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Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC Vol. 2 nº 1 (3), janeiro-julho/2005, p. 68-80 www.emtese.ufsc.br Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais Valdete Boni e Sílvia Jurema Quaresma Resumo: Neste artigo abordamos a importância da entrevista como uma técnica de coleta de dados que é utilizada em Sociologia para a captação de dados subjetivos. São diversos os tipos de entrevistas, diante disso, explicitamos os mais utilizados que são: a entrevista projetiva, entrevistas com grupos focais, história de vida, entrevista estruturada, aberta e semi-estruturada. Discutimos sobre a importância destes tipos de entrevistas, suas vantagens e desvantagens. Relatamos sobre a preparação do pesquisador para ir a campo e também expomos algumas sugestões tecidas por Bourdieu de como fazer uma entrevista utilizando o método científico. Palavras Chave: pesquisa qualitativa, entrevista, metodologia, coleta de dados, vantagens. Abstract: In this article we discuss the importance of interviews as a method of data collection used in Sociology for the gathering of subjective data. Since there are several types of interviews, we concentrate on the most used ones, namely projective interviews, focus groups, life history, structured, open, and semi-structured interviews. We 68

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Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC Vol. 2 nº 1 (3), janeiro-julho/2005, p. 68-80

www.emtese.ufsc.br

Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais

Valdete Boni e Sílvia Jurema Quaresma

Resumo:

Neste artigo abordamos a importância da entrevista como uma técnica de coleta de dados que é utilizada em Sociologia para a captação de dados subjetivos. São diversos os tipos de entrevistas, diante disso, explicitamos os mais utilizados que são: a entrevista projetiva, entrevistas com grupos focais, história de vida, entrevista estruturada, aberta e semi-estruturada. Discutimos sobre a importância destes tipos de entrevistas, suas vantagens e desvantagens. Relatamos sobre a preparação do pesquisador para ir a campo e também expomos algumas sugestões tecidas por Bourdieu de como fazer uma entrevista utilizando o método científico.

Palavras Chave: pesquisa qualitativa, entrevista, metodologia, coleta de dados, vantagens.

Abstract:

In this article we discuss the importance of interviews as a method of data collection used in Sociology for the gathering of subjective data. Since there are several types of interviews, we concentrate on the most used ones, namely projective interviews, focus groups, life history, structured, open, and semi-structured interviews. We

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discuss the importance of these types of interviews and their advantages and disadvantages. We talk about how a researcher may prepare him/herself to carry out interviews and we also present some suggestions given by Bourdieu on how to conduct an interview using the scientific method.

Keywords: Qualitative research, interview, methodology, data collection, advantages.

1. Introdução

Este artigo tem como objetivo principal abordar a importância da entrevista como uma técnica de coleta de dados que é utilizada em pesquisas nas Ciências Sociais.

Para tanto iniciamos o artigo com uma breve apresentação sobre o desenvolvimento das pesquisas qualitativas na Sociologia. Em seguida exporemos os 3 momentos imprescindíveis que dizem respeito à coleta de dados para a pesquisa, esses momentos se referem: a pesquisa bibliográfica, a observação em campo, e a técnica de coleta de dados através de entrevistas. É no 3º momento que se estabelece a problemática que nos propomos investigar neste artigo, formulada da seguinte maneira: quais as principais vantagens e desvantagens das formas de entrevistas que são mais utilizadas na Sociologia, isto é, a entrevista projetiva, entrevistas com grupos focais, história de vida, entrevista estruturada, aberta e semi-estruturada.

Também faz parte deste artigo a apresentação de algumas sugestões do sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) sobre a conduta do cientista social ao realizar entrevistas utilizando o método científico.

2. As pesquisas na Sociologia

Inicialmente as técnicas de pesquisa começaram a se desenvolver a partir do final do século XIX quando alguns antropólogos, como: o americano, Lewis Henry Morgan (1818-1881); o alemão, Franz Boas (1858-1942); e o polonês, Bronislaw Malinowski (1884-1942) realizaram diversos estudos sobre as sociedades tradicionais.

No início do século XX, em 1910, surge nos Estados Unidos, mais precisamente na Universidade de Chicago, o departamento de Sociologia e Antropologia que acabou tornando-se o principal centro de estudos de pesquisas sociológicas da época. A escola de Chicago, como é conhecida desde 1930, distinguiu-se pela produção de conhecimentos úteis para a solução de problemas sociais concretos, os quais, a cidade de Chicago enfrentava. Estes estudos referiam-se aos problemas de imigração, delinqüência, criminalidade, conflitos étnicos, etc. Devido a esta preocupação

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empírica a Escola de Chicago foi a que mais contribuiu para abrir caminho para outras correntes teóricas como a fenomenologia e a etnometodologia. Foi ela também que além de fazer uso de pesquisas quantitativas, atuou para o desenvolvimento das pesquisas qualitativas na Sociologia, ou seja, começou-se a pesquisar com a utilização científica de documentos pessoais, como por exemplo, cartas e diários, com a exploração de diversas fontes documentárias e com o desenvolvimento do trabalho de campo nas cidades urbanas. A finalidade da pesquisa segundo Selltiz (1987) é de certa forma descobrir respostas para algumas questões mediante a aplicação de métodos científicos, já para Bunge (1972) a pesquisa científica tem duas finalidades, isto é, a acumulação e a compreensão dos fatos que foram levantados.

As pesquisas qualitativas na Sociologia trabalham com: significados, motivações, valores e crenças e estes não podem ser simplesmente reduzidos às questões quantitativas, pois que, respondem a noções muito particulares. Entretanto, os dados quantitativos e os qualitativos acabam se complementando dentro de uma pesquisa (MINAYO, 1996).

O interesse pelo tema que um cientista se propõe a pesquisar, muitas vezes, parte da curiosidade do próprio pesquisador ou então de uma interrogação sobre um problema ou fenômeno. No entanto, a partir do momento que o objeto de pesquisa é escolhido pelo próprio pesquisador isso, de certa forma, desmistifica o caráter de neutralidade do pesquisador perante a sua pesquisa, já que na maioria das vezes, a escolha do objeto revela as preocupações científicas do pesquisador que seleciona os fatos a serem coletados, bem como o modo de recolhê-los. Mas de qualquer forma, nem sempre é fácil determinar aquilo que se pretende pesquisar pois, a investigação pressupõe uma série de conhecimentos anteriores e uma metodologia adequada ao problema a ser investigado. Por mais ingênuo ou simples nas suas pretensões qualquer estudo objetivo da realidade social além de ser norteado por um arcabouço teórico, deverá informar a escolha do objeto pelo pesquisador e também todos os passos e resultados teóricos e práticos obtidos com a pesquisa (BECKER, 1994).

Mas o ponto de partida de uma investigação científica deve basear-se em um levantamento de dados. Para esse levantamento é necessário, num primeiro momento, que se faça uma pesquisa bibliográfica. Num segundo momento, o pesquisador deve realizar uma observação dos fatos ou fenômenos para que ele obtenha maiores informações e num terceiro momento, o pesquisador deve fazer contatos com pessoas que possam fornecer dados ou sugerir possíveis fontes de informações úteis.

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2.1 A pesquisa bibliográfica

Em linhas gerais a pesquisa bibliográfica é um apanhado sobre os principais trabalhos científicos já realizados sobre o tema escolhido e que são revestidos de importância por serem capazes de fornecer dados atuais e relevantes. Ela abrange: publicações avulsas, livros, jornais, revistas, vídeos, internet, etc. Esse levantamento é importante tanto nos estudos baseados em dados originais, colhidos numa pesquisa de campo, bem como aqueles inteiramente baseados em documentos (LUNA, 1999).

2.2 A observação em campo

A observação também é considerada uma coleta de dados para conseguir informações sob determinados aspectos da realidade. Ela ajuda o pesquisador a “identificar e obter provas a respeito de objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência, mas que orientam seu comportamento” (LAKATOS, 1996:79). A observação também obriga o pesquisador a ter um contato mais direto com a realidade. Esta técnica é denominada observação assistemática, onde o pesquisador procura recolher e registrar os fatos da realidade sem a utilização de meios técnicos especiais, ou seja, sem planejamento ou controle. Geralmente este tipo de observação é empregado em estudos exploratórios sobre o campo a ser pesquisado.

Outra forma de coletar dados através da observação ocorre quando o pesquisador utiliza a observação participante. A observação participante se distingue da observação informal, ou melhor, da observação comum. Essa distinção ocorre na medida em que pressupõe a integração do investigador ao grupo investigado, ou seja, o pesquisador deixa de ser um observador externo dos acontecimentos e passa a fazer parte ativa deles. Esse tipo de coleta de dados muitas vezes leva o pesquisador a adotar temporariamente um estilo de vida que é próprio do grupo que está sendo pesquisado. Esse método é muito utilizado quando se pretende pesquisar, por exemplo, alguma seita religiosa e seus rituais. Entretanto a observação participante, como técnica de trabalho de campo, é desaconselhada por alguns cientistas que acham que o pesquisador deve manter uma certa distância entre ele e o seu objeto de pesquisa em nome do resguardo da objetividade científica (COSTA, 1987).

2.3 As várias formas de entrevistas científicas: algumas vantagens e desvantagens

Num terceiro momento da pesquisa o objetivo do pesquisador é conseguir informações ou coletar dados que não seriam possíveis somente através da pesquisa

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bibliográfica e da observação. Uma das formas que complementariam estas coletas de dados seria a entrevista. A entrevista é definida por Haguette (1997:86) como um “processo de interação social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado”. A entrevista como coleta de dados sobre um determinado tema científico é a técnica mais utilizada no processo de trabalho de campo. Através dela os pesquisadores buscam obter informações, ou seja, coletar dados objetivos e subjetivos. Os dados objetivos podem ser obtidos também através de fontes secundárias tais como: censos, estatísticas, etc. Já os dados subjetivos só poderão ser obtidos através da entrevista, pois que, eles se relacionam com os valores, às atitudes e às opiniões dos sujeitos entrevistados.

A preparação da entrevista é uma das etapas mais importantes da pesquisa que requer tempo e exige alguns cuidados, entre eles destacam-se: o planejamento da entrevista, que deve ter em vista o objetivo a ser alcançado; a escolha do entrevistado, que deve ser alguém que tenha familiaridade com o tema pesquisado; a oportunidade da entrevista, ou seja, a disponibilidade do entrevistado em fornecer a entrevista que deverá ser marcada com antecedência para que o pesquisador se assegure de que será recebido; as condições favoráveis que possam garantir ao entrevistado o segredo de suas confidências e de sua identidade e, por fim, a preparação específica que consiste em organizar o roteiro ou formulário com as questões importantes (LAKATOS, 1996).

Quanto à formulação das questões o pesquisador deve ter cuidado para não elaborar perguntas absurdas, arbitrárias, ambíguas, deslocadas ou tendenciosas. As perguntas devem ser feitas levando em conta a seqüência do pensamento do pesquisado, ou seja, procurando dar continuidade na conversação, conduzindo a entrevista com um certo sentido lógico para o entrevistado. Para se obter uma narrativa natural muitas vezes não é interessante fazer uma pergunta direta, mas sim fazer com que o pesquisado relembre parte de sua vida. Para tanto o pesquisador pode muito bem ir suscitando a memória do pesquisado (BOURDIEU, 1999).

As formas de entrevistas mais utilizadas em Ciências Sociais são: a entrevista estruturada, semi-estruturada, aberta, entrevistas com grupos focais, história de vida e também a entrevista projetiva. Ao discorrermos sobre eles tentaremos identificar, na medida do possível, quais as vantagens e as desvantagens destes tipos de entrevistas. Mesmo sabendo de antemão que a escolha de quaisquer técnicas de coleta de dados depende particularmente da adequação ao problema da pesquisa.

A entrevista projetiva é aquela centrada em técnicas visuais, isto é, a utilização de recursos visuais onde o entrevistador pode mostrar: cartões, fotos, filmes, etc ao informante. Esta técnica permite evitar respostas diretas e é utilizada para

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aprofundar informações sobre determinado grupo ou local (HONNIGMANN, 1954 apud MINAYO, 1993).

Com relação à história de vida (HV), para as finalidades a que se propõe este artigo, abordaremos como uma entrevista em profundidade na qual o pesquisador constantemente interage com o informante. Sua principal função é retratar as experiências vivenciadas por pessoas, grupos ou organizações. Existem dois tipos de HV: a completa, que retrata todo o conjunto da experiência vivida e a tópica, que focaliza uma etapa ou um determinado setor da experiência em questão (MINAYO,1993). A HV tem como ponto principal permitir que o informante retome sua vivência de forma retrospectiva. Muitas vezes durante a entrevista acontece a liberação de pensamentos reprimidos que chegam ao entrevistador em tom de confidência. Esses relatos fornecem um material extremamente rico para análise. Neles se encontram o reflexo da dimensão coletiva a partir da visão individual.

As entrevistas com grupos focais é uma técnica de coleta de dados cujo objetivo principal é estimular os participantes a discutir sobre um assunto de interesse comum, ela se apresenta como um debate aberto sobre um tema. Os participantes são escolhidos a partir de um determinado grupo cujas idéias e opiniões são do interesse da pesquisa. Esta técnica pode ser utilizada com um grupo de pessoas que já se conhecem previamente ou então com um grupo de pessoas que ainda não se conhecem. A discussão em grupo se faz em reuniões com um pequeno número de informantes, ou seja, de 6 a 8 participantes. Geralmente conta com a presença de um moderador que intervém sempre que achar necessário, tentando focalizar e aprofundar a discussão. A primeira tarefa do moderador é a sua própria apresentação e também uma rápida apresentação do tema que será discutido. Logo após os participantes do grupo devem se apresentar. Neste método de entrevista os participantes levam em conta os pontos de vista dos outros para a formulação de suas respostas e também podem tecer comentários sobre suas experiências e a dos outros (BAUER & GASKELL, 2002). Não existe um consenso dentro das Ciências Sociais que determina quando este método é mais eficaz que a entrevista individual pois, a escolha do método sempre irá depender da natureza da pesquisa, dos objetivos da pesquisa, dos tipos de entrevistados e também depende da habilidade e preferência do pesquisador. Entretanto, podemos considerar que a discussão em grupo visa muitas vezes complementar a entrevista individual e até a observação participante.

As entrevistas estruturadas são elaboradas mediante questionário totalmente estruturado, ou seja, é aquela onde as perguntas são previamente formuladas e tem-se o cuidado de não fugir a elas. O principal motivo deste zelo é a possibilidade de comparação com o mesmo conjunto de perguntas e que as diferenças devem refletir

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diferenças entre os respondentes e não diferença nas perguntas (LODI, 1974 apud LAKATOS, 1996). Os questionários podem ser enviados aos informantes através do correio ou de um portador. Quando isso acontece deve-se enviar uma nota explicando a natureza da pesquisa.

A entrevista estruturada ou questionário geralmente é utilizado nos censos como, por exemplo, os do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), nas pesquisas de opinião, nas pesquisas eleitorais, nas pesquisas mercadológicas, pesquisas de audiência, etc.

Algumas das principais vantagens de um questionário é que nem sempre é necessário a presença do pesquisador para que o informante responda as questões. Além disso, o questionário consegue atingir várias pessoas ao mesmo tempo obtendo um grande número de dados, podendo abranger uma área geográfica mais ampla se for este o objetivo da pesquisa. Ele garante também uma maior liberdade das respostas em razão do anonimato, evitando viéses potenciais do entrevistador. Geralmente, através do questionário, obtêm-se respostas rápidas e precisas.

Mesmo sofrendo muitas críticas o questionário continua sendo muito utilizado nas diversas áreas. Algumas desvantagens da sua utilização são: a percentagem de retorno dos questionários enviados pelo correio geralmente é pequena e quando a devolução é tardia prejudica o andamento da pesquisa. Muitas vezes há um número grande de perguntas sem respostas. Outra desvantagem é a dificuldade de compreensão da pergunta por parte do respondente quando o pesquisador está ausente.

A técnica de entrevistas abertas atende principalmente finalidades exploratórias, é bastante utilizada para o detalhamento de questões e formulação mais precisas dos conceitos relacionados. Em relação a sua estruturação o entrevistador introduz o tema e o entrevistado tem liberdade para discorrer sobre o tema sugerido. É uma forma de poder explorar mais amplamente uma questão. As perguntas são respondidas dentro de uma conversação informal. A interferência do entrevistador deve ser a mínima possível, este deve assumir uma postura de ouvinte e apenas em caso de extrema necessidade, ou para evitar o término precoce da entrevista, pode interromper a fala do informante.

A entrevista aberta é utilizada quando o pesquisador deseja obter o maior número possível de informações sobre determinado tema, segundo a visão do entrevistado, e também para obter um maior detalhamento do assunto em questão. Ela é utilizada geralmente na descrição de casos individuais, na compreensão de especificidades culturais para determinados grupos e para comparabilidade de diversos casos (MINAYO, 1993).

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As entrevistas semi-estruturadas combinam perguntas abertas e fechadas, onde o informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto. O pesquisador deve seguir um conjunto de questões previamente definidas, mas ele o faz em um contexto muito semelhante ao de uma conversa informal. O entrevistador deve ficar atento para dirigir, no momento que achar oportuno, a discussão para o assunto que o interessa fazendo perguntas adicionais para elucidar questões que não ficaram claras ou ajudar a recompor o contexto da entrevista, caso o informante tenha “fugido” ao tema ou tenha dificuldades com ele. Esse tipo de entrevista é muito utilizado quando se deseja delimitar o volume das informações, obtendo assim um direcionamento maior para o tema, intervindo a fim de que os objetivos sejam alcançados.

A principal vantagem da entrevista aberta e também da semi-estruturada é que essas duas técnicas quase sempre produzem uma melhor amostra da população de interesse. Ao contrário dos questionários enviados por correio que têm índice de devolução muito baixo, a entrevista tem um índice de respostas bem mais abrangente, uma vez que é mais comum as pessoas aceitarem falar sobre determinados assuntos (SELLTIZ et allii, 1987). Outra vantagem diz respeito à dificuldade que muitas pessoas têm de responder por escrito. Nos dois tipos de entrevista isso não gera nenhum problema, pode-se entrevistar pessoas que não sabem ler ou escrever. Além do mais, esses dois tipos de entrevista possibilitam a correção de enganos dos informantes, enganos que muitas vezes não poderão ser corrigidos no caso da utilização do questionário escrito.

As técnicas de entrevista aberta e semi-estruturada também têm como vantagem a sua elasticidade quanto à duração, permitindo uma cobertura mais profunda sobre determinados assuntos. Além disso, a interação entre o entrevistador e o entrevistado favorece as respostas espontâneas. Elas também são possibilitadoras de uma abertura e proximidade maior entre entrevistador e entrevistado, o que permite ao entrevistador tocar em assuntos mais complexos e delicados, ou seja, quanto menos estruturada a entrevista maior será o favorecimento de uma troca mais afetiva entre as duas partes. Desse modo, estes tipos de entrevista colaboram muito na investigação dos aspectos afetivos e valorativos dos informantes que determinam significados pessoais de suas atitudes e comportamentos. As respostas espontâneas dos entrevistados e a maior liberdade que estes têm podem fazer surgir questões inesperadas ao entrevistador que poderão ser de grande utilidade em sua pesquisa.

Tanto na entrevista aberta como na semi-estruturada, temos a possibilidade da utilização de recursos visuais, como cartões, fotografias, o que pode deixar o entrevistado mais à vontade e fazê-lo lembrar de fatos, o que não seria possível num questionário, por exemplo (SELLTIZ et allii, 1987).

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Quanto as desvantagens da entrevista aberta e semi-estruturada, estas dizem respeito muito mais as limitações do próprio entrevistador, como por exemplo: a escassez de recursos financeiros e o dispêndio de tempo. Por parte do entrevistado há insegurança em relação ao seu anonimato e por causa disto muitas vezes o entrevistado retém informações importantes. Essas questões são, ainda assim, melhor apreendidas pela entrevista aberta e semi-estruturada.

Vale lembrar que a qualidade das entrevistas depende muito do planejamento feito pelo entrevistador. “A arte do entrevistador consiste em criar uma situação onde as respostas do informante sejam fidedignas e válidas” ( SELLTIZ, 1987:644). A situação em que é realizada a entrevista contribui muito para o seu sucesso, o entrevistador deve transmitir, acima de tudo, confiança ao informante.

3. Sugestões de Bourdieu para a realização de entrevistas científicas

Em primeiro lugar Bourdieu (1999) indica que a escolha do método não deve ser rígida mas sim rigorosa, ou seja, o pesquisador não necessita seguir um método só com rigidez, mas qualquer método ou conjunto de métodos que forem utilizados devem ser aplicados com rigor.

Para se obter uma boa pesquisa é necessário escolher as pessoas que serão investigadas, sendo que, na medida do possível estas pessoas sejam já conhecidas pelo pesquisador ou apresentadas a ele por outras pessoas da relação da investigada. Dessa forma, quando existe uma certa familiaridade ou proximidade social entre pesquisador e pesquisado as pessoas ficam mais à vontade e se sentem mais seguras para colaborar.

O autor aconselha, na medida do possível, falar a mesma língua do pesquisado, ou seja, o pesquisador deve descer do pedestal cultural e deixar de lado momentaneamente seu capital cultural para que ambos, pesquisador e pesquisado possam se entender. Se isso não acontecer provavelmente o pesquisado se sentirá constrangido e a relação entre ambos se tornará difícil. O pesquisador deve fazer tudo para diminuir a violência simbólica que é exercida através dele mesmo.

Em algumas pesquisas são utilizados os pesquisadores ocasionais. São pessoas instruídas com técnicas de pesquisa e que têm acesso a certo grupo que se deseja pesquisar, essas pessoas devem ter uma certa familiaridade com o grupo. Esta estratégia pode ser utilizada, mas com cuidado pois, os pesquisadores ocasionais podem deixar de fornecer instrumentos mais precisos para posterior análise. Portanto, na medida do possível, o próprio pesquisador deve fazer a entrevista, afinal, é ele que melhor sabe o que está procurando.

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Durante a entrevista o pesquisador precisa estar sempre pronto a enviar sinais de entendimento e de estímulo, com gestos, acenos de cabeça, olhares e também sinais verbais como de agradecimento, de incentivo. Isto irá facilitar muito essa troca, essa relação. O pesquisado deve notar que o pesquisador está atento escutando a sua narrativa e ele deve procurar intervir o mínimo possível para não quebrar a seqüência de pensamento do entrevistado.

A entrevista deve proporcionar ao pesquisado bem-estar para que ele possa falar sem constrangimento de sua vida e de seus problemas e quando isso ocorre surgem discursos extraordinários. Bourdieu (1999) cita que os pesquisados mais carentes geralmente aproveitam essa situação para se fazer ouvir, levar para os outros sua experiência e muitas vezes é até uma ocasião para eles se explicarem, isto é, construírem seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos e sobre o mundo. Por vezes esses discursos são densos, intensos e dolorosos e dão um certo alívio ao pesquisado. Alívio por falar e ao mesmo tempo refletir sobre um assunto que talvez os reprimam. Neste caso pode-se até dizer que seja uma auto-análise provocada e acompanhada.

O pesquisador deve levar em conta que no momento da entrevista ele estará convivendo com sentimentos, afetos pessoais, fragilidades, por isso todo respeito à pessoa pesquisada. O pesquisador não pode esquecer que cada um dos pesquisados faz parte de uma singularidade, cada um deles têm uma história de vida diferente, têm uma existência singular. Portanto nada de distração durante a entrevista, precisa-se estar atento e atencioso com o informante. Além disso, ao realizar o relatório da pesquisa é dever do pesquisador se esforçar ao máximo para situar o leitor de que lugar o entrevistado fala, qual o seu espaço social, sua condição social e quais os condicionamentos dos quais o pesquisado é o produto. Tem que ficar claro para o leitor a tomada de posição do pesquisado.

Durante todo o processo da pesquisa o pesquisador terá que ler nas entrelinhas, ou seja, ele tem que ser capaz de reconhecer as estruturas invisíveis que organizam o discurso do entrevistado. Dessa forma, durante a entrevista o pesquisador precisa estar alerta pois, o pesquisado pode tentar impor sua definição de situação de forma consciente ou inconsciente. Ele também poderá tentar passar uma imagem diferente dele mesmo.

A presença do gravador, como instrumento de pesquisa, em alguns casos pode causar inibição, constrangimento, aos entrevistados. Em outros casos o pesquisado poderá assumir um papel que não é o seu, assumir um personagem que nada tem a ver com ele, ou seja, ele pode incorporar o personagem que ele acha que o pesquisador quer ouvir. Sendo assim, consciente ou inconscientemente o pesquisado estará tentando enganar o pesquisador.

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Em relação à atuação ou postura do entrevistador no momento da entrevista

este não deve ser nem muito austero nem muito efusivo, nem falante demais, nem

demasiadamente tímido. O ideal é deixar o informante à vontade, a fim de que não

se sinta constrangido e possa falar livremente.

Uma entrevista bem sucedida depende muito do domínio do entrevistador sobre as questões previstas no roteiro. O conhecimento ou familiaridade com o tema evitará confusões e atrapalhos por parte do entrevistador, além disso, perguntas claras favorecem respostas também claras e que respondem aos objetivos da investigação.

Bourdieu (1999) também aponta algumas sugestões para com a transcrição da entrevista que é parte integrante da metodologia do trabalho de pesquisa. Uma transcrição de entrevista não é só aquele ato mecânico de passar para o papel o discurso gravado do informante pois, de alguma forma o pesquisador tem que apresentar os silêncios, os gestos, os risos, a entonação de voz do informante durante a entrevista. Esses “sentimentos” que não passam pela fita do gravador são muito importantes na hora da análise, eles mostram muita coisa do informante. O pesquisador tem o dever de ser fiel, ter fidelidade quando transcrever tudo o que o pesquisado falou e sentiu durante a entrevista.

O autor também considera como dever do pesquisador a legibilidade, ou seja, aliviar o texto de certas frases confusas de redundâncias verbais ou tiques de linguagem (né, bom, pois é, etc). Este autor também considera como um dever do pesquisador tomar o cuidado de nunca trocar uma palavra por outra, nem mesmo mudar a ordem das perguntas. Portanto considera-se ideal que o próprio pesquisador faça a transcrição da entrevista.

Na visão de Bourdieu (1999), o sociólogo deve fazer às vezes do parteiro, na maneira como ele ajuda o pesquisado a dar o seu depoimento, deixar o pesquisado se livrar da sua verdade. Este autor considera que a entrevista é um exercício espiritual, é uma forma do pesquisador acolher os problemas do pesquisado como se fossem seus. É olhar o outro e se colocar no lugar do outro. Portanto o sociólogo deve ser rigoroso quanto ao seu ponto de vista, que não deixa de ser um ponto de vista de um outro ponto de vista, o do entrevistado.

Goldenberg (1997) assinala que para se realizar uma entrevista bem sucedida é necessário criar uma atmosfera amistosa e de confiança, não discordar das opiniões do entrevistado, tentar ser o mais neutro possível. Acima de tudo, a confiança passada ao entrevistado é fundamental para o êxito no trabalho de campo. Além disso, existe um código de ética do sociólogo que deve ser respeitado.

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Considerações finais

O objetivo deste artigo não era o de discorrer amplamente sobre as técnicas de pesquisa que apresentamos pois, consideramos que vários autores tratam deste tema com muito mais propriedade. A intenção era tornar possível algumas confrontações entre as diferentes formas de entrevista e mostrar que todas trazem limitações sobre as quais o pesquisador deve estar cauteloso tentado evitá-las se for possível. Conforme enfatizamos antes, cada instrumento de coleta de dados deve estar intimamente ligado ao problema da pesquisa. Porém para nós cientistas sociais o grande dilema é saber qual deles melhor se ajusta na compreensão do fenômeno que estamos pretendendo pesquisar.

Por fim é preciso considerar que este artigo está tratando de metodologia e conforme Bourdieu (1998) assinala, os procedimentos da pesquisa parecem estar antecedendo à prática apenas pelo fato de que foram definidos de antemão, mas de fato eles foram definidos com a prática. Ele lembra também, citando Nietzsche, que os sacerdócios vivem do pecado... De maneira semelhante acrescentamos: os gramáticos vivem dos erros, assim como os metodólogos... Ele mesmo, como sociólogo faz uma relativização da função do metodólogo, ou seja, do especialista em metodologia. Por isso mesmo os manuais de metodologia tanto enfatizam o fazer correto, mas deve-se ter consciência de que esse correto é algo construído e que também é dado historicamente.

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GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar - como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1997.

HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias qualitativas na Sociologia. 5a edição. Petrópolis: Vozes, 1997.

LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade. Técnicas de pesquisa. 3a edição. São Paulo: Editora Atlas, 1996.

LUNA, Sérgio Vasconcelos de. Planejamento de pesquisa: uma introdução. 2a edição. São Paulo: EDUC, 1999.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento científico: pesquisa qualitativa em saúde. 2a edição. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, 1993.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (org). Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. 6a Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.

SELLTIZ, Claire et allii. Métodos de pesquisa nas relações sociais. Tradução de Maria Martha Hubner de Oliveira. 2a edição. São Paulo: EPU, 1987.

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(1):17-27, jan, 2008

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Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas

Saturation sampling in qualitative health research: theoretical contributions

1 Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil.2 Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.3 Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.

