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1 O MISERÁVEL SOLDO & A BOA ORDEM DA SOCIEDADE COLONIAL Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco dos Séculos XVII E XVIII KALINA VANDERLEI P. DA SILVA

7282724 O Miseravel Soldo e a Boa Ordem Da Sociedade Colonial

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  • 1

    O MISERVEL SOLDO & A BOA ORDEM

    DA SOCIEDADE COLONIAL

    Militarizao e Marginalidade na Capitania de Pernambuco

    dos Sculos XVII E XVIII

    KALINA VANDERLEI P. DA SILVA

  • 2

    Sumrio

    Apresentao & agradecimentos

    Prefcio Uma histria de poder no Pernambuco colonial

    Parte I Das armas. Sobre a composio das tropas

    1 A forja Formao e organizao militar moderna;

    Europa, Portugal, e o Estado do Brasil

    Na metrpole

    No Estado do Brasil

    2 Matria prima As origens sociais dos militares

    coloniais

    Semeando as roas vivas de soldados: o recrutamento

    Criminosos, vadios e outros elementos incmodos

    Parte II Chuo, mosquete e alvar. O soldado, o Estado,

  • 3

    a sociedade

    3 O segundo perodo portugus

    Pernambuco post bellum

    Esses holandeses de outra cor: a guerra de Pernambuco

    contra a Serra da Barriga

    4 Bananas & farinha A controversa poltica rgia

    de manuteno das tropas

    Farinha e misria

    5 O miservel soldo Usos e utilidades. Assimilao

    e transgresso. Cotidiano e resistncia

    Utilidade e inutilidade o emprego das tropas pela Coroa

    portuguesa

    Artesos, bandidos, esmoleres as formas alternativas

    de trabalho dos militares

    Velhos, estropiados e ignorantes: incompetncia e

    inutilidade das tropas

    O valor dos soldados

  • 4

    Roubos, estupros, assassnios

    Fuga. Resistncia. Castigo. Punio

    Reflexes sobre o trabalho

    Bibliografia

    Notas

  • 5

    UMA HISTRIA DE PODER NO PERNAMBUCO COLONIAL

    Um soldo miservel era a paga dos homens que serviam a el Rei de Portugal como

    soldados. E na sociedade colonial, apesar desse seu miservel soldo, so esses mesmos

    homens os responsveis pela manuteno da boa ordem del Rei. a partir dessa

    constatao, fruto da observao do Estado portugus e de suas relaes com a sociedade

    da zona aucareira, que vamos partir nessa narrativa em busca das condies de vida dos

    homens que compunham as tropas do rei. Homens que so, em sua maior parte, oriundos

    das margens do sistema colonial.

    Dessa forma, estamos procurando por aquilo que Alfredo Bosi chama de condies

    coloniais: o modo de vida, as relaes humanas entre aqueles que viviam na Amrica

    portuguesa. Buscamos as mltiplas formas concretas de existncia interpessoal e subjetiva,

    a memria e os sonhos, as marcas do cotidiano no corao e na mente, o modo de nascer,

    de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar, de cantar, de morrer e ser

    sepultado.1 Mas, de uma forma mais especfica, procuramos por uma influncia particular

    que se exerce sobre essas condies de vida. A influncia do Estado.

    A sociedade colonial da zona aucareira do Estado do Brasil, cenrio de nossa

    histria, construda em torno de uma empresa comercial, a empresa aucareira. Uma

    empresa projetada e controlada pela Coroa portuguesa. A sociedade que surge ao redor

    dessa empresa recebe as atenes da Coroa apenas em parte: o Estado no interfere nos

    engenhos e nas relaes sociais que l se estabelecem. Mas interfere nos ncleos urbanos

    onde so instalados seus mecanismos de controle. A sociedade colonial interessa ao Estado

    portugus apenas enquanto suporte para a empresa do acar. No entanto, nos ncleos

  • 6

    urbanos se desenvolvem camadas no diretamente ligadas a essa empresa. Camadas menos

    independentes do que marginais. E so essas camadas que atrairo a ateno da Coroa,

    temerosa de seus movimentos. Assim que a Coroa estabelece seus aparelhos

    burocrticos, instrumentos de controle social, nos ncleos urbanos, tornando-os repressivos

    por excelncia2. E um dos mecanismos mais eficientes , sem dvida, o aparelho militar.

    A eficincia do organismo militar da Coroa portuguesa, montado na zona colonial do

    acar, como instrumento de controle social, vem do fato de, ao mesmo tempo em que

    reprime possveis perturbaes boa ordem da sociedade, aproveita como soldados os

    prias dessa mesma sociedade: d uma utilidade social aos elementos desligados da

    empresa aucareira3. No simplesmente o ostracismo para os marginais, pelo contrrio,

    dar-lhes alguma funo ativa no meio social. Essa a principal funo do aparelho militar

    profissional da Coroa na zona do acar, como percebemos no decorrer deste trabalho.

    Veremos que a represso e a funo blica esto, muitas vezes, nas mos dos

    prprios colonos, devido m estruturao da organizao militar profissional. E isso vai

    dar origem s tropas auxiliares, compostas por colonos e no profissionais, utilizadas pela

    Coroa para o servio que deveria ser de suas tropas.

    Dentro dessa perspectiva, tentamos observar os usos do aparelho militar institucional

    na zona aucareira: como esse aparelho utilizado tanto militar quanto politicamente.

    Estamos fixando nosso olhar sobre Olinda e Recife, da segunda metade do XVII at fins do

    XVIII. A escolha desses dois ncleos, em meio a tantos outros da mesma rea, se deve

    importncia que eles assumem politicamente perante Pernambuco e suas Capitanias Anexas

    e por serem dessas vilas, os homens recrutados para as tropas institucionais mais ativas e

    representativas da rea do acar perante a Coroa. Alm disso, a acessibilidade das fontes

  • 7

    documentais para essas duas povoaes tambm nos incentivou a continuar a pesquisa

    dentro desse quadro espacial.

    Essas tropas so as mais representativas com a exceo daquelas estabelecidas em

    Salvador, sede do poder rgio no Estado do Brasil e de sua burocracia. Mas, apesar de que

    abordaremos em alguns momentos tambm essas tropas baianas, por uma questo de

    similaridade contextual, no geral procuramo-nos restringir Capitania de Pernambuco,

    devido s disputas que nela ocorrem, entre todo um elenco de atores que vo do

    Governador Geral Cmara de Conceio em Itamarac. So disputas descritas e

    analisadas pela historiografia4 em que Pernambuco assume uma postura de enfrentamento

    ante a jurisdio rgia. Uma postura que fica bastante ntida na atuao dessas duas

    povoaes nesse perodo.

    Nosso cenrio o Pernambuco Post Bellum, usando a expresso de Evaldo Cabral,

    quando se refere ao Pernambuco recm sado das guerras holandesas e novamente inserido

    na jurisdio da Coroa portuguesa. O perodo que chamamos de segundo perodo portugus

    de Pernambuco, e que tem incio em 1654, se estende ao longo do sculo XVIII at os

    primeiros estertores da crise do sistema colonial entre o XVIII e o XIX.

    Ao longo desse sculo e meio, nossa viso pretende fixar-se sobre as estruturas

    sociais. Estruturas que, na colnia, variam pouco ao longo do tempo. Nossa observao se

    prende assim nas permanncias da sociedade. O que significa que no nos deteremos em

    momentos de crises conjunturais, de crises polticas, que no chegam a abalar as estruturas

    sociais coloniais, entre as quais est a estrutura militar. Diferentes estudiosos tm abordado

    recentemente os militares coloniais em momentos de ruptura do sistema5. O que mais

    uma razo para darmos um enfoque diferente, procurando olhar para os homens que

  • 8

    formam essas tropas da Coroa enquanto eles vivem o cotidiano da sociedade colonial, e no

    suas crises.

    Construindo nossa narrativa, fomos desenrolando uma trama de relaes de poder

    entre Coroa, tropas e sociedade livre. E fomos tentando fazer uma histria que no se

    propusesse a dar explicaes definitivas. Uma histria que possa ser exemplificada pelas

    palavras de Hobsbawn , se tudo isso chega a fornecer uma explicao adequada, ou ao

    menos uma explicao verificvel, no podemos ter certeza.6 No podemos ter certeza,

    apenas iniciar a investigao.

    Iniciar a narrativa traando um contexto histrico seria a forma tradicional e a

    simples. E normalmente o simples est carregado de eficincia e poesia. Mas correndo o

    risco de nos tornarmos rocambolescos, vamos iniciar de outra forma. Temos uma boa

    desculpa para isso, visto que alguns conceitos precisam ser definidos de imediato; conceitos

    como tropa burocrtica, disciplina, milcias, ordenanas. Conceitos que, para se tornarem

    plausveis, precisam do tranado da organizao da estrutura militar ento vigente. Tendo

    isso explcito, esperamos que o fato de o contexto histrico vir, exatamente, no meio do

    trabalho, no prejudique a fluidez do texto.

    O trabalho est dividido em dois captulos principais: O primeiro, Das Armas, como

    o subttulo j diz, trata da composio das tropas coloniais. Nele, veremos a organizao

    militar do Imprio portugus em oposio ao mundo europeu moderno. Vamos considerar o

    nascimento da disciplina e suas particularidades no mundo portugus, alm de procurarmos

    as camadas sociais que fornecem os homens para a composio dessas foras.

  • 9

    No segundo, Chuo, mosquete e alvar, temos o contexto histrico da sociedade em

    questo; as estratgias polticas de controle das tropas; e por fim, algumas formas de

    resistncia social a esse sistema.

    Bem, isso. Tentamos costurar a narrativa de maneira simples e fluida, procurando

    no perder o essencial e abordando o mximo de opes explicativas possveis. Esperamos

    que a leitura seja agradvel e possa esclarecer alguns aspectos pouco percebidos da

    sociedade da Amrica colonial portuguesa. Por tudo podemos nos justificar

    antecipadamente com as palavras de Katherine Mansfield:

    Eis tudo. Nem romance nem histrias complicadas, nada que no seja simples e

    sincero.7

  • 10

    Parte I Das Armas. Sobre a composio das tropas.

