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REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA – Ano 2, nº 2, outubro 2005 – ISSN: 18075479
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A CIDADE HISTÓRICA NA CONTEMPORANEIDADE - PRESSUPOSTOS
TEÓRICOS PARA UMA ANÁLISE DAS FORMAS URBANAS
Denise Gonçalves, Deborah Castro, Liliane Sayegh, Cristiane Canuto, Roberto Takishita
As relações entre cidade e objeto artístico tem sido enfatizadas dentro da historiografia da
arte mais recente. Essas relações aparecem em autores como Francastel e Argan, que introduzem
aspectos subjetivos na análise das formas urbanas - simbologia, imaginário – considerando-as
como produto cultural, no que encontram eco em abordagens recentes de outras áreas do
conhecimento, tais como a história urbana e a geografia cultural.
No entanto, ao mesmo tempo em que essa associação entre cidade e objeto artístico
enriquece a visão da cidade nos dias de hoje, em alguns casos ela se revelou inadequada.
Referimo-nos às cidades ditas “históricas” brasileiras que, em geral, foram consideradas objetos
artísticos e classificadas segundo critérios estilísticos pelas primeiras gerações responsáveis pelos
organismos de preservação. Os recentes processos modificadores de suas formas evidenciaram a
inadaptabilidade dessa antiga visão à realidade contemporânea. Nossa reflexão parte da observação
desse processo na cidade mineira de Tiradentes, nosso objeto de estudo, cujas formas
aparentemente pouco modificadas enfatizam sua classificação como cidade colonial ou barroca.
Entendemos que, como para qualquer objeto artístico, a análise das formas de uma cidade pode ser
reveladora da complexidade de fatores que a caracterizam como produto cultural. Essa análise,
entretanto, deve ser baseada numa abordagem histórica que leve em consideração uma série de
aspectos que fazem parte da visão contemporânea do fenômeno urbano. O desenvolvimento dessa
abordagem constitui a primeira etapa de nosso estudo.
Membros do grupo de pesquisa formado em 2004 com o objetivo de dar continuidade a estudos e atividades de extensão desenvolvidas desde 2001 na cidade de Tiradentes-MG, em convênio com o IPHAN/MG. Integrantes: estudantes do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa, sob a orientação da Profa. Dra. Denise Gonçalves. Apoio: CNPq.
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A aceleração das transformações que atingem a cidade contemporânea, e que constituem a
principal origem de seus problemas, tem levado a novas abordagens da questão urbana. Sob o
ponto de vista da história, o tema da cidade hoje deve ser considerado dentro de uma perspectiva
mais complexa que une aspectos objetivos – cronologia, forma, usos, funções – e aspectos
subjetivos – memória, imaginário – mas que, sobretudo, coloca em questão as citadas
classificações “estilísticas” ou temporais, tais como cidade barroca, oitocentista, modernista, etc.,
baseadas na correspondência a um determinado modelo, ou a um determinado período congelado
no tempo. A constatação de que a cidade se transforma constantemente, desde sua gênese, enfatiza
a importância dos diversos tempos na análise histórica do fenômeno urbano, levando ao mesmo
tempo a uma revisão das noções tradicionais de temporalidade.
Adotando a linha metodológica de Bernard Lepetit, consideramos que dentro das
transformações físicas de quaisquer escalas que modificam um tecido urbano, os tempos da cidade,
fortemente marcados, não são lineares: Nada indica que eles se ajustam continuamente à
conjuntura econômica, às variações de população, às mudanças de hábitos dos citadinos. Dentro
do processo histórico das cidades, assim, não cabe uma compreensão de temporalidade
cronológica, isso porque elas abrigam uma trama de tempos descompassados que se cruzam de
formas diferentes, gerando mudanças constantes. A cidade (...) nunca é absolutamente sincrônica:
o tecido urbano, o comportamento dos citadinos, as políticas de planificação urbanística,
econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferentes. Mas ao mesmo tempo, a
cidade está inteira no presente1.
A aplicação dessa abordagem às cidades “antigas” ou “históricas”, além de, como foi dito
acima, levar a uma revisão das categorias estilísticas que têm sido privilegiadas pela historiografia,
conduz também a uma reflexão sobre o próprio processo de preservação, cujos critérios foram em
geral estabelecidos sob a perspectiva tradicional de temporalidade, através da eleição de
determinados períodos, dentro de uma evolução cronológica, considerados significativos sob o
ponto de vista histórico e/ou estilístico, em detrimento de uma análise que considere a
complexidade das transformações ocorridas ao longo do tempo.
