetivo equivalente ao conhecimento cientfico. So pois "transcendentes" e, para Kant, uma "iluso transcendental" atribuir a essas idias uma existncia red ou "em si". Fora precisamente o vcio da metafsica dogmtica deixar-se enganar por esta iluso natural e inevitvel, "que repousa sobre princpios subjetivos considerados objetivos"; por isso, a alma era, para a metafsica wolffiana, objeto da psicologia racional, o mundo, objeto da cosmologia racional e Deus, da teologia racional. Kant vai precisamente criticar estas trs disciplinas. Todas elas tm de se construir exclusivamente a priori. A psicologia racional, partindo do cogito, necessariamente comete "paralogismos". Ao afirmar a alma como substncia, passa do mero fenmeno do pensamento para a res cogitans; ora a alma, como coisa em si, no pode ser objeto de intuio; houve um ., abuso ao aplicar a categoria da substncia, s vlida na esfera da experincia, neste caso da experincia interna, cuja forma a priori o tempo. O cogito s poder significar urna conscincia emprica ou uma conscincia pura, um sujeito transcendental, garante da unidade do conhecimento dos objectos, mas nada revelando acerca da natureza do sujeito real. A cosmologia, por sua vez, culmina na idia do mundo. Ora o raciocnio, que est no cerne dos argumentos utilizados nesta disciplina, considera como premissa maior que, quando algo posto condicionalmente, a soma das condies deve ser posta ao mesmo tempo e incondicionada. Kant vai evidenci-lo nos quatro argumentos a ter em conta relativamente ao mundo, conforme o considerarmos do ponto de vista da qualidade, da __________________9

Ibidem, p. 317.

quantidade, da relao e da modalidade. Encontramo-nos aqui com as famosas antinomias: podemos em qualquer caso demonstrar, com igual evidncia, propriedades diametralmente opostas, sem podermos distinguir quais as verdadeiras e quais as falsas. Temos de confrontar duas proposies contraditrias a tese e a antteseambas demonstradas por argumentos igualmente vlidos: o mundo tem um comeo no tempo e limitado no espao o mundo no tem comeo no tempo e no limitado no espao; tudo o que existe formado por elementos simplesno existe nada de simples no mundo; h no mundo uma causalidade livre no existe uma causalidade livre, tudo acontece no mundo segundo leis necessrias; ao mundo pertence, ou como parte, ou como sua causa, um ser que necessriono existe ser necessrio algum nem no interior do mundo nem fora dele. Estas antinomias, estas contradies da razo consigo mesma quando especula sobre o mundo em si, parecem convidar ao cepticismo, visto o esprito ficar em suspenso perante duas teses opostas. Kant resolve o problema, substituindo a atitude metafsica, dogmtica, pela atitude crtica e revelando assim a aparncia ou iluso transcendental. Se o condicionado , tambm o incondicionado afirma o raciocnio basilar da cosmologiadeve ser. Ora como o ser do condicionado no pode ser negado, deve afirmar-se tambm o ser do incondicionado. Mas o ser do condicionado encontra-se no plano do fenomnico e a condio, essa como coisa em si. E nesta base pode Kant afirmar que nas duas primeiras antinomias so falsas tanto a tese como a anttese. No podemos ter uma intuio do mundo na sua totalidade, pois todas as intuies decorrem no espao e no tempo. Quanto s duas ltimas, so verdadeiras tanto a tese como a anttese: pode admitirse a liberdade no mundo das coisas em si e a necessidade no mundo dos fenmenos e, pela mesma razo, admitir que, embora o mundo dos fenmenos no exija um ser necessrio, esse ser necessrio exista fora desse mundo. Finalmente, defronta-se Kant com a teologia racional. Revela-se esta to sofistica como as disciplinas anteriores. Os argumentos que aduz para demonstrar a existncia de Deus no tm valor. O filsofo de Knigsberg reduzi-los a trs: a prova ontolgica, que procede a priori; a prova cosmolgica, que se funda no princpio da causalidade e a prova psico-teolgica, que tem como. base a ordem do mundo. Procurando o raciocnio subjacente a estas trs provas, reduzi-lo aos esquemas seguintes: mostrar a existncia de

um ser necessrio como incondicional e depois mostrar que esse ser necessrio deve ser perfeito, que implica hic et nunc a existncia. Este raciocnio seria sofistico. Do ser necessrio no se pode deduzir a sua existncia necessria, e isto porque o ser necessrio uma idia, um plo de atrao de todo o nosso conhecimento no sentido de uma unidade total. E no h razo suficiente, pensa Kant, para interpretar uma regra do pensamento como uma realidade existente em si. No vamos deter-nos na anlise pormenorizada destes argumentos kantianos. Basta dizer que todos eles pretendem concluir que Deus a razo de ser de todas as coisas. Ora uma tal entidade transcende os limites da experincia possvel, pois as categorias que aplicamos, os princpios de que lanamos mo, so utilizados fora das condies do seu uso objetivo e assim uma demonstrao da existncia de Deus de excluir. A razo no pode provar a existncia de Deus, mas tambm no pode provar a sua no-existncia. Fica assim vedada a via da metafsica dogmtica, que a priori no pode conhecer o ser em si. Da afirmar Kant: "o Ser supremo mantm-se, pois, para o uso especulativo da razo, como um simples ideal, embora sem defeitos, um conceito que remata e coroa todo o conhecimento humano; a realidade objetiva desse conceito no pode, contudo, ser provada por esse meio, embora tambm no possa ser refutada" 10 . Mostrou a Crtica como so possveis os conhecimentos a priori em matemtica e em fsica e porque no podem ser possveis em metafsica. Impugnada essa metafsica "dogmtica", que pretende um conhecimento a priori do ser, no significa que seja posta de lado qualquer espcie de metafsica. Ao nvel da razo pura admissvel uma outra metafsica, a imanente, e que consistiria em fazer a anlise do esprito e o inventrio das suas categorias. Na "Analtica transcendental", ao estabelecer a tbua dos princpios puros do entendimento, esboa Kant j os fundamentos metafsicos do conhecimento cientfico fsicomatemtico. Esta metafsica imanente, idealista, temperada com um realismo das "coisas em si", fundando Kant o idealismo transcendental com a_____________________________ 10

Crtica da Razo Pura, p. 531.

distino entre fenmeno e "coisa em si". Os fenmenos, sejam da experincia interna, sejam da experincia externa, no passam de representaes, pois os dados da percepo nelas so transmudados, graas ao espao e ao tempo, e no pem diante de ns um mundo de coisas em si. Estas, no entanto, existem para Kant; simplesmente, so condies dos fenmenos, doadoras de dados hilticos, que o espao e o tempo ordenam em fenmeno, isto , numa representao unificada. Mas no so causa do fenmeno. Aplicar a categoria da causalidade relao fenmeno-coisa em si seria consider-la para alm da experincia, caindo-se na atitude sofstica que Kant denuncia na metafsica dogmtica. Por isso, separa cuidadosa-mente o plano do fenmeno do plano da coisa em si. Mas esta admitida como condio da idealizao do fenmeno. No causa do fenmeno, mas o mundo da coisa em si algo correlativo do mundo fenomnico; sem ele, este seria ininteligvel. Mas o que ser uma coisa em si? S poderia saberse se fosse dada numa intuio no-sensvel, numa intuio intelectual, fora dos quadros espao-temporais. Ao homem no foi concedida tal intuio, embora esta, em si mesma, no fosse impossvel. Nada se pode afirmar, portanto, relativamente ao mundo das coisas em si. Permanecem para ns incognoscveis. Para alm desta metafsica imanente no haver acesso ao mundo da transcendncia? Esse acesso, como saber objetivo, isto , como cincia estrita, impossvel. No corresponder essa metafsica transcendente a "um tipo de apreenso do real, que difere por natureza do conhecimento cientfico?" 11 . A razo, graas s idias, esfora-se por elevar os conhecimentos do entendimento mais perfeita unidade e se a extenso dos conhecimentos se impe ao nosso esprito, no corresponde "aos interesses supremos da razo" 12 . Interessa-se esta mais ainda pela sua unificao sistemtica. "O conhecimento sistemtico, a cincia dos objetos da experincia, fornece-nos um modelo de certeza; a filosofia crtica marca os limites do que podemos saber e a estimar razoavelmente o que nos permitido esperar"13. Deste modo, a tarefa da razo abre-se metafsica "o propsito final a que visa, em ltima anlise, a especulao da razo no _________________Jean LACROIX, Kant et le kantisme, Paris, 1967, p. 15. Critica da Razo Pura, Metodologia transcendental, 1 Seco: Do fim ltimo do uso puro da nossa razo, p. 634 e segs. 13 Ibidem, p. 635.12 11