    A era clssica viu nascer a grande estratgia poltica e

    militar segundo a qual as naes defrontam suas foras

    econmicas e demogrficas; mas viu nascer tambm a

    minuciosa ttica militar e poltica pela qual se exerce nos

    Estados o controle dos corpos e das foras individuais. O

    militar a instituio militar, o personagem do militar, a

    cincia militar, to diferentes do que caracterizava antes o

    homem da guerra se especifica durante esse perodo, no

    ponto de juno entre a guerra e os rudos da batalha de um

    lado, a ordem e o silncio obediente da paz por outro.

    Foucault, Michel. Vigiar e Punir ( p. 151)

    Em 1663, escreve o governador de Pernambuco Francisco de Brito Freyre ao rei

    portugus Dom Afonso VI, atravs do Conselho Ultramarino, prestando contas de sua

    administrao. Essa carta em particular, entre outros assuntos, a maior parte dos quais sobre

    as medidas defensivas tomadas na capitania, aborda a necessidade de uma reduo nas

    tropas de Pernambuco, inchadas e dispendiosas devido ao recente trmino da guerra

    holandesa. Ele prope uma reformulao geral da organizao militar, que inclui a extino

    de um dos trs teros existentes. Essa extino implicaria necessariamente em uma

    diminuio do nmero de soldados e oficiais. Apesar da praticidade da medida, que ele

    mesmo prope, admitida como a melhor soluo para a conteno de gastos, o governador,

  • 11

    todavia, hesita em aplic-la. Hesita em reduzir os efetivos, em extinguir postos, em

    dispensar homens. E alega:

    Mas como quase todos esses oficiais, criando-se em uma

    guerra to arriscada lhe deram um fim to milagroso, (...)

    obrigam justiamente a seu favor a grandeza de Vossa

    Majestade no tendo muitos outro modo de vida que a

    profisso de soldado, sem mais cabedal que o de suas pagas,

    (...).8

    Cento e trs anos depois, em 1766, na vila do Recife, um soldado do Regimento de

    Infantaria se desentende com um escravo em um aougue. O escravo pertence ao

    governador da capitania, Manuel da Cunha Menezes. Por qualquer motivo, o governador

    considera o incidente como uma afronta pessoal e ordena o apoleamento9 do soldado. Este,

    cujo nome se perdeu, faz parte da companhia do Capito Joo Rodrigues Souza que, ento,

    procura o governador para explicar o ocorrido e tentar libertar o soldado. O resultado, no

    entanto, contrrio s expectativas do capito, que se v insultado pelo governador.

    Considerando-se ofendido e injustiado, o capito Joo Rodrigues no hesita em

    insubordinar sua companhia para libertar o preso. Em resposta, Cunha Menezes envia

    outras companhias para reprimir o motim; companhias estas que tambm se aliam ao

    Capito.

    Como resultado, e se sentindo sem alternativas, Cunha Menezes no apenas liberta o

    soldado como releva o motim, sem nenhuma represso, devassa ou punio para qualquer

    de seus participantes.10

  • 12

    Desde os oficiais e soldados de Brito Freyre, heris sem cabedais que no podem ser

    dispensados, at os soldados e oficiais do Capito Joo Rodrigues, insubordinados sem

    prestgio que no podem ser castigados, temos cem anos de histria da Capitania de

    Pernambuco onde, apesar das mudanas no cenrio poltico-econmico, encontramos

    estruturas sociais que permanecem muito semelhantes durante todo o perodo. Estruturas

    que se movimentam com lentido. Nelas os militares ocupam uma posio chave como

    elementos das relaes de poder entre a Coroa e os colonos.

    O controle social e poltico sobre a Capitania de Pernambuco exige da Coroa prticas

    especficas que so possveis graas a uma srie de polticas e comportamentos simblicos

    que encaixam o organismo militar e os homens que o compem. O primeiro passo para

    perceber a importncia tanto do organismo em si, quanto desses seus homens e de sua

    interao com a sociedade, conhecer o que e como se forma a estrutura militar colonial.

    Antes de mais nada, esses homens das foras repressivas coloniais so apenas parte

    da estrutura portuguesa, metropolitana e imperial. E dessa forma esto inseridos em um

    contexto cujos limites vo alm das fronteiras da Colnia americana, alcanando a Europa

    Moderna e seus novos exrcitos. Assim, vamos partir da generalidade: podemos tentar

    compreender os militares coloniais dentro do Estado Moderno, centralizado sob o comando

    de um prncipe, que ainda sofre presses por parte da nobreza, detentora de especializao

    militar.

    um processo de metamorfose militar que segue paralelo s transformaes

    polticas da Era Moderna, iniciadas com a centralizao dos Estados, e que se finaliza com

    a ascenso poltica da burguesia na Revoluo Francesa.

    O arco de tempo que traamos como limite em torno da sociedade colonial, para

    observ-la, est situado entre duas mudanas; a ascenso e a queda das monarquias

  • 13

    europias. E assim, podemos entender as estruturas militares e sociais aqui estudadas como

    partculas do Estado Moderno absoluto, burocrtico, barroco11

    no caso ibrico. Mas

    devemos, antes de mais nada, compreender o significado de organizao militar.

    Precisamos saber a que organizao nos referimos. Ou melhor, a quais.

    John Keegan classifica as vrias formas em que os homens podem organizar-se

    militarmente. Seis tipos principais, encontrveis ao longo da Histria: o guerreiro, o

    mercenrio, o escravo, a tropa regular, a milcia, e o recruta12

    .

    Os soldados de linha das tropas regulares so mercenrios

    que j gozam de cidadania ou equivalente, mas escolhem o

    servio militar como meio de subsistncia; nos Estados

    afluentes, o servio militar pode assumir alguns atributos de

    uma profisso. (...). O princpio da milcia estabelece o dever

    de prestar servio militar para todos os cidados aptos do

    sexo masculino; a falta ou recusa em prest-lo leva

    geralmente perda da cidadania; (...).13

    Precisamos ter cuidado com essas definies, devido ao seu excesso de generalidade:

    na colnia aucareira percebemos que os soldados de linha no escolhem o servio militar

    como meio de sobrevivncia. Mas o que essa tropa de linha, ou tropa regular ? Na Idade

    Moderna, para o Estado centralizado, a prestao de servios militares pelos bares,

    segundo o regime medieval, insatisfatria. Muito mais eficiente o sistema de tropas

    regulares, que so compostas por guerreiros profissionais, que exercem esse ofcio de

    forma permanente, como fonte de renda e que, ao contrrio dos mercenrios, so cidados,

    vassalos e sditos do Estado que os contrata.

  • 14

    O principal fator de distino entre os diferentes tipos de tropa o sistema de

    manuteno. E uma das diferenas fundamentais entre as tropas regulares e os mercenrios

    que as primeiras so permanentes, enquanto os segundos so profissionais independentes,

    mantidos apenas durante as crises. Apesar de ser tentador contratar mercenrios em vez de

    manter dispendiosas tropas regulares permanentemente, os mercenrios so sempre

    perigosos, pois seguem o tilintar das moedas e no dirigem nenhuma fidelidade aos Estados

    ou soberanos contratantes, ao contrrio das tropas regulares que, compostas por sditos e

    vassalos da Coroa em questo, so naturalmente alvos de diferentes estratgias e

    mecanismos de controle social, o que as torna mais confiveis, se bem que mais caras e

    nem sempre to eficientes.

    Mas a confiabilidade muitas vezes parece no valer seu preo em ouro e, nesse caso,

    um mtodo alternativo so as milcias adotadas na Idade Moderna, por cidades-estado

    italianas no sculo XVI. Elas tomavam como condio de cidadania que todos os homens

    livres e proprietrios comprassem armas, treinassem para a guerra e prestassem servio

    militar em tempos de perigo. So compostas normalmente de burgueses e outras camadas

    proprietrias, ou seja, os cidados em questo. Esto baseadas no modelo militar das

    cidades gregas, onde as tropas so formadas pelos cidados que servem gratuitamente e

    que, com exceo de treinamentos eventuais, s se mobilizam em casos de necessidade.

    Sistema tecnicamente excelente. Tecnicamente, porque, sem dispndio para o Estado em

    pocas de paz, tm ainda a vantagem da lealdade irrestrita dos cidados, todos interessados

    em defender suas casas e propriedades. Vamos reencontr-las no Brasil colnia, compostas

    por elementos oriundos das camadas livres. O grande problema desse sistema que os

  • 15

    cidados nunca so em nmero suficiente para rechaar possveis ameaas.14

    Ao menos,

    no sozinhos.

    No Estado Moderno europeu a tropa regular mantida pelo prncipe e seu errio tende

    a sobressair s formaes milicianas, patrocinadas pelos burgueses. A razo para isso, se

    considerarmos as tropas regulares antes de tudo como organizaes burocrticas, passa

    tanto pelo problema da lealdade quanto da tcnica:

    A razo decisiva para o progresso da organizao

    burocrtica foi sempre a superioridade puramente tcnica

    sobre qualquer outra forma de organizao. (...)Preciso,

    velocidade, clareza, conhecimento dos arquivos,

    continuidade, descrio, unidade, subordinao rigorosa,

    reduo dos atritos e dos custos de material e pessoal so

    levados ao ponto timo na administrao rigorosamente

    burocrtica, especialmente em sua forma monocrtica. Em

    comparao com todas as formas colegiadas, honorficas e

    avocacionais de administrao, a burocracia tre inada

    superior, em todos esses pontos. E no que se relaciona com

    tarefas complicadas, o trabalho burocrtico assalariado no

    s mais preciso, mas, em ltima anlise, frequentemente

    mais barato do que at mesmo o servio no-remunerado

    formalmente.15

    Mesmo se referindo aqui burocracia moderna de forma geral, Weber expressa

    tambm as vantagens das tropas burocrticas, vantagens descobertas pelo prncipe, porque

  • 16

    alm das explicaes de ordem puramente militar para sua predominncia, as tropas

    regulares so antes de tudo estatais, funcionrias, subordinadas em primeiro lugar ao

    Estado. Ainda que esse Estado seja o rei.