CorrespondênciaB. J. B. FontanellaDepartamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos.Rodovia Washington Luís, Km 235, São Carlos, SP 13565-905, [email protected]

Bruno José Barcellos Fontanella 1

Janete Ricas 2

Egberto Ribeiro Turato 3

Abstract

The transparency and clarity of research reports, emphasizing the data collection stage, are con-sidered important parameters for evaluating the scientific rigor of qualitative studies. The current paper aims to analyze the use of satura-tion sampling as a methodological concept, fre-quently employed in descriptions of qualitative studies in various areas of knowledge, particu-larly in the field of health care. We discuss and confront the following topics: definition of sam-pling closure by theoretical saturation; difficul-ties in the acceptance and operationalization of intentional samples (with examples), adequate size of the intentional sample, the significance of valuing what is repeated or the differences contained in the sample reports, inadequate us-es of expressions containing the term saturation, and finally possible metaphors for understand-ing the concept.

Sampling Studies; Qualitative Research; Meth-odology

Introdução

Amostragem por saturação é uma ferramenta conceitual freqüentemente empregada nos re-latórios de investigações qualitativas em dife-rentes áreas no campo da Saúde, entre outras. É usada para estabelecer ou fechar o tamanho final de uma amostra em estudo, interrompendo a captação de novos componentes. Objetivamos, neste artigo, refletir criticamente sobre alguns fundamentos metodológicos e técnicos de seu emprego.

O fechamento amostral por saturação teórica é operacionalmente definido como a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou re-petição 1, não sendo considerado relevante per-sistir na coleta de dados. Noutras palavras, as in-formações fornecidas pelos novos participantes da pesquisa pouco acrescentariam ao material já obtido, não mais contribuindo significativa-mente para o aperfeiçoamento da reflexão teó-rica fundamentada nos dados que estão sendo coletados. Esta conotação/definição já vinha presente no texto que parece ter inaugurado o uso da expressão saturação teórica (theoretical saturation) 2.

No entanto, é necessário problematizá-la porque, embora possa parecer um procedimento decorrente de uma constatação facilmente atin-gível, muitas vezes a averiguação de saturação

ARTIGO ARTICLE

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pode ser feita de maneira acrítica ou excessiva-mente subjetivista. No extremo, o emprego da ex-pressão pode se apoiar apenas no consenso que atualmente existe, entre os pesquisadores quali-tativistas, sobre a propriedade de utilização deste recurso metodológico, faltando, entretanto, sufi-ciente discriminação quanto ao seu significado, ferindo assim a transparência da investigação.

Glaser & Strauss 2 originalmente conceitua-ram saturação teórica como sendo a constatação do momento de interromper a captação de in-formações (obtidas junto a uma pessoa ou gru-po) pertinentes à discussão de uma determinada categoria dentro de uma investigação qualitativa sociológica. Na expressão dos autores, tratar-se-ia de uma confiança empírica de que a categoria está saturada, levando-se em consideração uma combinação dos seguintes critérios: os limites empíricos dos dados, a integração de tais dados com a teoria (que, por sua vez, tem uma deter-minada densidade) e a sensibilidade teórica de quem analisa os dados.

Amostragem como fonte de validação das pesquisas

A importância do estudo dos processos de amos-tragem relaciona-se estreitamente ao conceito de validade científica 3. Sem dúvida, a forma de constituição de um subconjunto supostamen-te representativo do contexto sob investigação (isto é, da realidade empírica pesquisada) é um importante recurso de validação de estudos científicos, uma vez que os dados a serem traba-lhados emergem fundamentalmente – embora parcialmente – dos elementos que compõem tal subconjunto. A constituição desse subconjunto transcorre paralelamente à de outros elemen-tos cruciais de validação científica: o desenho da pesquisa (seja experimental ou de campo), o recorte do objeto e formulação do problema, a formulação dos pressupostos ou hipóteses, a escolha dos instrumentos de coleta de dados e os quadros de referenciais teóricos de interpretação dos resultados.

O supracitado advérbio “parcialmente” lem-bra que o campo de observação não é a fonte exclusiva dos achados e explica-se pelos ques-tionamentos sobre o que seriam as essências dos diferentes objetos científicos, suas propriedades e determinações básicas, bem como das possi-bilidades de conhecimento sobre eles, ou seja, por questões de natureza ontológica. Tais pro-priedades, determinações e conhecimentos são organizados psicológica e socioculturalmente, sendo impossível desconsiderar que os dados não advêm passivamente da realidade, mas são

construídos a partir de conceitos prévios do pes-quisador 4.

Os diferentes paradigmas científicos com-portam e prescrevem diferentes tipos de cons-trução de amostras. Aquelas utilizadas nas pesquisas qualitativas são, talvez, as mais con-troversas aos olhos de leitores e pesquisadores acostumados às ciências de inspiração positi-vista, historicamente hegemônicas na produ-ção científica na área da saúde. Tais ciências supõem que o fato existe por si, cabendo ao observador descrevê-lo e enunciar seus nexos causais, não importando a imaginação e outras questões subjetivas na elaboração das teorias na consciência do cientista.

Amostragens intencionais são válidas?

Nesta linha argumentativa, são comuns as as-serções de que as amostras não probabilísticas não são subconjuntos suficientemente represen-tativos da realidade empírica em foco e das po-pulações estudadas, porque suas características inviabilizariam um tratamento estatístico dos resultados, de modo a permitir sua generaliza-ção. A aplicação ficaria, assim, limitada à própria amostra (isto é, teria uma baixa validade externa, embora com adequada validade interna) 5,6.

Esse tipo de argumento enfatiza, a nosso ver equivocadamente, a idéia de que a represen-tatividade é alcançada apenas por algo como uma imagem em tamanho reduzido do contex-to, tomado como tendo seus atributos homo-geneamente distribuídos no universo de seus componentes. Bastaria, por isso, selecionar ale-atoriamente um número suficiente deles para evitar, estatisticamente, que as exceções fossem tomadas como regra.

Essa visão não valoriza o fato de que, quan-do se trata de questões psicossociais do ser hu-mano, o desempenho de um atributo, mesmo que de maneira superdimensionada por indiví-duos típicos quanto a determinado parâmetro em investigação (e, talvez por isso mesmo, es-peciais candidatos a serem selecionados), re-vele funções ou características representativas daquele mesmo contexto. Por exemplo, em um estudo sobre crenças que sustentam as práti-cas curativas alternativas de uma comunidade rural, poderiam ser entrevistados, como infor-mantes-chave, uma benzedeira, um raizeiro e um curandeiro aos quais a comunidade recor-resse. As crenças que sustentam suas práticas estariam difundidas na comunidade, mas con-centradas nestes indivíduos.

A despeito desse tipo de crítica, a maioria dos estudiosos de metodologia científica prevê o em-

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prego de amostras não probabilísticas, depen-dendo dos objetivos da investigação.

Já sob a ótica dos pesquisadores que utili-zam métodos compreensivo-interpretativos – ou qualitativos – os processos não probabilísticos de amostragem também podem representar uma fase difícil de planejar e empreender. Tais dificuldades muitas vezes parecem se relacionar à fundamentação teórica que constrói o objeto em investigação e, portanto, quais os indivíduos mais adequados para serem incluídos na amos-tra (ou seja, a adequação da amostra ao objeto de estudo). Para garantir qualidade às pesquisas qualitativas, é necessário congruência entre os paradigmas teóricos (que fundamentam a defi-nição do objeto e a formulação do problema) e os métodos e técnicas empregados (para abordar a realidade empírica) 7.

Em termos operacionais, a questão que orien-ta a amostragem não probabilística relaciona-se à homogeneidade fundamental 8,9 que deveria estar presente na amostra, isto é, aos atributos definidos como essenciais, presentes na inter-secção do conjunto de características gerais dos componentes amostrais. Ocorrida essa defini-ção, a escolha dos elementos amostrais advirá de um caminho mais prático, na dependência direta dos objetivos da investigação, pois a um mesmo objeto podem corresponder diferentes objetivos de pesquisa.

O objeto, os objetivos e os componentes da amostra

Para esclarecimento, citemos um exemplo hipo-tético:

Trabalhando em hospital para pacientes com tuberculose, um pesquisador preocupado com adesão ao tratamento (→ objeto de pesquisa) ve-rifica que a maioria dos casos internados relacio-na-se à reagudização do quadro clínico, aparen-temente relacionada ao abandono de tratamento proposto (→ problema delimitado).

Um exemplo de questionamento central a ser investigado poderia ser assim redigido: “Que fatores o paciente associa ao fenômeno de sua não-adesão ao tratamento e que sentidos psico-lógicos e socioculturais tais motivos têm para si?” (→ problema formulado).

As hipóteses poderiam ser as mais variadas: dificuldades objetivas de acesso ao tratamento (físicas, sociais, econômicas, relacionais etc.), efeitos colaterais percebidos como da medica-ção, falta de motivação psicológica (por não acre-ditar na eficácia, não acreditar que conseguiria seguir à risca o tratamento, não desejar se curar, ou ainda, querer morrer ou contaminar outras

pessoas), co-morbidade psiquiátrica que difi-cultasse a persistência no tratamento, negação psicológica da doença, família não colaboradora, unidades de saúde com falha na gestão do cuida-do, entre outras.

Diante do problema e das hipóteses, o pes-quisador decide, então, entrevistar indivíduos ou realizar grupos focais, isto é, elege uma técnica de coleta de dados. A questão que se segue é: quais devem ser os participantes?

Neste ponto da elaboração do projeto de pesquisa, pensa-se nos seguintes subgrupos que poderiam fornecer dados para responder ao pro-blema formulado:• pacientes sem adesão ao tratamento e hospi-talizados por esse motivo;• pacientes sem adesão ao tratamento, mesmo não hospitalizados;• pacientes com boa adesão ao tratamento, mas que poderiam relatar as dificuldades práticas pa-ra manterem o seguimento ambulatorial;• familiares desses pacientes;• profissionais de saúde que sabem informar estas questões pela experiência acumulada na abordagem dessa clientela.

Como referido, o subgrupo que constituirá a amostra não poderá ser casualmente escolhi-do, porque deve corresponder ao objeto de pes-quisa, já que este é o mesmo e está presente em todos os subgrupos (adesão ao tratamento para tuberculose). A escolha deverá recair no subgru-po que melhor atender aos objetivos específicos da pesquisa. Estes, por sua vez, dependem dos pressupostos e dos limites que se quer dar ao es-tudo. Pode-se escolher conhecer especificamen-te o ponto de vista dos agentes comunitários, ou de outros trabalhadores da saúde, ou da família, ou do paciente que não abandonou ou do que abandonou etc.

Portanto, embora o recorte do objeto deter-mine indiretamente os componentes amostrais, estes são mais especificamente definidos pelos objetivos. Na situação exemplificada, aceitando-se que o objeto-tema é adesão ao tratamento da tuberculose, a amostra deveria ser constituída por quem tem um discurso sobre o assunto, se-jam profissionais de saúde, agentes comunitá-rios, familiares e amigos, sejam, evidentemente, os próprios doentes.

Tamanho adequado da amostra intencional

Até aqui, discutimos a primeira de duas pergun-tas que devem ser feitas na busca de uma amostra adequada aos objetivos de uma pesquisa: quem selecionar? Outra pergunta crucial é: quantos se-

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lecionar? Isto é, qual o tamanho do grupo desses sujeitos.

Nos estudos qualitativos, a questão “quan-tos?” nos parece de importância relativamente secundária em relação à questão “quem?”, em-bora, na prática, representem estratégias inse-paráveis. Afinal, o que há de mais significativo nas amostras intencionais ou propositais não se encontra na quantidade final de seus elementos (o “N” dos epidemiologistas), mas na maneira como se concebe a representatividade desses elementos e na qualidade das informações ob-tidas deles.

Apesar desta importância secundária, o esta-belecimento de um número amostral fechado é inevitável (como em qualquer empreendimento investigativo não censitário). Um erro metodo-lógico no estabelecimento desse número final pode comprometer a credibilidade dos achados e das análises realizadas 10.

Nas pesquisas qualitativas, de qualquer for-ma, este fechamento amostral ocorrerá por cri-térios de seleção que não consideram mensura-ções das ocorrências estudadas, ao contrário das pesquisas quantitativas que, ao utilizarem amos-tragem probabilística, não devem prescindir des-ta caracterização ao calcularem o “N” adequado aos cálculos estatísticos.

Diferentemente das pesquisas quantitativas, a seleção dos elementos amostrais em pesqui-sas qualitativas não decorre da mensuração da distribuição de categorias como nos estudos matematizados de características clínicas e bio-sociodemográficas (como diagnósticos no-sográficos, perfis de personalidade, eficácia de terapêuticas medicamentosas, idade, sexo, pro-cedência, tipo de moradia, situação conjugal, escolaridade etc.). Isso não é necessário porque os critérios a que os estudos qualitativos visam não obedecem aos mesmos padrões de distri-buição de parâmetros biológicos ou dos fenô-menos naturais em geral. A seleção dos elemen-tos decorre, sobretudo, da preocupação de que a amostra contenha e espelhe certas dimensões do contexto 8, algumas delas em contínua cons-trução histórica.

A desnecessária representatividade estatísti-ca é um dos motivos pelos quais as amostras qua-litativas são menores do que as necessárias nos estudos quantitativos. No entanto, a necessidade de “fechamento” amostral exige do pesquisador a explicitação dos critérios para interromper a seleção de casos novos, tornando-os inteligíveis aos futuros leitores dos relatórios e norteadores do andamento prático dos procedimentos de captação.

Variadas são as técnicas para realizar uma amostra intencional, tendo Patton 11 listado mais

de uma dezena de possibilidades – porém seu fechamento freqüentemente se dará por redun-dância de informações ou saturação, tema maior da presente discussão.

Outras técnicas de interrupção de captação de elementos amostrais podem ser confundi-das com a técnica da saturação. Foge do esco-po deste artigo discuti-las, não obstante serem freqüentemente empregadas: o fechamento por exaustão (em que são incluídos todos os indi-víduos disponíveis) e por cotas (em que se pré-determina a necessidade de contemplar algu-mas características secundárias dos elementos amostrais – faixa etária e sexo, por exemplo, cujos indivíduos que as retêm serão deliberadamente procurados). Em nenhuma delas há a procura apriorística por seguir uma lógica probabilística, ainda que os participantes da pesquisa possam advir de uma seleção desse tipo. Quando, por exemplo, num mesmo grande empreendimento de pesquisa convivem projetos de tratamentos quantitativos e qualitativos, a praticidade pode fazer que a fonte de recrutamento dos sujeitos seja a seleção randômica (por exemplo, no estu-do de Loyola Filho et al. 12).

Saturação: exemplo operacional de como constatar

A avaliação da saturação teórica a partir de uma amostra é feita por um processo contínuo de análise dos dados, começado já no início do processo de coleta. Tendo em vista as questões colocadas aos entrevistados, que refletem os ob-jetivos da pesquisa, essa análise preliminar busca o momento em que pouco de substancialmente novo aparece, considerando cada um dos tópicos abordados (ou identificados durante a análise) e o conjunto dos entrevistados.

Propomos na Tabela 1 uma representação es-quemática de um processo de coleta de informa-ções, em que os participantes apresentam suas percepções e atribuições de significados sobre determinado tópico.

Note-se que nenhum dos discursos é igual a outro, no entanto todos apresentam elementos comuns com algum outro. No início, os acrés-cimos aos anteriores são evidentes. Posterior-mente, os acréscimos vão se rareando até que deixam de aparecer a partir da entrevista 9. Após mais seis entrevistas confirmou-se a re-petição.

Nesse momento, poderíamos dizer que o discurso do grupo amostral sobre o tópico em questão era {a,b,c,d,e,f,g,h,i,j,k,l}. Seria imprová-vel que novas idéias aparecessem, mesmo que chegássemos ao dobro das entrevistas.

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Entretanto, se na entrevista 25 aparecesse o conjunto de informações {r,t,z}, poderíamos supor que o informante pertence a outro grupo cultural ou que está à margem de sua cultura (po-dendo, por exemplo, ser considerado portador de graves problemas mentais, ou um sujeito cuja particular visão de mundo aponta para uma ten-dência futura do grupo). Não sendo uma desco-berta deste tipo o nosso objetivo, poderíamos ter parado na entrevista 15 ou 13.

Expomos na Tabela 2 uma análise preliminar de entrevistas de um estudo qualitativo sobre adesão de pais de crianças deficientes ao trata-mento, em realização na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A categoria em questão é “sentimentos dos pais diante da constatação de ter um filho deficiente”.

Obsserve-se que a entrevista 2 acrescenta bastante à primeira, mas a 3 e 4 já acrescentam menos, considerando o conjunto de informa-ções obtidas na duas primeiras. Daí por diante,o acréscimo ou não existe ou é considerado peque-no. Diante disso, existe uma possibilidade de que a saturação tenha ocorrido com relação a este objetivo nas 11 primeiras entrevistas, o que pode e deve ainda ser confirmado com mais entrevis-tas, talvez uma ou duas.

Os sentimentos de tristeza, negação, deses-pero, decepção, susto, frustração, medo, revolta, vergonha, rejeição, culpa, resignação, aceitação com o passar do tempo e desenvolvimento de apego excessivo são os que o grupo manifesta diante dessa vivência, ou permite que o pesqui-sador infira estarem presentes. Com esse conjun-to de dados, este poderá considerar ter elementos suficientes para novas e substanciais elaborações teórico-conceituais sobre a categoria em ques-tão, aprofundando o conhecimento sobre o tema geral investigado.

Porém, se também for de seu interesse a for-ma como tais sentimentos são expressos pelos informantes (por exemplo, que comportamentos pregressos são associados pelos informantes a esses sentimentos), a pré-análise em busca de saturação deve recomeçar. Para esta nova cate-goria, e para as demais que sejam elaboradas, a saturação poderá ocorrer em outro ponto do pro-cesso de coleta de dados, não necessariamente na entrevista 11.

Note-se que tratamos neste exemplo de uma pré-categoria, pois, diante do objeto de pesqui-sa “adesão de pais de deficientes ao tratamento”, é de certa forma previsível que os sentimentos vivenciados pelos participantes da amostra ve-nham a se constituir como uma categoria de aná-lise ou mesmo um objetivo específico do estudo.

Tabela 1

Representação de um processo de coleta de informações (atribuições de signifi cados quanto

ao tema “X”).

Entrevistado Conteúdo manifesto do entrevistado ou inferido pelo pesquisador

1 Afirma pensar: a,b,c,d

2 Relata ter vivenciado: c,e,f

3 Sugere a possibilidade de: a,d,g

4 Relata saber: f,g,d

5 Opina não ser possível: h,b,d,k

6 Refere acreditar: f,b,c,h

7 Já conversou a respeito: c,i,g

8 Permite inferências sobre: b,c,d,j,f,k

9 Relata ter vivenciado: k,d,b,c,h,l

10 Já pensou, não acredita mais: d,h

11 Afirma pensar: a,d,f,c,h,l

12 Relata ter vivenciado: a,b,j,l,h

13 Permite inferências: l,f,a

14 Relata ter vivenciado: f,d,l,a,c,k

15 Relata ter vivenciado: c,f,b,h

Tabela 2

Análise preliminar de entrevistas de estudo sobre adesão de pais de crianças defi cientes ao

tratamento (categoria: sentimentos relatados e vivenciados).

Entrevistado Conteúdo manifesto do entrevistado ou inferido pelo pesquisador

1 Permite inferências: negação

Relata ter vivenciado: resignação

Opina ser possível: aceitação com o passar do tempo

2 Relata ter vivenciado: desespero, decepção, susto, frustração, medo

Sugere a possibilidade: desenvolvimento de apego excessivo

3 Relata ter vivenciado: desespero, medo, resignação, aceitação com

o passar do tempo

4 Relata ter vivenciado: desespero, decepção, susto, frustração,

revolta

5 Não acrescenta

6 Relata ter vivenciado: vergonha, resignação

Opina ser possível: rejeição

7 Relata ter vivenciado: tristeza, medo

8 Não acrescenta

9 Não acrescenta

10 Relata ter vivenciado: tristeza, vergonha

Permite inferências: culpa

11 Não acrescenta

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Indo a campo sem pré-categorias

Diferentemente deste exemplo, há situações em que o pesquisador vai a campo sem pré-catego-rias explicitadas. É o caso de estudos com um caráter exploratório ainda mais marcante, nos quais a população é desconhecida, e não existem problemas ou objetivos específicos nitidamente delimitados, tampouco hipóteses ou pressupos-tos claramente definidos.

Este pode ser o caso de muitos estudos etno-gráficos na área da saúde, os quais pressupõem a imersão parcial ou total do pesquisador na cultura abordada. Dos fenômenos observados, reportados e vivenciados, ele fará necessaria-mente, mesmo que não intencionalmente, um recorte, que constituirá o seu relato e será objeto de suas reflexões, constituindo objetivos decla-rados a posteriori. Esses objetivos, embora não anteriormente explicitados ou discerníveis, já faziam parte ou então passaram a fazer parte do estudo, à medida que este se desenvolveu.

Numa situação desse tipo, o pesquisador provavelmente não interromperia sua busca en-quanto novas explicações, significados ou visões de mundo estivessem surgindo sobre os assuntos e fatos focalizados. Diante disso, diríamos que o pesquisador sempre virá a julgar, mesmo de for-ma não intencional, se houve saturação teórica dos significados, representações e simbolizações que a cultura estudada atribui aos fenômenos focados.

Empregos polêmicos de saturação

Consideramos cabível, neste ponto, comentar alguns empregos polêmicos do termo saturação. Eles têm sido observados por nós, algumas vezes, em situações de exposição oral de argumentos em eventos ou reuniões científicas e em relató-rios escritos (artigos e teses).

Primeiramente, o termo pode assumir uma conotação que sugere que o pesquisador ficou saturado, ou seja, farto de entrevistar e ouvir respostas semelhantes, resolvendo então in-terromper a coleta de dados. Caso ocorra, tal fenômeno estaria situado na esfera mental do pesquisador e não seria, obviamente, um parâ-metro metodológico para encerrar a captação de novos elementos. Tratar-se-ia possivelmente de um estado de impaciência, reflexo de uma predisposição para perceber somente alguns fenômenos 10, talvez mais aderidos à realidade empírica.

Por outro lado, o eventual emprego da expres-são pesquisador saturado pode corresponder a uma figura de linguagem referente à percepção,

avaliação e tratamento mental dos dados pelo pesquisador com base em seu escopo teórico e que, a partir deste, julga-os já suficientes.

Um segundo emprego controverso, e talvez equivocado, refere-se à expressão amostra sa-turada quando, na prática, o fechamento amos-tral se deu por exaustão (os participantes foram todos os que faziam parte do universo definido pelo pesquisador). No estudo de Goulart et al. 13, por exemplo, sobre as representações das mães quanto ao processo de morte de seus filhos no primeiro ano de vida, num bairro de Belo Hori-zonte, Minas Gerais, todas aquelas cujos filhos faleceram num determinado período foram en-trevistadas. Neste caso, a palavra utilizada para descrever seu fechamento não parece corres-ponder ao efetivamente realizado. É possível, porém, que uma amostra fechada por exaustão seja suficiente para saturar algumas ou todas as categorias formuladas pelo pesquisador. Tratar-se-ia, no entanto, de uma constatação de satu-ração não decorrente do próprio processo de pesquisa.

A expressão “pouco a acrescentar” pode igualmente ser problematizada: o que seriam “poucos” dados novos ou “certa reincidência das informações” 8, as quais justificariam a interrup-ção de coleta de dados?

“Pouco a acrescentar” toma como referência aquilo que o pesquisador objetivou atingir, um certo grau de aperfeiçoamento teórico da discus-são de uma categoria. O conteúdo das respostas dos informantes às questões formuladas (e im-plícitas nos objetivos) “pouco acrescentam” a tal aperfeiçoamento. Contudo, outro pesquisador ou o mesmo, achando necessário aprofundar a discussão ou se apoiando em referenciais teóri-cos diferentes, podem sentir que necessitam de mais ou de outros dados.

Além disso, dependendo dos objetivos da investigação, no momento em que fica bem caracterizado que um determinado conjunto de percepções a partir da amostra é repetitivo, as diferenças que venham a se apresentar po-dem ser mais valorizadas e exploradas. Pode ser um momento de questionar sobre um possível movimento que esteja levando o pesquisador a simplificar excessivamente sua análise. Ca-sos desviantes ajudariam a melhor demarcar a extensão das análises, apontando seus limites, e uma maior variedade da representação (in-cluindo esses casos extremos ou negativos, ma-ximizando a representação de grupos numerica-mente minoritários da população em estudo 14) mostraria o compromisso com a transparência da investigação.

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Valorizar o que se repete ou as diferenças?

Observe-se, então, que o fechamento da amos-tra resulta de um balanço que o pesquisador faz sobre valorizar, no conjunto das informações obtidas, as diferenças ou, em contraposição, o que se repete. Isso leva à reflexão sobre a relação indivíduo-grupo e sobre qual desses aspectos a abordagem teórica do pesquisador privilegia.

Segundo os teóricos da Análise do Discurso, lê-se na fala de um indivíduo o discurso do grupo e o seu próprio discurso 15. Diz-se “seu próprio discurso” não no sentido de ter sido construí-do fora de um contexto histórico e interacional, independente das condições de sua produção e das determinações históricas e sociais de sua formação, mas no sentido da forma original pe-la qual esse discurso mais amplo foi assimilado e organizado pelo indivíduo. As diferenças (o que se percebe como individualizações da fala) seriam as nuances que a linguagem adquire ao ser assimilada às vivências pessoais e aos con-tornos que o enunciado adquire, determinados pelas condições imediatas da enunciação. Tais condições imediatas (onde se diz, de onde se diz e para quem se diz) definem para o sujeito o que pode, o que deve e como pode ser dito naquele momento e situação. Mas as possibilidades de um indivíduo dizer são limitadas pelo tempo e espaço social a que pertence, o que o leva a ser identificado, pelo observador, como pertencente a um determinado grupo.

Dessa forma, as semelhanças predomi-nantemente indicarão, na perspectiva social, o discurso do grupo, da formação social à qual pertence o sujeito ou, na perspectiva psicana-lítica, as estruturas do aparelho psíquico mais universais ou gerais. Por sua vez, as diferenças marcarão as vivências pessoais e as condições imediatas de produção da fala, podendo incluir os fenômenos ditos transferenciais na relação com pesquisador ou com a instituição onde a pesquisa é conduzida.

Logo, a constatação de saturação depende dos objetivos do pesquisador: se ele tem como objetivo a captação daquilo que caracteriza o grupo, a saturação amostral se dá num deter-minado nível. Este nível poderá garantir maior validade externa, ou seja, maior transferibilida-de das interpretações para contextos mais am-plos. Porém, se lhe interessa o conhecimento aprofundado do sujeito, essa saturação poderá, hipoteticamente, nunca ocorrer. Buscar-se-ia, neste último caso, uma maior validade interna das interpretações, ou seja, um aprofundamento nos sujeitos que compõem a amostra, sem a pre-ocupação precípua de ampla generalização. Tal

aprofundamento pode corresponder a diferentes fenômenos, de acordo com a linha teórica adota-da. Em sociologia, por exemplo, corresponderia à investigação dos modos como se concretizam, nos indivíduos, os comportamentos inerentes à estrutura de uma sociedade 16. Em psicanálise, por seu turno, corresponderia à investigação da dinâmica transferencial ímpar entre um entre-vistado e um pesquisador 17.

Considerando um mesmo estudo, diferentes tipos de informações e objetivos específicos terão diferentes momentos de saturação. Por exemplo, numa pesquisa sobre acidente escolar, da qual um de nós participou (J. R.) 18, considerou-se que todos os conceitos sobre o que é acidente apare-ceram nas primeiras 11 de um total 17 entrevistas realizadas com coordenadores de escolas de en-sino fundamental. Já as diferentes atribuições de responsabilidade sobre a prevenção de acidente apareceram nas 13 primeiras. A maior ou menor homogeneidade da amostra no que diz respeito à cultura, tradição, gênero, faixa etária, experiên-cia vivida etc., também influenciará o momento de saturação. No estudo citado, sendo todos os entrevistados profissionais de escolas privadas, de classes sócio-econômicas média e alta, presu-me-se que a saturação tenha ocorrido mais rapi-damente do que se tivessem sido entrevistados também coordenadores de escolas públicas de bairros pobres. Uma amostra constituída somen-te de jovens adultos diabéticos, com o objetivo de captar representações relativas à restrição de alimentos, estaria saturada mais rapidamente do que se lá inseríssemos jovens adultos não diabé-ticos, e assim por diante.

Num extremo deste raciocínio, estaria um processo de amostragem que não se satura ou que “satura o pesquisador”. Seria o caso, por exemplo, se resolvêssemos pesquisar em profundidade as vivências de luto pela perda de um filho, obtendo histórias de vida tópicas de pessoas que vivencia-ram essa perda. Em tese, tantas seriam as formas quantos seriam os indivíduos.

Consideramos, então, que, dependendo do objeto ou do problema focalizado, diferentes níveis de abrangência do contexto investigado são requeridos, na tentativa de captar os dife-rentes tipos ou níveis de simbolização presentes nas manifestações individuais dos participantes de uma pesquisa: número de indivíduos repre-sentantes desse contexto, diferentes tempos de duração de entrevista ou capacidades de insight dos entrevistados, assim como diferentes níveis de aprofundamento interpretativo por parte do pesquisador. Por exemplo, em pesquisa sobre vi-vências emocionais a respeito de determinado problema de saúde, dependendo do nível focado, nova entrevista com um mesmo sujeito pode ser

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necessária para que o pesquisador conclua a res-peito de determinado mecanismo de defesa uti-lizado pelo entrevistado que, por sua vez, poderia também precisar de mais tempo para tornar tal mecanismo evidente.