uso transcendental, diz respeito a trs objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existncia de Deus." 14 . Se a coisa, como fenmeno, s nos acessvel mediante a experincia, sujeita por conseguinte causalidade da natureza, tambm pode, se a pensarmos como coisa em si, considerar-se independente da causalidade natural. E, neste caso, estar subordinada a um outro tipo de causalidade, a causalidade inteligvel, que seria a liberdade. Com isto no se alargou o domnio do conhecimento, que continua circunscrito aos limites da experincia possvel. Apenas se alcanou a simples possibilidade de uma causalidade livre. Poderemos ter a experincia de uma tal causalidade? Kant afirma que encontramos uma causalidade livre em ns mesmos; desenvolvemos uma atividade e somos a causa dessa atividade. Isto porque o homem um ser de exceo, pois se, por um lado, est submetido lei natural, tambm pode dar-se a si mesmo a sua prpria lei. Esta razo, que se determina como razo livre, experimenta-se como livre. Porm, esta liberdade no cognoscvel pela razo terica, limitada esfera da experincia sensvel. A partir da realidade da idia da liberdade vai Kant demonstrar a realidade das outras idias: a realidade das idias da alma, e de Deus. A imortalidade da alma e a existncia de Deus so para Kant necessrias, exigidas pela lei moral, seus postulados. A passagem da razo terica para a razo prtica que faz aparecer o fundamento da metafsica, metafsica moral que no cabe neste prefcio analisar. A Crtica da Razo Pura mostrou que o esprito humano nada pode saber das realidades transcendentes aos fenmenos, pois no h uma intuio intelectual. Agora, no domnio prtico, a Critica mostra que essas realidades devem ser afirmadas. Assim se impe de novo a metafsica segundo uma forma, a nica, segundo Kant, a ser possvel numa idade dominada pelo ideal da cincia positiva, capaz de salvar os temas que a metafsica dogmtica wolffiana e com ela toda a metafsica considerava seu autntico patrimnio. certo pretender Kant salvar as matemticas e a cincia da natureza, mas no deixa tambm de ser verdadeiro que pretendeu tambm salvar o tesmo e assim integrar-se na linha tradicional. J em tempo de Kant afirmava Jacobi (1743-1819) que "sem a coisa em si no se podia entrar no recinto da Critica da Razo Pura, mas _______________14

Ibidem. p. 635.

com a coisa em si no se poderia nele permanecer". De fato, a reflexo kantiana encontra-se em equilbrio instvel entre o idealismo absoluto e um realismo que admite coisas em si, embora incognoscveis. E no sentido do desaparecimento da coisa em si que vai evoluir a herana do pensador de Knigsberg. No idealismo alemo a viragem copernicana levada derradeira conseqncia, sem quaisquer reservas criticistas. A intuio intelectual, conceito-limite para Kant, significando qualquer coisa concebvel, mas no acessvel, adquire foros de cidadania; a experincia sensvel, necessria para o conhecimento do real, transforma-se em criao do eu, uma certa forma de conscincia. Em qualquer dos grandes nomes deste movimento idealista, com todas as suas diferenas, sempre no sujeito que reside o centro de gravidade da filosofia, h sempre a eliminao da coisa em si. O saber no consiste na recepo de dados, mas numa construo no pleno sentido da palavra. O eu no , portanto, tabula rasa, mas atividade. O saber no atribudo ao esprito humano finito, como tal, mas ao pensamento absoluto ou razo e, assim, o mundo converte-se em automanfestao do pensamento. Toda esta ousada especulao idealista no seria possvel sem Kant e no traduz um regresso s vias tradicionais da metafsica. As entusisticas e, por vezes, extravagantes construes do idealismo germnico entram no descrdito, contrapostas aos resultados de uma cincia positiva, avassaladora de todos os domnios do real. Impe-se agora uma reflexo filosfica que vai ser elaborada sob a gide de um zurck zu Kant, pondo em evidncia, fundamentalmente, a dimenso gnoseolgica da critica kantiana e reduzindo a Crtica da Razo Pura Analtica transcendental, compreendida como uma teoria da cincia. Nisso consistiu, fundamentalmente, a limitao neokantiana. A Critica da Razo Pura continua hoje ainda um texto vivo, referncia obrigatria nas correntes filosficas mais importantes da contemporaneidade. Assim, o kantismo constitui, no dizer de Ricoeur, o horizonte filosfico mais prximo da hermenutica 15 , com a sua inverso das relaes ___________________Cf. P. RICOEUR, Hermneutique, cours profess I'Institut Suprieur de Philosophie, 1971-1972, Louvain-la-Neuve, p. 70. Ver ainda H. G. GADAMER, Kant und die philosophische Hermeneutik, Kant-Studien 66 (1975), pp. 395-403. Reimpresso com o ttulo Kant und die hermeneutische Wendung in H.- G. GADAMER, Heidegger Wege, Tbingen, 1983, pp. 45-54.15

entre uma teoria do conhecimento e uma teoria do ser. Por isso, compreende-se que, "num clima kantiano, a teoria dos sinais continua Ricoeurpossa preceder a teoria das coisas", "tornando-se possvel que uma teoria da compreenso possa emancipar-se de uma teoria dos contedos de conhecimento"; mais precisamente, "o kantismo convida a remontar dos objectos da experincia s suas condies no esprito", embora "no tenha ultrapassado as condies da experincia fsica" 16 . Ligado ainda ao movimento da hermenutica por diversos aspectos e na seqncia do movimento fenomenolgico, temos Heidegger para quem o dilogo com Kant momento essencial. Considera o processo kantiano de fundamentao da metafsica profundamente inovador pela introduo do mtodo transcendental e pela "funo do a priori originrio atribudo ao tempo como forma a priori da imaginao transcendental" 17 . Heidegger pretende levar ao seu termo o discurso transcendental kantiano, mas procurando, ao arrepio do idealismo alemo, que radicalizou a viragem copernicana iniciada por Kant, aprofundando-a no sentido da a prioridade subjetiva, encontrar fora do sujeito essa a prioridade, a saber, no interior da facticidade da tradio a explorar. O dado, como ponto de partida estratgico, deixa de ser a determinao metafsica da coisa material ou a do sujeito. Ser antes a relacionalidade da facticidade transmitida e isto para Heidegger a linguagem, concebida, claramente, segundo o modelo do texto, originando, conforme expresso de Thomas J. Wilson 18 "um funcionalismo que deve ser caracterizado, no como uma mathesis, mas sim como exegesis universalis"._________________________ 16