    Temos ainda um importante elemento: as novas construes mentais que nascem na

    Europa Moderna, criadas pelos Estados absolutistas para o controle e melhor

    aproveitamento de suas organizaes militares. Construes arquitetadas para a maior

    submisso dos sditos e vassalos que esses Estados resolvem por fim contratar para sua

    defesa, no lugar de utilizar as tropas de proprietrios. Pois algumas dessas foras milicianas

    mais obstaculizam que incentivam o desenvolvimento das monarquias dinsticas. Algumas

    apenas obstaculizam, como o caso da cavalaria feudal. So construes planejadas como

    molduras para enquadrar esses homens que, como disse Foucault no texto que serve de

    epgrafe a esse captulo, so homens de guerra e no ainda soldados: A estratgia,

    instrumento poltico e militar de planejamento de aes, as naes defrontam suas foras

    econmicas e demogrficas;(...)16

    . E a ttica, em quem se exerce o controle dos corpos e

    das foras individuais, dirigindo-os para a execuo das ditas aes.

    assim que se cria na Era Moderna uma nova definio de gente de guerra: o

    militar. Criado a partir dos conceitos de ordem, disciplina e obedincia ao Estado17

    , o

    soldado um novo personagem que se posiciona no cenrio entre a guerra, que sua tarefa

    profissional, e a boa ordem do Estado, estabelecida pela natureza burocrtica deste. E da

    mesma forma que o Estado centralizado possvel graas s tropas burocrticas, estas

    contratadas diretamente pela Coroa e independentes dos laos de vassalagem com os

    senhores feudais, o soldado burocrtico por sua vez, s possvel graas centralizao do

    Estado e apropriao que este executa de parcela significativa da renda da sociedade:

  • 17

    Do aspecto disciplinar, tal como econmico, o senhor feudal

    e seus vassalos representam um contraste extremo com o

    soldado patrimonial ou burocrtico. E o aspecto disciplinar

    consequncia do aspecto econmico. O vassalo e senhor

    feudais no s providenciam seu prprio equipamento e

    provises, dirigem seu trem de bagagens, como tambm

    convocam e chefiam os subvassalos que, por sua vez, tambm

    se equipam.

    A disciplina cresceu base da maior concentrao dos meios

    de guerra nas mo do senhor blico.18

    Assim, o novo militar da era moderna nasce, da mesma forma que as organizaes

    militares em que atua, no apenas da ascenso poltica de governos unificados como

    tambm do maior controle, por esses governos, da economia, ou pelo menos de parcelas

    dela. Mas para Weber, se a disciplina criada pela ordem poltica e social, ela reage a essa

    ordem de forma intensa, afetando a estrutura tanto do Estado como de instituies sociais

    como a famlia, pois cria novas camadas profissionais, novas camadas sociais, para onde

    acorrem diferentes elementos da populao.19

    Criada pela ordem, a disciplina ordena. O

    que se cria de mentalmente novo com ela a noo de trabalho contido e controlado.

    Prtico.

    O guerreiro com ataques manacos de fria e o cavaleiro

    feudal que mede a espada com seu adversrio igual, a fim de

    conseguir honras pessoais, so igualmente estranhos

    disciplina. O guerreiro estranho porque sua ao

  • 18

    irracional; o cavaleiro porque sua atitude subjetiva falta

    esprito prtico. Em lugar do xtase herico ou da piedade

    individual, do entusiasmo ou da dedicao de um lder, como

    pessoa, do culto da honra ou do exerccio da habilidade

    pessoal como uma arte a disciplina coloca o hbito

    habilidade rotineira.20

    Enquanto essa noo disciplinar surge na Europa do sculo XVII, extirpando a

    batalha pessoal do guerreiro, do heri, substituindo-a pela guerra cientfica do soldado, do

    militar, Portugal continua a seguir suas noes medievais e cruzadsticas de guerra santa,

    em uma tapearia barroca que tece juntos fios do herosmo medieval com outros deste novo

    esprito burocrtico e organizacional que invade a Europa, que tambm barroco em sua

    busca incessante pela ordem21

    .

  • 19

    1 A forja Formao e organizao militar moderna;

    Europa, Portugal, e o Estado do Brasil:

    So Tiago e a Eles!

    Boxer, C. R. O Imprio Colonial Portugus (pg. 141)

    A expresso acima o grito de batalha dos portugueses, e esta nossa primeira

    parada na busca pela organizao dos militares coloniais na zona aucareira do Brasil: a

    estrutura militar portuguesa nos sculos XVII e XVIII. Portugal, no entanto, apesar de ter

    uma organizao caraterstica que o diferencia do outros Estados europeus, no pode fugir

    ao contexto das modificaes blicas que esses dois sculos trazem para a Europa. Os

    Estados Nacionais consolidam a formao de exrcitos burocrticos22, que so, por

    definio, aquelas foras militares permanentes e profissionais montadas e mantidas pelo

    Estado centralizado. A profissionalizao militar , assim, a forma encontrada pelas

    monarquias apoiadas no capital das cidades para substituir a antiga forma de servio militar

    prestado pelos nobres na vassalagem.

    Desde os primeiros passos do desenvolvimento da plvora, que os senhores da

    guerra procuram formas de melhor aproveit-la em campo. Os sculos XVI e XVII

    conhecem a gradual evoluo das tticas e manobras de homens em campanha; tcnicas

    aprimoradas graas ao uso da plvora, que cria uma nova categoria de guerreiros, os

    artilheiros, e obriga a um reajustamento das antigas categorias23. Dessa forma, o

    desenvolvimento das tcnicas de movimentao de homens em batalha, aquelas que visam

  • 20

    surpreender o inimigo em seus pontos fracos ou, se possvel, provocar elas mesmas novos

    pontos fracos, graas artilharia, se d de duas diferentes maneiras: a primeira, pela

    afirmao da infantaria, ainda se apoiando na cavalaria; a segunda, na proporo ideal

    procurada entre tiro e lana, isto , entre a artilharia e as unidades de infantaria formadas

    por piqueiros e lanceiros24. A chave para entendermos esse desenvolvimento est na

    infantaria antes at que na artilharia, visto que a infantaria a substituir gradativamente a

    hegemnica cavalaria medieval como organizao privilegiada de batalha 25.

    Mas a infantaria no ascende repentinamente, pois, formada pela nobreza, fundada

    nas bases sociais de seus povos, a cavalaria resiste, aprimorando suas defesas contra

    flechas, virotes de besta, projteis de armas de fogo26. E o sculo XIV v a nobreza

    encouraar seus cavaleiros, numa tentativa de deter o desenvolvimento da infantaria,

    tornando a cavalaria ainda mais pesada, defendendo-a da posio vulnervel que assumiu

    com a chegada dos projteis, pirobalsticos27 ou no.

    Enquanto isso, as medidas prioritrias passam a ser a formao de exrcitos

    independentes da nobreza. Exrcitos que se organizam agora com base na infantaria.

    Organizao feita sobre tropas pagas e no mais arregimentadas por obrigaes de

    vassalagem. E mesmo os vassalos recrutados, mesmo os cavaleiros couraados, so pagos

    nos novos exrcitos profissionais28

    . A autonomia custa caro, e a nova despesa de um

    exrcito remunerado aumenta o custo da guerra, deixando o Estado embrionrio ainda sem

    uma resposta para um mtodo regular de como pagar as tropas e custear a guerra. Quando

    gasta demais, o soberano recorre a emprstimos de banqueiros, cidades, negociantes e a

    medidas como a tributao arbitrria e a desvalorizao da moeda. O que no significa que

    o Estado consiga realmente sustentar a guerra por muito tempo sem falir29

    : os soldados em

  • 21

    campanha esto sempre com os soldos atrasados, esperando algum saque que possa trazer-

    lhes algum lucro.30

    Essa situao, iniciada no sculo XIV com os Estados da Guerra dos Cem Anos, vai-

    se encaixar maravilhosamente nos Estados Absolutistas31

    .

    De qualquer forma, no sculo XIV as foras armadas j no so mais formadas por

    soldados que servem por dever de vassalagem e que tm o direito de voltar para casa depois

    de quarenta e cinco dias. Para preencher as fileiras dos soldados a p, os homens so

    atrados com a promessa de saque, o perdo de sentena para os condenados e propagandas

    nacionalistas. No caso da Guerra dos Cem anos, propaganda ora antifrancesa ora

    antiinglesa.32

    Dentro dessa organizao profissional, e devido s inovaes tcnicas, a cavalaria

    assume agora um papel secundrio; passa a ser apenas uma unidade auxiliar da tropa

    principal, ou seja, a infantaria. Mas, contra a tcnica da infantaria, a resposta da cavalaria

    tambm a tcnica. O tempo do herosmo esvai-se, a eficincia passa a contar mais. E esse

    tambm o quadro ainda no sculo XVII: a cavalaria tirada do papel principal, mas no

    expulsa do drama. Serve agora como auxiliar das tropas de infantaria e continua a perder

    espao.

    Mas a artilharia tambm no encontrara ainda seu lugar na formao de batalha. O

    sculo XVII pe em seus campos de guerra infantaria, artilharia, cavalaria, piqueiros,

    lanceiros, arqueiros, besteiros, sem que seus comandantes tenham encontrado a perfeita

    proporo entre essas unidades, a regra certa. O que existe so muitas possibilidades e

    pouca organizao. A ordem, no entanto, buscada com afinco. Uma busca que vai gerar a

    disciplina.