Como já foi dito, nosso estudo de caso para a abordagem acima mencionada é a cidade de
Tiradentes, em Minas Gerais, considerada um dos exemplos mais relevantes do ciclo do ouro
1 LEPETIT, Bernard. Por uma história urbana – Bernard Lepetit. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 139-145.
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mineiro pelo fato de ter preservado boa parte de suas características originais. Nossa análise será
centrada no processo de transformações que, deixando marcas no tecido urbano, determinou sua
forma atual.
Breve histórico da cidade de Tiradentes-MG
As origens da cidade de Tiradentes remontam aos primeiros anos do século XVIII, quando
da descoberta de minas de ouro na região da bacia do Rio das Mortes. A aglomeração inicial,
chamada Arraial Velho e vinculada à vila de São João del Rei, é elevada em 1718 à categoria de
vila, com o nome de São José. Com o declínio das atividades de mineração desde meados do
mesmo século, a vila entra em processo de retração econômica, processo este que se estende pelo
século seguinte, apesar das tentativas de revitalização da região com a instalação de uma
companhia mineradora inglesa, a implementação da navegação a vapor no Rio das Mortes e a
chegada da Estrada de Ferro Oeste de Minas em 1881 (Figura1), ligando a cidade ao resto da
província. Sua elevação à categoria de cidade em 1860 - primeiramente mantendo o nome de São
José, substituído em 1889 pelo de Tiradentes como homenagem, por ser sua terra natal – não
impediu que chegasse à virada do século XX com população bastante reduzida e limitando-se a
atividades agropecuárias.
Figura 1: Estação Ferroviária
Autor: Pâmela Renon Eller
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Desde então, e até o tombamento pelo SPHAN em 1938, as modificações no espaço urbano
da cidade são limitadas e pontuais, concentrando-se no entorno do núcleo original setecentista que
se manteve praticamente intocado. A estagnação econômica faz com que em torno dos anos 70 seu
aspecto de abandono seja desolador, com vários imóveis em ruínas; é quando a cidade é
redescoberta no que diz respeito tanto à qualidade de seu conjunto arquitetônico e paisagístico
quanto às suas potencialidades turísticas (Figura 2). A partir de então, iniciativas de particulares e
do IPHAN, que aí instala um escritório técnico, promovem a restauração do casario assim como
medidas de recuperação urbanística. Tiradentes torna-se aos poucos importante pólo turístico da
região, característica que se acentua fortemente nas últimas décadas, provocando modificações
profundas em sua estrutura físico-ambiental, social e econômica.
Qualquer análise histórica da cidade de Tiradentes deve levar em consideração uma série de
aspectos. Sob o ponto de vista da paisagem, além de abrigar um acervo arquitetônico dos mais
relevantes dentro do quadro das cidades históricas brasileiras, Tiradentes apresenta um patrimônio
paisagístico e ambiental não menos importante. A presença marcante de bacias hidrográficas e,
sobretudo, da Serra de São José, caracterizam sua paisagem ao mesmo tempo em que constituem
fatores determinantes de seu desenvolvimento urbano, formando, juntamente com o casario
setecentista, um cenário ímpar que constitui o maior fator de atração para a cidade.
Outro fator de complexidade de suas estruturas é a transformação física que esta sofreu nas
últimas décadas como consequência do desenvolvimento do turismo, principalmente nos últimos
dez anos, período em que o processo se intensificou. A primeira delas consiste na mudança no tipo
Figura 2: Largo das Forras
Autora: Deborah Castro
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de ocupação do centro histórico que foi esvaziado da população local de origem, e da sua função
primordialmente residencial, para acolher estabelecimentos turísticos: hoje ele é em geral ocupado
por pousadas, restaurantes, comércio e, em menor proporção, casas de fim-de-semana ou férias. A
população que aí residia passou a ocupar a região periférica ao centro formando novos bairros, no
que foi acompanhada por novos moradores atraídos pelo quadro aprazível da cidade e pelas
possibilidades de inserção na crescente e promissora atividade econômica.
Esses bairros2 surgiram e se desenvolveram sem nenhum tipo de planejamento3, quer no
que diz respeito ao arruamento ou à ocupação do solo quer em relação à infra-estrutura urbana, que
é em geral deficiente. O resultado é variável quanto à morfologia, tipo de uso das edificações,
perfil da população residente e quanto à relação com o centro histórico4. Alguns loteamentos foram
criados, principalmente na entrada da cidade, à beira da Avenida Governador Israel Pinheiro que é
sua principal via de acesso, e na estrada que leva ao distrito de Vitoriano Veloso (Bichinho). O
conjunto dessas intervenções no entorno do centro histórico tem causado modificações sensíveis
na paisagem local, prejudicando a preservação das características principais do sítio (Figura 3).