Ibidem, p. 71. J. ENES, loc. cit., p. 122. A interpretao de Heidegger da fundamentao da metafsica em Kant encontra-se tratada em Sein und Zeit (1927), Kant und das Problem der Metaphysik (1929) e Die Grundprobleme der Phnomenologie (lies do ano de 1927 editadas postumamente em Gesamtausgabe, vol. 24, 1975). 18 Thomas J. WILSON, Sein als Text. Vom Textmodell als Martin Heideggers Denkmodell. Eine funktionalistische Interpretation, Freiburg/Mnchen, Verlag Karl Albor, 1981, p. 13-14. Trata-se de uma das interpretaes mais originais do pensamento heideggeriano. Cf. o artigo j citado de J. ENES e o de N. GONZLEZ-CAMINERO, Dall modello del'essere come cosa al modello dell'essere come testo, in "Revista Portuguesa de Filosofia", XXXIX (1983), pp. 312-335.17

* * *

No esta a primeira traduo em lngua portuguesa da Crtica da Razo Pura. Apareceram j no Brasil algumas verses incompletas, a mais recente das quais, feita diretamente do alemo, se deve a Walrio Rohden e a ligo Baldur Moosburger (So Paulo, Abril Cultural, 1980) 1 . Traduo esta, em geral, muito fiel ao texto original, mas que, infelizmente, no conhecemos a tempo de nos ser de utilidade e apenas reproduz a segunda edio do texto kantiano. A traduo que agora se d estampa esfora-se por ser um instrumento tanto quanto possvel adequado ao estudo completo da problemtica da razo pura. Como texto base foi adotado, como hoje norma, o da segunda edio, que designaremos por edio B. Em rodap aparecero indicadas por * as notas do prprio Kant e em numerao rabe as variantes da primeira edio, designada por edio A. Nos trechos extensos de A, que foram eliminados em B, e representam por vezes captulos ou pargrafos inteiros, como o caso da deduo dos conceitos puros do entendimento e da maior parte da doutrina dos paralogismos, dividimos a pgina em duas partes: a superior preenchida pelo texto de B, considerado principal e a inferior comportando o texto de A. Tambm nas notas indicadas pela numerao rabe aparecem pequenas variantes de B, introduzidas pelo prprio Kant no seu exemplar de uso, ou leituras propostas por alguns dos mais eminentes Kant-philologen. No tivemos a pretenso de ser exaustivos; fizemos delas uma seleo, cujo critrio, naturalmente, se encontrar ferido, embora contra o nosso intento, de alguma subjetividade. Alm disso, muitas dessas variantes ou alteraes foram eliminadas por irrelevantes em lngua portuguesa. O que sempre pretendemos foi dar uma traduo que respeitasse o mais possvel o original kantiano. Renunciamos, por isso, a introduzir qualquer "melhoramento" na traduo de certos passos que se nos afiguravam menos claros. Seria cair na parfrase sempre de rejeitar que eliminaria ambigidades ou deficincias inerentes ao texto original, mas estaria sujeita ao _________________ Agradecemos ao nosso prezado Colega e Amigo Prof. Antnio Paim, do Instituto Brasileiro de Filosofia do Rio de janeiro, as indicaes referentes a tradues de Kant no Brasil e o envio de fotocpias e exemplares das mais importantes.

perigo de trair a lio kantiana. O cuidado de interpretar deve deixar-se, como de justia, ao leitor. A presente traduo da Critica da Razo Pura fruto do trabalho da Dr. Manuela Pinto dos Santos que verteu para portugus o texto da edio B at ao Cap. III, O ideal da razo pura, quinta seco, Da impossibilidade de uma prova cosmolgica da existncia de Deus (p. 507) e de mim prprio que traduzi o que restava do texto de B, os prefcios de A e de B e todos os textos de A que diferiam de B. ainda da minha responsabilidade a traduo de todas as notas, quer as do punho do prprio Kant, por outras, em que se apresentam variantes ao texto de B, bem como a unificao terminolgica de toda a traduo do texto kantiano. Como base para esta traduo foi utilizada a edio crtica de Raymund Schmidt: Kritik der reinen Vernunft, reimpresso inalterada da 2 edio, revista, de 1930 (Philosophische Bibliothek, vol. 37a, Hamburgo, Felix Meiner, 1956), embora confrontada com o texto completo de B e o de A at aos paralogismos da razo pura, publicados, respectivamente, nos vols. III e IV da edio da Academia de Berlim e com o vol. III da edio de Ernst Cassirer, ao cuidado de Grland. Mas foi na edio de R. Schmidt que, fundamentalmente, nos apoiamos e nela colhemos a seleo de notas apresentadas. Com a finalidade de dar um texto completo e tornar possvel evidenciar o que foi introduzido de novo na edio B, qualquer palavra, frase ou trecho entre parntesis retos [ ] significa que foram acrescentadas em B ou substituem outras aparecidas em A e de que daremos notcia em nota. No escondemos a dificuldade havida, por vezes, na traduo de certos vocbulos kantianos. Para melhor fixarmos os correspondentes termos em portugus, comparamo-los com a lio de algumas tradues: a traduo inglesa de Norman Kemp-Smith (Londres, 1968), a de Giovanni Gentile e Giusepp Lombardi-Radici (2 vols., Bari, 1925, reimpresso da 2. edio), a de J. Bani e P. Archambault (2 vols., Paris, 1944), a de A. Tremesaygues e B. Pacaud (Paris, 1950) e a traduo incompleta de M. Carda Morente (2 vols., Madrid, 1929). Uma especial meno devida ao nosso prezado Colega e Amigo Prof. Doutor Walter de Sousa Medeiros que amavelmente se prestou a rever a traduo das citaes latinas e, em alguns casos, teve a gentileza de a substituir por outra da sua autoria.

Temos conscincia das carncias da traduo apresentada e esperamos melhor-la em futuras edies. Mas estamos seguros de no termos realizado tarefa sem interesse, ao procurarmos fazer Kant falar em lngua portuguesa e precisamente nesta obra fundamental, a difcil Critica da Razo Pura. No poder afirmar-se com Hegel, que "um povo' ser brbaro e no considerar bens prprios as coisas excelentes que conhece, enquanto no aprender a conhec-las na sua lngua"? ALEXANDRE F. MORUJO

BACO DE VERULAMIO INSTAURATIO MAGNA PRAEFATIO De nobis ipsis silemus: De re autem, quae agitur, petimus: ut homines eam non Opinionem, sed Opus esse cogitent; ac pro certo habeant, non Sectae nos alicuius, aut Placiti, sed utilitatis et amplitudinis humanae fundamenta moliri. Deinde ut suis commodis aequi ... in commune consulant... et ipsi in partem veniant. Praeterea ut bene sperent, neque Instaurationem nostram ut quiddam infinitum et ultra mortale fingant, et animo concipiant; quum revera sit infiniti erroris finis et terminus legitimus. ____________ S aparece em B.Traduo:

B2

BACON DE VERULMIO INSTA URATIO MAGNA PREFCIOQuanto ao prprio autor, preferimos guardar silncio; mas quanto ao objetivo que temos em vista, esse vamos desde j enunci-lo, para que as pessoas no cuidem que se trata de mera opinio, mas de verdadeira misso; e tenham a certeza de que batalhamos no para lanar as bases de alguma escola ou dogma, mas do bem-estar e grandeza do gnero humano. E, depois, para que estejam atentas aos seus reais interesses (...); tomem deliberaes em ordem ao bem comum (...); e por si mesmas se disponham a assumir as suas posies. E, alm disso, alimentem fundadas esperanas; e no entrevejam nem concebam esta nossa 'Instauratio' como algo desmesurado e superior condio mortal quando, na realidade, representa o fim do erro ilimitado e o seu prescrito remate.