  • 22

    A guerra medieval era indisciplinada. Nela, cada guerreiro escolhia um oponente

    entre as hostes inimigas e o confrontava de forma particular, em duelo. O confronto

    tornava-se, ento, pessoal. Esse comportamento medieval no serve mais na era da plvora,

    e no sculo XVII, com elementos distintos e por vezes contraditrios como cavalaria e

    artilharia servindo nos mesmos exrcitos, torna-se necessrio procurar frmulas de

    organizao em batalha que aproveitem todo o potencial de cada unidade e evitem que uns

    corpos atrapalhem os outros. preciso aprimorar as tticas.

    E a grande inovao ttica do sculo XVII, que vem em parte responder a esta

    lacuna, o adestramento.

    Adestrar treinar, aprimorar as habilidades marciais do guerreiro. E nesse sentido,

    todas as sociedades adestram seus homens de guerra, desde os tupinambs aos samurais do

    Japo feudal, incluindo a Europa feudal e sua cavalaria nobre. Ento, por que falar no

    adestramento da Era Moderna como uma inovao ttica?

    Tticas so tcnicas de guerra e, voltando para o sculo XIV, onde as tticas

    medievais ainda sobrevivem, percebemos que essas so simplesmente a carga de cavalaria,

    seguida de luta corpo a corpo entre os cavaleiros, precedida ou complementada pelos

    arqueiros e pelo ataque da infantaria, ambos desprezados pelos cavaleiros. Os ingleses,

    porm, descobrem, antes da Guerra dos Cem Anos, lutando contra plebeus escoceses, que

    soldados a p, equipados com arcos longos e treinados para manter uma linha firme e

    constante, fazem efetivamente recuar uma carga de cavaleiros. Os franceses demorariam

    pelo menos at o fim da Guerra para compreender que soldados infantes podem vencer

    cavaleiros couraados33

    . Podem, desde que se lhes imponha uma regra de comportamento

    para faz- los funcionar em unssono, ao comando do chefe. E, em qualquer poca, a

  • 23

    diferena entre uma turba e um exrcito est no treinamento, que, na Idade Mdia e sculo

    XIV, no dispensado aos soldados a p convocados.

    Desprezados por serem tidos como ineficientes, eram ineficientes por serem

    desprezados.34

    O treinamento do guerreiro medieval limita-se ao treinamento dos cavaleiros,

    membros da nobreza e detentores do monoplio da guerra. Mas mesmo o treinamento

    desses cavaleiros diferencia-se do adestramento da Era Moderna por ser individual. E aqui

    chegamos particularidade do adestramento moderno: ele se constitui de tcnicas no

    apenas para o aprimoramento individual do guerreiro, mas tambm para a organizao do

    grupo.

    O adestramento assim um instrumento de controle que os Estados Modernos, j

    unificados, usam sobre suas tropas, j agora regulares. Ele aparece nas unidades militares

    criadas no sculo XVII. Unidades essas que se caracterizam por sua profissionalizao, ao

    contrrio de suas predecessoras medievais. So unidades formadas por guerreiros que no

    podem ser mandados embora depois da crise. E essa caracterstica, a permanncia de

    tropas armadas no meio social, que torna necessria a criao de instrumentos de controle

    tambm de carter permanente.

    E, nesse sentido, o adestramento tambm no novo, j existindo com funo de

    controle social nas legies romanas. O conceito resgatado e adaptado s circunstncias

    modernas.

    Se na guerra medieval os guerreiros lutavam como uma massa de indivduos, como

    uma turba, o adestramento burocrtico moderno, que no apenas o aprimoramento do

    guerreiro, mas tambm o treinamento organizado de toda a unidade, procura justamente

  • 24

    unificar as aes de todos. A unidade no mais o indivduo, mas toda a tropa, que deve

    que precisa agir com uniformidade, com coeso, e no como uma horda de indivduos

    particulares e dispersos. O adestramento burocrtico tira do soldado o carter individual,

    transformando-o numa pea na mquina blica, ao mesmo tempo que, com a

    uniformizao, extirpa a caracterstica de turba medieval, criando a tropa. E uma

    importante mudana conceitual surgida com a guerra da Era Moderna exatamente a

    substituio, seja sutil ou radical, que se d entre esses conceitos de unidade e massa:

    Desde o fim do sculo XVII, o problema bsico da infantaria

    foi de libertar-se do modelo fsico da massa. Armada de

    lanas e mosquetes lentos, imprecisos, que no permitiam

    ajustar um alvo e mirar uma tropa era usada ou como um

    projtil, ou como um muro ou uma fortaleza: a temvel

    infantaria do exrcito da Espanha; a repartio dos

    soldados nessa massa era feita principalmente segundo sua

    antigidade e valentia; no centro, encarregados de fazer peso

    e volume, de dar densidade ao corpo, os mais novatos; na

    frente, nos ngulos ou pelos lados, os soldados mais

    corajosos ou reputados os mais hbeis. Passou-se no

    decorrer da poca clssica a um jogo de articulaes

    minuciosas. A unidade regimento, batalho, seo, mais

    tarde diviso torna-se uma espcie de mquina de peas

    mltiplas que se deslocam em relao umas as outras para

    chegar a uma configurao e obter um resultado especfico.

    (...) a inveno do fuzil: mais preciso, mais rpido que o

  • 25

    mosquete, valoriza a habilidade do soldado; mais capaz de

    atingir um alvo determinado, permitia explorar a potncia de

    fogo a nvel individual; e inversamente fazia de cada soldado

    um alvo possvel, exigindo pela mesma razo maior

    mobilidade; e assim ocasionava o desaparecimento de uma

    tcnica das massas em proveito de uma arte que distribua as

    unidades e os homens ao longo das linhas extensas,

    relativamente flexveis e mveis. Da a necessidade (...) de

    inventar uma maquinaria cujo princpio no seja mais a

    massa mvel ou imvel, mas uma geometria de segmentos

    divisveis cuja unidade de base o soldado mvel com seu

    fuzil; e acima do prprio soldado, os gestos mnimos, os

    tempos elementares de ao, os fragmentos de espaos

    ocupados ou percorridos.35

    Essa caraterstica que Foucault chama de unidade, Weber chama de massa36

    , o que

    pode parecer contraditrio com o conceito de massa que estamos usando aqui. O nosso se

    baseia no carter de horda e multido informe que as tropas medievais possuem, o de

    Weber descreve o carter massificado das novas tropas, tornadas uma pea nica, a unidade

    de Foucault. Palavras diferentes para a mesma coisa.

    Podemos distinguir no trecho citado de Vigiar e Punir a passagem da turba

    desorganizada, que mesmo portando armas de fogo ainda se assemelha queles modelos

    medievais de guerreiro em que pouca preocupao existe com a ttica e com a estratgia,

    para a tropa preocupada com o mximo de aproveitamento na utilizao da tecnologia.

  • 26

    Uma preocupao que se torna, ela prpria, tcnica. E nessa transformao, para se

    conseguir o mximo de eficincia, alcanado apenas com o trabalho simultneo de todos,

    destri-se exatamente aquele esprito guerreiro independente e autnomo. o nascimento,

    no seio das foras repressivas, da massificao. O treinamento moderno tem suas origens

    assim na organizao das diferentes partes da tropa na formao de batalha. Na simples

    preocupao de localizar de maneira eficiente cada elemento da campanha:

    O exerccio com armas de fogo (...) certamente se originou de

    uma preocupao natural dos mosqueteiros que deve ter

    sido tambm dos arqueiros (...) de no se ferirem uns aos

    outros enquanto usavam suas armas. (...) os mosqueteiros

    enfileirados em ordem unida, especialmente nos primeiros

    tempos, quando espalhavam plvora para acender estopins,

    arriscavam-se a desencadear descargas acidentais, a menos

    que todos os soldados realizassem em unssono todas as

    etapas de carregar, apontar e atirar. Os livros de treinamento

    de mosqueteiros (...) se imprimiram amplamente a partir do

    incio do sculo XVII (...).37

    Assim, o adestramento militar burocrtico surge de uma preocupao prtica. Mas,

    se o nascimento da disciplina militar se d a partir de um elemento to prtico como a

    preocupao de acertar apenas o inimigo, logo ela se assume como o principal instrumento

    de controle do Estado sobre seus rgos militares e os extrapola, j que as disciplinas se

    tornaram no decorrer dos sculos XVII e XVIII frmulas gerais de dominao.38

  • 27

    Essas frmulas gerais, que nascem no sculo XVII, tm seu apogeu no XVIII com o

    desenvolvimento das teorias disciplinares e das tcnicas de adestramento, e com a

    propagao das unidades tticas chamadas regimentos pelo continente europeu. E o sculo

    XVIII v os regimentos espalharem-se, formando oficiais dentro dos novos conceitos

    tticos e luz das novas teorias. E adestrando soldados. Essas unidades permanentes vo

    fixar-se em quartis, estruturas novas de funo disciplinar inequvoca, como bem define

    Foucault:

    Quartis: preciso fixar o exrcito, essa massa vagabunda; impedir a pilhagem e as

    violncias; acalmar os habitantes que suportam mal as tropas de passagem; evitar os

    conflitos com as autoridades civis; fazer cessar as deseres; controlar as despesas.39

    O quartel, uma criao moderna com paralelo nos acampamentos das legies

    romanas, tem assim por objetivo criar um espao onde as novas tropas burocrticas possam

    ser tanto alojadas quanto vigiadas, e mantidas sob estrito controle. Esse exrcito

    permanente e profissional, alicerce do Estado Moderno, apenas possvel atravs da

    disciplina, indispensvel existncia do primeiro, que no pode mais ser desmobilizado

    depois de passada a crise, como as antigas tropas medievais. E mesmo que seja o

    instrumento pelo qual o Estado centralizado exerce seu poder sobre a sociedade, a tropa

    burocrtica tambm um ajuntamento de cidados tanto mais perigoso quanto seja bem

    armado. Assim, o instrumento de controle utilizado sobre ele deve ser eficiente e, j que

    no existe controle social possvel feito apenas atravs da violncia, mesmo que simblica,

    nenhum controle que dure sendo externo ao indivduo40

    , ele deve ser embutido nos nimos

    e nas mentes dos soldados, para no suscitar dvidas, hesitaes ou contestaes.