Sob o ponto de vista social, o contexto atual da cidade não é menos complexo. A população
antiga do centro histórico transferiu-se para a periferia, o que transformou sua relação com ele: de
moradia, este passou a ser em muitos casos local de trabalho. Com o desenvolvimento do turismo,
2 São eles: Cascalho, Prainha, Parque das Abelhas, Canjica, Cuiabá Novo e Velho a leste do centro histórico; Pacu e Mococa a oeste, Alto da Torre, Pau de Óleo e Várzea de Baixo ao sul.3 O bairro Parque das Abelhas parece ser uma exceção: apresenta traçado regular e ocupação uniforme, o que foi possibilitado pela topografia plana do terreno; no entanto também apresenta infraestrutura deficiente.4 FUNDAÇÃO ALEXANDER BRANDT. Diagnóstico ambiental da APA São José e cidade de Tiradentes. Fundo Nacional do Meio Ambiente/MMA, 1997, p. 79-89.
Figura 3: Alto da Torre
Autora: Deborah Castro
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algumas profissões tradicionais, como a ourivesaria por exemplo, foram substituídas pelo trabalho
nas pousadas, restaurantes ou no comércio, ao mesmo tempo em que muito do artesanato local
passou a ser produzido pelos novos habitantes que se estabeleceram na cidade nas últimas duas ou
três décadas. Uma leva recente de investidores ocupa a maior parte do centro histórico com seus
equipamentos turísticos; outros, vindos principalmente de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São
Paulo, constituem moradores eventuais durante períodos de férias ou finais de semana. Assim, a
população tiradentina atual é fragmentada não só em termos de classes sociais, mas ainda sob o
ponto de vista das origens, da cultura e dos objetivos enquanto ocupantes de seu espaço urbano.
Esta população heterogênea se encontra reunida, direta ou indiretamente, em torno das
atividades turísticas, principal, ou praticamente única fonte de renda para a cidade e seus
habitantes, o que configura uma situação bastante delicada. Como já foi dito, Tiradentes hoje
constitui um pólo turístico na região (Figura 4 e 5), cujo principal fator de atração é o seu
patrimônio histórico e paisagístico.
O desenvolvimento dessa atividade tem provocado uma pressão significativa sobre esse
patrimônio, ameaçando sua preservação. O centro histórico (Figura 6), apesar de protegido pelas
normas e critérios de intervenção do IPHAN, é pressionado pelas necessidades do turismo:
adaptação do casario a novos usos, circulação intensiva de pessoas e veículos, inclusive pesados,
Figura 4: Rodoviária de Tiradentes
Autora: Deborah Castro
Figura 5: Ruas dos Inconfidentes
Autora: Liliane Sayegh
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estacionamento irregular, etc. Sob o ponto de vista ambiental, por um lado não existe infraestrutura
urbana suficiente para absorver os altos índices de aumento populacional durante eventos, feriados,
etc., e por outro, o desenvolvimento do turismo ecológico tem sido um fator modificador do meio
ambiente na região da APA e entorno da cidade5.
A análise dos processos modificadores das formas do seu espaço urbano deve
necessariamente se basear no estudo das inter-relações entre os diversos aspectos citados acima. A
questão metodológica que se impõe é a de como estabelecer essas relações.
Pressupostos teóricos
Tendo como objetivo um estudo das formas, precisamos definir as relações entre essa
categoria e o espaço urbano. Segundo Milton Santos, a forma constitui uma das categorias de
análise do espaço: é o aspecto visível, exterior de um objeto, seja visto isoladamente, seja
considerando-se o arranjo de um conjunto de objetos, formando um padrão espacial. Uma casa,
um bairro, uma cidade e uma rede urbana são formas espaciais de diferentes escalas .
Indissociáveis entre si e da noção anterior, três outras categorias contribuem para a análise do
espaço: a função, que implica uma tarefa ou papel a ser desempenhado pela forma ou objeto
criado, a estrutura social que abriga forma e função, caracterizando a natureza histórica do espaço, 5 FUNDAÇÃO ALEXANDER BRANDT. Op cit, p.63.