B III

A SUA EXCELNCIA O MINISTRO DE ESTADO DO REI BARO DE ZEDLITZ I Senhor! Promover pela sua parte o crescimento das cincias significa trabalhar no interesse de Vossa Excelncia; pois estas duas coisas encontram-se intimamente ligadas, no s pelo posto eminente de um protetor, mas bem mais ainda pela familiaridade de um amador e de um conhecedor esclarecido. Por isso recorro ao nico meio que, de certa maneira, est em meu poder, para testemunhar a minha gratido pela benevolente confiana com que Vossa Excelncia me honra, julgando-me capaz de contribuir para esse fim. I mesma ateno benevolente com que Vossa Excelncia dignou honrar a primeira edio desta obra dedico tambm agora esta segunda e, com ela, todos os outros interesses da minha carreira literria, e sou com o mais profundo respeito, De Vossa Excelncia, o servidor muito obediente e humilde IMMANUEL KANT Knigsberg, 23 de Abril de 1787 ______________________ Em A o ltimo pargrafo da dedicatria assim concebido: A quemagrada a vida especulativa, a aprovao de um juiz esclarecido e vlido , entre os desejos razoveis, um poderoso encorajamento a esforos, cuja utilidade grande, embora mediata, e por isso completamente desconhecida do vulgo. A um tal juiz e sua benevolente ateno dedico este escrito e coloco sob a sua proteco todos os outros interesses da minha carreira literria e sou, com o mais profundo respeito, De Vossa Excelncia, servidor muito obediente e humilde, IMMANUEL KANT Knigsberg, 29 de Maro de 1781

BV

B VI

PREFCIO DA PRIMEIRA EDIO (1781) A razo humana, num determinado domnio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questes, que no pode evitar, pois lhe so impostas pela sua natureza, mas s quais tambm no pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. No por culpa sua que cai nessa perplexidade. Parte de princpios, cujo uso inevitvel no decorrer da experincia e, ao mesmo tempo, suficientemente garantido por esta. Ajudada por estes princpios eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza) para condies mais remotas. Porm, I logo se apercebe de que, desta maneira, a sua tarefa h-de ficar sempre inacabada, porque as questes nunca se esgotam; v-se obrigada, por conseguinte, a refugiar-se em princpios, que ultrapassam todo o uso possvel da experincia e, no obstante, esto ao abrigo de qualquer suspeita, pois o senso comum est de acordo com eles. Assim, a razo humana cai em obscuridades e contradies, que a autorizam a concluir dever ter-se apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir. Na verdade, os princpios de que se serve, uma vez que ultrapassam os limites de toda a experincia, j no reconhecem nesta qualquer pedra de toque. O teatro destas disputas infindveis chama-se Metafsica. Houve um tempo em que esta cincia (a metafsica) era chamada rainha de todas as outras e, se tomarmos a inteno pela realidade, merecia amplamente esse ttulo honorfico, graas importncia capital do seu objeto. No nosso tempo ____________ Omitido em B.

A VII

A VIII

tornou-se moda testemunhar-lhe o maior desprezo e a nobre dama, repudiada e desamparada, lamenta-se como Hcuba:A IX

... Modo maxima rerum, I Tot generis natis que potens... Nunc trahor exul, inops. OVDIO, Metamorfoses Inicialmente, sob a hegemonia dos dogmticos, o seu poder era desptico. Porm, como a legislao ainda trazia consigo o vestgio da antiga barbrie, pouco a pouco, devido a guerras intestinas, caiu essa metafsica em completa anarquia e os cticos, espcie de nmades, que tem repugnncia em se estabelecer definitivamente numa terra, rompiam, de tempos a tempos, a ordem social. Como, felizmente, eram pouco numerosos, no puderam impedir que os seus adversrios, os dogmticos, embora sem concordarem num plano prvio, tentassem repetidamente, restaurar a ordem destruda. Nos tempos modernos houve um momento em que parecia irem terminar todas essas disputas, graas a uma certa fisiologia do entendimento humano (a do clebre Locke) e a ser decidida inteiramente a legitimidade dessas pretenses. Embora essa suposta rainha tivesse um nascimento vulgar, derivasse da experincia comum e, por isso, com justia, a sua origem tornasse suspeitas as suas exigncias, aconteceu, no entanto, que esta genealogia tinha sido imaginada falsamente e, assim, a metafsica continuou a afirmar as suas pretenses; I pelo que de novo tudo caiu no dogmatismo arcaico e carcomido e, finalmente, no desprestgio a que se tinha querido subtrair a cincia. Agora, depois de serem tentados todos os caminhos (ao que se v) em vo, reina o enfado e um indiferentismo, que engendram o caos e a noite nas cincias, mas tambm, ao mesmo tempo, so origem, ou pelo menos preldio, de uma prxima transformao e de uma renovao dessas ________________ Traduo: Ainda h pouco a maior de todas, poderosa por tantos genros e filhos... eis-me agora exilada, despojada.

AX

cincias, que um zelo mal entendido tornara obscuras, confusas e inteis. vo, com efeito, afetar indiferena perante semelhantes investigaes, cujo objeto no pode ser indiferente natureza humana. Esses pretensos indiferentistas, por mais que busquem tornar-se irreconhecveis, substituindo a terminologia da Escola por uma linguagem popular, no so capazes de pensar qualquer coisa sem recair, inevitavelmente, em afirmaes metafsicas. Porm, esta indiferena, que se produz no meio do flores-cimento de todas as cincias e ataca precisamente aquela, a cujos conhecimentos, se pudssemos adquiri-los, renunciaramos com menos facilidade I do que a qualquer outro, um fenmeno digno de ateno e de reflexo. Evidentemente que no efeito de leviandade, mas do juzo* amadurecido da poca, que j no se deixa seduzir por um saber aparente; um convite razo para de novo empreender a mais difcil das suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da constituio de um tribunal que lhe assegure as pretenses legtimas e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as presunes infundadas; I e tudo isto, no por deciso arbitrria, mas em nome das suas leis eternas e imutveis. Esse tribunal outra coisa no que a prpria Crtica da Razo Pura. Por uma crtica assim, no entendo uma crtica de livros e de sistemas, mas da faculdade da razo em geral, com ________________ * De vez em quando, ouvem-se queixas acerca da superficialidade domodo de pensar da nossa poca e sobre a decadncia da cincia rigorosa. Pois eu no vejo que as cincias, cujo fundamento est bem assente, como a matemtica, a fsica, etc., meream, no mnimo que seja, uma censura. Pelo contrrio, mantm a antiga reputao de bem fundamentadas e ultrapassam-na mesmo nos ltimos tempos. Esse mesmo esprito mostrar-se-ia tambm eficaz nas demais espcies de conhecimentos, se houvesse o cuidado prvio de retificar os princpios dessas cincias. falta desta retificao, a indiferena, a dvida e, finalmente, a crtica severa so outras provas de um modo de pensar rigoroso. A nossa poca a poca da crtica, qual tudo tem que submeter-se. A religio, pela sua santidade e a legislao, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas ento suscitam contra elas justificadas suspeitas e no podem aspirar ao sincero respeito, que a razo s concede a quem pode sustentar o seu livre e pblico exame.