Abrangência da generalização

Do primeiro exemplo mencionado (acidente es-colar), teríamos resultados que se aplicariam ao grupo como um todo e, mesmo que parcialmen-te, a cada indivíduo. A generalização se apoiaria na análise das semelhanças históricas, sociais e culturais entre o grupo estudado e o foco da aplicação. Do segundo caso (luto), quanto mais aprofundássemos, mais teríamos resultados que se restringiriam aos indivíduos pesquisados. A generalização possível, aqui, apoiar-se-ia na ava-liação caso a caso dos sujeitos que compuseram a amostra e no julgamento dos leitores do relatório de pesquisa sobre a plausibilidade de aplicação dos resultados apresentados em casos e settings específicos. Essas diferenças nos remetem nova-mente à afirmação de que saturar ou não, bem como o momento em que isto acontece, depende dos objetos e dos objetivos do pesquisador.

Recurso a metáforas para compreender saturação

Com base no exposto, parece inerente à técnica de fechamento amostral por saturação um cer-to grau de imprecisão ou aproximação quanto a um número ideal de componentes. Isto é exem-plificado pelo simples fato de que a constatação de redundância de informações depende dire-tamente de certa quantidade de entrevistas re-alizadas posteriormente à saturação. Assim, o ponto exato de saturação amostral é determi-nado, logicamente, sempre a posteriori, embora sua ocorrência tenha sido prevista no desenho da pesquisa.

Na medida em que as ferramentas utilizadas na constatação de saturação não são de ordem matemática, e sim cognitiva (envolvendo a per-cepção do pesquisador e seu domínio teórico), vários parecem ser os fatores que intervêm nesse processo, podendo influenciar a decisão de in-terromper o recrutamento da amostra por con-siderá-la saturada, usando agora a expressão no sentido de “amostra completa”. Cabe ressaltar, ainda, que qualquer projeto de pesquisa se insere num contexto que extrapola questões puramen-te metodológicas, situando-se num determina-do contexto político de produção científica. Os objetivos de pesquisa inserem-se também neste

contexto mais amplo e, como vimos, eles influen-ciam diretamente todos os aspectos do processo de amostragem.

Para ilustração desses fatores, alguns deles imponderáveis, comparamos a saturação, nesse sentido amplo, ao conceito de saturação na área físico-química. Recorremos ao auxílio de metá-foras advindas desta área do conhecimento que, ao que nos parece, encontram-se implícitas já na origem da formulação do conceito de saturação teórica 2.

Nesta área do conhecimento, o termo satura-ção é empregado para descrever comportamen-tos de materiais (solutos) transferidos para um meio específico (solvente): uma solução está sa-turada quando a concentração do soluto é a má-xima possível para as determinadas condições físico-químicas do solvente (temperatura e pres-são, por exemplo). Outra possibilidade de empre-go físico-químico dessa expressão se dá quando um determinado material gasoso se encontra em equilíbrio com seu estado líquido, sendo impos-sível uma transferência maior de um estado para outro, também em determinadas condições.

Dir-se-ia, portanto, que o processo de coleta de dados se satura quando há a percepção de que os dados novos a serem coletados decantam-se, isto é, não são diluídos ou absorvidos na formu-lação teórica que se processa, não mais contri-buindo para seu adensamento. Isso se daria por diferentes motivos:• Por questões práticas do processo de pesqui-sa, como possibilidade de acesso aos informan-tes, tempo disponível para a sua realização ou a abrangência ou tamanho possíveis do relatório. A metáfora química seria a de um continente (um frasco) com pouca capacidade e que comporta pouco solvente e, em decorrência, pouco soluto (em termos absolutos). Exemplificando: em uma pesquisa em andamento sobre violência domés-tica contra a criança, da qual um de nós parti-cipa, os pais de classe média e alta não foram entrevistados por impossibilidade de acesso.• Por questões ontológicas, quando o material obtido não é solúvel nas ferramentas ou para-digmas interpretativos disponíveis; isto é, alguns objetos não seriam reconhecíveis e, assim sendo, seria impossível serem utilizados e interpretados (diluídos). Na falta de um referencial teórico sufi-cientemente denso (utilizando termo de Glaser & Strauss 2), o pesquisador não conseguiria trans-formar certos aspectos do contexto com que se defronta em dados, resultando em pontos-cegos ao conhecimento.• Por questões cognitivas e das dinâmicas psi-cológicas e culturais do pesquisador e ou dos pesquisados. Quando essas questões estão pre-sentes, talvez correspondam aos elementos beta

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conceituados pelo psicanalista Bion 19: elemen-tos dos participantes da pesquisa não apreen-didos (neste caso, por quem coleta e analisa os dados), sendo então mentalmente descartados, não absorvidos, rejeitados de antemão por uma simples impossibilidade psicológica de serem percebidos. No caso das pesquisas qualitativas na área clínica, por exemplo, em que os ele-mentos de angústia da dupla pesquisador-en-trevistado estão profundamente atuantes, este talvez seja um dos principais determinantes do decantamento (descarte) de possíveis dados. O fenômeno pode decorrer de questões do pró-prio pesquisador – incapaz de escutar e analisar certos conteúdos, por uma dificuldade de rap-port com determinado entrevistado –, ou dos sujeitos pesquisados – incapazes de transmiti-los de maneira inteligível ou psicologicamente audível, ou mesmo de percebê-los – ou, ainda, da interação entre ambos. Trata-se de fenômeno análogo ao comentado quanto às questões on-tológicas, com a diferença de que haveria, neste caso, ferramentas teóricas interpretativas sufi-cientes, não ocorrendo, porém, a apreensão de dados.

Considerando todo o grupo amostral, essa dificuldade é minimizada pelo fato de outras pessoas serem também entrevistadas, já que as informações individuais se complementam e/ou se sobrepõem. O que não foi apreendido a par-tir da interação com um participante, poderá ser com um outro.

A interrupção da coleta de dados decorre de um juízo consciente do pesquisador. Todavia, no caso supracitado, haveria processos não cons-cientes influenciando a coleta, representando coisas que “não podem ser ditas ou não podem ser ouvidas”, ficando indisponíveis para o pes-quisador, para o pesquisado ou para ambos. Isso influenciaria também a análise dos dados efeti-vamente colhidos, pois essas questões enviesam o olhar e a reflexão do pesquisador. Este poderia, desavisadamente, decidir por um ponto de sa-turação incorreto para seus objetivos, pois não estaria consciente da presença desse fenômeno. Porém, estando o corpus das entrevistas disponí-vel, outros leitores/analistas de dados poderiam perceber indícios de sua ocorrência e considerar que o mais correto teria sido outro ponto de sa-turação. Trata-se de um exemplo de como pode se originar a imprecisão no número amostral, comentada anteriormente.

Quando as questões culturais estão presen-tes, advindas, por exemplo, de posição excessi-vamente etnocêntrica do pesquisador (pouca familiaridade com o objeto de estudo, barreiras de linguagem, insuficiente aculturação etc.), incapacitando-o a compreender certos valores

simbólicos culturais dos participantes, elas po-dem ser vistas como uma variação dos citados elementos beta: símbolos cognitivamente não perceptíveis ao pesquisador, pontos psicológica e culturalmente cegos.

Nestes casos, a metáfora química seria a de um solvente (pesquisador) que, em virtude da baixa temperatura (isto é, insuficientes condi-ções cognitivas, culturais ou psicológicas), ab-sorve e comporta pouco soluto.• Por questões metodológicas do desenho da pesquisa: o objetivo geral do estudo é restrito, o caráter exploratório dado à investigação é pe-queno, objetivando responder pontualmente a uma ou a poucas questões. Metaforicamente, não haveria incapacidades, insuficiências ou ca-racterísticas inerentes aos materiais (solvente/soluto – pesquisador/pesquisados) que os tor-nariam pouco compatíveis, mas uma opção por restringir o que será utilizado de ambos. Exem-plificando: o objetivo pode se limitar à identifi-cação dos termos mais comuns utilizados por uma população, para aperfeiçoar um questio-nário padronizado. Neste caso, a investigação estaria exposta a dúvidas sobre o seu caráter de pesquisa científica, já que é necessário algum re-conhecimento, por parte do meio científico, de que os dados coletados se refiram a um contexto mais amplo em termos de espaço ou tempo do que a dos próprios dados. Talvez possa ser consi-derado procedimento eminentemente técnico, e não propriamente científico.

Conclusão

O conceito de saturação teórica é amplamente utilizado em pesquisas qualitativas na área da saúde, sendo invariavelmente citado em estudos metodológicos que contemplam o tópico amos-tragem intencional.

O conceito encontra respaldo científico no pressuposto da constituição social do sujeito que, na Teoria das Representações Sociais, reflete-se no conceito de determinação social das repre-sentações individuais e, na Análise do Discurso, no conceito de determinação histórica e social das formações discursivas e da fala 15,20.

Amostragem por saturação é uma ferramenta conceitual de inequívoca aplicabilidade prática, podendo, a partir de sucessivas análises paralelas à coleta de dados, nortear sua finalização.

O ponto de saturação da amostra depende indiretamente do referencial teórico usado pelo pesquisador e do recorte do objeto e diretamente dos objetivos definidos para a pesquisa, do nível de profundidade a ser explorado (dependente do referencial teórico) e da homogeneidade da po-

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pulação estudada. Entretanto, por ser uma ferra-menta inerentemente influenciada por fenôme-nos cognitivos e afetivos da dupla pesquisador-pesquisados, na prática da pesquisa qualitativa o encontro desse ponto de saturação está sujeito a imprecisões.

Consideramos fundamental para o rigor científico e transparência das pesquisas quali-tativas a menção, no relatório, do conjunto de

fatores identificados que possam ter contribuído para a decisão de um determinado ponto de sa-turação amostral. Deve-se evitar a simples men-ção à utilização desse recurso metodológico, algo possivelmente representativo de uma ilusão de transparência 21 de um procedimento comple-xo, que contribui decisivamente para a validade científica do instrumento de coleta e análise de dados.

Resumo

A transparência e a clareza dos relatórios de pesquisa, destacando a etapa de coleta de dados, são conside-radas parâmetros importantes de avaliação do rigor científico dos estudos qualitativos. Este texto visa a refletir sobre o emprego do conceito metodológico de amostragem por saturação teórica, empregado fre-qüentemente nas descrições de pesquisas qualitativas nas diversas áreas do conhecimento, relevantemente, no campo da atenção à saúde. Discutimos e problema-tizamos os seguintes tópicos: definição de fechamento amostral por saturação teórica; dificuldades de acei-tação e operacionalização de amostras intencionais (exemplificando-as), o tamanho adequado da amos-tra intencional, o significado de valorizar o que se re-pete ou as diferenças contidas nos relatos da amostra, os usos inadequados de expressões que empregam o termo saturação e, finalmente, possíveis metáforas pa-ra compreender o conceito.

Amostragem; Pesquisa Qualitativa; Metodologia

Colaboradores

Os três autores contribuíram igualmente para a redação do artigo, tendo B. J. B. Fontanella compilado e organi-zado as progressivas modificações que resultaram no texto final.

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Recebido em 16/Jan/2007Versão final reapresentada em 24/Mai/2007Aprovado em 25/Jun/2007

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DA FALA DO OUTRO AO TEXTO NEGOCIADO:DISCUSSÕES SOBRE A ENTREVISTA NA PESQUISA QUALITATIVA1

Márcia Tourinho Dantas Fraser2

Sônia Maria Guedes GondimUniversidade Federal da Bahia

Resumo: O artigo discute a entrevista como técnica qualitativa de apreensão da percepção e da vivênciapessoal das situações e eventos do mundo. A relação intersubjetiva, entrevistador e entrevistado, é de funda-mental importância para permitir o acesso aos significados atribuídos pelas pessoas aos eventos do mundo,cujo produto é fruto das mútuas influências no processo de interação na entrevista. A primeira seção discute aabordagem qualitativa de pesquisa e aponta suas principais diferenças em relação à abordagem quantitativa,bem como as implicações da escolha teórico-metodológica para o uso da entrevista como técnica de pesquisa.A segunda seção caracteriza as entrevistas qualitativas quanto à estrutura, tipos, objetivos, papel dos partici-pantes e discute ainda critérios de seleção dos entrevistados, representatividade, validade e fidedignidade dasinterpretações dos resultados. A última seção apresenta algumas considerações sobre os limites e possibilida-des de uso da técnica.

Palavras-chave: entrevista; abordagem qualitativa; técnicas de pesquisa.

FROM THE SPEECH OF THE OTHER TO THE NEGOTIATED TEXT: DISCUSSIONS ABOUTTHE INTERVIEW IN THE QUALITATIVE RESEARCH

Abstract: The article discusses the interview as a qualitative technique in the apprehension of perceptionand personal experience of world situations and events. The intersubjective relation, interviewer and interviewee,is of fundamental importance for allowing the access to the signs attributed by persons to the world events, assuch product is the result of mutual influences in the interacting process in interview. The first section discussesthe qualitative approach of the research and points the main differences towards the quantitative approach, aswell as the theorical-methodological implications for using the interview as a technique for research. Thesecond characterizes the qualitative interviews within the structure, types, participants role, and also discussescriteria in selecting the interviewees, representativity, validity, and trustworthiness in the results of theinterpretations. The last section presents some considerations about the limits and possibilities in using thetechnique.

Key-words: interview; qualitative approaches; research techiniques.

A entrevista é considerada uma modalidade de

1 Artigo recebido para publicação em 03/11/2003; aceito em 08/05/2004.2 Endereço para correspondência: Rua Aristides Novis, 105, EdifícioBosque Suisso, Apto. 1102B, Federação Salvador, Bahia, Cep 40210-630, E-mail: [email protected]

interação entre duas ou mais pessoas. Trata-se de umaconversação dirigida a um propósito definido que nãoé a satisfação da conversação em si, pois esta últimaé mantida pelo próprio prazer de estabelecer contatosem ter o objetivo final de trocar informações, ouseja, diminuir as incertezas acerca do que ointerlocutor diz (Haguete, 2001; Lodi, 1991). Dito

de outro modo, a entrevista é uma forma de interaçãosocial que valoriza o uso da palavra, símbolo e signoprivilegiados das relações humanas, por meio da qualos atores sociais constroem e procuram dar sentido àrealidade que os cerca (Flick, 2002; Jovechlovitch &Bauer, 2002).

O uso desta técnica parece estar localizado nocampo da medicina, dado o interesse nesta área emse obter informações pormenorizadas do pacientepara dar subsídios ao diagnóstico das doenças. Maistarde, sua aplicação foi estendida para outros domí-

Paidéia, 2004, 14 (28), 139 -152

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nios, com objetivos diversos conforme cada área deaplicação. Atualmente é empregada principalmentena clínica em geral, na seleção de pessoas e na inves-tigação científica. Na clínica, a entrevista constituiuma técnica fundamental não só para o diagnóstico,como também para a intervenção terapêutica. Naseleção de pessoas, o foco é na avaliação comparati-va do candidato para fundamentar prognósticos dedesempenho futuro no trabalho, e, por último, napesquisa científica, a entrevista é utilizada principal-mente como fonte de coleta de dados.

Embora se reconheça que as abordagens e asdiscussões que circunscrevem o uso da entrevistasejam amplas, o objetivo deste artigo é o de discutiralgumas de suas vantagens como técnica de pesquisana perspectiva qualitativa. Uma delas é a de favore-cer a relação intersubjetiva do entrevistador com oentrevistado, e, por meio das trocas verbais e não-verbais que se estabelecem neste contexto deinteração, permitir uma melhor compreensão dos sig-nificados, dos valores e das opiniões dos atores soci-ais a respeito de situações e vivências pessoais. Ou-tra vantagem é a flexibilização na condução do pro-cesso de pesquisa e na avaliação de seus resultados,visto que o entrevistado tem um papel ativo na cons-trução da interpretação do pesquisador. Esta seria umamodalidade de triangulação (confiabilidade), pois, aoinvés de o pesquisador sustentar suas conclusões ape-nas na interpretação que faz do que o entrevistadodiz, ele concede a este último a oportunidade delegitimá-la. Este é um dos aspectos que caracteriza oproduto da entrevista qualitativa como um texto ne-gociado.

Acredita-se que a entrevista como técnica depesquisa social associada às observações etnográficastenha sido usada inicialmente por Booth, em 1886,em estudo sobre as condições sociais e econômicasdos habitantes de Londres. A entrevista como técni-ca de investigação científica foi gradativamente di-fundida nas pesquisas qualitativas e nas pesquisasquantitativas (Fontana & Frey, 1994). As pesquisasde opinião, de tradição quantitativa, por exemplo,também passaram a fazer uso mais sistemático deentrevistas, impulsionadas, principalmente, pela cri-ação do Instituto Americano de Opinião Pública porGallup, em 1935, e pelos estudos das atitudes napsicologia social de Thomas e Znaniecki (Fontana

& Frey, 2000).Em princípio, as variadas abordagens de pes-

quisa adotam pontos de vistas diferentes sobre a prá-tica, orientam-se por pressupostos ontológicos eepistemológicos diversos e focalizam distintos aspec-tos na sua investigação (Kemmis & Mctaggart, 2000;Rey, 2002). A sua diversidade está alicerçada em di-vergências metodológicas que repercutem no uso daprópria técnica de entrevista, na sua estrutura, nadefinição de seus objetivos, no papel do entrevistadore do entrevistado, e nas formas de validação de seusresultados.

Compartilha-se, neste artigo, a opinião de quea multiplicidade de abordagens de pesquisa pode serenriquecedora para o conhecimento científico (Hollis,2002), entendendo-se que a questão central devalocalizar-se nas opções teórico-metodológicas querepercutem na decisão dos níveis de análise da açãosocial circunscritos a um paradigma3 .

A entrevista na pesquisa qualitativa, ao privi-legiar a fala dos atores sociais, permite atingir umnível de compreensão da realidade humana que setorna acessível por meio de discursos, sendo apro-priada para investigações cujo objetivo é conhecercomo as pessoas percebem o mundo. Em outras pa-lavras, a forma específica de conversação que se es-tabelece em uma entrevista para fins de pesquisafavorece o acesso direto ou indireto às opiniões, àscrenças, aos valores e aos significados que as pesso-as atribuem a si, aos outros e ao mundo circundante.Deste modo, a entrevista dá voz ao interlocutor paraque ele fale do que está acessível a sua mente nomomento da interação com o entrevistador e em umprocesso de influência mútua produz um discursocompartilhado pelos dois atores: pesquisador e par-ticipante. Ao contrário, quando o foco de investiga-ção é o comportamento humano, ou seja, a formacomo as pessoas agem no cotidiano e não somentefalam sobre ele, existem outras técnicas, tais como aobservação participante e a observação sistemáticaque permitem melhor atender a estes objetivos.

A observação participante é uma modalidade3 Masterman (1979) identifica três principais sentidos da noção deparadigma na obra de Kuhn: o metafísico, que consiste em um princí-pio organizador da percepção da realidade, o sociológico, que é umaforma padronizada compartilhada pelos cientistas de conceber o que éciência e, por último, o metodológico, que funciona como um aparatotécnico para orientar o fazer científico do pesquisador.

Márcia Tourinho Dantas Fraser

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de observação bastante empregada em estudos denatureza antropológica e sociológica e se distingueda observação sistemática pelo fato de esta últimadefender o distanciamento entre o observador e ofenômeno a ser observado, assim como a objetivida-de da observação, garantida pela adoção de procedi-mentos rigorosos de registros. De maneira distinta,a observação participante parte da premissa de que aapreensão de um contexto social específico só podeser concretizada se o observador puder imergir e setornar um membro do grupo social investigado. Sóentão, poderá compreender a relação entre o cotidia-no e os significados atribuídos por este grupo.

Toda técnica de pesquisa tem alcances e limi-tes demarcados e, para que seus resultados sejamconfiáveis, são necessários, além da coerência como paradigma escolhido e com o objeto de estudo, oconhecimento e o domínio da técnica pelo pesquisa-dor, o que é perfeitamente aplicável no caso da en-trevista.

O presente texto foi redigido com o objetivode discorrer sobre alguns aspectos metodológicos douso de entrevista na perspectiva qualitativa e para talestá dividido em três seções: a primeira delas cir-cunscreve a abordagem qualitativa de pesquisa nasciências sociais e destaca as suas principais diferen-ças em relação à abordagem quantitativa. A segundaseção define e caracteriza metodologicamente as en-trevistas qualitativas no que se refere a sua estrutura,aos seus objetivos e ao papel dos participantes, as-sim como discute os critérios de seleção dos entre-vistados, a representatividade da amostra e as moda-lidades de entrevistas, individual e grupal. Afinalização é feita com comentários sobre o uso e oslimites desta técnica.

A abordagem qualitativa de pesquisa

A abordagem qualitativa ou idiográfica surgecomo contraponto à abordagem monotética que de-fende a quantificação e o controle das variáveis paraque o conhecimento objetivo do mundo seja alcan-çado. O fundamento da abordagem nomotética estána crença de que o modelo das ciências naturais épertinente para as ciências sociais e, em sendo as-sim, estas deveriam aderir à proposição de que asleis gerais que regem os fenômenos do universo são

necessárias e constantes. Caberia às ciências sociais,então, descobrir as leis gerais do comportamento edas ações humanas por meio da adoção dos procedi-mentos metodológicos das ciências naturais.

O ponto de vista da abordagem qualitativa ecompreensiva, no entanto, é o de que os modelos ci-entíficos das duas ciências são diferenciados, dada anatureza distinta de seus objetos. A ação humana éintencional e reflexiva, cujo significado é apreendi-do a partir das razões e motivos dos atores sociaisinseridos no contexto da ocorrência do fenômeno, oque não acontece com os objetos físicos, foco de aná-lise das ciências naturais. Conhecer as razões e osmotivos que dão sentido às aspirações, às crenças,aos valores e às atitudes dos homens em suasinterações sociais é o mais importante para as ciênci-as sociais. Dilthey, autor de abordagem compreensi-va, defendeu o método histórico-antropológico aoafirmar que os fenômenos humanos são apreendidosao se integrar a representação, o sentimento e a von-tade e inseri-los em uma perspectiva histórica(Amaral, 1987). Weber, outro representante destaabordagem, diferenciou a compreensão direta (obje-tiva) da compreensão indireta (subjetiva) e influen-ciou significativamente a fenomenologia do mundosocial elaborada por Schütz (1972)4 . Em resumo, aabordagem qualitativa ou idiográfica parte da pre-missa de que a ação humana tem sempre um signifi-cado (subjetivo ou intersubjetivo) que não pode serapreendido somente do ponto de vista quantitativo eobjetivo (aqui entendido como independente dopercebedor e do contexto da percepção). O significa-do subjetivo diz respeito ao que se passa na menteconsciente ou inconsciente da pessoa (individualis-mo metodológico – o nível de análise é a pessoa) e osignificado intersubjetivo se refere ao conjunto deregras e normas que favorecem o compartilhamento

4 A rigor, embora não seja objeto de consideração adicional neste artigo,a abordagem compreensiva de Weber inclui duas dimensões de signifi-cado: subjetivo e objetivo. O subjetivo diz respeito àquele significadoque está atrelado à intencionalidade do agente dirigida a um futuro –“motivos para”, e o objetivo se refere àquele significado que pode serapreendido por meio da observação e da análise de fatos passados –“motivos porque” . Exemplo: pode-se compreender que duas amigas,Mariana e Flora, tenham rompido seus laços de amizade “porque”Mariana foi extremamente indelicada com Flora que a havia acusado dedesonestidade. A intenção de Mariana (motivo para) foi causar cons-trangimento e ferir a amiga, deixando em evidência sua mágoa (Schütz,1972).

Da fala do outro

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de crenças por grupos de pessoas inseridas em deter-minado contexto sóciocultural (holismometodológico – o nível de análise é a estrutura e ossistemas).

Se o pesquisador concorda com os princípiosda abordagem nomotética seus esforços de investi-gação empírica, incluindo a escolha e uso de técni-cas, serão congruentes com a crença de que os fenô-menos psicológicos devem ser estudados do mesmomodo que os fenômenos físicos, com repercussõespara os procedimentos de pesquisa a serem adotados:padronização, controle de variáveis e grau dedistanciamento do pesquisador de seu objeto de es-tudo. A entrevista, neste caso, obedecerá a um rotei-ro estruturado, os entrevistadores se submeterão a umtreinamento para neutralizar as diferenças individu-ais e a análise dos resultados estará focada apenasnas respostas do entrevistado, ignorando que elas são,em grande parte, produto da interação que se estabe-lece entre entrevistador e entrevistado.

A diferença entre qualitativo e quantitativoencontra apoio na escolha de abordagens que sãosustentadas por pressupostos filosóficos distintos.Mais afinados com a abordagem nomotética encon-tram-se o positivismo e o pós-positivismo e, maisidentificados com a abordagem idiográfica destacam-se a teoria crítica social, o construtivismo e oparticipacionismo. Os dois primeiros aportes teóri-cos defendem o ponto de vista de que a realidade éexterna ao sujeito e passível de ser apreendida demodo objetivo e invariável; e os três subseqüentes ode que a realidade é dinâmica, histórica e socialmen-te construída pelo sujeito na interação subjetivo-ob-jetivo (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1994;Gondim, 2002a; Lincoln & Guba, 2000; Radnitzky,1970; Smith, Harré & Langenhove, 1995).

Para os positivistas, a questão central é a obje-tividade. A análise social para ser objetiva (indepen-dente do sujeito percebedor) necessita serquantificada ou mensurada a partir de instrumentospadronizados que assegurem a neutralidade e quepossibilitem fazer generalizações com precisão, emconformidade com o modelo das ciências naturais.As ciências sociais, por sua vez, mesmo que lidemcom um objeto de estudo que, distintamente de umobjeto físico e passivo, reage diante de seu pesquisa-dor, deveriam seguir este mesmo modelo se o seu

interesse for o de alcançar um status próximo ao dasciências naturais, o que de modo algum é objeto deconsenso entre os teóricos das ciências sociais(Minayo, M.C. de S., Deslandes, S.F.; Neto, O.C. &Gomes, R. (2000).

A tradição idiográfica, em contrapartida, de-fende o ponto de vista de que as ciências sociais têmcomo objetivo central a compreensão da realidadehumana vivida socialmente. O essencial não équantificar e mensurar e sim captar os significados.O que se busca não é explicar a relação antecedentee conseqüente (nexos causais) e sim compreenderuma realidade particular na sua complexidade (in-fluência mútua dos atores sociais na construção desua realidade). Sendo assim, as ciências sociais nãodeveriam aproximar-se do modelo das ciências na-turais, pois tal modelo não atenderia às necessidadese especificidades de seu objeto de estudo.

Esta dicotomia entre qualitativo e quantitativoé palco de inúmeras controvérsias teóricas que pro-curam definir qual é o melhor método de pesquisa equais os critérios de validade científica. O positivismoé criticado, principalmente, por reduzir o conheci-mento da realidade social àquilo que pode ser obser-vado, mensurado e quantificado; sobre a abordagemcompreensiva, recaem críticas ao subjetivismo dopesquisador no processo de investigação e a ausên-cia de controle na coleta de dados e na sua interpre-tação (Minayo, & Cols., 2000).

A crise das abordagens concorrentes teve umde seus pontos altos na década de 60, do século pas-sado, influenciada também pelos questionamentos deKuhn (1975) sobre a objetividade e a racionalidadeda ciência, e pelas críticas da Escola da Teoria Críti-ca Social (denominada por alguns de Escola de Frank-furt) sobre aspectos ideológicos e atitudes da ciênciadominante. A crítica mais recorrente ao positivismoé a de que este considera o conhecimento científicocomo uma fotografia fiel, objetiva e neutra da reali-dade (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1994).

Entre os oponentes do positivismo, há aque-les que buscam posição conciliatória, como, porexemplo, Kemmis e Mctaggart (2000), para quem odebate constante entre as abordagens quantitativas equalitativas sobre a validade e a adequação de suastécnicas é um equívoco, pois não existe abordagemcapaz de garantir a verdade sobre um objeto. As di-

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ferentes tradições teóricas focalizam distintos aspec-tos nas suas investigações - as perspectivas objetivae subjetiva, o enfoque social, grupal ou individual -, assim como diversificados métodos e técnicas deinvestigação são utilizados em função dos aspectospráticos que se pretende enfatizar.

A discussão apresentada nesta seção tevecomo objetivo considerar criticamente alguns aspec-tos que permitissem entender que a entrevista podeser uma técnica utilizada tanto em pesquisas quali-tativas quanto quantitativas, a depender da aborda-gem metodológica escolhida pelo pesquisador. Casoele opte pela abordagem quantitativa e nomotética,os seus esforços serão dirigidos para garantir a neu-tralidade e a objetividade das informações obtidas,principalmente pela padronização das perguntas e dapostura do entrevistador, assim como pela escolhaaleatória ou estratificada dos entrevistados. Se, aocontrário, a escolha for pela abordagem qualitativa,os esforços serão dirigidos: 1) para garantir arepresentatividade dos significados, passível de serobtida ao entrevistar aqueles que conhecem e com-preendem profundamente a realidade a ser estudada,2) para permitir que o entrevistado sinta-se mais li-vre para construir seu discurso e apresentar seu pon-to de vista, o que faz com que o roteiro seja o maisflexível possível, e, por último, 3) para submeter asinterpretações do pesquisador à avaliação crítica dospróprios participantes da pesquisa (legitimidade).

Enfim, esta breve explicitação pretendeu dis-correr sobre o paradigma de pesquisa qualitativo e asprincipais diferenças entre essa abordagem e a pers-pectiva quantitativa, já que essas diferenças reper-cutem, também, no uso da própria técnica. Agora ofoco recairá no uso da técnica de entrevista.