Figura 6: Centro histórico
Autora: Deborah Castro
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e o processo que introduz a noção do tempo, sendo uma estrutura em seu movimento de
transformação. Tomados individualmente, representam apenas realidades parciais, limitadas, do
mundo. Considerados em conjunto, eles (os quatro termos) constroem uma base teórica e
metodológica a partir da qual podemos discutir os fenômenos espaciais em totalidade.6
No entanto, as relações entre essas categorias não são necessariamente diretas, o fenômeno
urbano sendo caracterizado pela descontinuidade: como afirma Argan, fazendo uma analogia com
a lingüística, não existem cidades – assim como não existem línguas, mas états de langue – a não
ser como situações urbanas.7 O fenômeno urbano precisa ser entendido em sua complexidade: a
cidade é um lugar de contraste e de disposição valorativa dos homens e das coisas, ou seja, ela
não pode ser abordada em sua totalidade, mas sim através de suas dimensões múltiplas e de suas
questões parciais, como observa Lepetit 8.
As relações entre forma urbana e sociedade podem ser consideradas sob diversos aspectos.
Estabelecendo uma analogia entre forma urbana e forma artística, e reportando-nos à sociologia da
arte, encontramos em Francastel a idéia recorrente de que a forma não é autônoma, consistindo na
descoberta de um esquema de pensamento imaginário a partir do qual o homem organiza
diferentes matérias9. Através desse processo, este concretiza um universo cujas dimensões
correspondem à sua natureza e às suas capacidades de intervenção efetivas, e que estão
manifestas, tanto nos seus actos como nas suas representações. Qualquer ação, qualquer imagem
é, de certo modo, criadora de realidade.10 A dimensão histórica também é considerada pelo autor
determinante na relação entre forma e sociedade: A humanidade não esquece nada. Ela progride e
assimila, utiliza caminhos curtos para englobar as experiências antigas. (...) O que faz a história é
o poder que têm os homens de reordenar a matéria de sua experiência antecipando-se pelo
pensamento à realização.11
Tanto a subjetividade do imaginário quanto a dimensão histórica da relação entre forma
urbana e sociedade estão presentes no conceito de paisagem que vem sendo desenvolvido pela
geografia cultural, e que se estende à paisagem urbana. De forte conotação visual e estética, a
6 SANTOS, Milton apud CASTRO, Inês Elias de et alii (org.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 28-30.7 ARGAN, G.C. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 238. 8 LEPETIT, B. Op cit, p. 58-74.9 FRANCASTEL, P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 10.10____________ Imagem, visão e imaginação. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 62.11____________ Op cit, 1982, p. 84.
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definição mais imediata de paisagem a situa como elo entre natureza e sociedade, associando a
forma à percepção que dela tem o grupo social. Nessa relação, o papel do homem como agente
modificador confere à paisagem uma dimensão cultural na medida em que se considera essa ação
fruto de mecanismos simbólicos, ligados ao imaginário coletivo e que se materializam no espaço.
Desse modo, ao constituir a materialização da lógica estruturante da sociedade, a paisagem é
portadora de sentido, e suas modificações formais não podem ser analisadas independentemente
das práticas sociais: no processo de construção da paisagem pelo imaginário social, ela (...)
configurou-se na própria representação de práticas sociais que lhe dá (sic) novo conteúdo,
transformando-a em espaço geográfico. Ao mesmo tempo, a paisagem é fruto da história pois em
cada época o processo social imprime materialidade ao tempo, produzindo formas/paisagens12. A
paisagem constitui-se assim na representação de diversos momentos históricos de um grupo social,
como observa Milton Santos: Considerando um ponto determinado no tempo, uma paisagem
representa diferentes momentos de desenvolvimento de uma sociedade. A paisagem é o resultado
de uma acumulação de tempos 13.
A própria definição de espaço geográfico traz em si a dimensão social, na medida em que
espaço é a forma acrescida de conteúdo, ou do valor social que lhe é atribuído. A noção de
cotidiano se torna assim fundamental para a compreensão de seus processos modificadores. Dentro
da visão marxista de Henri Lefebvre, que procura formular a problemática do espaço no plano
teórico, o cotidiano constitui um dos três níveis em que se dá a reprodução do espaço,
complementando os níveis do político e do econômico. O fio condutor de sua linha de pensamento
reside na idéia de que, ao produzir sua vida (sua história, a realidade), a sociedade produz,
concomitantemente, o espaço geográfico. Partindo do princípio que a atividade do trabalho se
encontra no centro do processo produtor do espaço, a análise do cotidiano permite discutir, de um
lado, a articulação entre as atividades produtivas e não-produtivas no conjunto da sociedade, e de
outro, a materialização espacial deste processo, cujo movimento fundamenta-se na contradição
entre produção espacial coletiva e apropriação privada14.