A XI

A XII

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respeito a todos os conhecimentos a que pode aspirar, independentemente de toda a experincia; portanto, a soluo do problema da possibilidade ou impossibilidade de uma metafsica em geral e a determinao tanto das suas fontes como da sua extenso e limites; tudo isto, contudo, a partir de princpios. Assim, enveredei por este caminho, o nico que me restava seguir e sinto-me lisonjeado por ter conseguido eliminar todos os erros que at agora tinham dividido a razo consigo mesma, no seu uso fora da experincia. No evitei as suas questes, desculpandome com a impotncia da razo humana; pelo contrrio, especifiquei-as completamente, segundo princpios e, depois de ter descoberto o ponto preciso do mal-entendido da razo consigo mesma, resolvi-as com a sua inteira satisfao. I No dei, certo, quelas questes as respostas que o exaltado desejo dogmtico de saber desejaria esperar, pois impossvel satisfaz-lo de outra forma que no seja por artes mgicas, das quais nada entendo. Topouco residia a o objeto do destino natural da nossa razo; o dever da filosofia era dissipar a iluso proveniente de um mal-entendido, mesmo com risco de destruir uma quimera to amada e enaltecida. Neste trabalho, a minha grande preocupao foi descer ao pormenor e atrevo-me a afirmar no haver um s problema metafsico, que no se resolva aqui ou, pelo menos, no encontre neste lugar a chave da soluo. Com efeito, a razo pura uma unidade to perfeita que, se o seu princpio no fosse suficiente para resolver uma nica questo de todas aquelas que lhe so propostas pela sua natureza, haveria que rejeit-lo, pois no se poderia aplicar a qualquer outra com perfeita segurana. Ao falar assim, julgo perceber na fisionomia do leitor um misto de indignao e desprezo I por pretenses aparentemente to vaidosas e imodestas; e, contudo, so incomparavelmente mais moderadas do que as de qualquer autor do programa mais vulgar, que pretende, por exemplo, demonstrar a natureza simples da alma ou a necessidade de um primeiro comeo do mundo; realmente, tal autor assume o compromisso de estender o conhecimento humano para alm de todos os limites da experincia possvel, coisa que, devo confess-lo com humildade,

ultrapassa inteiramente o meu poder; em vez disso, ocupo-me unicamente da razo e do seu pensar puro e no tenho necessidade de procurar longe de mim o seu conhecimento pormenorizado, pois o encontro em mim mesmo e j a lgica vulgar me d um exemplo de que se podem enunciar, de maneira completa e sistemtica, todos os atos simples da razo. O problema que aqui levanto simplesmente o de saber at onde posso esperar alcanar com a razo, se me for retirada toda a matria e todo o concurso da experincia. Julgo ter dito o bastante acerca da perfeio a atingir em cada um dos fins e a extenso a dar investigao de conjunto de todos eles, que no constituem um propsito arbitrrio, mas que a natureza mesma do conhecimento nos prope como matria da nossa investigao crtica. I H ainda a ter em conta a certeza e a clareza, dois requisitos que se reportam forma e se devem considerar qualidades essenciais a exigir de um autor que se lana em empresa to delicada. No respeitante certeza, a lei que impus a mim prprio obriga-me a que, nesta ordem de consideraes, de modo algum seja permitido emitir opinies e que tudo o que se parea com uma hiptese seja mercadoria proibida, que no se deve vender, nem pelo mais baixo preo, mas que urge confiscar logo que seja descoberta. Com efeito, todo o conhecimento que possui um fundamento a priori anuncia-se pela exigncia de ser absolutamente necessrio; com mais forte razo deve assim acontecer a respeito de uma determinao de todos os conhecimentos puros a priori que deve servir de medida e, portanto, de exemplo a toda a certeza apodtica (filosfica). S ao leitor competir julgar se me mantive fiel, neste ponto, ao meu compromisso, pois ao autor apenas convm apresentar razes e no decidir dos efeitos delas sobre os juzes. Contudo, para que nada possa, inocentemente, ser causa de que se enfraqueam estas razes, I seja permitido ao autor que ele prprio assinale as passagens que poderiam ocasionar alguma desconfiana, embora apenas tenham importncia secundria, a fim de prevenir a

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influncia que o mais leve escrpulo do leitor poder exercer mais tarde no seu juzo, relativamente ao fim principal. No conheo investigaes mais importantes para estabelecer os fundamentos da faculdade que designamos por entendimento e, ao mesmo tempo, para a determinao das regras e limites do seu uso, do que aquelas que apresentei no segundo captulo da Analtica transcendental, intitulado Deduo dos conceitos puros do entendimento; tambm foram as que me custaram mais esforo, mas espero que no tenha sido o trabalho perdido. Esse estudo, elaborado com alguma profundidade, consta de duas partes. Uma reporta-se aos objetos do entendimento puro e deve expor e tornar compreensvel o valor objetivo desses conceitos a priori e, por isso mesmo, entra essencialmente no meu desgnio. A outra diz respeito ao entendimento puro, em si mesmo, do ponto de vista da sua possibilidade e das faculdades cognitivas em que assenta: I estuda-o, portanto, no aspecto subjetivo. Esta discusso, embora de grande importncia para o meu fim principal, no lhe pertence essencialmente, pois a questo fundamental reside sempre em saber o que podem e at onde podem o entendimento e a razo conhecer, independentemente da experincia e no como possvel a prpria faculdade de pensar. Uma vez que esta ltima questo , de certa maneira, a investigao da causa de um efeito dado e, nessa medida, tambm algo semelhante a uma hiptese (embora de fato no seja assim, como noutra ocasio mostrarei) parece ser este o caso de me permitir formular opinies e deixar ao leitor igualmente a liberdade de emitir outras diferentes. Por isso devo pedir ao leitor para se lembrar de que, se a minha deduo subjetiva no lhe tiver criado a inteira convico que espero, a deduo objetiva, que a que aqui me importa principalmente, conserva toda a sua fora, bastando, de resto, para isso, o que dito de pginas 92 a pginas 93 . Finalmente, no que respeita clareza, o leitor tem o direito de exigir, em primeiro lugar, a clareza discursiva (lgica) por ________________ Paginao de A. Kant refere-se Passagem deduo transcendentaldas categorias.

conceitos; seguidamente, tambm a clareza I intuitiva (esttica) por A XVIII intuies, isto , por exemplos e outros esclarecimentos em concreto. Cuidei suficientemente da primeira, pois dizia respeito essncia do meu projeto, mas foi tambm a causa acidental que me impediu de me ocupar suficientemente da outra exigncia, que justa, embora o no seja de uma maneira to estrita como a primeira. No decurso do meu trabalho encontrei-me quase sempre indeciso sobre o modo como a este respeito devia proceder. Os exemplos e as explicaes pareciam-me sempre necessrios e no primeiro esboo apresentaram-se, de fato, nos lugares adequados. Contudo, bem depressa vi a grandeza da minha tarefa e a multido de objetos de que tinha de me ocupar e, dando conta de que, expostos de uma forma seca e puramente escolstica, esses objetos dariam extenso suficiente minha obra, no me pareceu conveniente torn-la ainda maior com exemplos e explicaes, apenas necessrios de um ponto de vista popular; tanto mais que esta obra no podia acomodar-se ao grande pblico e aqueles que so cultores da cincia no necessitam tanto que se lhes facilite a leitura, coisa sempre agradvel, mas que, neste caso, poderia desviar-nos um pouco do nosso fim em vista. Diz com verdade o Padre Tarrasson que, se avaliarmos I o tamanho de um livro, no A XIX pelo nmero de pginas, mas pelo tempo necessrio a compreendlo, poder-se- afirmar de muitos livros, que seriam muito mais pequenos se no fossem to pequenos. Mas se, por outro lado, for proposto como objetivo a inteligncia de um vasto conjunto de conhecimentos especulativos, embora ligados a um princpio nico, poder-se-ia dizer, com igual razo, que muitos livros teriam sido muito mais claros se no quisessem ser to claros. De fato, os expedientes para ajudar a ser claro so teis nos pormenores, embora muitas vezes distraiam de ver o conjunto, impedindo o leitor de alcanar, com suficiente rapidez, uma viso desse conjunto; com o seu brilhante colorido encobrem, por assim dizer, e tornam invisvel a articulao ou a estrutura do sistema, que o mais importante para se poder julgar da sua unidade e do seu valor. Parece-me que pode ser para o leitor coisa de no pequeno atrativo juntar o seu esforo ao do autor, se tiver a