A técnica da entrevista

Esta seção caracteriza a técnica da entrevistae focaliza suas especificidades e sua utilização nasinvestigações qualitativas. A seção está dividida emquatro partes, a saber: 1) estrutura e objetivos, 2) opapel do entrevistador e dos entrevistados, 3) sele-ção dos entrevistados e representatividade da amos-tra e 4) entrevistas individuais e grupais.

Estrutura e objetivos

Há duas modalidades mais gerais de entrevis-ta: a face a face e a mediada. A primeira se refereàquela modalidade em que entrevistador e entrevis-tado se encontram um diante do outro e estão sujei-tos às influências verbais (o que é dito ou pergunta-do), às não-verbais (comunicação cronêmica – pau-sas e silêncios -, cinésica – movimentos corporais -,e paralinguística – volume e tom de voz), e às decor-rentes da visualização das reações faciais dointerlocutor. A segunda modalidade inclui as entre-vistas feitas por telefone, por computador e por ques-tionários, que também estão sujeitas às mesmas in-fluências verbais e não-verbais, mas de modo dife-renciado, em especial quando não permitem avisualização das reações faciais do interlocutor.

Em relação a sua estruturação, por sua vez, asentrevistas podem ser estruturadas, semi-estruturadasou não estruturadas. As entrevistas estruturadas oufechadas são utilizadas, freqüentemente, em pesqui-sas quantitativas e experimentais. A preocupação écom o ajuste do roteiro às hipóteses previamente de-finidas, a padronização da apresentação de pergun-tas e a limitação das opções de respostas para facili-tar o planejamento das condições experimentais e dotratamento estatístico dos dados.

Em outras palavras, esta modalidade de entre-vista se caracteriza por uma estruturação rígida doroteiro e oferece pouco espaço para a fala espontâ-nea do entrevistado. O roteiro da entrevista é pré-elaborado e testado, assim como as questões obede-cem a uma seqüência rigorosa com pouca flexibili-dade para a formulação das perguntas e para o subse-qüente aproveitamento de comentários adicionais dosentrevistados. A posição esperada do entrevistador éa mais neutra possível, devendo evitar esboçar qual-quer opinião que possa sugerir a sua visão pessoal e,diante de qualquer dúvida do entrevistado a respeitodo conteúdo da pergunta formulada, o entrevistadordeve apenas repetir o enunciado, sem oferecer expli-cações complementares que não tenham sido previs-tas pelo roteiro inicial. Desta forma, os procedimen-tos se uniformizam para todos os entrevistados eentrevistadores (Fontana & Frey, 2000).

As entrevistas estruturadas, em grande parte,se fundamentam na existência de um conhecimentoexterior que pode ser apreendido pelo pesquisador,

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desde que todos os procedimentos metodológicosrecomendados tenham sido seguidos. Elas podemapoiar-se em um questionário, com perguntas e res-postas de múltipla escolha, ou em um roteiro fixocontendo perguntas objetivas que permitam respos-tas abertas a serem posteriormente submetidas a téc-nicas de análise de conteúdo, com ênfase quantitati-va (Bardin, 1977; Smith, 2000). O excesso deestruturação, entretanto, inibe a livre manifestaçãoda opinião do entrevistado, o que é fundamental paraa compreensão de sistemas de valores e significadosde um grupo social. Por exemplo, uma entrevistaestruturada e apoiada em questionário de múltiplaescolha sobre nutrição poderia conter uma perguntado seguinte tipo:

O que você mais valoriza na alimentação?a) nutrientes do alimentob) sabor do alimentoc) quantidade de alimento disponível.Se o entrevistado A escolher a letra c, o

entrevistador poderá inferir que a quantidade de ali-mento tem mais valor para o entrevistado do que osoutros fatores (sabor e nutrientes), mas esta informa-ção será insuficiente para compreender por que oentrevistado dá importância mais a este aspecto queaos demais, ou seja, quais as motivações e os valo-res que estariam sustentando a escolha do entrevis-tado.

Uma pesquisa qualitativa sobre o mesmo temapoderia mais facilmente optar por uma estrutura deentrevista que privilegiasse questões abertas, taiscomo: O que você valoriza na sua alimentação? Estetipo de questão permitiria ao entrevistado, por exem-plo, dizer que valoriza uma mesa farta porque é des-cendente de italiano e isto lhe faz lembrar a sua in-fância e os almoços dominicais na casa da avó, umatípica mama italiana que valorizava os encontros fa-miliares e via na diversidade e quantidade disponí-vel de alimentação uma maneira de demonstrar feli-cidade com a chegada dos convidados.

Uma resposta desse tipo oferece informaçõesricas sobre a importância do processo de socializa-ção na formação de hábitos alimentares e os aspec-tos culturais envolvidos na nutrição, que poderiamser ignorados em uma entrevista fechada. Em outraspalavras, as opções nutrientes do alimento, sabor doalimento e quantidade de alimento disponível estão

restritas ao seu valor individual para a pessoa e po-dem levar o pesquisador a concluir apenas que oentrevistado A se preocupa com a quantidade e nãocom a qualidade, sendo que o que está em jogo é ofato de que a quantidade de alimento disponível namesa é fundamental para demonstrar a alegria emreceber os familiares, não importando o consumointegral do alimento disponível.

Em geral, na pesquisa quantitativa ou experi-mental, o enfoque que se pretende dar ao tema já édefinido desde o planejamento do roteiro da entre-vista (hipóteses a serem testadas), determinando onúmero e o conteúdo das perguntas. No caso de pes-quisas qualitativas, o enfoque é mais vago (tema maisamplo) e é comum que ele se defina no próprio pro-cesso da entrevista, ou seja, à medida que o entre-vistado vai expressando suas opiniões e significados,novos aspectos sobre o tema vão emergindo e oentrevistador pode redefinir seu roteiro para obterinformações que permitam ampliar sua compreensãodo tema.

As entrevistas mais comumente utilizadas naspesquisas qualitativas são as semi-estruturadas e asnão-estruturadas. A opção por uma delas está relaci-onada com o nível de diretividade que o pesquisa-dor pretende seguir, variando desde a entrevista naqual o entrevistador introduz o tema da pesquisa edeixa o entrevistado livre para discorrer sobre o mes-mo, fazendo apenas interferências pontuais (porexemplo: história oral), até a entrevista um poucomais estruturada, que segue um roteiro de tópicosou perguntas gerais (Bartholomew, Henderson &Márcia, 2000).

Talvez a forma mais representativa de entre-vista não estruturada seja a da clínica psicoterápica,como é o caso da entrevista psicanalítica. Neste con-texto, é o paciente (entrevistado) que solicita a entre-vista, e sua fala e seu discurso dirigem todo o pro-cesso. Ao psicanalista (entrevistador), cabe ofereceruma “escuta” diferenciada, restringindo suas inter-venções ao mínimo, apenas para facilitar a livre as-sociação do paciente e possibilitar que o processoanalítico aconteça.

Se uma pessoa marca uma entrevista inicialcom um psicanalista porque se sente deprimida e pedepara que ele lhe indique um caminho por onde come-çar ou lhe diga o que é o mais importante falar (não é

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incomum na prática clínica o paciente perguntar oque interessa ao analista saber), a orientação do pro-fissional será no sentido de estimular que o pacientefale livremente, evitando fazer uma anamnese oudefinir tópicos, pois, na clínica psicanalítica, o que apessoa prioriza para falar e a forma particular comoorganiza o seu próprio discurso são importantes da-dos clínicos.

A entrevista não estruturada na pesquisa qua-litativa possui características diferentes da entrevis-ta clínica. A rigor, considera-se que a entrevistaaberta e dirigida inteiramente pelo próprio entrevis-tado seja difícil de ser realizada na pesquisa científi-ca, pois, uma investigação desta natureza, mesmo quenão tenha definido uma hipótese a ser colocada à pro-va, é dirigida a um objeto específico (problema depesquisa) de investigação escolhido pelo pesquisa-dor, o que, a princípio, impõe um limite à liberdadeda fala do entrevistado.

Apesar de reconhecer essa limitação, a entre-vista em pesquisa qualitativa procura ampliar o pa-pel do entrevistado ao fazer com o que o pesquisadormantenha uma postura de abertura no processo deinteração, evitando restringir-se às perguntas pré-de-finidas, de forma que a palavra do entrevistado pos-sa encontrar brechas para sua expressão. É práticacomum a elaboração de um roteiro apresentado soba forma de tópicos (tópico-guia) que oriente a con-dução da entrevista, mas que de modo algum impeçao aprofundamento de aspectos que possam ser rele-vantes ao entendimento do objeto ou do tema em es-tudo. Para a elaboração dos tópicos, é importante queo pesquisador avalie seus interesses de investigaçãoe proceda a uma crítica da literatura sobre o tema(Gaskell, 2002). Além de ser um instrumentoorientador para a entrevista, o tópico guia pode serútil para a elaboração e antecipação de categorias deanálise dos resultados.

Um outro aspecto que justifica a defesa da nãoestruturação ou semi-estruturação da entrevista napesquisa qualitativa é que esta abordagem almejacompreender uma realidade particular e assume umforte compromisso com a transformação social, pormeio da auto-reflexão e da ação emancipatória quepretende desencadear nos próprios participantes dapesquisa. Para os defensores da abordagem qualita-tiva, a realidade humana é construída no processo de

inserção do indivíduo em um contexto social parti-cular e, em decorrência, os participantes são vistoscomo pessoas que constroem seus discursos e basei-am suas ações nos significados derivados dos pro-cessos de comunicação com os outros, com quemcompartilham opiniões, crenças e valores. Destemodo o poder de ação e transformação das pessoaspode ser ampliado ao ser propiciado a cada uma de-las refletir sobre suas próprias concepções, crenças eações (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1994;Gergen & Gergen, 2000; Gondim, 2002a).

A entrevista qualitativa tem a finalidade deatender aos objetivos da pesquisa, que podem ser di-versos. Ela pode ser utilizada como a única técnicade pesquisa, como técnica preliminar ou ainda asso-ciada a outras técnicas. No primeiro caso, o propósi-to da pesquisa pode ser apenas o de compreender ossignificados e as vivências dos entrevistados no quetange a determinadas situações e eventos. Por exem-plo, uma pesquisa define como objetivo central co-nhecer a representação social de um grupo de idososde um asilo X sobre o envelhecimento e elege a en-trevista semi-estruturada como sua principal fonte dedados. Ao pesquisador deste estudo, interessa com-preender como esses idosos percebem e vivenciamseu próprio envelhecimento. Nada impede, entretan-to, que os resultados sejam utilizados para orientar otrabalho de profissionais do próprio asilo, para ofe-recer subsídios para o desenvolvimento de políticassociais mais amplas, bem como para servir de refe-rência à formulação de hipóteses e de teorias quepoderão vir a ser testadas no futuro.

O uso da entrevista qualitativa como técnicapreliminar pode ter como objetivo explorar infor-mações ou dados que permitam a construção de ou-tros instrumentos de pesquisa. Uma investigaçãosobre o significado do lazer para o público jovembrasileiro, por exemplo, pode ser conduzida para sub-sidiar a elaboração de uma escala. Na etapa inicialda pesquisa, poderiam ser feitas entrevistas qualita-tivas para conhecer as opiniões gerais de jovens bra-sileiros (variando gênero, classe social, etnia, nívelde escolaridade e bairro de moradia) a respeito dolazer e, a partir daí, proceder à categorização e à aná-lise das respostas e comentários, de modo que infor-mações significativas sobre o assunto fossem reuni-das para compor a escala sobre o significado do lazer

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e delimitar seus componentes ou fatores. Findo istoo pesquisador validaria o instrumento por meio daaplicação de questionários a uma amostra aleatóriada população brasileira.

Finalmente, a associação de entrevista quali-tativa com outras técnicas de pesquisa é muito fre-qüente nos estudos etnográficos, que, por exemplo,costumam utilizá-la com as técnicas de observação.Isto se revela útil porque, ao se propor estudar carac-terísticas culturais de determinada comunidade, opesquisador pode estar interessado em conhecer ascrenças, os valores e as opiniões das pessoas, e, tam-bém, em perceber de que modo estes valores e cren-ças se expressam no cotidiano das pessoas, ou seja,na sua conduta ou comportamento diários, o que tor-na pertinente associar entrevistas à observação parti-cipante.

Em síntese, foram destacados, nesta parte daseção, as modalidades, a variabilidade de estruturaçãoe os objetivos da entrevista. No próximo item, serádiscutido o papel do entrevistador e do entrevistadona interação.

O papel do entrevistador e do entrevistado: da falado outro ao texto negociado

Um ponto fundamental a ser considerado é opapel dos participantes nas entrevistas qualitativas.Mais de uma vez, foi mencionado neste artigo que aentrevista é essencialmente uma comunicação ver-bal e consiste em um tipo de interação com objetivosespecíficos, que visa a compreensão de como os su-jeitos percebem e vivenciam determinada situaçãoou evento que está sendo focalizado. Embora se re-conheça que os papéis do pesquisador e do pesquisadosejam diferenciados, a crença é a de que somente seo entrevistador mantiver uma relação de maior pro-ximidade com o entrevistado é que a compreensãodo mundo pela sua perspectiva se tornará acessível.

Na pesquisa experimental ou quantitativa, apreocupação é com a preservação da neutralidade dainfluência do pesquisador no que o entrevistado irádizer, o que repercute na acentuação da demarcaçãode seus papéis. O papel do entrevistador é o de diri-gir o processo e formular perguntas de modo padro-nizado, enquanto ao entrevistado compete respon-der de maneira objetiva, o que irá facilitar a

categorização de respostas e a generalização dos re-sultados para a população investigada.

Na abordagem qualitativa, entretanto, o que sepretende, além de conhecer as opiniões das pessoassobre determinado tema, é entender as motivações,os significados e os valores que sustentam as opini-ões e as visões de mundo. Em outras palavras é darvoz ao outro e compreender de que perspectiva elefala. Para atingir este objetivo, o entrevistador assu-me um papel menos diretivo para favorecer o diálo-go mais aberto com o entrevistado e fazer emergirnovos aspectos significativos sobre o tema. A rela-ção intersubjetiva, então, é condição para oaprofundamento, visto que a abordagem qualitativaadvoga que a realidade social não tem existência ob-jetiva independente dos atores sociais, mas ao con-trário, é construída nos processos de interações so-ciais. Dito de outro modo, mesmo que se reconheça,por exemplo, que os livros sobre a mesa continuam aexistir objetivamente independente de se estar olhan-do fixamente para eles, só adquirem sentido à medi-da que se encontram representados na mente de cadaum e carregam consigo um conjunto de significados aeles atribuídos nas interações sociais passíveis de se-rem continuamente redefinidos. Na mente de cadapessoa, o livro pode ser representado por descriçõesgerais – os livros são formados por um conjunto defolhas impressas e encadernadas que contém registrosverbais; mas igualmente por avaliações – os livroscontribuem para ajudar na difusão do conhecimento eoferecem informações para o crescimento humano.

Ao adotar essa mesma perspectiva, Fontana eFrey (2000) consideram que a entrevista qualitativaé um “texto negociado” resultante de um processointerativo e cooperativo que envolve tanto o entre-vistado como o entrevistador na produção do conhe-cimento. A expressão “texto negociado” deixatransparecer que os resultados de pesquisas que seapóiam em entrevistas semi-estruturadas ou abertassão decorrentes de uma produção desencadeada peloprocesso ativo de trocas verbais e não verbais entre oparticipante e o pesquisador. Se de um lado, os pes-quisadores de abordagem experimental e quantitati-va investem em pesquisas para orientar a adoção deprocedimentos metodológicos que venham aminimizar os vieses e a influência do pesquisadorno processo de coleta de dados (Darley & Gross,

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2000), de outro, os pesquisadores qualitativos afir-mam que não há como assegurar tal distanciamento,visto sermos seres sociais ativos e estarmos continu-amente interferindo nos acontecimentos a nossa vol-ta e sendo influenciados por eles.

A adesão à crença de que a realidade é apreen-dida intersubjetivamente constitui, para os defenso-res da abordagem qualitativa, uma das razões que jus-tificam a escolha pela técnica de entrevista semi-estruturada ou aberta em detrimento da entrevistaestruturada. É justamente pela adesão a esta crençaque muitas críticas são dirigidas a estas modalida-des de entrevista, em particular pela ausência de ob-jetividade, que permite que diferentes entrevistadorespossam interferir nas respostas do entrevistado e cons-truir interpretações diversas.

A esse respeito, é importante ter clareza de quea entrevista em pesquisa qualitativa visa a compre-ensão parcial de uma realidade multifacetadaconcernente a tempo e contexto sócio-histórico es-pecíficos. Isto não significa, no entanto, defender umrelativismo subjetivista, de acordo com o qual cadaum tem a sua ‘verdade’, mas reconhecer que as vi-sões de mundo de grupos humanos se sustentam nosníveis de compartilhamento vivenciados por eles:época, lugar, processos de socialização, nível de de-senvolvimento da ciência e da sociedade, hábitos ecostumes culturais, língua, ambiente etc. Diferentesentrevistadores e entrevistados podem chegar a con-clusões distintas sobre um mesmo tema investigado,o que torna defensável que o pesquisador, ao relatarseus resultados, deixe bastante explícitas suas con-cepções e visões sobre o assunto, assim como ofere-ça informações detalhadas sobre os participantes dapesquisa. É isto que permitirá àquele que não parti-cipou da pesquisa refletir e criticar os resultados àluz da compreensão do contexto em que as conclu-sões foram extraídas.

Não se pode esquecer também que o esclareci-mento dos critérios de escolha dos participantes aserem entrevistados é muito importante, visto que aaleatoriedade na abordagem qualitativa não é consi-derada a melhor opção. O que importa não é quantosforam entrevistados, mas se os entrevistados foramcapazes de trazer conteúdos significativos para a com-preensão do tema em questão.

Seleção dos entrevistados: a questão darepresentatividade amostral

Em pesquisas qualitativas, o fundamental é quea seleção seja feita de forma que consiga ampliar acompreensão do tema e explorar as variadas repre-sentações sobre determinado objeto de estudo. O cri-tério mais importante a ser considerado neste pro-cesso de escolha não é numérico, já que a finalidadenão é apenas quantificar opiniões e sim explorar ecompreender os diferentes pontos de vista que seencontram demarcados em um contexto.

Em um ambiente social específico, o espectrode opiniões é limitado, pois a partir de um determi-nado número de entrevistas percebe-se o esgotamen-to das respostas quando elas tendem a se repetir enovas entrevistas não oferecem ganho qualitativoadicional para a compreensão do fenômeno estuda-do. Isto significa que já se torna possível identificara estrutura de sentido, ou seja, as representações com-partilhadas socialmente sobre determinado tema deinteresse comum (Gaskell, 2002; Gondim, 2002a).

Considera-se, então, que o número de entre-vistas deve ser pensado levando-se em conta os ob-jetivos da pesquisa, os diferentes ambientes a seremconsiderados e, principalmente, a possibilidade deesgotamento do tema. Gaskell (2002) afirma, porém,que o número de entrevistas para cada pesquisadordeve oscilar de 15 a 25 entrevistas individuais e deseis a oito no caso de entrevistas grupais, a dependerdo nível de aprofundamento da análise almejada e deoutras decisões metodológicas do pesquisador.

A seleção dos entrevistados também deve es-tar relacionada à segmentação do meio social a serpesquisado, que precisa ser pertinente ao problemada pesquisa. Os objetivos e o enfoque que se preten-de dar ao tema, portanto, devem estar claros e bemdefinidos para que a escolha seja adequada. Um mes-mo assunto pode ser de interesse de diversos grupose pode ser compreendido de diferentes maneiras emfunção dos múltiplos enfoques possíveis e das carac-terísticas próprias de cada grupo, o que torna difíciluma única pesquisa abarcar todas as possibilidades.

Se as entrevistas são grupais, a escolha de gru-pos naturais pode ser uma opção ao invés de gruposcompostos por amostras estatísticas. Os grupos na-turais têm a vantagem de interagirem em seu cotidia-no e compartilharem interesses e valores semelhan-

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tes. Por exemplo, podem-se entrevistar grupos ri-vais de adolescentes moradores de um bairro da pe-riferia com o objetivo de investigar a violência entrejovens em centros urbanos. A intencionalidade naescolha dos grupos é importante na pesquisa qualita-tiva porque aproxima o pesquisador de uma realida-de concreta onde ocorre o fenômeno a ser investiga-do.

Ainda que a entrevista seja feita com cada in-divíduo em separado, a intencionalidade da escolhapersiste, pois se o objetivo é conhecer com mais pro-fundidade um tópico, é preciso que o entrevistadotenha o que falar sobre ele. É provável que qualquercidadão tenha algo a dizer sobre os políticos, os pro-blemas de violência e de saúde da população nas gran-des cidades, mas, se o foco do estudo for sobre asconseqüências sociais da discriminação racial, a es-colha dos entrevistados deve recair sobre aqueles queestão diretamente implicados.

A clareza dos caminhos que se pretende tri-lhar na pesquisa é fundamental neste processo. Porexemplo, se o objeto de investigação for o aborto, otema pode ser investigado a partir do ponto de vistade um grupo de advogados, que enfatizam o aspectolegal, de psicólogos, que dão destaque às repercus-sões psicológicas do aborto, de médicos que se pre-ocupam em descrever os efeitos do aborto na saúdefísica, ou ainda de adolescentes que passaram pelaexperiência de um aborto.

Ao investigar a interface entre trabalho e fa-mília, no entanto, seria importante definir a ampli-tude do estudo, assim como as características espe-cíficas dos participantes escolhidos e as perspecti-vas a serem exploradas: é a perspectiva dos própri-os trabalhadores que se quer abordar? É o ponto devista do empregador que se deseja apreender? Ou oobjetivo é compreender como os familiares dos tra-balhadores percebem as interferências do trabalhona vida doméstica?

Para o estudo da interface entre trabalho efamília, pode-se optar também por investigar o temaa partir da perspectiva de um grupo específico deprofissionais. Os participantes podem ser escolhi-dos pelas características inerentes ao próprio tipode trabalho, que sugiram haver dificuldades paraconciliar a vida pessoal e o trabalho. É o caso deprofissionais que estejam submetidos a turnos alter-

nados, de executivos de grandes empresas, cujo tra-balho exija viagens constantes ou mesmo mudançasfreqüentes de local de moradia, ou de trabalhadoresque exerçam funções de alto risco. Para a seleçãodos entrevistados, portanto, vários fatores devem serconsiderados conforme o enfoque dado ao tema e aabrangência pretendida no estudo.

Enfim, uma das principais finalidades da pes-quisa qualitativa é a de apresentar, de forma ampla erepresentativa, a diversidade de pontos de vistas deum determinado grupo e, para tal, é preciso avaliarse as características de gênero, idade e instrução sãorelevantes e quais os benefícios de investigar algunssegmentos sociais específicos ao invés de outros. Aescolha criteriosa dos participantes é fundamentalpara os resultados da pesquisa, na medida em queafeta a qualidade das informações obtidas e a valida-de da própria pesquisa (Gaskell,2002).

Os critérios de seleção nas entrevistas quali-tativas se inserem no debate sobre arepresentatividade amostral. Minayo (1998) discuteesta questão com base nas proposições de Bourdieude que as pessoas que vivem no mesmo ambientesocial tendem a desenvolver e reproduzir disposiçõessemelhantes e, em sendo assim, os significados indi-viduais podem estar representando significadosgrupais. Em outras palavras, a fala de alguns indiví-duos de um grupo é representativa de grande partedos membros deste mesmo grupo inserido em umcontexto específico.

Até este ponto discorreu-se sobre a estrutura eos objetivos da entrevista, sendo discutido o papeldos participantes, os critérios de seleção dos entre-vistados e a representatividade das entrevistas quali-tativas. Para finalizar esta seção, serão focalizadasas entrevistas individuais e grupais.

Entrevistas individuais e grupais

As entrevistas individuais e grupais são am-plamente utilizadas nas investigações científicas. Pelatradição, a pesquisa acadêmica privilegia as entre-vistas individuais, ao passo que as pesquisas de mer-cado preferem as entrevistas em grupos. A partir daúltima década, entretanto, o quadro tem-se modifi-cado com o crescimento considerável do emprego deentrevistas com grupos nas ciências sociais (Gondim,

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2002a, 2002b; Morgan, 1997).A entrevista individual é uma interação de

díade, indicada quando o objetivo da pesquisa é co-nhecer em profundidade os significados e a visão dapessoa. Esta modalidade de entrevista é muito utili-zada em estudos de caso, história oral, histórias devida e biografias, que demandam um nível maior dedetalhamento. É preferida também quando a investi-gação aborda assuntos delicados, difíceis de seremtratados em situação de grupo. A escolha da modali-dade individual de entrevista também pode decorrerdas características ou condições do entrevistado, poisoferece mais flexibilidade para o agendamento dehorário e de local de realização. É o caso de pessoasmais idosas, doentes e crianças pequenas (Gaskell,2002).

A entrevista grupal assim como a entrevistaindividual pode ser estruturada, semi-estruturada ouaberta, podendo ser utilizada como única técnica decoleta de dados ou associada a outras técnicas, de-pendendo dos propósitos do estudo. Esta modalida-de de entrevista é indicada para pesquisas cujatemática seja de interesse público ou preocupaçãocomum, por exemplo, política, mídia, lazer, novastecnologias, e para assuntos e questões de naturezarelativamente não familiar, que não tenham o caráterexcessivamente íntimo e exijam muitoaprofundamento de cada pessoa.

No campo das ciências sociais essa modali-dade de entrevista tem sido empregada em diversostipos de investigações (Fontana & Frey, 1994), taiscomo para construir e testar uma escala social(Bogardus, 1926), para subsidiar projetos na áreade saúde (Morgan & Spanish, 1984) e para avaliaro impacto da propaganda (Merton, Fiske & Kendall,1990).

Uma modalidade de entrevista grupal, que é ogrupo focal ou de discussão, tem apresentado umcrescimento expressivo nas últimas décadas, aten-dendo a interesses de acadêmicos, que a usam parainvestigar as percepções e representações de gruposespecíficos, e as de profissionais que a empregamcomo ferramenta de gerenciamento, de tomada dedecisão e de apoio a programas de intervenção(Gondim, 2002a, 2002b).

Embora alguns autores não façam claramenteuma distinção entre as entrevistas grupais e grupos

focais, existem diferenças fundamentais entre estastécnicas que necessitam ser destacadas, principalmen-te no que se refere ao papel do pesquisador, ao tipode abordagem e aos objetivos da pesquisa.

Nas entrevistas grupais, o que se visa é conhe-cer as opiniões e o comportamento do indivíduo nogrupo. O entrevistador estabelece uma relaçãodiádica com cada membro do grupo. Ao contrário,nos grupos focais, o que interessa são as opiniõesque emergem a partir do momento em que as pesso-as em grupo passam a estar sujeitas aos processospsicossociais que ocorrem neste contexto e influen-ciam na formação de opiniões. No grupo focal, opesquisador tem um papel menos diretivo, ocupan-do o lugar de facilitador do processo de discussãogrupal. Sua relação é com o grupo, pois é ele que étomado como a unidade de análise, ao contrário daentrevista grupal em que o pesquisador se dirige acada indivíduo e o nível de análise que adota é o doindivíduo no grupo (Gondim 2002a; Morgan, 1997).

A escolha entre entrevistas individuais, grupaise grupos focais é fundamental para os rumos da in-vestigação, uma vez que esta decisão orienta a ma-neira como os dados serão coletados e analisados.

Morgan (1997) compara as entrevistas indivi-duais e as entrevistas grupais, ao apresentar algu-mas de suas vantagens e desvantagens. Nas entrevis-tas grupais, o autor supracitado afirma que a técnicaoferece ao pesquisador a oportunidade de observarin loco as semelhanças e diferenças entre opiniões eexperiências dos participantes. Nas entrevistas indi-viduais este mapeamento só poderia ser obtido pelaposterior análise comparativa de cada uma das en-trevistas transcritas. A entrevista individual, a seumodo, é vantajosa quando o que está em jogo é oconhecimento em profundidade dos significados pes-soais de cada participante. Favorece também a maiorproximidade de cada participante individualmente e,em conseqüência, permite maior controle do inves-tigador da própria situação da entrevista, visto que,na situação de grupo, o risco de se desviar do tema émaior.

Em síntese, as entrevistas grupais e, mais es-pecificamente os grupos focais permitem ampliar acompreensão transversal de um tema, ou seja, mapearos argumentos e contra-argumentos em relação a umtópico específico, que emergem do contexto do pro-

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cesso de interação grupal em um determinado tem-po e lugar (jogo de influências mútuas no interior dogrupo), enquanto as entrevistas individuais permitemampliar a compreensão de um tópico específico demodo aprofundado para uma mesma pessoa, em seuprocesso de interação diádica com o entrevistador.

Considerações finais

Este artigo teve o propósito de abordar as en-trevistas como técnica de pesquisa na abordagemqualitativa. As entrevistas ocupam um lugar de des-taque no rol das técnicas de pesquisa em ciênciassociais, principalmente por lidar com a palavra, veí-culo privilegiado da comunicação humana. Por meioda interação verbal de entrevistado e entrevistador, épossível apreender significados, valores e opiniões ecompreender a realidade social com uma profundi-dade dificilmente alcançada por outras técnicas, comoquestionários e entrevistas estruturadas. Isto porque,no caso das entrevistas qualitativas, a relaçãoestabelecida entre o entrevistador e o entrevistadopermite um diálogo amplo e aberto favorecendo nãoapenas o acesso às opiniões e às percepções dos en-trevistados a respeito de um tema, como também acompreensão das motivações e dos valores que dãosuporte à visão particular da pessoa em relação àsquestões propostas.