12 LUCHIARI, M.T. A (re)significação da paisagem no período contemporâneo. In: ROZENDHAL, Z. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001, p. 12-13.13 SANTOS, M. apud NEVES, E. Paisagem-conceito. In: Paisagem e ambiente. Ensaios IV. São Paulo: FAUSP, 1992.14 CARLOS, A.F. “Novas” contradições do espaço. In: O espaço no fim do século - a nova raridade. São Paulo: Contexto, 2001.
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A noção de cotidiano é também desenvolvido por Michel de Certeau. Para ele, as práticas
sociais cotidianas se contrapõem ao caráter abstrato e controlador dos planos urbanísticos, ou da
Cidade-conceito: a vida urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o projeto urbanístico dela
excluía. A linguagem do poder se “urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a movimentos
contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico. Desse modo, o
caminho seria analisar as práticas microbianas, seguir o movimento dos procedimentos que
escapam ao controle da administração e que se reforçaram em uma proliferação ilegitimada,
constituindo-se em regulações cotidianas do espaço. Dentro da idéia de um movimento constante
na “construção” da cidade do cotidiano, os percursos e os relatos seriam formas elementares das
práticas organizadoras do espaço, mas que pertencem mais ao domínio do imaginário que do
espaço físico. O caminhar molda espaços, tece lugares, formando um desses “sistemas reais cuja
existência faz efetivamente a cidade”, mas “não têm nenhum receptáculo físico”, enquanto que o
relato é uma apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (...) uma realização espacial do
lugar. Na distinção entre lugar e espaço, o primeiro é a ordem segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência, é uma configuração de posições, implicando uma
indicação de estabilidade. O espaço, ao contrário, é dinâmico: é um cruzamento de vetores de
direção, quantidades de velocidade e a variável tempo; é animado pelo conjunto de movimentos
que nele se desdobram: Em suma, o espaço é um lugar praticado. É um lugar percebido, ou seja,
para a mesma forma urbana podem corresponder experiências espaciais distintas15.
A relação entre forma urbana e sociedade, assim, pode se dar num plano subjetivo, logo
nem sempre é materializável. Além disso, mesmo que o seja, quando se introduz a dimensão do
tempo ela se torna ainda mais complexa, já que nem sempre os reflexos de uma na outra são
imediatos. O mesmo acontece na relação entre forma e função. A forma é um elemento de
estabilidade, enquanto a função é maleável. Novos usos, ou novas funcionalidades, se encaixam
em formas antigas – uma problemática facilmente identificável hoje, por exemplo, nos centros ou
bairros “históricos”. Como observa Roncayolo, há uma sobreposição de níveis, da duração e dos
limites estruturais desiguais16. Seu pensamento converge para o de Lepetit quando este afirma que
15 CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 176-203.16 RONCAYOLO, M. Cidade. In:Enciclopédia Einaudi, vol. 8: Região. Lisboa: Casa da Moeda, 1986, p. 433.
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deve-se levar em conta que as sociedades urbanas procedem continuamente a uma reatualização e
a uma mudança de sentido das formas antigas, reinterpretando-as constantemente17.
Desse modo, na relação entre forma, estrutura social e tempo, as descontinuidades tornam-
se evidentes. Roncayolo18 afirma que a estrutura social não se projeta imediatamente na cidade;
uma das causas desse descompasso é que as estruturas materiais e culturais adquiridas corrigem-se
lentamente: o imobilismo das construções existentes, a utilização do solo, as preferências do grupo
social. Só com o tempo se compreendem as sobreposições, as substituições, as relações de força.
Além disso o tempo da construção, da execução dos programas, excede o tempo da conjuntura em
que estes foram elaborados, daí a defasagem e as distorções em relação aos ritmos das
modificações sociais e econômicas. Certeau fala de um tempo acidentado que carrega o
imprevisto, contrapondo-se ao tempo “controlado” produzido pelo discurso de uma teoria racional:
eliminar o imprevisto ou expulsá-lo do cálculo como acidente ilegítimo e perturbador da
racionalidade, é interdizer (sic) a possibilidade de uma prática viva e “mítica” da cidade. Seria
deixar a seus habitantes apenas os pedaços de uma programação feita pelo poder do outro e
alterada pelo acontecimento. Fábula indeterminada, o tempo acidentado é o que se narra no
discurso efetivo da cidade19.