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inteno de realizar inteiramente e de maneira duradoura uma obra grande e importante, de acordo com o plano que lhe proposto. I Ora a metafsica, segundo os conceitos que dela apresentaremos aqui, a nica de todas as cincias que pode aspirar a uma realizao semelhante e isto em pouco tempo e com pouco trabalho, desde que se congreguem os esforos, de tal modo que nada mais reste posteridade que dispor tudo de uma maneira didtica, de acordo com seus propsitos, sem por isso poder aumentar o contedo no que quer que seja. Na verdade, a metafsica outra coisa no seno o inventrio, sistematicamente ordenado, de tudo o que possumos pela razo pura. Nada nos pode aqui escapar, pois o que a razo extrai inteiramente de si mesma no pode estar-lhe oculto; pelo contrrio, posto luz pela prpria razo, mal se tenha descoberto o princpio comum de tudo isso. A unidade perfeita desta espcie de conhecimentos, derivados de simples conceitos puros, sem que nada da experincia, nem sequer mesmo uma intuio particular, prpria a conduzir a uma experincia determinada, possa exercer sobre ela qualquer influncia no sentido de a estender ou de a aumentar, torna esta integridade incondicionada no somente possvel como ainda necessria. Tecum habita et noris, quam sit tibi curta supellex PRSIO

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I Eu prprio espero publicar, com o ttulo de Metafsica da Natureza, um tal sistema da razo pura (especulativa) que, embora no tenha metade da extenso da Crtica, dever, no entanto, conter uma matria incomparavelmente mais rica. Esta crtica teve primeiro que expor as fontes e as condies de possibilidade desta metafsica e necessitou de limpar e de alisar um terreno mal preparado. Espero aqui, do meu leitor, a pacincia e a imparcialidade de um juiz; porm, na Metafsica da Natureza, terei necessidade da boa vontade e do concurso de ______________ Traduo: Regressa a ti mesmo e sabers como simples para ti oinventrio.

um auxiliar. Com efeito, por mais completa que tenha sido na Crtica a exposio de todos os princpios que servem de base ao sistema, o desenvolvimento deste exige que tambm se esteja de posse de todos os conceitos derivados, impossveis de enumerar a priori e que necessrio investigar um por um. Como na Crtica foi esgotada toda a sntese dos conceitos, o mesmo ser paralelamente exigido aqui, relativamente anlise, o que ser fcil de conseguir e mais um entretenimento que um trabalho. Resta-me ainda dizer alguma coisa com respeito impresso. Como o comeo desta foi um tanto atrasado, pude somente receber, para reviso, cerca de metade I das provas; nelas encontro algumas gralhas, que no alteram o sentido, exceptuado o da pgina 374, linha 4 a partir de baixo , onde se deve ler specifisch em vez de skeptisch. A antinomia da razo pura, de pgina 425 pgina 461, encontra-se disposta sob a forma de quadro, de maneira a tudo o que pertence tese estar sempre esquerda e o que pertence anttese, sempre direita. Adotei esta disposio para mais facilmente ser possvel estabelecer comparao entre ambas.

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______________ Paginao de A. Kant refere-se Passagem deduo transcendental das categorias. Paginao de A.

TBUA DE MATRIAS Introduo I. Doutrina transcendental dos elementos. PRIMEIRA PARTE. Esttica transcendental. SECO PRIMEIRA. Do espao. SECO SEGUNDA. Do tempo. SEGUNDA PARTE. Lgica transcendental. PRIMEIRA DIVISO. Analtica transcendental em dois livros com seus ttulos e suas subdivises. SEGUNDA DIVISO. Dialctica transcendental em dois livros com seus ttulos e suas subdivises. II. Doutrina transcendental do mtodo. CAPTULO I. Disciplina da razo pura. CAPTULO II. Cnone da razo pura. CAPTULO III. Histria da razo pura.

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____________ Apenas em A.

PREFCIO DA SEGUNDA EDIO (1787) S o resultado permite imediatamente julgar se a elaborao dos conhecimentos pertencentes aos domnios prprios da razo segue ou no a via segura da cincia. Se, aps largos preparativos e prvias disposies, se cai em dificuldades ao chegar meta, ou se, para a atingir, se volta atrs com freqncia, tentando outros caminhos, ou ainda se no possvel alcanar unanimidade entre os diversos colaboradores, quanto ao modo como dever prosseguir o trabalho comum, ento poderemos ter a certeza que esse estudo est longe ainda de ter seguido a via segura da cincia. apenas mero tateio, sendo j grande o mrito da razo em ter descoberto, de qualquer modo, esse caminho, mesmo custa de renunciar a muito do que continha a finalidade proposta de incio irrefletidamente. I Pode reconhecer-se que a lgica, desde remotos tempos, seguiu a via segura, pelo fato de, desde Aristteles, no ter dado um passo atrs, a no ser que se leve conta de aperfeioamento a abolio da algumas subtilezas desnecessrias ou a determinao mais ntida do seu contedo, coisa que mais diz respeito elegncia que certeza da cincia. Tambm digno de nota que no tenha at hoje progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto se nos pode afigurar. Na verdade, se alguns modernos pensaram alarg-la, nela inserindo captulos, quer de psicologia, referentes s diferentes faculdades de conhecimento (a imaginao, o esprito), quer metafsicos, respeitantes origem dos conhecimentos ou s diversas espcies de evidncia, consoante a diversidade dos objetos (idealismo, cepticismo, etc.), quer antropolgicos, relativos aos preconceitos

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(suas causas e remdios), provm isso do seu desconhecimento da natureza peculiar desta cincia. No h acrscimo, mas desfigurao das cincias, quando se confundem os seus limites; porm, os limites da lgica esto rigorosamente determinados por se tratar de uma cincia que apenas expe minuciosamente e demonstra rigorosamente as regras formais de todo o pensamento (quer seja a priori ou emprico, qualquer que seja a sua origem ou objeto, quer encontre no nosso esprito obstculos naturais ou acidentais). Que a lgica tenha sido to bem sucedida deve-se ao seu carcter limitado, qu a autoriza e mesmo a obriga a abstrair de todos os objetos de conhecimento e suas diferenas, tendo nela o entendimento que se ocupar apenas consigo prprio e com a sua forma. Seria naturalmente muito mais difcil para a razo seguir a via segura da cincia, tendo de tratar no somente de si, mas tambm de objetos; eis porque, enquanto propedutica, a lgica apenas como a antecmara das cincias e, tratando-se de conhecimentos, pressupe-se, sem dvida, uma lgica para os julgar, mas tem que procurar-se a aquisio destes nas cincias, prpria e objetivamente designadas por esse nome. O que nestas h de razo algo que conhecido a priori e esse conhecimento de razo pode referir-se ao seu objeto de duas maneiras: ou pela simples I determinao deste e do seu conceito (que dever ser dado noutra parte) ou ento realizando-o. O primeiro o conhecimento terico, o segundo o conhecimento prtico da razo. Em ambos, a parte pura, isto , aquela em que a razo determina totalmente a priori o seu objeto, por muito ou pouco que contenha, deve ser exposta isoladamente, sem mistura com o que de outras fontes provm, pois mau governo despender proventos levianamente, sem que posteriormente se possa distinguir, quando eles acabam, a parte da receita que pode suportar as despesas e a parte destas a reduzir. A matemtica e a fsica so os dois conhecimentos tericos da razo que devem determinar a priori o seu objeto, a primeira de uma maneira totalmente pura e a segunda, pelo menos,