Ressalta-se, entretanto, em concordância como que diz Silverman (2000) que, embora as entrevis-tas sejam uma alternativa inegável para pesquisas cujoobjetivo é apreender como as pessoas “vêem as coi-sas”, existem outras técnicas mais adequadas quan-do o foco da pesquisa é conhecer como as pessoas“fazem as coisas”, como, por exemplo, a observaçãoparticipante e sistemática.

Na primeira seção, procurou-se caracterizarsucintamente a abordagem qualitativa de pesquisaapresentando as principais diferenças entre esta abor-dagem metacientífica e a quantitativa ou monotética.Considerou-se importante fazer este percurso porqueas entrevistas são utilizadas por ambas as abordagense essas diferenças repercutem no manejo da própriatécnica, como por exemplo, na estruturação de umroteiro, no papel do entrevistador e do entrevistadoe na análise dos resultados.

As entrevistas qualitativas são largamente em-

pregadas na pesquisa social, podendo ser de váriostipos e responder a objetivos diversos. Uma de suasfinalidades é a de compreender um contexto particu-lar, assim como a de ajudar na construção de mode-los teóricos.

A relação intersubjetiva do entrevistador e doentrevistado é vista como uma característica centralda entrevista qualitativa, por permitir a negociaçãode visões da realidade resultantes da dinâmica socialonde os participantes constroem conhecimento e pro-curam dar sentido ao mundo que os cerca (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1994; Fontana & Frey,2000; Minayo, 1998).

Como toda técnica de pesquisa, as entrevistasapresentam limites. Alguns são característicos da pró-pria interação social que tem seu curso nas entrevis-tas, outros são mais específicos da modalidade deentrevista grupal ou individual.

Enfim, todo e qualquer método deve procurardar respostas (positivas ou negativas) a pelo menosquatro exigências científicas: validade constructo,validade externa, validade interna e confiabilidade(Yin, 2001). A validade de constructo demanda queo pesquisador reconheça que a técnica de entrevistaseja a melhor forma de abordar (ou mensurar) o seuobjeto de estudo; a validade externa diz respeito aopoder de generalização, que, no caso da pesquisaqualitativa, é limitado ao contexto de estudo; a vali-dade interna se refere à consistência dos procedimen-tos internos de pesquisa, que, no caso da pesquisaqualitativa, e da entrevista pode ser obtida pela cons-trução de modelo teórico que expressa a estrutura desentido dos significados declarados pelos participan-tes; e a confiabilidade, que se refere à capacidade deuma pesquisa repetir os mesmos procedimentos eapresentar os mesmos resultados. Neste último caso,a pesquisa qualitativa leva desvantagem em relaçãoà pesquisa experimental e quantitativa, a não ser queconceba que a confiabilidade pode vir a ser obtidacaso o modelo teórico construído a partir dos resul-tados do contexto específico possam vir a ser perti-nentes a outros contextos similares (Alves-Mazzotti& Gewandsznajder 1994).

Outras alternativas de obter confiabilidade sãoas avaliações críticas dos participantes e de outrospesquisadores. A primeira consiste em averiguar seas interpretações do pesquisador fazem sentido para

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o próprio participante, o que pode ser feito, inclusi-ve, no momento da entrevista, por meio de perguntasque permitam ao entrevistador esclarecer pontos obs-curos e entender mais claramente o que dizem osentrevistados (texto negociado). O questionamentodos pares, a segunda alternativa de confiabilidade,consiste em submeter os resultados à avaliação deoutros colegas pesquisadores para que sejam apon-tados e discutidos as falhas de procedimentos e osequívocos de interpretação.

Para finalizar, qualquer que seja a técnica ou ométodo escolhido pelo pesquisador haverá limitações.Aliás, a própria escolha do objeto de estudo de pes-quisa já requer um recorte da realidade a serinvestigada. O importante é que tal escolha esteja cadavez mais respaldada em claras concepções do pes-quisador sobre a natureza do objeto de estudo e onível de análise e de descrição pretendidos.

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Márcia Tourinho Dantas Fraser

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ARTIGO / ARTICLE

Quantitativo-Qualitativo: Oposição ou Complementaridade?Quantitative and Qualitative Methods: Opposition or Complementarity?

Maria Cecilia de S. Minayo 1

Odécio Sanches 2

MINAYO, M. C. S. & SANCHES, O. Quantitative and Qualitative Methods: Oppositionor Complementarity? Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (3): 239-262, jul/sep, 1993.This paper summarizes a methodological debate underway at the Brazilian National School ofPublic Health concerning the two major approaches for investigations in the field of health: thequantitative and qualitative methods.The authors — a public health anthropologist and a biostatistician — used theoretical andpractical arguments to demonstrate that these methods are differentiated in nature, but that theycomplement each other in the understanding of social reality.In a world where human beings are distinguished by communicative language, this debatefocuses on the possibility, meaning, and limits of both mathematical language and the languagecommonly used in everyday life.Key words: Biostatistics; Research Methods; Social Sciences; Public Health

INTRODUÇÃO

Este artigo tem sua origem em uma dasatividades curriculares do Curso de Pós-Gra-duação em Saúde Pública da Escola Nacionalde Saúde Pública (Ensp), Fundação OswaldoCruz (Fiocruz) — os denominados SemináriosAvançados de Teses —, quando os autores,discutindo um dos projetos apresentados, tive-ram a oportunidade de apontar as potencialida-des e limitações das abordagens quantitativa equalitativa que estavam sendo utilizadas noprojeto em discussão.

Estas abordagens são os instrumentos de quese serve a Saúde Pública, em particular, para seaproximar da realidade observada. Nenhumadas duas, porém, é boa, no sentido de sersuficiente para a compreensão completa dessarealidade. Um bom método será sempre aquele,que permitindo uma construção correta dos

dados, ajude a refletir sobre a dinâmica dateoria. Portanto, além de apropriado ao objetoda investigação e de oferecer elementos teóricospara a análise, o método tem que ser operacio-nalmente exeqüível.

Aceitando um desafio do Editor da Revista,dois investigadores se encontram: um trabalhacom a abordagem quantitativa; o outro, com ametodologia qualitativa. Ambos defendem seusrespectivos instrumentos de ação, porém ambosos relativizam, pois só quando os mesmos sãoutilizados dentro dos limites de suas especifici-dades é que podem dar uma contribuição efeti-va para o conhecimento da realidade, isto é, abusca da construção de teorias e o levantamen-to de hipóteses.

Na primeira parte, a abordagem quantitativaé examinada mais no contexto de uma lingua-gem. Sem particularizar para o campo da SaúdePública, procura-se evidenciar a evolução dasidéias associadas a esta abordagem na descriçãoe interpretação de fenômenos biológicos de ummodo geral (portanto, não adentrando a comple-xidade inter e multidisciplinar da Saúde Públi-ca).

Na segunda parte deste trabalho, a metodolo-gia qualitativa é abordada procurando enfocar,

1 Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacionalde Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480 - 9ºandar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil.2 Departamento de Epidemiologia e MétodosQuantitativos em Saúde da Escola Nacional de SaúdePública. Rua Leopoldo Bulhões 1480 - 8º andar, Riode Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil.

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principalmente, o social como um mundo designificados passível de investigação e a lingua-gem comum ou a “fala” como a matéria-primadesta abordagem, a ser contrastada com aprática dos sujeitos sociais.

Finalmente, procura-se concluir que ambas asabordagens são necessárias, porém, em muitascircunstâncias, insuficientes para abarcar toda arealidade observada. Portanto, elas podem edevem ser utilizadas, em tais circunstâncias,como complementares, sempre que o planeja-mento da investigação esteja em conformidade.

O conhecimento científico é sempre umabusca de articulação entre uma teoria e a reali-dade empírica; o método é o fio condutor parase formular esta articulação. O método tem,pois, uma função fundamental: além do seupapel instrumental, é a “própria alma do conteú-do”, como dizia Lenin (1965), e siginifica opróprio “caminho do pensamento”, conforme aexpressão de Habermas (1987).

O QUANTITATIVO

A Descrição Matemáticacomo uma Questão de Linguagem

O desenvolvimento da linguagem é uma etapafundamental na evolução do controle deliberadoe consciente das circunstâncias ambientais. Afala exerce um papel vital na rápida transmissãode grandes quantidades de informação entre osdiferentes elementos de um grupo. Quando seatinge o estágio da escrita, cria-se, então, apossibilidade do registro permanente, revisadoe acumulado. A modificação consciente eintencional da linguagem para servir a propósi-tos deliberados é uma etapa posterior do pro-cesso.

Aqueles que acompanham e operam na evo-lução das idéias e do conhecimento sabem quea situação atual da investigação científica éurgente: os trabalhos científicos são produzidosa uma taxa sempre crescente, tornando-seconstantemente mais difícil acompanhar lado alado os novos desenvolvimentos, tanto naprópria área de interesse específico quanto noâmbito inter e multidisciplinar, independente-mente da existência de meios eletrônicos paraarmazenamento da informação.

Nas áreas denominadas ciências exatas, nosúltimos 3 séculos tem havido consideráveisavanços a este respeito, já existindo, atualmen-te, todos os pré-requisitos para o manuseio docrescimento acelerado do conhecimento, princi-palmente o da linguagem, conforme acentuaBailey (1967).

De fato, a título de ilustração, consideremosaquela que parece ser a mais antiga das ciênciasexatas: a Astronomia. É bem conhecido ofantástico conhecimento adquirido pelos astrô-nomos da Babilônia e do Egito antigo, não sóenvolvendo a observação prolongada e precisados eventos, mas também desenvolvendo ahabilidade para se distinguir padrões de mudan-ças, sobre cuja base puderam criar um calendá-rio suficientemente preciso, que permitiu odesenvolvimento de atividades que, moderna-mente, constituem o cerne da economia agríco-la.

Na verdade, para se alcançar tais resultadosera necessário mais que observar os aconteci-mentos e registrar luz e calor nos dias de verão,ou luz esmaecida e dias frios no inverno. Aobservação de padrões reconhecíveis e a deter-minação e mensuração de suas posições eramessenciais. A manipulação e o registro de taismedidas com propósitos de predição implica-vam a existência de uma linguagem e de umaescrita adequadas. Não é, pois, por um acidenteque a matemática babilônica e egípcia possuíaas qualidades suficientes para atender a taisnecessidades.

A lição fundamental que se pretende extrairda lembrança histórica de tal fato de conheci-mento de todos é que, mesmo no chamadoMundo Antigo, um conhecimento consideradosuficientemente preciso não teria sido atingidoe aplicado sem as noções básicas de contar emedir, acompanhadas de um adequado instru-mento matemático para manipulá-las.

Isto parece corroborar nosso ponto de vista deque uma interação entre pensamento e lingua-gem e, conseqüentemente, seu desenvolvimentomútuo são pautados por uma correspondenteinterdependência entre pensamento e matemáti-ca, quando nos dispomos a usá-la para propósi-tos de maior precisão de expressão.

A despeito dos grandes avanços na BiologiaMolecular e na Engenharia Genética, reconhe-cemos, no entanto, que nas chamadas soft

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Minayo, M. C. S. & Sanches, O.

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sciences da Biologia, Psicologia, Sociologia,etc., o progresso tem sido mais incerto. Umarazão para este fato é que os sujeitos da pesqui-sa, nestas áreas, são muito mais variáveis ecomplexos que aqueles das denominadas Ciên-cias Exatas.

No entanto, à medida que as observações emensurações tornam-se mais acuradas e extensi-vas, no âmbito das soft sciences tem surgido aoportunidade de se usar a linguagem matemáti-ca para descrever, representar ou interpretar amultidiversidade de formas vivas e suas possí-veis inter-relações.

A questão fundamental, porém, é decidir queespécies de arrazoados matemáticos são rele-vantes para determinados problemas, que limi-tações estão impostas e como tais métodospodem ser ampliados e generalizados. Não sepode perder de vista que o uso da linguagemmatemática leva a descrições e modelos ideali-zados, uma construção abstrata que, na prática,na melhor das situações, será observada apenasparcialmente.

Quanto mais complexo for o fenômeno sobinvestigação, maior deverá ser o esfoço para sechegar a uma quantificação adequada, em parteporque algumas atividades são inerentementedifíceis de serem mensuradas e quantificadas e,em parte, porque, até o presente momento,descrições matemáticas excessivamente compli-cadas são extremamente intratáveis, do ponto devista de solução, para que tenham algum valorprático.

Deve, então, ser exercitada uma considerávelhabilidade no julgamento de quais fatores sãorelevantes, ou pelo menos aproximadamenterelevantes, para um determinado problema.

A realidade, porém, é que nos defrontamoscom uma situação conflitante, que requer realis-mo e manejabilidade. Uma descrição extrema-mente precisa de todos os fatos conhecidos, porexemplo, a respeito da evolução de uma espé-cie, pode impedir qualquer representação mate-mática útil. Por outro lado, uma supersimplifi-cação do quadro matemático utilizado poderiapermitir, com grande facilidade, o cálculonumérico de certos coeficientes, mas isto seria,ou poderia ser, totalmente infrutífero, porquemuitos fatos relevantes teriam que ser omitidos.

Este é, certamente, um dos dilemas presentesno moderno trabalho de investigação como um

todo, não se restringindo, portanto, à investi-gação biológica, médica ou social.

O Papel da Teoria de Propabilidade eda Inferência Estatística

Todos nós sabemos que características indivi-duais tais como peso, altura, pressão arterial,taxas de componentes bioquímicos no sangue,resposta a estímulos externos, etc., variam entreindivíduos de um grupo num dado instante e,num mesmo indivíduo, de instante para instante.Ordem e regularidade só podem ser estabeleci-das, de forma aproximada, em termos médios esobre um grande número de indivíduos.

Nossa impossibilidade de predizer antecipada-mente, e com certeza, os resultados de umexperimento em sucessivas repetições, sempresob as mesmas condições, caracteriza-se comoum experimento aleatório. A variabilidadepresente, nestas condições, é chamada variabili-dade aleatória, casual, randômica ou estocástica.

Em matemática, o instrumento adequado paratrabalhar o aleatório é um conjunto de procedi-mentos que constitui a chamada teoria daprobabilidade. Para todo evento aleatório épossível associar uma ou mais variáveis, ditasvariáveis aleatórias (função definida no espaçoamostral do experimento aleatório em questão),e para cada variável aleatória (ou conjunto devariáveis aleatórias) é possível encontrar umafunção que descreva a distribuição de probabili-dades para a referida variável (ou conjunto devariáveis), dita função densidade de probabili-dade.

O uso de distribuições de probabilidade paradescrever padrões biológicos, médicos ousociais não é recente. Quetelet (1835) já haviautilizado as propriedades da distribuição deGauss para descrever padrões de altura de sereshumanos; Galton (1889), um médico inglês,havia utilizado as propriedades da mesmadistribuição nos estudos de genética sobreherança natural, tendo sido o criador da teoriade análise de dados largamente utilizada emestatística e conhecida sob o rótulo de regressãolinear.

É importante observar que as distribuições deprobabilidade estão fundamentalmente associa-das a conceitos matemáticos, embora sejamderivadas das noções comuns de chance e

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possibilidade, estabelecidas pelo senso comum,e as conclusões devam ser interpretadas emsentido prático.

Ao construirmos um quadro matemáticoválido de alguns fenômenos com fortes flu-tuações aleatórias, introduzimos idéias deprobabilidades e usamos a teoria da probabilida-de para desenvolver as implicações práticas damesma. Se o modelo é razoavelmente satisfató-rio, pelo menos a algum respeito, então asimplicações devem ser verificadas na prática.Isto é, as conclusões matemáticas devem mos-trar um certo grau de aproximação ou aderênciaàs observações que são feitas e aos resultadosobtidos para o fenômeno em questão.

É função da estatística estabelecer a relaçãoentre o modelo teórico proposto e os dadosobservados no mundo real, produzindo instru-mentos para testar a adequação do modelo. Emresumo, enquanto a teoria da probabilidade estádentro da esfera da lógica dedutiva, a estatísticaencontra-se no âmago da lógica indutiva, con-forme explicita Bailey (1967).

A grande potencialidade dos procedimentosestatísticos de análise de dados, na presença devariabilidade aleatória está contida na possibili-dade de se estabelecer inferência, neste casochamada inferência estatística.

Uma das aplicações da inferência estatísticaé o teste de ajuste — também chamado teste deaderência (em inglês, goodness of fit) — de ummodelo teórico proposto ao conjunto de dadosobservados.

Formalmente, dois são os grandes problemasestatísticos de natureza inferencial: os proble-mas de estimação de parâmetros e os problemasde testes de hipóteses estatísticas.

As questões de inferência estatística quederam origem à denominada estatística mate-mática surgiram de modo mais formal com ostrabalhos, quase simultâneos (e às vezes polê-micos), de Sir Ronald A. Fischer e da dupla J.Neyman e E. S. Pearson, na década 20-30(Neyman, 1976; Neyman & Pearson, 1967;Fischer, 1934), sendo brilhantemente unificadasnum contexto de teoria das decisões por A.Wald (Wald, 1950).

Um grande avanço tem sido conseguido nasciências da saúde, e em particular na Epidemio-logia, com a criação de alguns procedimentosinferenciais estatísticos, específicos para deter-

minados desenhos de estudo. No entanto, temocorrido um certo abuso na utilização de taisprocedimentos por parte de muitos pesquisado-res desta área, que, desconhecendo ou intencio-nalmente ignorando as limitações impostas atais procedimentos pelos pressupostos sobre osquais se assentam, extrapolam sua aplicações,deixando sob suspeita os resultados da análiseconduzida (Altman, 1991). Isto ocorre principal-mente nos testes de hipóteses estatísticas, emparticular com o abuso do chamado “p-valor”como uma medida de evidência em relação àhipótese de nulidade (Miettinen, 1985; Stephenet al., 1988; Berger & Selke, 1987; Goodman &Royall; 1985). Os estatísticos encontram-seatualmente na situação dos bioquímicos e dosfarmacólogos: não se sentem responsáveis pelouso indevido e abusivo de seus produtos. Nãosão procedentes as críticas feitas à Estatística;elas devem ser dirigidas aos maus usuários.

Associadas às questões de inferência estatísti-ca temos as questões de amostragem. Em regra,aqui também há um desconhecimento quasegeral, por parte dos não-especialistas, a respeitodo papel da amostragem, sua relação com ainferência e, conseqüentemente, os pressupostosbásicos que devem nortear a opção por umdeterminado desenho de amostragem e umtamanho específico da amostra. Esta não é umaquestão apenas técnica, relacionada à definiçãodo tamanho da amostra; não é uma questãomeramente estatística ou para deixar para oestatístico resolver. Pesquisadores experimenta-dos na área das ciências humanas (aqui incluin-do as ciências da saúde) não podem ignorar, emuito menos esquecer, que as questões deamostragem são parte integrante das questõesgerais de desenho da investigação.

O QUALITATIVO, SUASPOTENCIALIDADES E SUAS LIMITAÇÕES

O Social como um Mundode Significados Passível de Investigação

Ao inscrever, no item anterior, a descriçãomatemática como uma questão de linguagem,Sanches afirma que “quanto mais complexo é ofenômeno sob investigação, maior deverá ser oesforço para se chegar a uma quantificação

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Minayo, M. C. S. & Sanches, O.

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adequada”. Em seguida, o autor relativiza as“descrições matemáticas complicadas” comosendo “extremamente intratáveis”, devendo oinvestigador defrontar-se com situações confli-tantes entre realismo e manejabilidade.

A reflexão de Sanches ajuda a introduzir oestudo sobre as potencialidades e os limites dométodo qualitativo, dentro de uma discussãoepistemológica mais ampla.

Uma das questões colocadas sobre a cientifi-cidade das ciências sociais diz respeito à plausi-bilidade de se tratar de uma realidade na qualtanto investigadores como investigados sãoagentes: esta ordem de conhecimento nãoescaparia radicalmente a toda possibilidade deobjetivação?

Para responder a esta pergunta, uma correntede estudiosos das áreas humano-sociais, comoDurkheim (1978), tem se munido de doisargumentos metodológicos: a) é possível traçaruniformidades e encontrar regularidades nocomportamento humano; e b) regularidadespredizíveis existem em qualquer fenômenohumano-cultural e podem ser estudadas semlevar em conta apenas motivações individuais.

Outros cientistas, porém, tentam encaminhara discussão de forma diferente, questionando se,ao buscar instrumentos de objetivação do socialapenas através da quantificação das uniformida-des e regularidades, não se estaria descaracteri-zando o que há de essencial nos fenômenos enos processos sociais.

No início do século XX, em Chicago, EstadosUnidos, e no final do século XIX, em Heidel-berg, Alemanha, surgia uma escola sociológicaque se rebelava radicalmente contra a tentativade analogia entre ciências naturais e ciênciassociais. Seu fundamento residia na argumen-tação de que as ciências sociais privam-se dasua própria essência quando se abstêm deexaminar a estrutura motivacional da açãohumana.

O desenvolvimento desta segunda corrente,em oposição ao positivismo, deveu-se a estudio-sos como Wilhelm Dilthey, embora certas desuas raízes possam ser encontradas em Hegel,Marx e, até, Vico. Quem deu maior consistên-cia metodológica a esta reflexão, no entanto, foiMax Weber. É de Weber a afirmação de quecabe às ciências sociais a compreensão dosignificado da ação humana, e não apenas a

descrição dos comportamentos. Weber tambémafirma que o elemento essencial na interpre-tação da ação é o dimensionamento do signifi-cado subjetivo daqueles que dela participam(Weber, 1970).

Da mesma forma, William Thomas (1970),um dos pais da sociologia norte-americana,avançou na elaboração do clássico teoremasegundo o qual é essencial, no estudo dos sereshumanos, descobrir como eles definem assituações nas quais se encontram, porque “seeles definem situações como reais, elas sãoreais em suas conseqüências” (1970: 245-247).

O que Weber e Thomas afirmaram tornou-sehoje um axioma da investigação dos “objetos”sociais. A compreensão de que os seres huma-nos respondem a estímulos externos de maneiraseletiva, bem como de tal seleção é poderosa-mente influenciada pela maneira através da qualeles definem e interpretam situações e aconte-cimentos, passou a complicar o raciocínio sobrea cientificidade enquanto modelo já construído.

A corrente compreensivista — mãe dasabordagens qualitativas — ganhou legitimidadeà medida que métodos e técnicas foram sendoaperfeiçoados para a abordagem dos problemashumanos e sociais. No entanto, persistemmuitas questões, complexas e profundas, que setornam posições intelectuais e ideológicas frenteaos interrogantes teóricos, metodológicos capa-zes de abranger os objetos com mais profundi-dade.

O positivismo de Comte (1978) e Durkheim(1978), por exemplo, tem defendido que a únicaforma científica de apreender o social é aobservação dos dados da experiência, isto é, doscaracteres exteriores, objetivamente manifestosnos fatos: “a posição epistemológica de base dopositivismo”, dizem Bruyne et al. (1991), “é arecusa da apreensão imediata da realidade, dacompreensão subjetiva dos fenômenos, dapesquisa intuitiva de suas essências”. A atitudepositivista é caracterizada, quanto ao método,pela subordinação da imaginação à observação(Comte, 1978). Os fatos são valorizados pelassuas características exteriores, como bem odescreve Durkheim (1978): “é coisa todo objetode conhecimento que não é naturalmente pene-trável pela inteligência (...) e que o espírito sópode chegar a compreender com a condição desair de si mesmo, por meio de observações e de

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experimentações”. Assim, resumindo, a aborda-gem positivista limita-se a observar os fenôme-nos e fixar as ligações de regularidade quepossam existir entre eles, renunciando a desco-brir causas e contentando-se em estabelecer asleis que os regem. A lógica que preside estalinha de atividade é de caráter comparativo eexterior aos sujeitos. O positivismo não nega ossignificados, mas recusa-se a trabalhar comeles, tratando-os como uma realidade incapazde se abordar cientificamente.

Um dos marcos históricos a favor destacorrente foi a tese de Doutorado de SamuelStouffer, em 1930, na Universidade de Chicago(naquela ocasião, o templo norte-americano daabordagem qualitativa), com o título “An Expe-rimental Comparison of Statistical and CaseHistory Methods of Attitude Research” (1931).Tal tese ensejou um amplo debate acadêmicosobre a propriedade dos métodos quantitativose qualitativos nas ciências sociais, redundandonuma clara prioridade a favor da abordagemestatística, porque: a) foi considerada maisrápida, mais fácil de ser viabilizada e capaz deabranger um número maior de casos; e b) asanálises qualitativas foram consideradas, quandomuito, estudos heurísticos, pré-científicos,subjetivistas ou, até, “reportagens malfeitas”.

Ora, o debate da década de 30 não se encer-rou; pelo contrário, continua ainda hoje emtodos os centros de reflexão sobre o social. Osmotivos que fundamentaram a crítica de Stouf-fer, no entanto, estão muito mais relacionadosao pouco desenvolvimento de métodos e técni-cas compatíveis do que com a própria naturezado conhecimento. E é neste sentido que, aocontrário do positivismo, a sociologia compre-ensiva coloca o aprofundamento do “qualitati-vo” inerente ao social, enquanto possibilidade eúnico quadro de referência condizente e funda-mental das ciências humanas no presente.

Neste debate, como já se mencionou, W.Dilthey (1956) separa as ciências físicas e asciências humanas com um recorte fundamental.Para ele, nas ciências físicas é possível procu-rarmos explicações e lidarmos com a compre-ensão dos fenômenos através da análise de seussignificados. Nas primeiras estabelecem-se leiscausais; nas segundas, configurações e interpre-tações.

Weber (1970) elabora a tarefa qualitativacomo a procura de se atingir precisamente oconhecimento de um fenômeno histórico, isto é,significativo em sua singularidade.

É no campo da subjetividade e do simbolismoque se afirma a abordagem qualitativa. Acompreensão das relações e atividades humanascom os significados que as animam é radical-mente diferente do agrupamento dos fenômenossob conceitos e/ou categorias genéricas dadaspelas observações e experimentações e peladescoberta de leis que ordenariam o social.

A abordagem qualitativa realiza uma aproxi-mação fundamental e de intimidade entre sujei-to e objeto, uma vez que ambos são da mesmanatureza: ela se volve com empatia aos moti-vos, às intenções, aos projetos dos atores, apartir dos quais as ações, as estruturas e asrelações tornam-se significativas.

No entanto, não se assume aqui a redução dacompreensão do outro e da realidade a umacompreensão introspectiva de si mesmo. É porisso que, na tarefa epistemológica de delimi-tação qualitativa, há de se superar tal idéia,buscando uma postura mais dialética dentrodaqueles três aspectos descritos por Bruyne etal. (1991): a) o movimento concreto, natural esócio-histórico da realidade estudada (sentidoobjetivo); b) a lógica interna do pensamentoenquanto sentido subjetivo; e c) a relação entreo objeto real visado pela ciência, o objetoconstruído pela ciência e o método empregado(sentido metodológico).

É necessário buscar o auxílio de pensadorescomo Habermas (1987), para quem “uma teoriadialética da sociedade procede de maneirahermenêutica. Nela, a compreensão do sentidoé constitutiva. Tira suas categorias primeiro daconsciência que têm da situação os própriosindivíduos em ação. No sentido objetivo domeio social, articula-se o sentido sobre o qualse insere a interpretação sociológica, ao mesmotempo identificadora e crítica”.

Em outras palavras, do ponto de vista qualita-tivo, a abordagem dialética atua em nível dossignificados e das estruturas, entendendo estasúltimas como ações humanas objetivadas e,logo, portadoras de significado. Ao mesmotempo, tenta conceber todas as etapas da inves-tigação e da análise como partes do processo

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social analisado e como sua consciência críticapossível. Assim, considera os instrumentos, osdados e a análise numa relação interior com opesquisador, e as contradições como a própriaessência dos problemas reais (Minayo, 1982).

Voltando ao ponto inicial sobre as indagaçõesespistemológicas de tal abordagem, dir-se-iaque a cientificidade tem que ser pensada aquicomo uma idéia reguladora de alta abstração, enão como sinônimo de modelos e normasrígidas. Na verdade, o trabalho qualitativocaminha sempre em duas direções: numa,elabora suas teorias, seus métodos, seus princí-pios e estabelece seus resultados; noutra, inven-ta, ratifica seu caminho, abandona certas vias etoma direções privilegiadas. Ela compartilha aidéia de “devir” no conceito de cientificidade.

Definir o nível de simbólico, dos significadose da intencionalidade, constituí-lo como umcampo de investigação e atribuir-lhe um grau desistematicidade pelo desenvolvimento de méto-dos e técnicas têm sido as tarefas e os desafiosdos cientistas sociais que trabalham com aabordagem qualitativa ao assumirem as críticasinterna e externa exercidas sobre suas investi-gações.

Linguagem e Prática:Matérias Primas da Abordagem Qualitativa

Segundo Granger (1982), a realidade social équalitativa e os acontecimentos nos são dadosprimeiramente como qualidades em dois níveis:a) em primeiro lugar, como um vivido absolutoe único incapaz de ser captado pela ciência; eb) em segundo lugar, enquanto experiênciavivida em nível de forma, sobretudo da lingua-gem que a prática científica visa transformarem conceitos.