  • 28

    Para Foucault, a disciplina a arte de dispor em fila41

    . Simples. Ela no surge como

    um instrumento de capacitao do indivduo, como uma ferramenta que procura torn-lo

    eficaz, habilit- lo para o manuseio da tcnica, como o adestramento militar faz parecer

    primeira vista, e nem tampouco apenas como um instrumento de sujeio do indivduo.

    Poderamos dizer que a disciplina a arte da habilidade obediente, j que seu objetivo

    produzir uma relao entre o Poder e o indivduo que no mesmo mecanismo o torne mais

    obediente quanto til.42

    A forma como essa disciplina funciona nas estruturas militares o que chamamos de

    adestramento.

    O adestramento a aplicao prtica da disciplina: ele sujeita o soldado ao mesmo

    tempo que o torna eficiente. Podemos detect- lo no gradual aperfeioamento da artilharia.

    Inovaes tcnicas vo tornando a artilharia o centro dos novos exrcitos e forando os

    regimentos a procurar novas tticas que lhes dem mais eficincia nas manobras com a

    artilharia porttil. Eles o conseguem com a introduo da formao em linha:

    Toda a infantaria do exrcito era disposta em trs fileiras

    num quadriltero oco muito extenso e que, em ordem de

    batalha, se movia como um bloco; quando muito, autorizava-

    se uma ou duas filas a avanar ou recuar um pouco. Esta

    massa desajeitada s podia movimentar-se em ordem num

    terreno perfeitamente plano e mesmo a em cadncia lenta

    (74 passos por minuto); era impossvel alterar a ordem de

    batalha durante a ao e, uma vez aberto o fogo pela

  • 29

    infantaria, a vitria ou a derrota decidiam-se muito

    rapidamente, de um s golpe .43

    A infantaria aqui considerada aquela armada com espingardas. E notemos que a

    eficincia s conseguida com a unificao dos esforos individuais. Unificao

    conseguida graas a um treinamento, to minucioso que determina at o nmero de passos

    que os homens devem dar por minuto. Os homens todos juntos, o que s conseguido com

    a prtica constante, orientada, percebamos, pelo oficiais que, por sua vez, so orientados

    pelo tericos. Tambm a marcha cadenciada reflexo da homogeneizao do indivduo:

    (...)vejamos duas maneiras de controlar a marcha de uma

    tropa. Comeo do sculo XVII:

    Acostumar os soldados, a marchar por fila ou em um

    batalho, a marchar na cadncia do tambor. E para isso,

    comear com o p direito a fim de que toda a tropa esteja

    levantando o mesmo p ao mesmo tempo.

    Metade do sculo XVIII, quatro tipos de passo:

    O comprimento do pequeno passo ser de um p, o do passo

    comum, do passo dobrado e do passo de estrada de dois ps,

    medidos ao todo de um calcanhar ao outro; quanto

    durao, a do pequeno passo e do passo comum sero de um

    segundo, durante o qual se faro dois passos dobrados; a

    durao de um passo de estrada ser de um pouco mais de

    um segundo. O passo oblquo ser feito no maior espao de

    um segundo; ter no mximo dezoito polegadas de um

  • 30

    calcanhar ao outro... O passo comum ser executado

    mantendo-se a cabea alta e o corpo direito, conservando-se

    o equilbrio sucessivamente sobre uma nica perna, e levando

    a outra frente, a perna esticada, a ponta do p um pouco

    voltada para fora e baixa para aflorar sem afetao o terreno

    sobre o qual se deve marchar e colocar o p na terra, de

    maneira que cada parte se apoie ao mesmo tempo sem bater

    contra a terra.44

    O que vemos aqui um gradual aprofundamento da severidade do treinamento, do

    adestramento com intuito tanto disciplinar quanto tcnico. Os homens de guerra medievais

    baseavam sua guerra em princpios como coragem, fora e tambm habilidade com as

    armas, certo. Uma habilidade que tambm exigia treinamento, que no caso do cavaleiro

    era to especializado que demandava toda uma vida45

    . Mas essa nova guerra to

    minuciosamente organizada exige que esse treinamento seja feito em grupos constante e

    apropriadamente supervisionados. uma nova forma de especializao militar, baseada na

    antiga disciplina romana, que capacita o guerreiro a executar, sem pensar, as ordens do

    comandante. O interesse terico militar europeu nos sculos XVII e XVIII est, assim, no

    desenvolvimento da ttica. A ttica a arte de construir, com a soma dos esforos

    individuais, e com sua homogeneizao, aes calculadas e preestabelecidas. o pice da

    aplicao prtica da disciplina, e o objetivo dos tericos militares de ento46

    .

    No sculo XVII, o principal fator ttico ainda est na fora corporal, no peso fsico

    das unidades usado para esmagar os inimigos, esta a ordem profunda de batalha. Ela

    substituda, com o crescimento do emprego da plvora, pela ordem aberta47

    , em que as

  • 31

    tropas manobram disciplinadamente, no para se bater corpo a corpo com o inimigo, mas

    para cerc-lo, desbarat- lo com o fogo da artilharia pesada, dispers- lo com as saraivadas

    contnuas da artilharia porttil. Assim o valor do comandante como estrategista vai

    substituir o valor do soldado como guerreiro. Este ltimo desaparece gradualmente uma vez

    que por mais bravo e hbil que seja o indivduo, se toda a tropa no manobra de forma

    competente, a batalha est perdida.

    O apogeu militar da Espanha, contemporneo do seu auge imperial, entre os sculos

    XVI e XVII, d-se pela constituio de uma poderosa infantaria composta por unidades

    chamadas teros: estrutura compacta, de mais de dois mil homens, com um quadrado

    central de piqueiros, apoiado por quadrados menores de mosqueteiros. Assemelhava-se a

    uma fortaleza mvel, capaz de se defender com a mesma energia em todas as direes.48

    A ttica usada pelos teros espanhis a ordem profunda de batalha, a aposta no

    poder do nmero, na fora fsica para esmagar as unidades inimigas. E vai ser substituda

    pela ordem aberta dos holandeses, que utilizavam o poder de fogo de sua infantaria,

    organizada em unidades menores e mais maleveis para vencer os teros espanhis,

    grandes, pesados e lentos49

    . So os holandeses, enfrentando os espanhis, que aprofundam

    as reflexes sobre o adestramento burocrtico, e aqueles que pem essas reflexes em

    prtica.

    O processo de racionalizao dos exrcitos, iniciado no princpio da Era Moderna,

    comea a ser teorizado no sculo XVII com Maurcio de Orange, Gustavo Adolfo,

    Cromwell, Frederico da Prssia, e mais tarde por Turenne e os generais franceses. As

    guerras holandesas contra a Espanha e a Guerra dos Trinta Anos so as telas onde se

  • 32

    esboam os estudos de perspectiva, volume, luz e sombra da guerra barroca50

    . Estudos

    tericos sobre tela humana.

    No sculo XVII, os mestres da cincia blica so os holandeses tanto como

    engenheiros, quanto como organizadores de escolas de disciplina51

    . Mas as teorias se

    espalham rapidamente pela Europa ocidental: franceses, venezianos, prussianos, suos e

    ingleses formam oficiais e tropas eficientes a partir das prticas introduzidas no sculo

    XVII.

    A infantaria entre o sculo XIV e o XVII ainda estava dispersa, individualista, apesar

    de eficiente. Vide a infantaria espanhola.

    Em meados do sculo XVII, o exrcito holands, sob o comando Maurcio de

    Orange, um dos primeiros exrcitos modernos disciplinados e profissionais, e liberto

    daquilo que Weber chama de privilgios estamentais, os princpios de honra ainda vigentes

    no imaginrio moderno, ainda herana de cavalaria nobre feudal. Esses privilgios so, j

    ento, substitudos por treinamento e disciplina. Na Inglaterra no mesmo perodo, as

    vitrias de Cromwell so devidas disciplina puritana e ao fato de que, depois do ataque,

    sua cavalaria continua em formao cerrada ou se realinha imediatamente52

    . Essa carga de

    cavalaria disciplinada nos mostra a transformao sofrida pela mesma: a carga medieval era

    to somente um galope em frenesi sobre o inimigo, seguido da disperso dos cavaleiros

    que, uma vez tido o primeiro e avassalador choque, escolhiam um inimigo para se baterem

    no estilo das justas. A disciplina, assim, d novo significado cavalaria, assim como ao uso

    da plvora, j que fornece os instrumentos para o melhor aproveitamento dos mosqueteiros.

    E dessa forma a disciplina que d sentido plvora, e no a plvora que d sentido

    disciplina.

  • 33

    Mas tticas e disciplinas no so teorizaes isoladas dos personagens. As estruturas

    sociais desenvolvem-se paralelamente a essas construes ideolgicas. Fatores prticos que

    ajudam na construo da idia do valor da infantaria. No sculo XVIII as tropas adquirirem

    finalmente um carter social diferente tanto dos bandos mercenrios do final do feudalismo,

    que geralmente debandavam quando os fundos secavam, quanto das tropas regulares dos

    sculos anteriores, permanentes e profissionais, mas sem quartel e de treinamento incerto.

    O regimento se torna agora uma instituio rgia, ganhando quartel-general fixo,

    recrutando seus soldados na regio circunvizinha e retirando seus oficiais de famlias

    aristocrticas53

    . Conseguem alistar homens estveis de aldeias e fazendas para formar suas

    tropas regulares. Conseguem agora algo mais do que as sobras sociais que compunham os

    corpos mercenrios: conseguem os filhos mais jovens de famlias grandes e pobres com

    poucas oportunidades, particularmente na Frana e Holanda. Apesar de que em outras

    regies como a Prssia54

    e Portugal se aplica a pura coero.