parcialmente pura, mas tambm por imperativo de outras formas de conhecimento que no as da razo. Desde os tempos mais remotos que a histria da razo pode alcanar, no admirvel povo grego, a matemtica entrou na via segura de uma cincia. Simplesmente, no se deve pensar que lhe foi to fcil como lgica, em que a razo apenas se ocupa de si prpria, acertar com essa estrada real, I ou melhor, abri-la por seu esforo. Creio antes que. por muito tempo (sobretudo entre os egpcios), se manteve tateante, e essa transformao definitiva foi devida a uma revoluo operada pela inspirao feliz de um s homem, num ensaio segundo o qual no podia haver engano quanto ao caminho a seguir, abrindo e traando para sempre e a infinita distncia a via segura da cincia A histria desta revoluo do modo de pensar, mais importante do que a descoberta do caminho que dobrou o famoso promontrio e a histria do homem afortunado que a levou a cabo, no nos foi conservada. Todavia, a tradio que Digenes Larcio nos transmitiu, nomeando o suposto descobridor dos elementos mais simples das demonstraes geomtricas e que, segundo a opinio comum, nem sequer carecem de ser demonstrados, indica que a recordao da mudana operada pelo primeiro passo dado nesse novo caminho deve ter parecido extremamente importante aos matemticos, tornando-se, por conseguinte, inolvidvel. Aquele que primeiro demonstrou o tringulo issceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve uma iluminao; descobriu que I no tinha que seguir passo a passo o que via na figura, nem o simples conceito que dela possua, para conhecer, de certa maneira, as suas propriedades; que antes deveria produzi-la, ou constru-la, mediante o que pensava e o que representava a priori por conceitos e que para conhecer, com certeza, uma coisa a priori nada devia atribuir-lhe seno o que fosse conseqncia necessria do que nela tinha posto, de acordo com o conceito. A fsica foi ainda mais lenta em encontrar a estrada larga da cincia. S h sculo e meio, com efeito, o ensaio do arguto Bacon de Verulmio em parte desencadeou e, em parte, pois j dela havia indcios, no fez seno estimular essa descoberta, que

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tambm s pode ser explicada por uma revoluo sbita, operada no modo de pensar. Aqui tomarei apenas em considerao a fsica, na medida em que se funda em princpios empricos. Quando Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas, com uma acelerao que ele prprio escolhera, quando Torricelli fez suportar pelo ar um peso, que antecipadamente sabia idntico ao peso conhecido de uma coluna de gua, ou quando, mais recentemente, Stahl transformou metais em cal e esta, por sua vez, I em metal, tirando-lhes e restituindo-lhes algo, * foi uma iluminao para todos os fsicos. Compreenderam que a razo s entende aquilo que produz segundo os seus prprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princpios, que determinam os seus juzos segundo leis constantes e deve forar a natureza a responder s suas interrogaes em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observaes feitas ao acaso, realizadas sem plano prvio, no se ordenam segundo a lei necessria, que a razo procura e de que necessita. A razo, tendo por um lado os seus princpios, nicos a poderem dar aos fenmenos concordantes a autoridade de leis e, por outro, a experimentao, que imaginou segundo esses princpios, deve ir ao encontro da natureza, para ser por esta ensinada, certo, mas no na qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funes, que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta. Assim, a prpria fsica tem de agradecer a revoluo, to proveitosa,do seu modo de pensar, unicamente idia de procurar na natureza (e no imaginar), I de acordo com o que a razo nela ps, o que nela dever aprender e que por si s no alcanaria saber; s assim a fsica enveredou pelo trilho certo da cincia, aps tantos sculos em que foi apenas simples tateio. O destino no foi at hoje to favorvel que permitisse trilhar o caminho seguro da cincia metafsica, conhecimento especulativo da razo completamente parte e que se eleva inteiramente acima das lies da experincia, mediante simples ______________ * No sigo aqui, rigorosamente, o fio da histria do mtodo experimental, cujos primrdios no so, de resto, bem conhecidos.

conceitos (no, como a matemtica, aplicando os conceitos intuio), devendo, portanto, a razo ser discpula de si prpria;. , porm, a mais antiga de todas as cincias e subsistiria mesmo que as restantes fossem totalmente subvertidas pela voragem de uma barbrie, que tudo aniquilasse. Na verdade, a razo sente-se constantemente embaraada, mesmo quando quer conhecer a priori (como tem a pretenso) as leis que a mais comum experincia confirma. preciso arrepiar caminho inmeras vezes, ao descobrirse que a via no conduz aonde se deseja; e no que respeita ao acordo dos seus adeptos, relativamente s suas I afirmaes, B XV encontra-se a metafsica ainda to longe de o alcanar, que mais parece um terreiro de luta, propriamente destinado a exercitar foras e onde nenhum lutador pde jamais assenhorear-se de qualquer posio, por mais insignificante, nem fundar sobre as suas vitrias conquista duradoura. No h dvida, pois, que at hoje o seu mtodo tem sido um mero tateio e, o que pior, um tateio apenas entre simples conceitos. Porque ser ento que ainda aqui no se encontrou o caminho seguro da cincia? Acaso ser ele impossvel? De onde provm que a natureza ps na nossa razo o impulso incansvel de procurar esse caminho como um dos seus mais importantes desgnios? Mais ainda: quo poucos motivos teremos para confiar na nossa razo se, num dos pontos mais importantes do nosso desejo de saber, no s nos abandona como nos ludibria com miragens, acabando por nos enganar! Ou talvez at hoje nos tenhamos apenas enganado no caminho; de que indcios nos poderemos servir para esperar, em novas investigaes, sermos melhor sucedidos do que os outros que nos precederam? Devia pensar que o exemplo da matemtica e da fsica que, por efeito de uma revoluo sbita, I se converteram no que hoje so, B XVI seria suficientemente notvel para nos levar a meditar na importncia da alterao do mtodo que lhes foi to proveitosa e para, pelo menos neste ponto, tentar imit-las, tanto quanto o permite a sua analogia, como conhecimentos racionais, com a metafsica. At hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porm, todas as