Falando dentro do campo sociológico, Gur-vitch (1955) diferencia também dois níveis deexperiência em constante comunicação: a) o“ecológico, morfológico, concreto”, que admiteexpressão em cifras, equações, medidas, gráfi-cos e estatísticas; e b) o das “camadas maisprofundas”, que se refere ao mundo dos símbo-los, dos siginificados, da subjetividade e daintencionalidade.

É exatamente esse nível mais profundo (emconstante interação com o ecológico) — o níveldos significados, motivos, aspirações, atitudes,

crenças e valores, que se expressa pela lingua-gem comum e na vida cotidiana — o objeto daabordagem qualitativa.

Por trabalhar em nível de intensidade dasrelações sociais (para se utilizar uma expressãokantiana), a abordagem qualitativa só pode serempregada para a compreensão de fenômenosespecíficos e delimitáveis mais pelo seu grau decomplexidade interna do que pela sua expressãoquantitativa. Adequa-se, por exemplo, ao estudode um grupo de pessoas afetadas por umadoença, ao estudo do desempenho de umainstituição, ao estudo da configuração de umfenômeno ou processo. Não é útil, ao contrário,para compor grandes perfis populacionais ouindicadores macroeconômicos e sociais. Éextremamente importante para acompanhar eaprofundar algum problema levantado porestudos quantitativos ou, por outro lado, paraabrir perspectivas e variáveis a serem posterior-mente utilizadas em levantamentos estatísticos.

O material primordial da investigação qualita-tiva é a palavra que expressa a fala cotidiana,seja nas relações afetivas e técnicas, seja nosdiscursos intelectuais, burocráticos e políticos.

Segundo Bakhtin (1986), existe uma ubiqüi-dade social nas palavras. Elas são tecidas pelosfios de material ideológico; servem de trama atodas as relações sociais; são o indicador maissensível das transformações sociais, mesmodaquelas que ainda não tomaram formas; atuamcomo meio no qual se produzem lentas acumu-lações quantitativas; são capazes de registrar asfases transitórias mais íntimas e mais efêmerasdas mudanças sociais.

Nestes termos, a fala torna-se reveladora decondições estruturais, de sistemas de valores,normas e símbolos (sendo ela mesma umdeles), e, ao mesmo tempo, possui a magia detransmitir, através de um porta-voz (o entrevis-tado), representações de grupos determinadosem condições históricas, sócio-econômicas eculturais específicas.

Uma das indagações mais freqüentes nocampo da pesquisa é a que se refere à repre-sentatividade da fala individual em releção aum coletivo maior. Tal indagação constituíauma preocupação de Bourdieu (1972) quandoeste definiu o conceito de habitus, segundo oqual a identidade de condições de existênciatende a produzir sistemas de disposições seme-

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lhantes, através de uma harmonização objetivade práticas e obras: “cada agente, ainda quenão saiba ou não queira, é produtor e reprodu-tor do sentido objetivo, porque suas ações sãoo produto de um modo de agir do qual ele nãoé o produtor imediato, nem tem o domíniocompleto”. Daí a possibilidade de se exercer, naanálise da prática social, o efeito da universali-zação e da particularização (180).

O referido autor define o conceito de habitusda seguinte maneira: “um sistema de dispo-sições duráveis e intransferíveis que integratodas as experiências passadas e funciona atodo momento como matriz de preocupações,apreciações e ações (...) o inconsciente dahistória que a história produz, incorporando asestruturas objetivas” (Bourdieu, 1972).

No mesmo sentido, existe um comentáriofeliz de Sapir (1967) quando diz que o “indiví-duo concretiza, sob mil formas possíveis, idéiase modos de comportamento implicitamenteinerentes às estruturas ou às tradições de umadada sociedade”. O autor acrescenta que “se umtestemunho individual é comunicado, isto nãoquer dizer que se considera tal indivíduo pre-cioso em si mesmo. Essa entidade singular étomada como amostra da continuidade de seugrupo” (Sapir, 1967:90).

Resumindo, para Goldmann (1980), “a cons-ciência coletiva só existe nas consciênciasindividuais, embora não seja a soma dessasúltimas”.

Sociologicamente, diferente do que se passacom a Psicologia, a análise das palavras e dassituações expressas por informantes personaliza-dos não permanece, pois, nos significadosindividuais. A compreensão intersubjetiva requera imersão nos significados compartilha-dos. Sociólogos e antropólogos têm desmonstra-do que a função essencial das normas culturaisé prover os membros de um grupo ou sociedadecom definições de situação intelegiveis e inter-cambiáveis no coletivo. Sem isso, a vida socialseria impossível.

Portanto, se um estudioso do social astá aptoa entender a linguagem e a definição da si-tuação típica de um grupo, estrato ou sociedade— respondendo às indagações tradicionais daciência —, ele está apto também a predizer asrespostas desse grupo com um certo grau deprobabilidade.

As considerações acima encaminham-se paraquestões de ordem prática, sobretudo em re-lação à representatividade da fala e da obser-vação das práticas, das instituições e do “evasi-vo da vida cotidiana”.

O confronto da fala e da prática social étarefa complementar e concomitante da investi-gação qualitativa, que, no entanto, em algunscasos, limita-se ao material discursivo. Emparticular, as abordagens etnográficas nãodispensam as etapas de observação e convivên-cia no campo.

A ênfase quase absoluta na fala como mate-rial de análise transforma a questão da desco-berta e da validade em habilidade de manipu-lação dos signos. Ela está fundamentada nacrença de que a “verdade” dos significadossitua-se nos meandros profundos da significaçãodos textos.

Ao contrário, o ensinamento fundamental daAntropologia é o cotejamento da fala, com aobservação das condutas e dos costumes e coma análise das instituições. Checar o que é ditocom o que é feito, com o que é celebrado e/ouestá cristalizado. Desta forma, uma análisequalitativa completa interpreta o conteúdo dosdiscursos ou a fala cotidiana dentro de umquadro de referência, onde a ação e a açãoobjetivada nas instituições permitem ultrapassara mensagem manifesta e atingir os significadoslatentes.

Há vários métodos e técnicas de análise domaterial qualitativo. E, assim, como observaSanches a respeito do uso da estatística, hátrabalhos bem-feitos ou malfeitos. Há investiga-dores que não passam além do que Bourdieu(1972) denomina “ilusão da transparência”, darepetição do que ouve e vê no trabalho decampo. Tal procedimento não pode ser atribuí-do ao método em si, mas ao seu uso superficiale pobre. Segundo Granger (1982), um verdadei-ro modelo qualitativo descreve, compreende eexplica, trabalhando exatamente nesta ordem.

Para Nicole Ramognino (1982), um trabalhode conhecimento social tem que atingir trêsdimensões: a simbólica, a histórica e a concreta.A dimensão simbólica contempla os significa-dos dos sujeitos; a histórica privilegia o tempoconsolidado do espaço real e analítico; e aconcreta refere-se às estruturas e aos atoressociais em relação.

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CONCLUSÕES

Propositalmente, não se entrou, neste traba-lho, nas questões específicas da área da saúde,uma vez que a pretensão do texto era ser intro-dutório de uma problemática que concerne eultrapassa o campo. No entanto, é certo que,hoje, os objetos de investigação, tanto dosprofessores como dos pós-graduandos em SaúdePública da Ensp, vinculam-se metodologica-mente aos temas aqui tratados, fato conhecidoatravés do desenvolvimento das linhas depesquisa e dos projetos de tese.

A intenção dos autores, portanto, é apenas darum pontapé inicial num debate que consideramextremamente relevante e indiscutivelmentepossível e promissor.

Consideram que, do ponto de vista metodoló-gico, não há contradição, assim como não hácontinuidade, entre investigação quantitativa equalitativa. Ambas são de natureza diferente.

A primeira atua em níveis da realidade, ondeos dados se apresentam aos sentidos: “níveisecológicos e morfológicos”, na linguagem deGurvitch (1955).

A segunda trabalha com valores, crenças,representações, hábitos, atitudes e opiniões.

A primeira tem como campo de práticas eobjetivos trazer à luz dados, indicadores etendências observáveis. Deve ser utilizada paraabarcar, do ponto de vista social, grandesaglomerados de dados, de conjuntos demográfi-cos, por exemplo, classificando-os e tornando-os inteligíveis através de variáveis.

A segunda adequa-se a aprofundar a comple-xidade de fenômenos, fatos e processos particu-lares e específicos de grupos mais ou menosdelimitados em extensão e capazes de seremabrangidos intensamente.

Do ponto de vista epistemológico, nenhumadas duas abordagens é mais científica do que aoutra. De que adianta ao investigador utilizarinstrumentos altamente sofisticados de mensu-ração quando estes não se adequam à compre-ensão de seus dados ou não respondem a per-guntas fundamentais? Ou seja, uma pesquisa,por ser quantitativa, não se torna “objetiva” e“melhor”, ainda que prenda à manipulaçãosofisticada de instrumentos de análise, casodeforme ou desconheça aspectos importantes

dos fenômenos ou processos sociais estudados.Da mesma forma, uma abordagem qualitativaem si não garante a compreensão em profundi-dade.

Esta observação torna-se necessária pararebater a tese de vários estudiosos que, doponto de vista científico, colocam, numa escala,a abordagem quantitativa como sendo a maisperfeita, classificando estudos qualitativosapenas como “subjetivismo”, “impressões” ou,no máximo, “atividades exploratórias”.

Não cabe neste espaço desenvolver o tema,mas, tanto do ponto de vista quantitativo quantodo ponto de vista qualitativo, é necessárioutilizar todo o arsenal de métodos e técnicasque ambas as abordagens desenvolveram paraque fossem consideradas científicas.

No entanto, se a relação entre quantitativo equalitativo, entre objetividade e subjetividadenão se reduz a um continuum, ela não pode serpensada como oposição contraditória. Pelocontrário, é de se desejar que as relações sociaispossam ser analisadas em seus aspectos mais“ecológicos” e “concretos” e aprofundadas emseus significados mais essenciais. Assim, oestudo quantitativo pode gerar questões paraserem aprofundadas qualitativamente, e vice-versa.

RESUMO

MINAYO, M. C. S. & SANCHES, O.Quantitativo-Qualitativo: Oposição ouComplementaridade? Cad. Saúde Públ., Riode Janeiro, 9 (3): 239-262, jul/set, 1993.

Este trabalho resume um debate metodológicoem processo na Escola Nacional de SaúdePública, Brasil, sobre as duas formas deabordagem mais correntes nas investigaçõesda área de saúde: o método quantitativo e ométodo qualitativo.Os autores — uma antropóloga sanitarista eum bioestatístico — demonstram, comargumentações teóricas e práticas, que essesmétodos são de natureza diferenciada, mas secomplementam na compreensão da realidadesocial.Num mundo onde o que distingue o serhumano é a linguagem comunicativa, o acento

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Minayo, M. C. S. & Sanches, O.

deste debate recai sobre a possibilidade, osignificado e os limites da linguagemmatemática e da linguagem de uso comum naexperiência cotidiana.

Palavras-Chave: Bioestatística; Métodosde Ciências Sociais; Saúde Pública

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O USO DO GRUPO FOCAL EM PESQUISA QUALITATIVATHE USE OF THE FOCUS GROUP IN QUALITATIVE RESEARCHING

EL USO DEL GRUPO FOCAL EN LA INVESTIGACIÓN CUALITATIVA

Lúcia Beatriz Ressel1, Carmem Lúcia Colomé Beck1, Dulce Maria Rosa Gualda2,Izabel Cristina Hoffmann3,Rosângela Marion da Silva3,Graciela Dutra Sehnem4

1 Doutora em Enfermagem. Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Rio Grande do Sul, Brasil.

2 Doutora em Enfermagem. Professor Associado do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil.

3 Mestranda em Enfermagem do Programa de Pós Graduação em Enfermagem (PPGEnf) da UFSM. Rio Grande do Sul, Brasil.

4 Mestranda em Enfermagem do PPGEnf da UFSM, Professor Substituto do Departamento de Enfermagem da UFSM. Rio Grande do Sul, Brasil.

RESUMO: O estudo objetiva apresentar o grupo focal como técnica de coleta de dados em uma tese de doutorado resultante de pesquisa qualitativa. O grupo focal, como técnica de pesquisa, utiliza sessões grupais de discussão, centralizando um tópico específico a ser debatido entre os participantes. A pesquisa focalizou a temática da sexualidade na assistência de enfermagem em uma perspectiva cultural, sendo desenvolvida com dois grupos de enfermeiras: docentes e assistenciais. O grupo focal abrangeu oito encontros, cada um foi planejado separadamente. A avaliação do processo realizou-se mediante entrevista com as enfermeiras, destacando como pontos positivos a condução ao pensamento crítico e ao processo de desalienação; e a possibilidade desta técnica desvelar significados singulares e a que se relacionam, sob o ponto de vista dos sujeitos pesquisados. Destaca-se que o grupo focal facilitou a abordagem da sexualidade, desconstruindo e reconstruindo conceitos e buscando novas respostas para as inquietações que o tema conjuga.

ABSTRACT: This study aims to present the use of focus group as a technique for data collection in a doctoral dissertation resulting from qualitative research. The focus group as a research technique uses group discussion sessions focused on specific topics to be debated among its participants. The research focused on sexuality in nursing care from a cultural perspective, developed and carried out among two groups of nurses: nursing professors and nursing assistants. The focus group was composed of eight meetings, each planned separately. The evaluation process occurred through the interviews with the nurses, highlighting critical thinking and non-alienation as positive features. The possibility of this technique unveils singular meanings and to what they are related based on the subjects’ points of view. The focus group technique facilitated the sexuality approach, deconstructing and reconstructing concepts as well as searching for new answers to the problems the theme raises.

RESUMEN: Este estudio tuvo como objetivo presentar el uso del grupo focal como técnica de recolección de datos en una tesis de doctorado, resultado de una investigación cualitativa. El grupo focal utiliza sesiones grupales de discusión, teniendo como foco central un tópico específico a ser debatido por los participantes. La investigación focalizó la temática de la sexualidad en la asistencia de enfermería, bajo una perspectiva cultural, siendo desarrollada con dos grupos de enfermeras: docentes y asistenciales. Comprendió ocho encuentros, y cada uno fue planeado por separado. La evaluación del proceso se realizó por medio de entrevistas con las enfermeras, destacando como puntos positivos la conducción hacia el pensamiento crítico y al proceso de desalineación; y la posibilidad de que esta técnica revele significados singulares y a que ellos se relacionen desde el punto de vista de los sujetos investigados. Esa técnica facilitó el abordaje de la sexualidad, desconstruyendo y reconstruyendo conceptos y buscando respuestas para las inquietudes del tema.

PALAVRAS-CHAVE: Pes-quisa qualitativa. Pesquisa metodológica em enferma-gem. Sexualidade.

KEYWORDS: Qualitative research. Nursing methodol-ogy research. Sexuality.

PALABRAS CLAVE: Inves-tigación cualitativa. Inves-tigación metodológica en enfermería. Sexualidad.

O uso do grupo focal em pesquisa qualitativa

Lúcia Beatriz ResselEndereço: Rua Coronel Niederauer, 621, ap. 150397015-121- Centro, Santa Maria, RS, BrasilE-mail: [email protected]

Relato de experiênciaRecebido em: 15 de abril de 2008

Aprovação final: 14 de outubro de 2008

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INTRODUÇÃOEste artigo resultou da tese de doutorado

Vivenciando a sexualidade na assistência de en-fermagem: um estudo na perspectiva cultural,1 re-alizada na Universidade de São Paulo (USP). Este estudo, de cunho qualitativo, teve como objetivo compreender de que forma a sexualidade, condi-cionada culturalmente, é vivenciada na assistência de enfermagem, pelas enfermeiras.

Como o estudo envolveu a perspectiva cultura, e teve orientação etnográfica, os dados revelados deveriam possibilitar que emergissem diferentes pontos de vista sobre o tema, a fim de apreender as singularidades das visões de mundo das enfermeiras participantes. Ao mesmo tempo, esperava-se que favorecessem compreender, em profundidade, o comportamento do grupo restrito, justificando-se a utilização da técnica do Grupo Focal (GF).2-3

Os GFs são grupos de discussão que dialo-gam sobre um tema em particular, ao receberem estímulos apropriados para o debate. Essa técnica distingue-se por suas características próprias, prin-cipalmente pelo processo de interação grupal, que é uma resultante da procura de dados.4

Em uma vivência de aproximação, permite que o processo de interação grupal se desenvolva, favorecendo trocas, descobertas e participações comprometidas. Também proporciona descontra-ção para os participantes responderem as questões em grupo, em vez de individualmente.2-3

Essa técnica facilita a formação de idéias novas e originais. Gera possibilidades contextua-lizadas pelo próprio grupo de estudo.2 Oportuniza a interpretação de crenças, valores, conceitos, conflitos, confrontos e pontos de vista. E ainda possibilita entender o estreitamento em relação ao tema, no cotidiano.1

Cabe enfatizar que o GF permite ao pesqui-sador não só examinar as diferentes análises das pessoas em relação a um tema. Ele também pro-porciona explorar como os fatos são articulados, censurados, confrontados e alterados por meio da interação grupal e, ainda, como isto se relaciona à comunicação de pares e às normas grupais.4

O GF também é adequado para ser consul-tado em estágios exploratórios de uma pesquisa, quando se quer ampliar a compreensão e a avalia-ção a respeito de um projeto, programa ou serviço. E pode ser associado a outras técnicas de coleta de dados, concomitantemente.5

Esta técnica tem sido utilizada freqüente-mente nas áreas da Antropologia, Ciências Sociais, Mercadologia e Educação em Saúde. Ela é apro-priada nas pesquisas qualitativas, que objetivam explorar um foco, ou seja, um ponto em especial.

A técnica de pesquisa com o GF foi descrita e publicada no ano de 1926, em um trabalho de Bogartus, nas Ciências Sociais, como entrevistas grupais. Depois, em 1946, durante a 2ª Guerra Mundial, foi usada por Merton & Kendall, para investigar o potencial de persuasão da propaganda de guerra para as tropas. E, em 1952, Thompson & Demerath estudaram sobre fatores que afetavam a produtividade de trabalhos em grupo. Na área de marketing, a mídia utiliza largamente a mesma técnica, valorizando-a pelas condições de baixo custo para sua operacionalização e pela rapidez em obter dados confiáveis e válidos.5

O GF, apesar de ter sido criado e utilizado pelas Ciências Sociais, ficou à margem dessa ci-ência por vários anos. Nesse período havia uma preferência, em pesquisas qualitativas da área, pela observação participante e pela entrevista semi-estruturada. Contudo, na academia, essa téc-nica atraiu a atenção de pesquisadores da Antro-pologia Social, que a utilizam em estudos culturais e pesquisas em saúde. Mais recentemente, a partir do final da década de 80, vem sendo retomada por seus próprios precursores, que triplicaram o número de trabalhos com aplicação do GF.4

No Brasil, na faculdade de Saúde Pública da USP, na área de Educação em Saúde, a partir de 1989, o GF vem sendo aplicado para sistematizar a coleta de dados, em estudos diagnósticos de problemas educativos em saúde, e em estudos avaliativos de programas de saúde.5 Principalmente nessa área, ele vem sendo requisitado e amplamente utilizado como instrumento de avaliação e diagnóstico educativo.

É fundamental salientar que a técnica tam-bém está presente na Enfermagem, ainda que de forma tímida. Ela surge principalmente em estudos que apontam esta técnica como estratégia metodológica, em pesquisas qualitativas na Enfer-magem3,6-8 e nos trabalhos que avaliam aspectos relacionados à educação, promoção, programas e projetos de saúde.5,9-10

Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo apresentar a técnica do GF como ferra-menta a ser utilizada em pesquisa qualitativa, evidenciando a avaliação realizada após sua apli-cação junto às participantes da tese1 referida ao início desta introdução.

Ressel LB, Beck CLC, Gualda DMR, Hoffmann IC, Silva RM, Sehnem GD

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A METODOLOGIA DE CONSTRUÇÃO DO GRUPO FOCAL

O estudo1 que deu origem a este artigo objetivou compreender de que forma o tema da sexualidade, condicionado culturalmente, é vi-venciado na prática da assistência de enfermagem pelas enfermeiras. Para tanto, adotou-se como opção conceitual a Antropologia Cultural e como método a Etnografia. Optou-se pela abordagem de pesquisa qualitativa, do tipo descritivo-explo-ratória, e os dados foram obtidos por intermédio das técnicas do GF, prioritariamente, e de entre-vistas, complementarmente.

Para a seleção e organização do GF, foi imprescindível ter claro os critérios de inclusão dos sujeitos na pesquisa. Foram compostos dois grupos distintos de colaboradoras, um com sete enfermeiras docentes do Departamento de Enfer-magem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e outro com sete enfermeiras do Hospital Universitário de Santa Maria-RS.

A formação do GF é intencional e pretende-se que haja, pelo menos, um ponto de semelhança entre os participantes.2-3 Optou-se, neste estudo, para composição dos grupos, pelo critério de compartilhamento do mesmo local de trabalho. Isso favoreceu os relatos de experiências, neces-sidades, valores e crenças, as quais interagem na temática em foco. O número de participantes em cada grupo seguiu orientação de estudos acerca do grupo focal, que referem de seis a 15 pessoas como um módulo recomendável.2-3,11 A dimensão dos grupos depende dos objetivos de cada estudo. Quando se deseja gerar maior número de idéias, a melhor opção é organizar grupos maiores. E, quan-do se espera aprofundar a temática na discussão, deve-se optar por grupos menores.2-3

Foram realizadas oito sessões de GF, dividi-das em quatro encontros por grupo. Cada sessão durou uma hora e trinta minutos. As reuniões ocorreram semanalmente, em dia e hora combi-nados com as colaboradoras. Esse cuidado é uma recomendação para o bom desenvolvimento dos grupos focais.2-3,11 Antes de iniciar os GFs, realiza-ram-se entrevistas individuais, com o objetivo de obter informações referentes à identificação pesso-al e ao interesse e perspectiva de cada colaboradora em participar do trabalho. Na véspera do encontro de cada GF, confirmava-se, via telefone, o horário e o local do encontro, no sentido de estimular a presença de cada enfermeira.

As reuniões contaram com uma preparação especial, de acordo com o objetivo e a metodo-

logia que seria utilizada. Foram necessários al-guns cuidados que permearam todas as sessões, como agendamento prévio do local, preparo da sala (iluminação, ventilação, cadeiras estofadas, espaço adequado para a realização das técnicas), manutenção do gravador (pilhas e fitas casse-te), seleção e preparo antecipado do material específico para cada encontro e organização do ambiente. Esses preparativos são previstos nos estudos acerca dessa técnica.2-3

O ambiente das sessões grupais deve ser agradável, confortável e acolhedor. Por isso, optou-se pelo uso de incensos, que perfumaram levemente a sala, músicas relaxantes, com sons de água, de natureza, e um lanche para ser degustado ao longo do encontro.3

Tendo em vista que, como enfermeiras, nosso objeto de trabalho é o cuidado de pessoas, a sensibi-lidade deve permear nosso fazer. Esse entendimen-to foi estendido à pesquisa, no conjunto de etapas que envolveram a realização do grupo focal.

A formação em círculo permitiu a intera-ção face a face, o bom contato visual e, ainda, a manutenção de distâncias iguais entre todas as participantes, estabelecendo o mesmo campo de visão para todas. A observadora e a moderadora se sentavam em lugares que possibilitavam a co-municação não-verbal, por meio do olhar. Para não centralizarem a atenção das colaboradoras, evita-ram se posicionarem uma ao lado da outra.2-3

A localização da sala possibilitou desenvol-ver os encontros sem interferências externas. O cuidado ao prever o espaço físico para realizar o grupo mostrou-se fundamental, pois facilitou o debate, assegurou privacidade, conforto, fácil acesso e ambiente neutro.2

Embora ambos os grupos estivessem cen-trados no tema da sexualidade, cada encontro teve um objetivo específico, ou seja, focalizar uma perspectiva acerca da temática. Para tanto, foram utilizadas técnicas de estímulo apropriadas5 e questões norteadoras para os debates, as quais fizeram parte do guia de temas.2-3

Em alguns encontros, optou-se por empregar técnicas comumente utilizadas em oficinas didá-ticas, entre elas as técnicas de explosão de idéias, colagem em cartaz e de modelagem em argila. Associaram-se tais recursos buscando incentivar o desenvolvimento da temática, que se encontra ve-lada, sendo difícil de ser expressa verbalmente.

Assim, à medida que as colaboradoras ex-pressavam seus sentimentos e concepções por meio das técnicas, elas explicavam, argumentavam

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e desenvolviam a discussão naturalmente. Foi possível constatar a promoção do debate de forma criativa, alegre e sem censuras.

Ao final de cada encontro, foi elaborada uma síntese dos depoimentos e era oportunizado um último espaço às participantes, tanto para acrescen-tarem, esclarecerem ou mudarem alguma idéia re-ferida na discussão, quanto para expressarem como se sentiram. Solicitava-se, também, que fizessem sugestões e críticas ao andamento das atividades, se desejassem. Encerrava-se com agradecimentos finais e confirmava-se o próximo encontro.

Ao início de cada nova sessão, era exposto um resumo dos encontros anteriores e apresenta-do o objetivo daquele encontro. Dava-se, então, início ao debate, a partir da técnica de estímulo escolhida.

Salienta-se aqui a construção e o uso do guia de temas, que serviu como um esquema norteador, sistematizando questões e objetivos para cada GF. Percebeu-se que a sua importância não se relacio-nava à quantidade de questionamentos, mas à qua-lidade da elaboração e da aplicação, de acordo com os objetivos de cada encontro.2-3 Nesse sentido, foi possível, por meio da observação atenta, manter a discussão em foco, aprofundando, esclarecendo e solicitando exemplos às participantes.

Algumas das questões constantes do guia são citadas a seguir: Qual a primeira idéia que lhe vem à mente, quando falamos em sexualidade? Como você expressa sua sexualidade no dia-a-dia? Como transparecem as questões de sexualidade na prática de enfermagem, e como são conduzidas essas questões? Como eram tratadas as questões relativas à sexualidade, em sua infância e ado-lescência? Como é a imagem de enfermeira para você? Como você se vê e se sente, como mulher, em relação a este tema? Como você se vê e se sente, como enfermeira, em relação a este tema?

Algumas frases de apoio, que consistiram em uma série de afirmações oriundas da leitura na área da Antropologia, sobre o tema em foco, também foram utilizadas.4 Elas eram apresentadas sob a forma de grandes cartões, para motivar e sintetizar o debate.

Em todos os momentos dos GFs, procurava-se manter a atenção máxima nos depoimentos das colaboradoras. Percebiam-se as expressões não-verbais comunicadas ao longo das discus-sões, porém, como nem sempre era possível apreendê-las, contou-se com a ajuda da obser-vadora. Além de proporcionar o apoio logístico na operacionalização de cada encontro, ela se

mantinha atenta aos sinais e os registrava no diário de campo do pesquisador.2-3

Ao final de cada sessão, a moderadora e a observadora se reuniam para trocar idéias e ava-liar o encontro recente, gerando orientações para a próxima sessão.3

A moderadora buscou, ao longo dos encon-tros grupais, facilitar as discussões, encorajando os depoimentos e assegurando espaço para que todas as participantes se expressassem. Realizou sínteses, retomando o foco da discussão e confirmando informações. Procurou falar pouco e ouvir mais, fazendo intervenções, quando necessário, para manter o debate focalizado, em consonância com as orientações de estudos sobre o grupo focal.2-3,11

Para preservar a identidade e anonimato das colaboradoras do estudo, utilizaram-se letras maiúsculas para identificá-las, na transcrição de seus depoimentos.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde, da UFSM, sob o protocolo Nº 077/01, de 2 de julho de 2001. Cabe destacar que, além de cumprir os procedimentos éticos previstos pela Resolução Nº 196/96,12 sobre a autorização para gravar as falas das participantes e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foi também firmado um termo de compromisso entre as colaboradoras, chamado de setting, ou contrato grupal, com a finalidade de assegurar o sigilo ético e facilitar o processo interacional.3

Procedeu-se à análise dos dados de acordo com recomendações para pesquisas que utilizam o GF, e a abordagem qualitativa.4,13-14

Realizou-se, inicialmente, uma leitura exaus-tiva dos depoimentos, seguida da indexação dos dados, que consiste na ordenação e categorização dos dados, a partir do destaque de temas ou pa-drões recorrentes. Essa indexação é indutiva, e as categorias surgem da absorção hermenêutica do analista do texto.13-14

As categorias de análise foram agrupadas por afinidade e compuseram os seguintes temas descritores: Construções Singulares (que apresenta como se deu a construção cultural da sexualida-de na socialização primária das participantes); Tornando-se Enfermeira (que aponta como ocor-reu a construção cultural da sexualidade no curso de graduação em enfermagem); A Vivência da Sexualidade na Assistência de Enfermagem (que mostra como as participantes vinham vivenciando as questões relativas à sexualidade, no dia-a-dia

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de sua prática); e Desconstruções e Reconstruções

(que revela a avaliação da vivência no GF pelas colaboradoras do estudo).

Após a categorização dos dados, os temas descritores foram submetidos a uma análise específica, com a releitura de cada categoria e construção de subtemas. A imersão nos subtemas possibilitou o aprofundamento e a compreensão analítica. Ao final, foram realizadas a interpretação dos dados e a aproximação com os autores que subsidiaram o referencial teórico do estudo.