    Gradualmente, o homem da Idade Moderna, o soldado moderno mais

    especificamente, vai perdendo seu individualismo entre esses dois sculos chaves.

    Mas o mosqueteiro do sculo XVII ainda era um

    individualista. Talvez no escolhesse o momento de disparar,

    mas provavelmente escolhia seu alvo nas fileiras inimigas. No

    sculo XVIII (...) os mosqueteiros dos regimentos reais

    surgidos aps a Guerra dos Trinta Anos (...) foram treinados

    para mirar no em um soldado, mas na massa do inimigo;

    (...) A perda de individualismo do soldado se manifestou de

    vrias outras formas. A partir do final do sculo XVII, ele

  • 34

    usou uniforme, tal como os criados. (...) Dos soldados do

    sculo XVIII esperava-se que lutassem no com animao,

    mas com zelo e sob comando; para impor a disciplina, os

    oficiais tratavam seus homens com uma severidade que nem

    os lanceiros livres, nem os mercenrios dos sculos XVI e

    XVII teriam tolerado. Haviam aceitado o enforcamento ou a

    desfigurao como penalidade arbitrria para motim ou

    assassinato, mas no teriam admitido o regime de flagelao

    institudo ou o de espancamento ocasionais mediante os quais

    eram mantidos em ordem os servos militares uniformizados

    das monarquias dinsticas. De fato, somente um tipo de

    indivduo completamente diferente dos flibusteiros

    anrquicos das guerras italianas e da Guerra dos Trinta

    Anos poderia concordar com o novo regime.55

    Mas a Idade Moderna no consegue o to arduamente procurado equilbrio entre

    infantaria, artilharia e cavalaria. Essa falta de definio responsvel por uma

    inconclusividade nas guerras das monarquias dinsticas da Europa Ocidental, no perodo

    entre as ltimas guerras holandesas, no final do sculo XVII, e a Revoluo Francesa. Essas

    guerras se tornam notveis pelo nmero altssimo de baixas sofridas em suas fileiras56

    , mas

    no por qualquer durabilidade de resultados polticos, ainda que esteja sendo construda

    uma nova forma de guerrear em seu rastro. Forma caracterizada pela inflexibilidade. E, o

    que mais tarde veremos, so estas linhas pouco flexveis que se desenvolvem com lentido

    na Europa dinstica, que vo encontrar pela frente, nas guerras americanas, bandos de

  • 35

    rebeldes que, apesar de no terem instruo militar, sabem, todavia, atirar e combatem por

    interesses prprios, no desertando como as tropas mercenrias, e possuindo uma

    flexibilidade que os torna alvos difceis para as, j ento, bem treinadas tropas pagas

    europias.

    Alm de que no tinham a gentileza de enfrentar os ingleses

    dispondo-se como eles em linha e em terreno descoberto,

    antes se apresentavam em grupos de atiradores dispersos e

    de grande mobilidade, cobertos pelas florestas. A linha

    tornava-se aqui impotente e sucumbia perante os seus

    adversrios invisveis e inacessveis. Redescobria-se a

    disposio dos atiradores: mtodo de combate novo devido a

    um material humano modificado.57

    Temos que lembrar dessas palavras de Engels porque elas espelham o que tambm

    acontece nas guerras da zona aucareira do Brasil: a runa das tropas disciplinadas a partir

    das teorias holandesas diante das tticas de emboscada dos bugres coloniais. A razo para

    esse fracasso das tropas burocrticas dinsticas to detalhadamente pensadas e to

    arduamente treinadas, est no fato de que esse processo disciplinar de adestramento para a

    eficincia termina por destruir a autonomia do guerreiro, ou as possibilidades que ele tem

    de utilizar essa autonomia, em favor de uma inflexibilidade de movimentos e de formao

    de combate que para funcionar precisa de campos abertos e planos, que no encontram nas

    Amricas onde os bugres desconhecem aquelas formas de controle social que haviam

    criado os soldados europeus. Exemplo claro de que esses mecanismos de controle no

    podiam ser transplantados simplesmente para o Ultramar.

  • 36

    Na Pennsula Ibrica o desenvolvimento da organizao militar moderna se d de

    forma diferente nos dois Estados. Enquanto a Espanha uma potncia militar no sculo

    XVI, Portugal s veria suas tropas organizadas disciplinarmente no reinado de D. Jos I,

    quando receberia ajuda militar da Inglaterra. Portugal mantm ao longo desse tempo que a

    disciplina leva para se criar e se fixar na Europa absolutista, caractersticas bastante

    peculiares em seu exrcito burocrtico. Caractersticas que precisam ser observadas bem

    detalhadamente.

    Na Metrpole

    Deus, sentiam os portugueses, estava do lado deles durante o longo caminho, ainda que,

    como reconheciam com franqueza, os estivesse a castigar entretanto pelos seus pecados

    com a perda de Malaca, Ceilo, Malabar e Mombaa.

    Boxer, C. R. O Imprio Colonial Portugus (pg. 172)

    J chegamos a dizer que Portugal, apesar de no fugir totalmente ao contexto das

    mudanas tecnolgicas e blicas que esto ocorrendo nos Estados vizinhos, possui

    caractersticas bem prprias quanto ao desenvolvimento militar. Nossa questo saber

    como se d esse desenvolvimento. Como se forma essa organizao militar portuguesa na

    Era Moderna, to influente na sociedade do Estado do Brasil.

    Voltemos, por um momento, ao perodo de formao do Estado portugus, com D.

    Afonso Henriques (1128-1185)58

    e seus sucessores at o sculo XIII. Nessa Idade Mdia

    tardia, esse novo reino j obriga todos os sditos a exerccios militares, tendo em vista a

  • 37

    constante preparao para a guerra a que as disputas territoriais com os mouros obriga59

    . O

    Reino portugus assim se constitui tendo a guerra como elemento de agregao da

    sociedade, conduzida pelo rei acima de todos os sditos, nobres e plebeus, pois, nascendo

    em uma fase em que j se esboa o declnio das estruturas feudais, Portugal desconhece as

    hostes vassalas de grandes senhores independentes do rei. A concesso de terras aos nobres

    difere do carter que possui no feudalismo tradicional, de terras em troca de servio militar.

    A Coroa portuguesa no espera pela fidelidade jurada dos bares; na verdade, paga por ela.

    Paga aos nobres o servio militar, independentemente de lhes ter concedido propriedades.60

    Os senhores existem e prestam vassalagem, mas apesar deste sistema de prestao de

    servio militar pelos bares, o Rei o comandante militar absoluto.61

    Portanto, ainda no

    medievo portugus vemos aquilo que os reinos europeus apenas conheceriam com a

    decadncia da cavalaria e a estabilizao do Estado Moderno, isto , os bares ou grandes

    senhores prestando servio militar no por obrigaes de vassalagem mas por pagamento, a

    soldo, como funcionrios de um Estado burocrtico.

    Durante o sculo XIII vemos a monarquia portuguesa se apoiar nos concelhos

    municipais para se fortalecer em detrimento da nobreza. Este processo tambm se d

    militarmente, uma vez que os concelhos passam a fornecer tropas de infantaria para o rei62

    ,

    possibilitando- lhe independncia relativa ainda do servio dos nobres.

    Nesses primeiros tempos, a organizao das tropas em Portugal feita em hostes. Os

    nobres, recebendo seu pagamento conhecido como contia, so obrigados guerra;

    semelhante queles vassalos de outros suseranos europeus com as mesmas obrigaes sem

    contia. A obrigao da guerra em Portugal, no entanto, no se restringe aos nobres que

    formam a cavalaria. Ela se estende aos viles dos concelhos e s ordens militares63

    ,

  • 38

    recrutando, aqui tambm, plebeus para o servio do rei. A hoste, ou p de exrcito, uma

    unidade ttica, uma diviso de tropas, composta de companhias de cavalaria e infantaria,

    que arregimenta os contingentes tanto dos senhores quanto das ordens militares e dos

    concelhos municipais que vo, estes ltimos, compondo as tropas de infantes. O senhor

    ainda obrigado a apresentar uma lana: uma partcula de tropas formada por um homem

    de armas, ou seja, o cavaleiro, seu escudeiro, um pagem, alm de dois arqueiros ou

    besteiros a cavalo. Cinco ou seis lanas, por sua vez, formam uma bandeira, e um certo

    nmero de bandeiras forma uma companhia de homens de armas, uma companhia de

    cavalaria.64

    E no comando de toda essa organizao, o rei.

    Assim, vemos a Coroa se armar com os infantes dos concelhos municipais e com a

    cavalaria paga, oriunda de uma nobreza contratada. Esse o alicerce tanto do exrcito

    profissional portugus, quanto do poder do rei. a fora na qual a monarquia se apoia para

    sustentar tanto sua poltica interna contra as pretenses de nobres e clero, quanto para se

    defender das investidas de Castela65

    .

    No sculo XIV ascende uma nova dinastia, a dinastia de Avis (1385-1580),

    promotora de navegaes e descobrimentos. E com ela se ergue a infantaria medieval

    transformando-se em um projeto de tropa regular, de exrcito do Estado. Ao mesmo tempo

    que D. Joo I termina concluindo a transformao da nobreza em funcionria pblica66

    , a

    utilizao da cavalaria na organizao militar declina e, durante a expanso no sculo XV,

    cede infantaria sua posio, sem desaparecer todavia. Em 1580, Alccer Quibir v a runa

    portuguesa quando da destruio de sua cavalaria feudal, na ltima cruzada ibrica, no

    ltimo momento do processo de Reconquista da Pennsula67

    . Mas, mesmo aqui, a infantaria

  • 39

    no desprezvel: para essa campanha D. Sebastio recruta homens at em Castela68

    .