A importância da análise histórica do fenômeno urbano reside assim na identificação dos
imprevistos, dos descompassos, dos pontos de ruptura no desenvolvimento da cidade, dos
mecanismos que se encontram nas origens das modificações de sua forma. Retomando Argan,
formas urbanas são produtos da história. No termo “cidade” (...) acumula-se uma grande soma
de experiências históricas.20
A aceleração e a intensidade das mudanças na cidade contemporânea, assim como a
conseqüente ameaça da destruição de suas formas e da perda da sua história, tem levado a uma
valorização da dimensão visual do espaço urbano. Teorias como a de Kevin Lynch, que enfatiza
elementos visuais como pontos de referência, ou como fatores de reconhecimento do usuário em
relação ao espaço da cidade, reafirmam a idéia de que a forma urbana é um fator fundamental da
identidade de um grupo social. No conceito de paisagem urbana, enfatiza-se a sua dimensão
17 LEPETIT, B. Op cit, p. 147.18 RONCAYOLO, M. Op cit, p. 456-457.19 CERTEAU, M. Op cit, p. 311-312.20 RONCAYOLO, M. Op cit, p. 397
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simbólica enquanto rede de significados e significantes; na sua dimensão histórica, é expressão dos
laços que ligam o presente à herança do passado.
Essa problemática das transformações atinge também as cidades históricas, apesar delas
estarem protegidas, em geral, pelo instrumento do tombamento. O principal motivo nesse caso
reside numa mudança da função, isto é, na sua transformação em espaços turísticos, ou espaços de
consumo. A valorização estética da paisagem no mundo contemporâneo, causada em parte pela
ameaça de desaparecimento da paisagem tradicional, pode ser considerada como uma das origens
desse fenômeno. Como observa Ana Fani Carlos, o turismo representa a conquista de uma
importante parcela do espaço que se transforma em mercadoria: este passa a ser banalizado,
explorado, seu processo de apropriação sendo determinado por leis do mercado e estratégias de
marketing. É um espaço dominado, controlado, impõe não apenas modos de apropriação, mas
comportamentos, gestos, modelos de construção que excluem-incluem 21. Forma sem conteúdo,
reduz a realidade a um simulacro, eliminando a subjetividade do cotidiano. Se os centros históricos
permanecem pouco alterados em suas formas, as transformações espaciais são enormes. Sob outro
aspecto, o incremento de atividades econômicas ligadas ao turismo provoca o crescimento dessas
cidades, causando o surgimento de áreas periféricas, como no caso de Tiradentes. Se por um lado
essas novas áreas comprometem a unidade dos conjuntos tombados, por outro, é nesses espaços
“não planejados”, para onde se dirigiu a antiga população local, que a cidade recupera as práticas
cotidianas.
A análise da cidade histórica não pode assim ignorar as áreas de formação recente.
Compreender o processo das modificações devidas a uma expansão urbana em geral
“desordenada” ou “espontânea” é compreender os processos sociais, econômicos e culturais que,
de forma direta ou indireta e dentro de uma perspectiva histórica, estão relacionados a ela. A
análise das formas dessa expansão periférica aos antigos núcleos – e que reproduzem a aparente
“desordem” que caracterizou o período formador dessas cidades - pode fornecer a chave para uma
compreensão maior das relações intrínsecas ao fenômeno urbano. Retomando Argan quando se
refere às cidades de um passado que ainda ignorava a figura do urbanista : As cidades
desenvolveram-se de uma maneira que chamamos espontânea, mas que, na realidade, era
21 CARLOS, A.F. Op cit, p. 64-68.
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determinada pela evidência que a figura histórica da cidade tinha na consciência individual e
coletiva.22
Compreender a cidade histórica, hoje, significa compreender as marcas que os diversos
tempos deixaram em suas formas, num processo acumulativo. A consideração da cidade como
produto cultural ou artístico não mais comporta a visão estática do objeto acabado, devendo
incorporar a dinâmica de seus processos modificadores. Nosso objetivo, assim, é tentar identificar,
através da leitura das formas, a história desses processos e das inter-relações subjacentes a eles,
esperando com isso contribuir para a discussão acerca dos critérios de preservação do patrimônio
construído.
Referências bibliográficas
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22 ARGAN, G.C. Op cit, p. 240.
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