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tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se no se resolvero melhor as tarefas da metafsica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim j concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabelea algo sobre eles antes de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhana com a primeira idia de Coprnico; no podendo prosseguir na explicao dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multido de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se no daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imveis. Ora, na metafsica, pode-se tentar o mesmo, I no que diz respeito intuio dos objetos. Se a intuio tivesse de se guiar pela natureza dos objetos, no vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrrio, o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuio, posso perfeitamente representar essa possibilidade. Como, porm, no posso deter-me nessas intuies, desde o momento em que devem tornar-se conhecimentos; como preciso, pelo contrrio, que as reporte, como representaes, a qualquer coisa que seja seu objeto e que determino por meio delas, terei que admitir que ou os conceitos, com a ajuda dos quais opero esta determinao, se regulam tambm pelo objeto e incorro no mesma dificuldade acerca do modo pelo qual dele poderei saber algo a priori; ou ento os objetos, ou que o mesmo, a experincia pela qual nos so conhecidos (como objetos dados) regula-se por esses conceitos e assim vejo um modo mais simples de sair do embarao. Com efeito, a prpria experincia uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento, cuja regra devo pressupor em mim antes de me serem dados os objetos, por conseqncia, a priori e essa regra expressa em conceitos a priori, pelos quais tm I de se regular necessariamente todos os objetos da experincia e com os quais devem concordar. No tocante aos objetos, na medida em que so simplesmente pensados pela razo e necessariamentemas sem poderem

(pelo menos tais como a razo os pensa) ser dados na experincia, todas as tentativas para os pensar (pois tm que poder ser pensados) sero, consequentemente, uma magnfica pedra de toque daquilo que consideramos ser a mudana de mtodo na maneira de pensar, a saber, que s conhecemos a priori das coisas o que ns mesmos nelas pomos * Este ensaio d resultado e promete o caminho seguro da cincia para a metafsica, na sua primeira parte, que se ocupa de conceitos a priori, cujos objetos correspondentes podem ser dados na experincia conforme a esses conceitos. I Efetivamente, com a ajuda desta modificao do modo de pensar, pode-se muito bem explicar a possibilidade de um conhecimento a priori e, o que ainda mais, dotar de provas suficientes as leis que a priori fundamentam a natureza, tomada como conjunto de objetos da experincia; ambas as coisas eram impossveis seguindo o processo at agora usado. Porm, desta deduo da nossa capacidade de conhecimento a priori, na primeira parte da Metafsica, extrai-se um resultado inslito e aparentemente muito desfavorvel sua finalidade, da qual trata a segunda parte; ou seja, que deste modo no podemos nunca ultrapassar os limites da experincia possvel, o que precisamente a questo mais essencial desta cincia. Porm, I a verdade do resultado que obtemos nesta primeira apreciao do nosso conhecimento racional a priori -nos dada pela contra-prova _______________ * Este mtodo, imitado do mtodo dos fsicos, consiste, pois, em procurar os elementos da razo pura naquilo que se pode confirmar ou refutar por uma experimentao. Ora, para examinar as proposies da razo pura, sobretudo quando ousam ultrapassar os limites da experincia possvel, no se podem submeter experimentao os seus objetos (como na fsica); pelo que s vivel dispor os conceitos e princpios admitidos a priori, de tal modo que os mesmos objetos possam ser considerados de dois pontos de vista diferentes; por um lado, como objetos dos sentidos e do entendimento na experincia; por outro, como objetos que apenas so pensados, isto , como objetos da razo pura isolada e que se esfora por transcender os limites da experincia. Ora, consideradas as coisas deste duplo ponto de vista, verifica-se acordo com o princpio da razo pura; encaradas de um s ponto de vista, surge inevitvel o conflito da razo consigo prpria; a experincia decide ento em favor da justeza dessa distino.

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da experimentao, pelo fato desse conhecimento apenas se referir a fenmenos e no s coisas em si que, embora em si mesmas reais, se mantm para ns incognoscveis. Com efeito, o que nos leva necessariamente a transpor os limites da experincia e de todos os fenmenos o incondicionado, que a razo exige necessariamente e com plena legitimidade nas coisas em si, para tudo o que condicionado, a fim de acabar, assim, a srie das condies. Ora, admitindo que o nosso conhecimento por experincia se guia pelos objetos, como coisas em si, descobre-se que o incondicionado no pode ser pensado sem contradio; pelo contrrio, desaparece a contradio se admitirmos que a nossa representao das coisas, tais como nos so dadas, no se regula por estas, consideradas como coisas em si, mas que so esses objetos, como fenmenos, que se regulam pelo nosso modo de representao, tendo consequentemente que buscar-se o incondicionado no nas coisas, na medida em que as conhecemos (em que nos so dadas), mas na medida em que as no conhecemos, enquanto coisas em si; isto uma prova de que tem fundamento o que inicialmente admitimos guisa de ensaio *. I Resta-nos ainda investigar, depois de negado razo especulativa qualquer processo neste campo do supra-sensvel, se no domnio do seu conhecimento prtico no haver dados para determinar esse conceito racional transcendente do incondicionado e, assim, de acordo com o desgnio da metafsica, ultrapassar os limites de qualquer experincia possvel com o nosso conhecimento a priori, mas somente do ponto de vista prtico. Deste modo, a razo especulativa concede-nos, ainda assim, campo livre para essa extenso, embora o tivesse que deixar __________ * Esta experimentao da razo pura tem grande analogia com a que os qumicos, por vezes, denominam reduo e em geral processo sinttico. A anlise do metafsico divide o conhecimento puro a priori em dois elementos muito diferentes: o das coisas como fenmenos e o das coisas em si. A dialtica rene-os para os pr de acordo com a idia racional e necessria do incondicionado e verifica que essa concordncia se obtm unicamente graas a essa distino a qual , portanto, verdadeira.

vazio, competindo-nos a ns preench-lo, se pudermos, com os dados I prticos, ao que por ela mesmo somos convidados *. A tarefa desta crtica da razo especulativa consiste neste ensaio de alterar o mtodo que a metafsica at agora seguiu, operando assim nela uma revoluo completa, segundo o exemplo dos gemetras e dos fsicos. um tratado acerca do mtodo, no um sistema da prpria cincia; porm, circunscreve-a totalmente, no s descrevendo o contorno dos seus limites, mas tambm I toda a sua estrutura interna. E que a razo pura especulativa tem em si mesma a particularidade de medir exatamente a sua capacidade em funo dos diversos modos como escolhe os objetos para os pensar, bem como de enumerar completamente todas as diversas maneiras de pr a si prpria os problemas, podendo e devendo assim delinear o plano total de um sistema de metafsica. Efetivamente, em relao ao primeiro ponto, no conhecimento a priori nada pode ser atribudo aos objetos que o sujeito pensante no extraia de si prprio; relativamente ao segundo, com respeito aos princpios de conhecimento, a razo pura constitui uma unidade completamente parte e autnoma, na qual, como num corpo organizado, cada membro existe para todos os outros e todos para cada um, no podendo inserir-se com segurana qualquer princpio numa conexo, sem ter sido ao mesmo tempo examinado ___________________ * Assim, as leis centrais do movimento dos corpos celestes trouxeram uma certeza total ao que Coprnico de incio admitiu como hiptese e demonstraram, simultaneamente, a fora invisvel que liga a fbrica do mundo (a atrao de Newton), que para sempre ficaria ignorada se Coprnico no tivesse ousado, de uma maneira contrria ao testemunho dos sentidos e contudo verdadeira, procurar a explicao dos movimentos observados, no nos objetos celestes, mas no seu espectador. Neste prefcio unicamente apresento, a ttulo de hiptese, a mudana de mtodo exposta na crtica e que anloga a esta hiptese copernicana. Esta mudana ser contudo estabelecida no corpo da obra, a partir da natureza das nossas representaes do espao e do tempo e a partir dos conceitos elementares do nosso entendimento. Ser assim provada, j no hipoteticamente, mas apodicticamente. Apresento-a aqui como hiptese, unicamente para vincar o carcter sempre hipottico dos primeiros ensaios de uma reforma como esta.

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o conjunto das suas conexes com todo o uso puro da razo. Tambm a