    Mercenrios castelhanos se juntam aos homens arregimentados em Portugal. Pagos todos.

    Infantes todos.

    E no entanto, as tropas portuguesas ainda no se tinham constitudo em um exrcito

    burocrtico. Durante esses sculos iniciais da era moderna as tropas lusas so pagas, porm

    no permanentes69

    . E se a organizao proposta por Afonso V (1438-1481)70

    , depois

    regimentada por D Joo III (1521-1557), que torna obrigatrio o servio militar sem

    distino de privilgios71

    e legitima o recrutamento, essa mesma organizao s ser levada

    a cabo, no entanto, com D. Sebastio, em 157072

    , que, motivado por suas campanhas

    africanas, precisa de grande nmero de braos armados. ela que lana as bases legais para

    um exrcito portugus realmente burocrtico.

    no sculo XVII que a estrutura militar vai ser dividida em 1 linha e 2 linha, o que

    Faoro chama de ramo burocrtico e ramo territorial.73 Ou seja: as tropas profissionais e

    pagas, regulares, a 1 linha; e as unidades de cidados, gratuitas, temporrias, resqucios das

    hostes medievais e baseadas nos recrutamentos dos concelhos, que so as ordenanas,

    estabelecidas a partir do Regimento de D. Sebastio, a 2 linha. Essa a grande diviso da

    estrutura militar que separa as tropas entre as contratadas e as que prestam servio por

    obrigao de cidadania ou vassalagem.

    O exrcito portugus profissional se completa com a Restaurao em 1640. S ento

    efetivamente criado um exrcito burocrtico, e no mais baseado nas hostes medievais,

    tropas de ocasio. Em comparao com a precoce centralizao do Estado portugus, essa

    estruturao do exrcito burocrtico relativamente tardia, j contempornea dos primeiros

    ensaios disciplinares nos Pases Baixos e norte europeu. Burocratizao tardia para um

  • 40

    reino que, no sculo XIII, j se apia nas tropas municipais pagas e no XIV j

    patrimonial. Uma demora que talvez possa ser, em parte, explicada pelo interesse espanhol

    em manter Portugal atrasado militarmente durante a Unio Ibrica74

    . Mas tambm h uma

    relutncia dos portugueses em se desgastarem nas guerras espanholas em Flandres, Itlia e

    Alemanha75

    . E exatamente durante a Unio Ibrica que se introduz a organizao de

    tropas em unidades tticas maneira espanhola, ento grande potncia militar, com o tero

    de pique76

    , ento no apogeu de sua eficcia como organizao de infantaria. nica estrutura

    militar que Portugal copia da Espanha.

    Devido relutncia dos homens de guerra portugueses, a Restaurao em 1640

    surpreende Portugal numa situao de completo despreparo militar. Um despreparo

    tamanho que a Coroa procura encorajar soldados veteranos das guerras contra os

    holandeses no Brasil a irem servir nas tropas metropolitanas na guerra movida contra os

    espanhis.77

    Mas a segunda metade do sculo XVII v mudanas militares no Reino. So

    mudanas estruturais na organizao dos corpos de tropa: a estrutura bsica construda no

    incio da Idade Moderna continua inalterada, estabelecida em ramo burocrtico e territorial,

    mas agora as unidades tticas no sero organizadas mais como hostes e sim como teros78

    ,

    divididos em companhias. Esta unidade ttica os portugueses copiam timidamente dos

    espanhis79

    no perodo do recrutamento de Dom Sebastio e, mais efetivamente, no reinado

    de Filipe II de Espanha, que o introduz em base fixa. Os teros ibricos, no entanto,

    continuaro a lutar indisciplinadamente, no se afastando muito da experincia portuguesa

    j acumulada, mas se mantendo longe, com o passar do tempo, das novas descobertas da

    cincia blica na Europa do norte.

  • 41

    O objetivo da criao de um exrcito regular em Portugal o mesmo dos Estados

    que conheceram um feudalismo clssico: independncia para o rei. Mesmo no possuindo

    autonomia, a nobreza portuguesa luta por poder poltico. E fora militar sempre um til

    instrumento para se atingir esse fim.

    O motor que impulsiona a criao de um exrcito profissional em Portugal a guerra

    que se desencadeia com a Espanha logo aps a Restaurao portuguesa. Depois da

    Restaurao, as foras militares portuguesas esto esgotadas, assim como seus recursos

    humanos, por terem sido amplamente despendidas nas guerras alheias, as guerras da

    Espanha80

    . Assim, em 1641, as Cortes portuguesas aprovam uma reorganizao militar

    completa, com a criao do exrcito burocrtico e das milcias, sendo cada provncia

    dividida em comarcas, cada uma comandada por um governador (o equivalente a general),

    com sargento-mor e dois capites como ajudantes. As comarcas, por sua vez, se dividem

    em companhias de 300 soldados cada, sob o comando, cada uma, de um capito, secundado

    por alferes e sargento. Esse efetivo, entretanto, terico e idealista. Dificilmente as

    companhias vo conseguir alcanar o nmero regular determinado pela lei81

    .

    O recrutamento, j ento, e da por diante, das tropas burocrticas, feito dentro das

    Ordenanas. Estas so recrutadas, por sua vez, nas comarcas, entre os homens aptos para o

    servio que no estejam alistados nas tropas regulares ou auxiliares. Na prtica, nas

    Ordenanas sobram os homens de mais idade, que, militarmente, servem apenas para

    reserva das guarnies das praas em casos extremos82

    . Sua utilidade militar quase nula.

    Mas existem foras de reserva mais ativas: as foras auxiliares. Os teros auxiliares reinis

    so, como as ordenanas, tropas temporrias, mobilizadas apenas em caso de guerra ou

    ameaas, e so gratuitos. Seus integrantes so homens aptos, mas que, por motivos de

  • 42

    exceo, esto dispensados das tropas pagas; lavradores, filhos nicos e de vivas83

    , por

    exemplo, considerados homens indispensveis sociedade e que, dessa maneira, no

    podem ser mobilizados, e imobilizados, permanentemente nas tropas burocrticas. So as

    Milcias, criadas a partir do Regimento de 1641.

    Em 1660, durante o governo de dona Luisa de Gusmo, vemos uma nova

    reorganizao nas foras militares. Nos sculos XVII e XVIII, as melhorias realizadas nas

    tropas da Coroa portuguesa correspondem, eventualmente, a necessidades emergenciais,

    como os casos de guerra. Os autores que se debruam sobre essas organizaes, em

    diferentes pocas, a partir de D. Joo IV at o fim do sculo XVIII, tm a considerar a

    existncia de um certo descaso, ou talvez uma despreocupao da poltica rgia para com a

    manuteno das tropas. As tentativas momentneas de estruturar e dar eficincia ao

    exrcito so contemporneas de guerras: D. Joo IV, Dona Lusa, D. Pedro II, D. Jos I84

    .

    Fruto da nova poltica externa portuguesa de aliana com a Frana durante o governo de

    Dona Lusa, o conde Frederico de Schomberg, oficial prussiano anteriormente a servio de

    Lus XIV, chega a Portugal para melhorar sua organizao militar85

    . Vem introduzir o

    adestramento militar no Reino, organizando a cavalaria em regimentos maneira alem,

    abandonando a diviso em teros, e introduzindo inovaes tticas como, por exemplo a

    chamada marcha de costado86

    , que a introduo da marcha regular, em que os homens so

    treinados para marcharem a passos contados, com a tropa organizada em formao

    quadrangular, cada homem em unssono aos passos dos outros homens da tropa, mantendo

    distncias regulares e preestabelecidas entre si, movimentando-se em consonncia, e

    unicamente em consonncia, com as ordens do comandante. Enfim, movimentos tticos

    baseados na cincia blica.

  • 43

    o nascimento em Portugal das manobras j ento em vigncia no norte europeu

    desde o incio do sculo87

    . A disciplina militar demora a entrar em Portugal, que reluta em

    abandonar suas autonomias individuais. E interessante observar que, apesar da demora em

    sua introduo, a marcha de costado j era conhecida em Portugal pelo tericos militares,

    como Lus Mendes de Vasconcelos no sculo XVII; nos oferecendo uma idia sobre a

    posio portuguesa concernente s disciplinas e s inovaes blicas.

    Se considerarmos que a ttica e a disciplina, assim como o aprimoramento das

    manobras blicas, surgem na Europa no incio do XVII e se desenvolvem amplamente at

    seu apogeu no XVIII, nos parece que a inexistncia delas em Portugal uma questo de

    opo, como j notara Boxer88

    . Aparentemente a Coroa portuguesa no utiliza a

    disciplinarizao do corpo e das vontades como instrumento privilegiado para controlar

    seus soldados.

    Principiava, em 1706, o reinado de D. Joo V com uma das feies tpicas dos

    governos absolutistas a guerra.89

    Mas no seu reinado, apenas durante o perodo da guerra, 1706 a 1713, esteve a tropa

    burocrtica organizada. quando temos novas mudanas na estrutura militar do Estado. A

    organizao em teros no exrcito regular substituda pela feita em regimentos no sculo

    XVIII, em 1707. Os teros continuam a existir nas tropas auxiliares, milcias e

    ordenanas90

    . Uma substituio da unidade caracterstica ibrica, o tero, pela unidade de

    origem francesa, o regimento, que j fora feita por Schomberg na cavalaria.

    Milcias e ordenanas so confundidas tanto na metrpole quanto na colnia por

    serem ambas de segunda linha, auxiliares, no pagas, no permanentes nem profissionais.

    Apenas no final do sculo XVIII, em 1796, milcia passa a designar especificamente os

  • 44

    teros auxiliares de segunda linha, que em Portugal so formados pelos excludos ou

    melhor, isentos do recrutamento das tropas pagas, como lavradores, filhos de viva,

    homens casados, homens teis em geral91

    . As ordenanas, por sua vez, so os alistamentos

    desorganizados e sem adestramento feitos pelos concelhos, e que servem de base ao

    recrutamento regular.