AVALIANDO O PROCESSO DOS GRU-POS FOCAIS

Ao final das sessões grupais, pretendendo avaliar o que representou para as colaborado-ras deste estudo a participação nas discussões empreendidas nesses grupos, foi questionado, individualmente: O que este exercício de reflexão no GF, sobre sexualidade, trouxe para você? Usou-se, então, a técnica de perguntas múltiplas como estímulo, a partir da lembrança das informações veiculadas nas sessões grupais. Tais perguntas eram diretivas, longas e narrativas, com o objeti-vo de esclarecer e complementar as informações obtidas, e avaliar a técnica utilizada no processo de pesquisa. Os dados oriundos desta etapa são apresentados a seguir, e destacam a aplicação da técnica do GF em pesquisa qualitativa.

Dentre as diferentes análises a respeito da experiência nesse exercício, selecionamos, ini-cialmente, os relatos que evidenciaram o autoco-nhecimento e a possibilidade de trocas que o GF propiciou.

Esse foi um momento singular, em que pude falar de coisas minhas, ouvir as outras colegas [...], pudemos estar juntas e, como enfermeira quase nunca senta, esse foi um momento preparado para tal, e que nos propiciou ver coisas e ouvi-las por nós mesmas (K).

[...] Ganhei na experiência, na motivação para trabalhar com grupos e no repensar minhas próprias questões [...] (E).

Acho que esse exercício trouxe mudanças para mim, no sentido de me dar condições, através da re-flexão, de falar sobre sexualidade com mais liberdade. Me sinto mais apta a falar sobre isso com pacientes, com alunos. Acho que isso é um processo, sinto ainda que tenho barreiras e limitações como pessoa, mas este exercício serviu para me fazer analisar sobre essas coisas (A).

Percebe-se que a técnica escolhida, o GF, foi determinante para criar um espaço de avaliação

de procedimentos, emoções, significados e per-cepções acerca do tema em foco, no cotidiano das participantes.2-3

Assim como esse espaço discursivo opor-tunizou o autoconhecimento, por meio da refle-xão pessoal e da revisão de conceitos, também possibilitou a percepção de ser humana, ter li-mitações e fragilidades. Igualmente, propiciou o entendimento de que a forma de pensar e agir em relação à sexualidade está amparada nos valores, nas regras e nas concepções que nortearam a sua construção.15

Esse exercício facultou também olhar o outro e encontrar similaridades nas singularidades de cada pessoa envolvida. Foi um espaço integrador e de compartilhamento. Certamente, despertou para um entendimento da sexualidade e descortinou um caminho que pode auxiliar na condução do tema em estudo, tanto na vida pessoal, quanto na vida profissional das participantes. Nesse sentido, apresenta-se um depoimento:

Antes dos grupos se iniciarem, eu pensava que, ao final, teria um conceito de sexualidade, como uma coisa concreta, formada. E não foi assim, mas isso foi tranqüilizador de perceber. Foi bom também, porque vi que não era uma coisa que eu colocaria “quadradinho” na minha cabeça. Na verdade, faz parte de um processo que passa por tudo na minha vida, e tem que ser enfren-tado e trabalhado sempre (D).

Esse depoimento evidencia a necessidade de refletir continuamente sobre a temática. Isso pode acontecer em nível pessoal, de acordo com as possibilidades que emergirem para cada uma, culminando em uma reorientação na assistência de enfermagem empreendida por elas. Ao mes-mo tempo, foi notório o interesse que a discussão grupal oportunizou, abrindo um espaço reflexivo e crítico individual.

Por outro lado, foi possível também amenizar a ansiedade com relação à temática em estudo. Por meio da técnica do grupo focal, ela foi compreen-dida como uma condição que todo ser humano possui, que está presente em toda e qualquer situ-ação da vida dele, independente de seu querer. Ela é vivenciada por meio de um processo dinâmico e permanente, ao longo da vida, permitindo a expres-são cultural singularmente construída, no manejo e no enfrentamento dessa questão.1

Acredita-se que o exercício de ouvir a si mes-mo e de ouvir os outros, como decorreu nos GFs deste estudo, é um elemento de conscientização para a pessoa sobre as próprias concepções. A vali-dade aparece pelo processo organizado, planejado

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e baseado em um contrato ético de participação, assumido por todos os elementos do grupo. Tal procedimento permitiu a expressão espontânea e a reflexão individual e grupal das idéias, assim como a desconstrução e a reconstrução de concepções.

Algumas dessas concepções foram reforçadas; outras, porém, mantiveram-se intactas, por motivos diversos, oriundos da singularidade e do respeito ao compromisso de aceitação das diversidades que fluíram nas discussões. Nesse sentido, destaca-se a importância do compromisso ético e de respeito ins-tituído no GF: acho que outro aspecto importante foi a questão do sigilo. Naquele momento, saber que podes falar o que quiser fora dali, menos aquilo que foi trabalhado no grupo, já que foi firmado ali um contrato tão sério entre todos os componentes, foi muito legal (L).

Uma prerrogativa essencial, para o bom de-senvolvimento desse tipo de grupo, é a elaboração de um termo de compromisso ético, de sigilo e respeito, firmado entre todos os participantes do grupo. No caso desta pesquisa, o termo conteve elementos de ordem organizacional e ética que con-duziram as discussões e as condutas no grupo.2-3

Neste estudo, a elaboração coletiva do termo foi realizada no primeiro encontro, sendo ele apro-vado e assinado por todas as pessoas envolvidas. Esse cuidado ético foi premiado com uma condu-ção séria, sigilosa e de respeito entre as colabora-doras, nas discussões grupais. Afigurou-se como um elemento importante para assegurar confiança entre elas, fortalecida pelo sentimento de empatia, a partir da interação vivenciada nos grupos. Esse conjunto de traços positivos levou a um convívio agradável e estimulante para as colaboradoras. O efeito surgiu também na forma de cumplicidade e de desejo de aproximação, documentados nos relatos avaliativos desse exercício. A seguir, alguns desses relatos são destacados.

Foi muito bom conhecer essa técnica. Ela facilitou muito a exposição dos sentimentos, do que a gente pensa e deseja. E se formou uma cumplicidade no grupo. Não sei se outra técnica propiciaria tanta cumplicidade a um grupo de pessoas bem diferentes. Ainda hoje, eu anali-so colocações que algumas colegas fizeram e sinto-me cúmplice delas (A).

Eu acho que faltam espaços para que a gente possa falar sobre coisas que fazem parte do nosso eu, que se refletem nas atividades profissionais. A gente mal se cumprimenta. As pessoas não se tocam. Acho que, quando começaste a trabalhar, isso despertou, no grupo, uma vontade de estar mais próximo uns dos outros. Foi um momento em que a gente se aproximou e não só discutiu sobre sexualidade (N).

Nesse depoimento, foi lembrado o fato de o trabalho grupal despertar o desejo de aproxima-ção, como uma forma de acolhimento, empatia e solidariedade. Nesse sentido, é possível enten-der como resultado, concomitante nos grupos, a manifestação interpessoal de afeto por meio dos olhares, dos sorrisos, dos abraços, da atenção, do consolo e do conforto, espontaneamente liberados em situações emocionadas, no grupo. A emoção foi compartilhada de forma solidária entre todas as participantes e se fez marcar, positivamente, pelos sentimentos de cumplicidade e de proxi-midade na relação interpessoal, desenhados por cada grupo, ao longo dos encontros. Sobre isso, a colaboradora já citada alude:

Aqueles momentos pareciam livres de qualquer preconceito e medo. Mas quando saíamos daquele momento, as pessoas pareciam se revestir de proteção de novo, por isso eu entendo que deveria haver uma continuidade (N).

Esse relato expõe, com clareza, os aspectos da confiabilidade e da espontaneidade que premia-ram os grupos de discussão, oportunizando que cada participante se mostrasse com suas debilida-des e dificuldades. Por intermédio do sentimento de cumplicidade, elas se apoiaram em situações delicadas, nas quais as emoções e sentimentos pessoais emergiram, havendo respeito entre todas e desenvolvendo-se uma receptividade mútua, no clima da vivência grupal. Estes foram momentos percebidos como de revitalização, quando elas expressavam seus pensamentos, despidas de preconceitos, oportunizando ouvir a si próprias e ver suas colegas sob outro ângulo, diferente do profissional que as une.

Ao mesmo tempo em que os GFs possibili-taram o desvelamento de emoções e sentimentos acerca da sexualidade, eles promoveram a dimi-nuição da ansiedade em relação a esse tema, pois produziram um espaço revitalizador para os rela-cionamentos. No entanto, surgiram inquietações pela conscientização de como essa temática tem sido tratada pelas enfermeiras. Isso é comentado no relato a seguir.

Essas necessidades foram visualizadas no grupo focal. Saí dos encontros muito mais incomodada, no sentido de ter fortalecido algumas coisas e ver que está mais do que na hora de trabalharmos outras (L).

Observa-se, pela avaliação, que o exercício com o GF foi um momento de despertar, pelas reflexões que suscitou. Ao mesmo tempo, foi um espaço de prazer, como refere a participante a seguir: a técnica usada foi prazerosa. A gente dava

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um jeito de comparecer. Suspendia, trocava, transferia outras coisas para poder estar ali naquela hora. Porque havia uma vontade enorme de estar ali (N).

Ao longo dos encontros, percebeu-se o em-penho de cada colaboradora em participar, pois cada uma entrou no grupo por interesses próprios e singulares, pelo desejo de auxiliar e de apoiar este trabalho, de adquirir novos conhecimentos e de realizar trocas. No desenvolvimento de cada encontro, observou-se o clima de respeito, de aco-lhimento e de receptividade, e isso foi um aspecto essencial para a boa convivência no grupo.

Evidenciou-se que os grupos mantinham espontaneamente discussões produtivas, ge-rando um volume considerável de informação. As colaboradoras puderam sentir as qualidades de um espaço de abertura, autoconhecimento e compartilhamento das idéias. Como resultado, tal experiência as impulsionou a desenvolverem, a posteriori, atividades grupais de mútua ajuda, conforme relato.

Acredito que algumas coisas mudaram depois deste exercício e as conseqüências estão vindo, um ou dois meses depois... todas se motivaram, escolhemos até um nome para o grupo: Acolher. A gente já se organizou para os encontros. Eu acho que isso é resultado do grupo que eu participei com você, porque vontade eu tinha, mas faltava a motivação para colocar em prática (J).

É pertinente salientar que o GF é uma técnica de pesquisa que utiliza sessões grupais de discussão, centralizadas num tópico específico, que é debatido entre os participantes.2-3 Para tan-to, se faz necessária uma série de requisitos que organizam os momentos grupais, conduzindo-os e os direcionando ao objetivo da pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAISPercebeu-se que a técnica escolhida para este

exercício de pesquisa permitiu que se desencade-asse a construção de novas ações por parte das colaboradoras deste estudo. Por meio da reflexão sobre a sexualidade, nas sessões de grupo focal, elas criaram condições singulares para suas ne-cessidades, desconstruindo e reconstruindo con-ceitos. Buscaram em si mesmas as respostas para as indagações e inquietações que o tema conjuga. E desse processo emergiu uma série de novos questionamentos sobre suas vivências pessoais e profissionais, diante da temática.

Esse exercício com o GF representou uma oportunidade de autoconhecimento, de auto-afirmação, de revisão conceitual e de reflexão

crítica acerca das atividades cotidianas da enfermeira, no que tange à sexualidade. Esse resultado reforça uma das vantagens da técnica empregada para coleta de dados do estudo, que é a de conduzir ao pensamento crítico, ou seja, a um processo de desalienação.

É oportuno referenciar que a técnica de GF aplicada metodologicamente neste estudo, levou a perceber que o tema contém implícitos procedi-mentos com regras, normas, valores e significados culturais instituídos, além de ser permeado por elementos de natureza ética, tais como respeito, dignidade e compromisso. O conhecimento disso apontou ou reforçou inquietudes quanto à forma com que o tema tem sido tratado na área da saúde, em especial, pela enfermagem. E alertou para a urgência de uma transformação em nível pessoal, profissional, e educacional.

Cabe destacar, por fim, que a técnica do GF permitiu a revelação dos significados que expressam o ponto de vista de quem foi pesqui-sado. Nesse sentido, permitiu o desvelamento das singularidades presentes na complexidade cultural do contexto. Trouxe à luz semelhanças, não igualdades. E fez emergirem profundas di-ferenças nas experiências, nos sentimentos e nas expressões vivenciadas no fazer dos enfermeiros. Evidencia-se, assim, como uma possibilidade na construção de dados em pesquisas qualitativas e na área de enfermagem.

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Pesquisa qualitativa em saúde: reflexõesmetodológicas do relato oral e produção de narrativas

em estudo sobre a profissão médica*Qualitative research in health studies: methodological reflections on the oral

account and narrative technique in a study on the medical profession

Lilia Blima Schraiber

Departamento de Medicina Preventina da Faculdade de Medicina daUniversidade de São Paulo - Brasil

Foi realizada pesquisa qualitativa aplicada à saúde coletiva e medicina social, baseando-se em estudo acerca dastransformações históricas da autonomia profissional dos médicos na passagem da medicina liberal para a atualmedicina tecnológica. A pesquisa de campo valeu-se de entrevistas abertas e gravadas para colher depoimentospessoais sobre histórias da vida profissional de médicos formados entre 1930-1955. Caracterizados tecnicamentecomo "relato oral", os depoimentos foram registrados na forma de narrativas livres. Os relatos são consideradosquanto à capacidade de expressarem a auto-representação dos médicos sobre seus cotidianos de trabalho, bemcomo registrarem a história da prática médica. Avalia-se a entrevista aberta como instrumento de produção denarrativas livres e relatos de vida.

Pesquisa, métodos. Prática profissional, história. Medicina social.

Introdução

O presente texto traz reflexões de naturezametológica e operacional acerca da pesquisaqualitativa em saúde, tomando por base a inves-tigação realizada em um estudo sobre o médicoe seu trabalho22,23. Motivado por questões rela-tivas à organização dos serviços de saúdequanto à inserção dos médicos em açõesintegradas com a saúde pública, ou relativas àin terdependência das ações médicasespecializadas, o referido estudo constituiu aautonomia profissional desses trabalhadores,seu objeto de investigação.

A medicina foi examinada enquanto traba-lho social e os dados empíricos foram extraídos

de relatos acerca do trabalho cotidiano. Essesrelatos referem-se a momentos históricos deimportantes transformações na autonomia dosmédicos, eqüivalendo para a sociedade brasilei-ra aos últimos 50 anos.

O objetivo do estudo foi o de alcançarinformações sobre o trabalho médico no Brasil,não só para obter a história da passagem damedicina liberal para a medicina especializadae "armada" dos dias atuais -à qual se denominoumedicina tecnológica-, como também obter asrepresentações dos médicos acerca desse pro-cesso e de si mesmos enquanto agentes técnicose sujeitos históricos.

Do ponto de vista da produção dos dados, oestudo primeiramente recorreu ao dado já

*Pesquisa subvencionada pela Financiadora de Estudos o Projetos/FINEP (Processo n° 4.2.88.0228.00) e Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processo n° 303696/85-MP). Trabalho baseado na Tese de Doutorado doautor - "Medicina liberal e tecnologia: as transformações históricas da autonomia profissional dos médicos em São Paulo",apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1988. Apresentado ao I Encontro Nacional de AntropologiaMédica, Salvador, 3 a 6 de novembro de 1993.Saparatas/Reprints: Lilia Blima Schraiber - Av. Dr. Arnaldo, 455 - 2° andar - 01246-903 - São Paulo, SP - BrasilEdição subvencionada pela FAPESP. Processo 94/0500-0.Recebido em 13.7.1994. Aprovado em 3.1.1995.

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registrado, valendo-se de três tipos de fontes:textos da história da medicina no Brasil, textosde debate acerca do exercício profissional pu-blicados no período histórico em pauta e, porfim, textos biográficos. Essas fontes, contudo,não foram apropriadas para evidenciar o cotidi-ano da prática profissional.

Em razão do singular desenvolvimentosocial brasileiro, no entanto, houve a possibili-dade de acesso direto a personagens partícipesdo mencionado processo histórico. Isto porque,como mostra o estudo, a transição de um aoutro modo de produzir os serviços médicos noBrasil ocupou cerca de 40 a 50 anos, possibili-tando que esta passagem fosse vivenciada porpoucas gerações de sujeitos, alguns dos quaisainda vivos por ocasião da pesquisa. Assim, ainvestigação de campo buscou entrevistá-lospara a produção de narrativas com a qualidadede testemunhos pessoais.

Todos os critérios acima traduziram-se naseleção de médicos cujo início da profissãodeu-se entre 1930 e 1955, buscando-se umresgate das "histórias da vida de trabalho", oque foi orientado por um roteiro de questõesmuito amplas e um estímulo à livre narração.Os entrevistados foram levados a refletir sobreseu dia-a-dia profissional, trabalhando a "hipó-tese" central do estudo: a formulação de que aautonomia profissional, perdendo espaço naesfera mercantil, busca centrar-se na dimensãotécnica interna ao processo de trabalho, em ummovimento que corresponde à sua transforma-ção, para preservar-se enquanto possibilidadeobjetiva na profissão.

Tratando-se de testemunho acerca de seupróprio trabalho e estimulando um pensamentosobre questões tão caras à medicina, tais como,a tecnologia, a qualidade da intervenção técni-ca, o papel social da prática médica ou o signi-ficado do desenvolvimento científico e profis-sional, esta produção de narrativas por médicosconstituiu rica experiência da perspectiva dapesquisa científica. Não se poderia, por issomesmo, deixar de refletir a esse respeito.

Assim, tomando-a como ponto de partida,mas também valendo-se de bibliografia especí-fica sobre a pesquisa qualitativa nas CiênciasHumanas, desenvolveu-se no presente textoalgumas considerações acerca dessa metodolo-gia de pesquisa e da técnica do relato oral porentrevista aberta, tal como utilizadas pelo estu-do em questão.

Técnica e Arte do Trabalho de Campo

Escolhendo Modo e Técnica para a Coleta dosDados

Como todo processo de trabalho15, a produ-ção de dados empíricos na pesquisa tambémcoloca um ardil: encontrar a melhor construçãooperatória pela qual, a partir das hipóteses cien-tíficas, evidenciam-se provas, ou seja, respostasproduzidas pelo cientista, com base em méto-dos, técnicas e instrumentos de investigação. Aprova, pois, o cientista capta do real, não só porrazões de técnica, mas por ter sido capaz de, aoeleger e exercitar técnicas em seu trabalho decampo, fazer renascer o objeto de seu estudo5.

No presente caso, tratava-se de escolher amodalidade de pesquisa capaz de percorrer adimensão técnica da prática médica, caminhan-do pelo interior desse trabalho. Mas, simulta-neamente, tratava-se de visualizar, no técnico,a dimensão social. Vale dizer, evidenciar aintervenção médica em sua estruturação técni-ca, por ser parte da vida em sociedade. Tratava-se, ainda, de captar nesse percurso as relaçõesentre o médico e sua prática, permitindo ver nabase material desse trabalho a inscrição doagente e vice-versa, estudando-se, assim, a di-mensão subjetiva das práticas e a concreta cons-tituição dos sujeitos nas ações.

Por referência à autonomia profissional, aabordagem proposta demandava evindenciá-lacomo técnica e como representação do traba-lho médico, qualificações em que a autonomiase estabelece, quanto às condições objetivasdesse trabalho, como ferramenta adequada enecessária, e, quanto ao imaginário profissio-nal, como ideal de trabalho.

Considerando que se tratava também deum estudo em que todas essas dimensões deve-riam expressar-se no movimento histórico daprática médica, dentre as possibilidades de pes-quisa qualitativa13,18,21, a escolha recaiu sobre amodalidade orientada para produzir relatos emum misto de lembranças das histórias pessoaisda vida de trabalho com reflexões mais geraissobre o trabalho médico e sobre o movimentode suas transformações.

No pólo empírico da pesquisa, a técnicaque lhe foi mais adequada é a da entrevista e,entre seus diversos tipos6,17,19, o estudo desen-volveu uma abordagem que estimulasse narra-tivas mais livres do entrevistado. Impôs-se,

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contudo, limites de temáticas, tentando-se, aomesmo tempo, garantir que as questões estipula-das pelo roteiro prévio fossem todas recobertas.

Com base na modalidade de relaçãoestabelecida entre o pesquisador e o entrevista-do, Queiroz19 delimita dois tipos de relatos,considerando a forma mais ou menos espontâ-nea com que o entrevistado produz sua fala,Assim, mesmo no interior das entrevistasmais abertas foram encontradas situações emque é o pesquisador que define os temas econduz sua abordagem; controla o entrevistadomais prolixo e impõe limites, definindo cortese a própria conclusão do trabalho. Há, porém,entrevistas em que o tema sugerido é, por sisó, amplo, e o entrevistado terá uma narrativatotalmente livre, conduzindo-a a seu ritmoe suficiência. Esta última constitui as históriasde vida, enquanto que a primeira forma, mesmotratando da experiência vivida, contitui, con-forme a autora, os depoimentos pessoais. Estamodalidade é a que melhor expressa a escolhatécnica da pesquisa ora examinada.

Mas basear a investigação na produção deum pensamento sobre a experiência vividasignifica centrá-la nas representações dossujeitos, o que, de um lado, constitui a opçãode se estudar uma realidade social e coletivapor meio de narrativas individuais e vividossingulares, e de outro, pretender verificarnão apenas o que esses sujeitos percebemdos diferentes modos de produzir serviçosmédicos, mas a própria existência objetiva des-ses modos. Essa metodologia introduz relativa-mente à aproximação do objeto em estudo,pois, duas ordens articuladas de questões: osocial e o coletivo por referência ao individual-singular que o apreende; e o real objetivopor referência à dimensão subjetiva que oevidencia. Essas são questões que a grandemaioria dos textos de referência para estamodalidade de investigação, termina portrabalhar1,2,3,4,9,11,12,19,20.

A este respeito observou-se, em primeirolugar, que da perspectiva de se buscar o acon-tecido através de sua representação no relatoindividual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica de expressar o coletivo, o qualpode-se recuperar nas narrativas obtidas, pormeio de uma riqueza ímpar: o coletivo explora-do pela reconstrução pessoal. Trata-se dare-produção* do fato social na experiênciapessoalmente vivida e na reflexão que a relata.

É esse processo de re-produção que validao trabalho com representações e situações sin-gulares para se examinar acontecimentoscoletivos e fatos sociais. Sendo cada relato aforma pessoal de expressar o grupo ou o social,o que cada pessoa relata, e o modo como relata,são construções que se determinam na vida emsociedade. Por um lado, sendo construções,correspondem a um modo de relatar e, por isso,a entrevista produz sempre uma interpretaçãodaquele que relata, trabalhando na própria sub-jetividade a objetividade do real. Mas, por ou-tro lado, seu conteúdo, seja relatando o presen-te ou como recordação, não é exatamente úni-co, senão a experiência pessoal no interior depossíveis históricos bem determinados, experi-ência que dependerá da forma pela qual onarrador posiciona-se socialmente e que lheproduz as concepções acerca do real das quaislançará mão em seu relato14,24.

Os médicos entrevistados falam, pois, so-bre a medicina liberal, sobre as tensões dessaprática ao crescer o modo tecnológico de pro-dução dos serviços e sobre as repercussõesdessas tensões na dimensão técnica do traba-lho, mostrando formas historicamente encon-tradas para a preservação do exercício autôno-mo. Simultaneamente, expressam concepçõesacerca do movimento de mudanças que experi-mentaram. Tudo isso, ao relatarem, porém, oque cada um individualmente viveu.

Em segundo lugar, o que se relata, mesmosendo pensamento e pensamento individual,não se reduz a uma impressão subjetiva. Éproduto de uma elaboração intelectual especí-fica, porque é produto de um pensar que étrabalho, trabalho de refletir e recordar. Porisso não é apenas sentimento, mas a reconstru-ção do vivido em nova objetivação: toda refle-xão é trabalho da memória*.

O que foi experimentado no passado emesmo o que se concebe do presente, é externadoenquanto trabalho de reflexão próprio, distan-ciando-se dos juízos do senso-comum: o relatoé um pensamento especialmente produzido. Aentrevista que o suscita deve ser vista comouma experiência particular e não como uma amais do cotidiano. A entrevista recorta o coti-diano no objeto que propõe à reflexão e ointerrompe por meio desta reflexão, ou como

* O conceito é extraído de H. Lefebvre16 e significa: orepetitivo que gera diferenças. Daí, inclusive, o modo degrafá-lo (re-produção).

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diz Caldeira7, a entrevista produz "... uma in-terpretação que é, em geral, uma ordenaçãooriginal de coisas velhas, de pedaços de ima-gens, experiências, opiniões, etc., que a memó-ria guardou. Esta interpretação (...) é uma visãomais global do que se pode ter no cotidiano".

No presente estudo, também se observamcotidianos e se examina a vida de homens-comuns; mais precisamente, a prática profissi-onal dos médicos-comuns, cujo registro nemsempre ocorre. Esta prática expressa o modo deproduzir os serviços médicos nas condições dodia-a-dia, em que o ato médico uniforme eúnico enquanto modo genérico de medicina, ére-produzido nas desiguais situações de traba-lho concretamente existentes na sociedade; re-produção que, na particular situação de traba-lho experimentada individualmente pelo médi-co, significa reelaboração dos pressupostos eexpectativas homogêneas dos médicos, enquan-to pensamento coletivo acerca do trabalho mé-dico ideal.

Ao mesmo tempo, o estudo buscou umarecuperação de acontecimentos passados, masque se faz no presente: o entrevistado não sótrabalha a experiência vivida no momento atual,como é levado a recuperar seu passado pelasquestões do presente, questões problematizadasdiretamente por ele, assim como pelas proble-máticas que o pesquisador lhe coloca.

Por tudo isto o relato sempre será umalembrança individual, "um ponto de vista sobrea memória coletiva"4, formas ricas na amplia-ção, na profundidade e na diferenciação comque se trabalha o coletivo. Mas também, porisso mesmo, cada momento de entrevista e cadarelato completado formam subtotalidades quese deve respeitar. A constituição de um todo apartir dos singulares, na reconstituição do acon-tecimento social, deve considerar que os depo-imentos podem se orientar em direções diferen-tes e até contraditórias. Trata-se da autonomiarelativa da parte ou do singular; autonomia que,de fato, ocorre, mas não é capaz de anular ainscrição simutânea do coletivo naquilo que érelatado. Esta inscrição poderá ser resgatadadesde que se tome o coletivo como tendo quali-dade própria por referência a seus constituintesparcelares, o que significa tanto eleger o pontode vista interpretativo pelo qual se reconstrói atotalidade em estudo, quanto admitir que cadaparte individualizada não precisa repetir tudo oque se passa no plano do coletivo para que seja

seu efetivo constituinte10,19*.Por todas essas observações, tal como se-

rão consideradas adiante, a pesquisa exigiucertos cuidados na produção e no processamentointelectual do material obtido, impondo-se aadoção de determinados princípios gerais queorientaram todo o trabalho com o empírico.

Princípios Técnicos e Cotidiano da Pesquisa

A produção das narrativas deve delimitaralguns procedimentos próprios, tais como defi-nir quem, até quando e quantos sujeitos serãoentrevitados. Além disso há que se lembrar quea técnica ora discutida produz grande volumede material coletado.

Selecionar sujeitos, no presente caso, le-vou em consideração alguns pressupostos: in-serção na produção de serviços na forma predo-minante ou exclusiva da medicina de mercadoe, pois, médicos-comuns; pertencer ao coletivode agentes de trabalho "liberal"**, exercendopráticas de intervenção clínica e cirúgica, emsuas modalidades mais gerais; e, como critérioprimeiro dado no recorte inicial do objeto deestudo, praticar a medicina em São Paulo, coma graduação profissional entre 1930-1955.

Essas características indicam qual a posi-ção que os entrevistados ocupam na medicina,delimitando quais representações e memóriagrupal inscrevem-se, portanto, nas narrativas.

Também a procura dos sujeitos foi orien-tada pelo critério de maior facilidade de con-tacto, no sentido de serem "médicos bastanteacessíveis", tendo em vista a dificuldade naobtenção de relatos em investigações dessanatureza, sobretudo considerando a categoriaprofissional em pauta. Trata-se aqui da pergun-ta que o entrevistado se coloca e coloca aopesquisador: "por que eu fui o escolhido?". As

* A bibliografia pertinente situa no exame interpretativo domaterial coletado os cuidados relativos à sua aproximação nosentido de captar o plano do coletivo. Aponta, também, possívelsuporte nesta tarefa: a complementação das narrativas comoutras formas de investigação ou com dados de outra natureza,produzidos em obsrvações diretas ou como material járegistrado.* * O termo liberal grafa-se sob aspas pelo fato de que no Brasilesse período, usualmente reconhecido como medicina liberal,não exibe as mesmas condições de outros países quanto a essamodalidade de trabalho, uma vez que a medicina do pequenoprodutor privado e isolado, em boa parte de seu tempo,conviveu com o trabalho assalariado, a medicina dos Institutosou previdênciária23.

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razões da escolha são mais facilmente aceitasquando referidas a situações dos extremos só-cias: elite e homem-comum do povo. Nelas, pormotivos opostos, o entrevistado reconhece aimportância de seu relato.

Para o indivíduo que é tido e se vê comorepresentante de grupo, isto é, que adquire umaidentidade de elite, a importância de seu depoi-mento é socialmente difundida e ele próprio areconhece; para aquele, no extremo oposto, cujaoportunidade da fala constitui rara situação, é ofato de ser então valorizado, que conta para suaaceitação em participar da entrevista.

É mais difícil explicitar razões quando es-tas não coincidem com nada especial, senão comseu contrário: o grande conjunto de pessoas queconstituem grupos quaisquer na sociedade e quepodem ser destacadas de seu interior para repre-sentar o seu grupo, mas não exatamente por serele indivíduo específico, senão "comum" -umqualquer dentre os do mesmo grupo.

Os médicos, em geral, não são concebidos enão se autoconcebem exatamente na categoria dehomens-comuns, mas como grupo muito especialde sujeitos sociais, cujo trabalho, além disso,funda-se na concepção do segredo profissional.Assim, se por um lado, podem entender a necessi-dade do relato ou a relevância da pesquisa, poroutro, detêm a noção de que seus procedimentos,principalmente os da dimensão técnica, não devemser do conhecimento público. Estão dispostos,pois, a falar sobre a medicina, talvez até sobre aprática de outros, preferencialmente anônimos...Porém, usualmente, a não ser entre pares (médi-cos), não falam de si ou de seus cotidianos. Alémdo que, não tendo sido eleito enquanto sujeitoespecial, torna-se ainda mais difícil explicar asrazões de sua particular participação.

A seleção dos médicos obedeceu, pois, aum princípio especial: não se realizar ao acaso,mas por meio de mecanismos reconhecíveispelos próprios entrevistados como formas deescolha confiáveis, isto é, formas conhecidas e,de certo ponto de vista, também sob controledeles próprios. Os entrevistados foram, assim,contactados mediante a indicação interpessoal,em que, a partir de médicos próximos e conhe-cidos do pesquisador, surgiram as primeirasindicações, das quais surgiram novos médicose assim por diante, o que conformou "gera-ções" de sujeitos indicados.

A menção a cada novo contacto sobre oentrevistado anterior e seu "encaminhamento"

permitiu sempre boa recepção e disponibilida-de do entrevistado para com a pesquisa, refor-çando a manutenção desse princípio. Mesmo as-sim, em 19 contactos, registraram-se 5 recusas.

De todos os médicos que aceitaram parti-cipar, a primeira "geração" de indicados (2médicos) foi objeto de pré-teste (16 horas e 30minutos de gravação) e outros 3, mesmo cons-tituindo "gerações" posteriores, foram abando-nados logo após o primeiro contato, em razãode erro involuntário na indicação. Foram obti-das 9 entrevistas. Gravadas, elas produziram,no total, 38 horas de material registrado.

Esse número de situações seguiu o critériode "exaustão" ou "saturação"3, segundo o qualo pesquisador verifica a formação de um todo ereconhece a reconstituição do objeto no con-junto do material. Porém esse não é, de formaalguma, critério obrigatório.

A eleição de critérios que balizam a técni-ca de coleta dos depoimentos depende do objetoem estudo e do específico campo empírico deinvestigação. Essa característica de critériosmóveis contrasta com outras técnicas de inves-tigação, cujas normas são fixas e bem maisindependentes por referência aos objetos parti-culares de estudo. Mas vale aqui lembrar que aadoção de critérios implica perspectivasinterpretativas do material pertinentes.

Ademais, o rigor nos critérios de seleçãodos entrevistados, como também seu número,liga-se a questões de controle sobre dados fal-sos ou comportamentos "desviantes"13,19. É asituação em que o pesquisador tenta assegurar-se de que colherá o dado pertinente e queconseguirá obter a prova que necessita frente asuas hipóteses. Mas nesta modalidade de pes-quisa, seja o dado inesperado ou os comporta-mentos pessoais inesperados ("desviantes"),também podem ser produtivamente explora-dos. Esse "controle" dá-se no momento "analí-tico", isto é, inscrevendo no exame do materialo inesperado ou destoante. De igual modo,pode ser suficiente apenas um relato de experi-ência vivida, que convenientemente estudadopode fornecer conhecimentos relevantes acer-ca da vida social.

Além da saturação, outros critérios foramformulados ao longo do desenvolvimento dainvestigação, referidos a procedimentos quenão podem ser regidos por mecanismos fixos "apriori". O melhor modo de se obter o relato ouquando encerrá-lo são problemas que se resolvem

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apenas no desenrolar da narrativa. Isto porquea técnica se funda na exploração de questõesque o pesquisador previamente traz, em conju-gação com a presença do dado novo, este últi-mo criado no momento da entrevista.

Mesmo que o pesquisador já domine ques-tões da história que indaga e muito emboracada participante já tenha para si uma históriaguardada, por ocasião da entrevista, como reto-mada deliberada e provocada dessa história,ela será efetivamente refeita: pelo entrevista-do, através de associações, repetições oudesqualificações de idéias cujos nexos se cons-tróem no presente da entrevista; pelo pesquisa-dor, na dinâmica do relato - pelos fatos que estetraz e em seus encadeamentos, totalmente ori-ginais, na narrativa.

Assim, o modo pelo qual o pesquisadorpode intervir produtivamente não tem normafixa e não se repete de uma a outra entrevista.Não possuindo princípios que de antemão defi-nem o momento e a direção da intervenção, aentrevista conduz sempre a uma atualização doroteiro, fundada na avaliação subjetiva daspotencialidades do diálogo.

Eis porque elementos como a simpatia ou,como já se mencionou, o conhecimento préviodos sujeitos a serem entrevistados, não configu-ram nessa técnica fator inconveniente. Muitopelo contrário, contituem norma favorável, por-que a técnica se fundamenta exatamente na au-tenticidade e veracidade discursiva do entrevis-tado, cujo depoimento o pesquisador quer com-preender -e não contestar ou, mesmo, testar.

O núcleo do procedimento técnico, nestecaso, requer, pois, do entrevistado, o compromis-so declarado com suas concepções e valores, e adisposição moral de evidenciá-los. E do pesqui-sador, requer a capacidade de estabelecer, com oentrevistado, relação pessoal e íntima, para queeste se sinta à vontade no relato4,20,21.

Assim, o "controle" sobre a investigação,que se dá mais no sentido de garantir a presençadas questões que a pesquisa coloca,freqüentemente se faz com base em critérioscriados no momento da entrevista. Eis porque odiálogo estabelecido na relação pesquisador -entrevistado deve ser adequadamente articula-do ao próprio objeto de estudo, residindo o"controle" do processo da entrevista sobretudoneste domínio intelectual do pesquisador. Porisso, também, de forma bastante flexível, quero roteiro, quer a intervenção do pesquisador,

são ferramentas importantes no processo daentrevista, mas que apenas ganham sentido nomomento concreto do relato em produção.

O roteiro, em particular, assume o papel deguia da narrativa e é utilizado para orientar opesquisador na colocação de temas estimulantesdo relato, constituindo apoio ao trabalho dareflexão ou memória auxiliar. Deve-se percorrê-lo subordinadamente à dinâmica que o próprioentrevistado dá à narrativa e respeitando aseqüência das questões que o relato produz.Algumas temáticas surgem como questões jáproblematizadas e certas informações aparecemrelatadas espontaneamente, sugerindo questõesrelevantes para o narrador e como expressãotambém da memória grupai. Outras têm que sersistematicamente estimuladas pelo pesquisador.

Entre as primeiras, no presente estudo ob-servam-se, por exemplo, a perda da autonomiamercantil e o assalariamento do médico, ourotina e a impessoalidade da prática, decor-rentes da massificação e institucionalizaçãoda medicina. Mas, a mais significativa questãofoi, sem dúvida, o Estado como grande produ-tor, interferindo diretamente na dinâmica mer-cantil, o que é trabalhado, via de regra, sob aforma de protesto contra a política pública parao setor. Como ilustração do segundo conjuntode informações, foram observadas as questõesreferentes à autonomia técnica e ligadas à inti-midade do processo de intervenção, dimensãosempre muito preservada de reflexão e, sobre-tudo, de indagações. Assim, a especializaçãoou a inovação tecnológica concreta são aspec-tos que, quando referidos, são colocados comoatributos "naturais" da medicina, parecendoquase não necessitar de "reflexão".

O relato mais espontâneo parece reservadopara aspectos tidos como "genéricos" da profis-são: os outros; o saber científico; o desenvolvi-mento tecnológico em abstrato. Ou, aspectos "ex-ternos": o governo; as instituições; a crise econô-mica do país. Reserva-se, ainda, do ponto de vistada história, para o que se crê "perdido": o ladonegativo da mudança, isto é, o que deixa de servalorizado, segundo o imaginário profissional.

Raramente, ao contrário, os entrevistadossupuseram a necessidade de contar ou de valer-se de uma fala mais densa que a mera constata-ção, para os aspectos opostos aos anteriores: ocaso profissional particular, com suas mazelase dificuldades do dia-a-dia; o relato do interiorda prática, em que se evidencia a abordagem do

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doente para sua assistência e a formulação dojulgamento ou decisão médica; ou, diante dodesenrolar histórico, as mudanças "positivas",como a incorporação dos equipamentos ou a"cientificidade" "aumentada" da prática ma-terialmente armada.

Alguma reflexão mais crítica, portanto,parece importar apenas para as "perdas" histó-ricas ou as adversidades, do passado ou dopresente, quase nunca articulando, em um mes-mo pensamento crítico, a totalidade dos aspec-tos e qualificações do exercício profissional.

Este último posicionamento, inclusive, osfaz mudar, no tempo, a "fronteira" do que lhespertence, o que nos é evidenciado por mudan-ças do alvo merecedor de reflexão crítica e,pois, objeto da narrativa mais espontânea, àproporção que o relato percorre diferentesmomentos da história pessoal recordada. É oque ocorre, por exemplo, quando falam de suaparticipação pessoal na construção de suas con-dições de trabalho relativamente à prática libe-ral, quando os mecanismos sociais conforma-dores da produção na modalidade consultórioprivado não são reconhecidos enquanto formasocial e estruturada de autonomia técnica emercantil, parecendo-lhes sempre algo seu:esforço pessoal, vocação individual e reta con-duta moral na profissão. Ao passo que, namedicina tecnológica, o compromisso pessoalpara com as condições de trabalho (quaisquerdelas), apontado no momento anterior, é o quedeixa de ser reconhecido, por não mais seincluir, mesmo enquanto produção de setorprivado, como algo "interno" à fronteira técni-co-profissional, repercutindo diretamente noconceito de autonomia e em seus pólos: liber-dade e responsabilidade.

Nos relatos, essa forma distinta de trata-mento das questões (do superficial ao pensa-mento crítico mais articulado), indica-nos aimportância que cada conjunto de temas adqui-re para o entrevistado. E a observação desteaspecto, expressivo quanto às concepções acercada medicina como trabalho social e quanto àauto-representação, tornou-se possível em ra-zão do temário previsto pelo roteiro. Este per-corria não só a vida de trabalho, mas a vida emfamília, no lazer e na escolarização. Ademais,percorria a vida experimentada nos vários mo-mentos decorridos desde a infância, por onde,inclusive, se iniciou a entrevista. No plano davida de trabalho, o roteiro estimulava a descri-

ção detalhada dos vários aspectos envolvendoa estruturação da prática profissional, a qual foitomada desde o seu início, mantendo-se essadescrição mais "densa" como eixo de aproxi-mação do transcurso da prática até momentosrecentes, destacando-se em especial a reflexãorelativa ao trabalho do consultório privado.

Buscando verificar, justamente, a estrutu-ração dos exercícios profissionais concretos eparticulares diante dos modos vigentes de pro-dução de serviços médicos na sociedade brasi-leira, observando, inclusive, de que forma es-sas estruturações"acompanharam" as transfor-mações históricas dessa sociedade, e, princi-palmente, tentando verificar a posição do mé-dico em sua prática, o roteiro conduzia a temascomo: a finalidade do trabalho profissional; osinstrumentos e equipamentos, além de técnicasde intervenção utilizadas; as relações de cadatrabalho com outros serviços médicos; cadaclientela e seus doentes como objeto da inter-venção; e, essencialmente, atos concretos derealização do cuidado médico, como processo,isto é, a atividade do trabalho. Para facilitar orelato acerca desse último aspecto, estimulou-se a descrição de situações marcantes no exer-cício profissional vivido, incentivando os ca-sos e os exemplos, ainda que a narrativa maislivre logo conduza a fala para essa direção.

Da mesma forma que o uso do roteiro,delimitar o tempo de duração e o momento deencerrar a entrevista foi algo estabelecido notranscorrer do trabalho de campo. De um modogeral o tempo é longo, mas não se pode fixá-lopreviamente, além do que varia para cada situ-ação. Da perspectiva do encerramento da entre-vista, o cumprimento dos itens do roteiro, comoconteúdo mínimo da reflexão prosposta, podeser um bom ponto de partida, porém, de modoalgum indica o término do trabalho de produ-ção das narrativas. Como trabalho de reflexão,sua conclusão está dada pela suficiência detratamento dos temas e quando estes se esgo-tam como forma de alimentar o diálogo, o quenovamente se pode demarcar apenas no interiorda dinâmica dos relatos.

Esse conjunto de envolvimentos do pes-quisador com o objeto que investiga confereuma qualidade muito viva ao processo, em umcaráter de permanente construção de modelooperatório da própria investigação, o que trazao pesquisador quase sempre muitas dúvidas.Desse ponto de vista alguns procedimentos

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complementares à entrevista podem orientarmelhor o processo, como é o caso dos semprereferidos, nessa modalidade de pesquisa, "ca-dernos de campo" em que são anotadas aspróprias percepções do pesquisador acerca dainvestigação em curso.

Não obstante, é o conhecimento do objeto deestudo e das questões que foram selecionadaspara trabalhá-lo que muito auxiliam nos juga-mentos e decisões, exigindo do pesquisador do-mínio sobre a pesquisa tal que torne seus proce-dimentos uma forma viva de exercício de subje-tividade teoricamente fundamentada, isto é, opróprio pesquisador como instrumento de inves-tigação e não apenas em mero portador de impres-sões pessoais. Além disso e nesse mesmo sentido,sem prentender que todos os procedimentosadotados tornem-se regras universais, para que oprocesso não resulte em uma ação subjetiva pes-soal, deve-se estabelecer princípios que presidama intencionalidade da ação técnica na pesquisa,ainda que a estratégia de conduzi-los dependafundamentalmente de cada relação interindividualque se consegue estabelecer.

Embora alguns princípios já tenham sidomencionados, eles podem ser assim sintetiza-dos. Um primeiro princípio tomou a entrevistacomo meio de conhecimento, conforme já seconsiderou no presente texto. Fundou-se, por-tanto, a ação do investigador no fato de que nãose tratava de uma polêmica, um embate políti-co-ideológico, nem um teste de conhecimentosou objetivações neutras de "verdade absoluta".O fundamento residiu na necessidade de en-contrar formas de apreender, com clareza, asrepresentações próprias do entrevistado e odiálogo transcorreu sempre no sentido de re-cordação dos fatos e esclarecimentos dos valo-res, incentivando o trabalho de reflexão em ambosos sentidos. A intervenção do pesquisador sepautou em falas bastante explícitas para que sepudesse questionar o entrevistado o mais aberta-mente possível, mesmo que, dada a busca deproduzir narrativas livres, tanto se a reduziu aoindispensável, quanto se lançou mão do roteiroapenas quando suas questões não eram trabalha-das espontaneamente, o que foi feito semprecom sugestão de temas em sua forma mais geral.

Não obstante, ocorreram alguns impassesde conversação. Foram situações em que, mes-mo involuntariamente, a sugestão foi formula-da de modo inadequado, o que ocorreu sejaporque, para o pesquisador, de fato eram diver-

sas as concepções e as problemáticas que valo-rizou, por referência às do entrevistado, sejaporque as questões trazidas remetiam a umvivido pessoal (do pesquisador) referido a umaépoca histórica muito diversa daquela em que oentrevistado vivenciou a maior parte de suasexperiências profissionais. O pesquisador, por-tanto, terminou por produzir algumas falas dis-tantes do entrevistado, em uma linguagem que,a este, foi, muitas vezes, estranha.

O processo da entrevista, desse ângulo,representou processo de aprendizado para o pes-quisador, no sentido de encontrar modos ade-quados de participar, até certo ponto, das mes-mas concepções e da mesma forma de pensar arealidade que o entrevistado possui, sobre opresente e sobre o passado. A entrevista, assim,não é só uma forma de entender e captar o outro,mas de se fazer entender, e tanto a história devida como a posição social e científica distintado pesquisador relativamente ao entrevistado,introduzem linguagens divergentes.

Em parte decorente do mesmo princípioanterior e em parte com base nestas últimasobservações, houve a necessidade de se fazerum "contrato" de trabalho bastante preciso,esclarecendo o mais possível o objeto e o recor-te temático escolhidos para a pesquisa; as ra-zões, os sentidos e as pretensões da pesquisa; ea forma indicativa de organizar o trabalho deinvestigação: como, quando e onde se fariam asentrevistas, bem como a duração presumível decada sessão ou do número de sessões desejável.Também o pesquisador deve colocar-se autên-tico e veraz na relação com o entrevistado.

Da perspectiva dessa organização do tra-balho de campo, as explicitações foram nosentido de que iria tratar-se de um trabalhorelativamente prolongado, com o uso de grava-dor, com sessões de gravação não muito curtase sobretudo por meio de sessões repetidas,critérios fixados com base na experiência dasprimeiras entrevistas. Essa explicitação das "re-gras do jogo" foi de grande importância, pois éfreqüente o indivíduo contactado pensar que setrata de pesquisa de curta duração ou comquestinários padronizados, e a ocorrência opos-ta, por fugir ao esperado, parece requerer expli-cações mais detalhadas.

O trabalho de campo ocupou cerca de qua-tro e meia sessões de gravação por entrevista-do, variando de três até nove para um mesmosujeito, em razão da disponibilidade e prolixi-

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dade de cada narrador. A duração que se conse-guiu obter em cada uma das sessões de grava-ção marcou um tempo que quase sempre sepautou no próprio cansaço do entrevistado,fruto do trabalho de reflexão e de narrar, ocu-pando mais freqüentamente uma hora de grava-ção, sendo o máximo atingido o de duas horasde gravação, em uma mesma sessão.

Repartir a narrativa por várias sessões degravação mostrou-se produtivo sob dois pon-tos de vista. Primeiro porque, para o própriotrabalho de refletir e lembrar, o intervalo de-corrido de uma a outra sessão produziuefeitos relevantes, verificado no fato de quequase sempre ao início de cada sessão, mesmoque parecesse já trabalhado determinado temana etapa anterior, o entrevistado espontanea-mente solicitava o registro de outros novosaspectos lembrados, por ter prosseguido emsua reflexão após o registro anterior. Em se-gundo lugar, esse intervalo permitiu combi-nar, ao uso do caderno de campo, o estudosistemático do segmento discursivo já grava-do. E assim foi feito, precedendo cada novasessão, o que permititu explorar com maissegurança as narrativas, à medida que se vi-nham produzindo.

O conjunto desses critérios fez com que seevitasse entrevistar mais que dois sujeitos, namesma etapa do trabalho de campo, o que,somado ao tempo gasto com localização, con-tactos e efetivação da entrevista, produziu umaduração global de 6 meses para este trabalho,parâmetro a ser considerado também na delimi-tação da quantidade de relatos a serem produzi-dos e no dimensionamento da investigaçãoempírica.

Na produção das informações, combinou-se o uso sistemático e articulado de dois instru-mentos de registro, os quais, como já dito,foram; o gravador e o caderno de campo. Esteúltimo serviu para anotar diversos tipos dedados, operação feita sempre ao final de cadasessão, identificando-a no caderno. Foram ano-tações referidas à própria experiência vivenciadana entrevista, através da efetivação de suastécnicas de abordagem e obtenção dos relatos,avaliando-as no sentido de sua eficácia, produ-tividade e impasses para a investigação. Tam-bém se registraram informações sobre o entre-vistado, seu comportamento geral na entrevistae em particular quanto aos temas e à dinâmicacom que transcorriam. Foram valiosas as ano-

tações feitas acerca do local de trabalho, quan-do as entrevistas realizaram-se no consultórioparticular (o que ocorreu em 6 dos 9 casos).

Em muitas ocasiões registraram-se infor-mações que o próprio entrevistado forneciafora da gravação, as quais não foram poucas ouirrelevantes. Pode-se mesmo dizer que umaoutra entrevista se passa nos intervalos, na"hora do cafezinho", ou ao término da sessão,após concluída a gravação. As falas nessesmomentos são descontraídas e recobrem assun-tos de todos os tipos: o entrevistado opina sobrea entrevista, sobre os médicos, sobre a medici-na, sobre sua vida e se inteira da vida do pesqui-sador, comenta a técnica, a possível participa-ção de outros colegas, e assim por diante. Sãoextremamente valiosas, pois, esssas anotações.

De outro lado, esses momentos informaisde aproximação são vitais para a própria rea-lização da investigação, uma vez que determi-nam as bases da relação interpessoal, com aformação de vínculos que ultrapassam o for-mal, criando-se laços de amizade, simpatia econfiança, pelo mútuo interesse que se estabe-lece - e há que se dar de fato - pela pessoa queali está. A transformação do narrador em objetode pesquisa morto e paralisado retira qualquerpossibilidade de serem criadas relações efeti-vamente capazes de dar conta de um trabalhode investigação dessa espécie. Além disso,essa postura não significa, para qualquer dosdois sujeitos, esforço negativo: ao contrário,expressa a cumplicidade do mútuo empenhopara se produzir o relato e para se conservar,no tempo, o depoimento e a historia4,8.

Quanto ao uso do gravador, este instrumen-to, de fato, "representa uma ampliação do poderde registro" 20, pela produtividade maior da ope-ração e pelo registro de viva voz. Permite captare reter por maior tempo um conjunto amplo deelementos de comunicação de extrema importân-cia: as pausas de reflexão e de dúvida ou aentonação da voz nas expressões de surpresa,entusiasmo, crítica, ceticismo, ou erros - elemen-tos esses que compõem com as idéias e os concei-tos a produção do sentido da fala, aprimorando acompreensão da própria narrativa.

Mas gravar implica um trabalho dispendi-oso e difícil de transcrição de todo o materialobtido. Trabalho que, se é possível fazer reali-zar-se à medida que são produzidas as narrati-vas, economizando tempo de processamento dedados, requer razoáveis parcelas de recursos

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financeiros, além de demandar conferência daprópria qualidade da transcrição. É, porém, etapaobrigatória, já que facilita o manuseio posteriordos registros e, por ser a fita material perecível,termina-se perdendo o registro como documentode arquivo.

O uso do gravador introduz, de outro lado,pela presença da própria máquina (o "terceiro"participante), a consciência de que o fiel retratoda narrativa e na forma exata de sua enunciação,está se tornando público, por vezes inibindo orelato ou trazendo a excessiva preocupaçãocom desempenho pessoal.

Mas a necessidade da transcrição ou apresença desse "outro" na entrevista são ape-nas pequenos problemas, pouco alterando asvantagens da gravação como forma de registro.

Após a gravação, um primeiro trabalhocom o material, o da transcrição, representa apassagem da forma oral para a linguagem escri-ta, de modo fiel ao contido na gravação. Istoexige tanto selecionar um adequado profissio-nal, quanto o acompanhamento da atividade,este último, aspecto importante, já que o pro-fissional da transcrição raramente domina olinguajar próprio de segmentos técnicos deter-minados, ou..."a língua dos médicos", assimcomo há o "sociologuês", o "economês", eoutros... Para se ter uma idéia do tipo de traba-lho que envolve, vale destacar que cada horagravada produziu , em média, 30 laudasdatilografadas, em espaço de aproveitamentomáximo da lauda, o que produziu um volumetotal de 1.142 páginas de material coletado.

Um segundo trabalho com o material, o deedição, significa definir critérios de editoria eforma de publicação, o que no presente casoseguiu critérios de "anonimato" dos informan-tes, maior concisão e continuidade nas narrati-vas e individualização dos relatos, excluindo-se, no texto final, as intervenções do pesquisa-dor e optando-se pela ordenação temporal dashistórias, iniciando-se com o depoimento domédico mais antigo na profissão e concluindo-se com o mais jovem22.

Um último trabalho realizado foi o exametotalizador e a leitura trans-individual dos re-latos. Nesse sentido, há que se mencionar oduplo caráter desse material: ao mesmo tempodado empírico para a exploração de dimensõestranscendentes ao singular, tanto quanto já re-sultado do estudo. Como resultado é produtode trabalho específico no interior da investiga-

ção de campo, trabalho em que se produz umaforma própria de objetivação dos temas seleci-onados: objetivação cientificamente fundada,diferenciando-se de outros discursos acerca doreal. Desta perspectiva as narrativas prescindi-riam deste terceiro momento de trabalho.

Mas optando-se, no presente estudo, porinterpretá-las para produzir outros mais resul-tados, as narrativas foram lidas como históriasparticulares de modelos genéricos de profissãoe que contam as várias estruturações concretasdo exercício profissional, cujos perfis indivi-duais estarão, em alguns casos mais e noutrosmenos, próximos da condição tecnológicageral do modo de produção de serviços em quese inscrevem. Da perspectiva totalizadora, en-tão, o leque de estruturações registrado foiabordado como um conjunto, sem deixarde levar em conta a singularidade de cadahistória produzida. Para tanto, é preciso, pri-meiro, dominar o todo de uma mesma história,para poder confrontá-lo com outra. Impregnar-se de cada todo, é o termo que a literaturaespecífica consagra a este proceder20. O desta-que a fragmentos, que aparece na abordagemde conjunto e, portanto, comparativa dos rela-tos singulares, pressupõe que se tenha apreen-dido o sentido próprio do fragmento na totali-dade do pensamento do qual é separado, talcomo buscou-se realizar.

Como as narrativas, além de ferramentasde aproximação das representações, foram tam-bém tomadas como instrumentos de observa-ção da prática, sem desconhecer a ocorrênciade falas mais descritivas ou mais opinativas,foi o todo do discurso conformado que se exa-minou. A leitura das narrativas se fez, portanto,não só quanto às representações, mas igual-mente através das representações, para alcan-çar os procedimentos concretos pelos quais seorganizaram e se transformaram os exercíciosprofissionais. Assim, o modo específico peloqual foram trabalhadas as idéias, as noções e asconcepções do pensamento médico supôsconsiderá-las como constituintes da prática domédico, articuladas ao exercício profissionalque dotam de significação. Podem, assim, relatá-lo, situando nele o agente técnico e sujeitohistórico; ao mesmo tempo que sendo processode significação, representam a construção depensamento acerca do trabalho e sua história. Arealização do trabalho analítico com o materialbuscou alcançar todos estes sentidos.

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Considerações Finais

À guisa de conclusão das presentes refle-xões, seria importante algumas observações,ressaltando o que se considera contribuições dopresente estudo acerca do trabalho médico,com base na metodologia da pesquisa qualita-tiva e na específica técnica ora examinada.

O caráter do instrumento de pesquisa mui-to amplo, sua definição sob princípios operativosmuito genéricos e a grande dose de decisõespessoais do pesquisador no curso de sua utili-zação no trabalho de campo, têm sido os aspec-tos mais polêmicos quanto à tecnicalidade des-ta forma de investigação. São eles, porém, aomesmo tempo, sua marca mais produtiva. Éexatamente esta sua natureza que permite me-lhor explorar a subjetividade como objeto deconhecimento, já que promove resgate dasdimensões sujetivas dos processos sociais querespeita o todo complexo de sua constituição.Tal capacidade nos é evidenciada por ser orelato oral a apreensão da subjetividade naforma de um pensamento externalizado, valedizer, a narrativa. Trata-se, assim, da objeti-vação de pensamentos, por meio da constru-ção de um pensar.

Por isso, credita-se à pesquisa qualitativae particularmente à produção de narrativas, acaracterística de ferramenta extremamente apro-priada para o estudo das as representações. Nopresente caso, o estudo desdobrou-se em repre-sentações acerca da realidade objetiva da práti-ca médica e em auto-representações, permitindo

explorar de duplo modo a dimensão subjetivado trabalho médico.

Da perspectiva de estudo histórico, estaforma de investigação empírica possibi l i tou,de fato, inscrever a cotidianidade na dinâmicade mudanças observadas, ao longo do períodode tempo considerado. E esta possibilidade éespecialmente importante no caso da históriada medicina, em razão dos mencionados des-vios de registro histórico, que valorizam queros feitos pessoais, quer os fatos científico-tecnológicos, enquanto a natureza própria damemória neste campo.

Já enquanto estudo da prática médica comotrabalho social, ao resgatar um modelo de tra-balho, o pensamento médico acerca desse mo-delo e a auto-representação de seus partícipes,o relato oral expôs as percepções acerca docotidiano articuladamente à reconsti tuiçãoobjetiva deste. Permitiu-se, assim, não só co-nhecer o pensamento de personagens técnicosacerca de processos sociais, mas revelar algunsaspectos éticos e lógicos de sua forma de pen-sar: a produção de narrat ivas mais livres,reconstituindo esse pensamento, fez emergir ovalorizado e o desqualificado, bem como oproblemático e o natural, para as percepçõessingulares e para seu conjunto, o pensamentomédico. Sua leitura, então, possível, nos farácompreender a cultura profissional, as imagensidealizadas acerca da prática e como se auto-concebem, na história e na sociedade, estescujas práticas técnicas os situam enquanto pri-vilegiados atores sociais.

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Abstract

Qualitative research as applied to Public Health and Social Medicine is studied. The project is based upon researchinto the historical transformation of medical professional autonomy as medicine shifted from the "liberal" practice torecent "technological" medicine. Field research used unstructured recorded interviews to gather perssonal testimoniesabout the professional histories of physicians who graduated between 1930 and 1955. These testimonies aretechnically classified as "oral accounts" and were registered as free narratives. This study analysis how accounts canexpress the physicians' self-representations of their daily work and simultaneously write the history of medical practice.Further, the unstructured interview is evaluated as an instrument yielding free narratives and life accounts.

Research, methods. Professional practice, history. Social medicine.

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