    A organizao do exrcito portugus no era considerada boa pelos generais

    contemporneos espanhis, holandeses ou ingleses92

    . Principalmente pela relutncia dos

    comandantes portugueses em adotar as tticas mecanicistas de disciplina militar. Mas essa

    estrutura militar portuguesa foi eficiente em diferentes reas e dentro de um espao de

    tempo largo. Sua atuao nas conquistas e guerras dos sculos XV, XVI e XVII, e o fato do

    Estado ter conseguido manter parte importante dessas conquistas, levantam muitas questes

    no apenas tticas mas tambm sociais: como a Coroa consegue sobreviver no Ultramar, e

    manter uma parte to substancial do imprio com tropas de qualidade to duvidosa,

    apenas uma delas. Para Boxer a questo descobrir como os portugueses conseguiram

    sobreviver ao mau governo vindo de cima e indisciplina vinda de baixo93

    . A manuteno

    das colnias portuguesas, a longo prazo, pouco se deve ao frgil organismo militar luso.

    Mas a militarizao das sociedades coloniais contribui para a permanncia de Portugal

    nessas regies.

    O sculo XVIII, quando o imprio portugus j no to substancial e o apogeu do

    Reino j tem passado, encontra um exrcito miservel e negligenciado tanto na metrpole

    quanto no Imprio. Na metrpole, quando dos incidentes da guerra entre Frana e

    Inglaterra94

    , que envolvem Portugal e Espanha durante o reinado de D. Jos I, o exrcito

    portugus passa por uma nova organizao, na tentativa, promovida e financiada pelo

  • 45

    ingleses, de enfrentar os interesses franceses representados pela invaso espanhola ao

    territrio portugus. Mais uma reorganizao, trazida por uma nova guerra, que nada

    modifica de estrutural, limitando-se a maquiar a face enrugada do organismo militar luso.

    At ento, cerca de 1759, o governo de D. Jos no tivera qualquer preocupao

    militar. E, seguindo os passos de seu pai, D. Joo V, no tivera tambm qualquer cuidado

    em manter uma organizao de tropas por mnima que fosse95

    . Quando Frana e Inglaterra

    fazem suas exigncias de lealdade ao mesmo tempo, optando por lutar ao lado da Inglaterra

    e contra a Frana, a Coroa portuguesa se v na iminncia de uma guerra. Assim comea a

    recrutar soldados, recuperar fortalezas, pagar os soldos at ento sem nenhuma

    regularidade, pedindo, e contando, para todos esses preparativos, com o auxlio da aliada

    Inglaterra.

    J vinha de D. Joo V uma desorganizao do exrcito iniciada logo aps o tratado

    de Ultrecht (1713): a Coroa, nesse momento, reduzira o efetivo militar e descuidara

    completamente do pagamento das tropas que restavam. Isso, como veremos, vai gerar um

    quadro social de penria, onde o mnimo a que os soldados so obrigados pedir esmolas96

    .

    Essa situao continua durante o reinado de D. Jos I. Com este, as tropas so pouco

    numerosas, as fortalezas arruinadas, a marinha de guerra composta por oficiais de terra, e a

    manuteno quase inexistente97

    . Mas, com a invaso espanhola s portas de Portugal,

    Pombal, ainda como Conde de Oeiras, precisa improvisar s pressas uma organizao

    militar98

    .

    Para essa reorganizao, e devido ao acordo com a Inglaterra, chega a Lisboa em

    1762 o Prncipe Guilherme, Conde-reinante de SchaumbourgLipe, encarregado de tornar

    operveis as tropas de Portugal99

    . As similaridades so muitas com Schomberg. O conde

  • 46

    de Lipe tambm tenta inserir a cincia disciplinar em Portugal e inserir Portugal no

    contexto europeu. E da mesma forma que Schomberg, com pouco xito.

    Antes da chegada de Lipe, Pombal, ou melhor Oeiras, j executa algumas medidas

    para viabilizar o exrcito: contrata dois batalhes mercenrios suos, introduz instruo na

    artilharia100

    , tenta agora equiparar as tropas burocrticas portuguesas quelas das

    monarquias adversrias.

    Um elemento que caracteriza as tropas burocrticas seu contrato com o Estado:

    tornam-se foras em constante prontido, profissionais especializados e exclusivos da

    guerra. A poltica da Coroa portuguesa, no entanto, no parece se predispor a manter essas

    foras a partir desse contrato, uma vez que apenas em casos de guerra se preocupa com sua

    manuteno.

    Voltando um pouco aos objetivos desse estudo, nossa pretenso ao estudar os

    militares coloniais encontrar um ngulo novo para a histria social da colnia. Uma

    histria construda sobre estruturas de movimentos lentos que se formaram e se

    solidificaram em um espao de trs sculos. E se h um elemento na histria militar luso-

    brasileira que pode vir a corroborar uma crena na estagnao das estruturas sociais, este

    elemento a poltica de manuteno das tropas, que varia pouco durante os sculos XVII e

    XVIII.

    De Dom Sebastio ao Conde de Lipe, o que vemos no Reino de Portugal so tropas

    mal supridas e pessimamente gerenciadas pelo Estado.

    Ainda no reinado de D. Joo IV, a partir das reclamaes da nobreza sobre a atuao

    dos ministros do rei101

    , podemos entrever uma negligncia estatal com o organismo militar:

    segundo os nobres reclamantes, a Coroa no observa os contratos ou as promessas feitas

  • 47

    gente alistada nem s tropas estrangeiras, os fundos de guerra so desviados, e os soldados,

    alm de mal pagos, so muito desfavorecidos dos ministros, negando-lhes no s os

    despachos, mas as palavras corteses, que obrigam muito, e custam pouco102

    . O servio

    militar desprestigiado. Impopular103

    . E, aparentemente, os motivos para tanto esto

    principalmente nesse tratamento dado s tropas: o atraso freqente do pagamento dos

    soldos, mesmo durante uma guerra. E quando a Coroa paga, muitas vezes paga apenas

    parcialmente104

    . E Se ao chegar fortaleza onde ia prestar o servio, o recruta recebia

    botas, calo, correame e s vezes, um sabre ou um mosquete, depois disto escusava de

    contar com a tropa para se vestir. Alm da sopa, recebia dois pes e cinco soldos por dia,

    mas tinha licena para se empregar na regio.105

    A manuteno das tropas em tempo de paz a mnima possvel. Os soldados no so

    fardados regularmente, tampouco armados106

    . E o armamento que existe est em m

    condio de conservao107

    . Esse quadro pode ser observado em pocas e lugares

    diferentes e mesmo em regies do imprio sob constante ameaa de guerra.

    O problema certamente pode estar na falta de fundos para sustentar uma manuteno

    regular das tropas, como Pombal j afirma. Mas essa penria no explica completamente o

    total abandono das fortalezas e o esquecimento das guarnies que nelas servem108

    ; ou

    mesmo a falta de instruo militar dos soldados, uma das mais significativas lacunas. O que

    esse quadro pinta so nuances da poltica da Coroa, que, apesar de tudo, no de forma

    alguma antimilitarista ou antiexpansionista. Esboa traos de um imaginrio militar onde o

    importante a arremetida inicial no ataque. Uma ttica sem adestramento, sem a

    massificao da unidade, onde ainda importa, herana medieval, o valor unitrio do

  • 48

    soldado. Um imaginrio que ainda circula nas raias do medievo, que se recusa a adentrar na

    era moderna com suas inovaes disciplinares e tticas.109

    Privados de tudo, desde a lona para as barracas de

    campanha, at as munies para suas poucas espingardas e

    canhes ferrugentos, aos portugueses faltava ainda mais a

    instruo militar e simples disciplina. Era preciso encontrar

    montadas para os estafetas e correios, animais de tiro para

    transporte de vveres, e os carroes de munies e

    aquartelamentos para os recrutas .110

    Apesar de sua natureza imperial militarista, j desde D. Joo III (1521-1557) que o

    Reino se encontra em uma defensiva militar. Perdendo o impulso inicial das conquistas,

    passada a fase da hegemonia martima da Ordem de Cristo, se inicia uma decadncia

    estratgica, em que Portugal passa a ser visto como o ltimo a adotar inovaes tticas na

    Europa111

    . E mais adiante, na segunda metade do sculo XVII, durante as guerras pela

    posse do imprio, as armas de Portugal no podem fazer frente Holanda. a voz do Padre

    Antnio Vieira, experiente estadista, que ouvimos e, por seus clculos, os holandeses

    dispem, ento, de cerca de quatorze mil navios, entre naus blicas e outras que poderiam

    ser para tal fim adaptadas, enquanto Portugal dispe, no mesmo perodo, 1649, de treze

    desses navios. Os nmeros para o elemento humano tambm beiram o surreal: duzentos e

    cinqenta mil marinheiros holandeses que poderiam ser mobilizados em caso de

    necessidade, contra quatro mil portugueses na mesma situao112

    .

    Boxer comenta essa declarao de Vieira admitindo um quase bvio exagero por

    parte do jesuta estadista, interessado em impressionar e convencer, barroco por

  • 49

    excelncia. Mas o exagero talvez no seja total: Boxer cita um censo de 1620, realizado em

    Lisboa, vinte e nove anos antes da declarao de Vieira, onde esto registrados apenas seis

    mil, duzentos e sessenta marinheiros disponveis em todo o Reino. Mais tarde, em 1643,

    apenas seis anos antes do caso da Holanda, mesmo para a lucrativa e importante Carreira

    das ndias, s existe em Lisboa, e segundo os nmeros da prpria Coroa, cerca de dez

    pilotos qualificados, e que j esto empregados nesse trfego113

    .

    No difcil imaginar que, se na prpria Carre ira das ndias faltam pilotos

    qualificados, a marinha de guerra beira a quase completa inexistncia. Uma precariedade

    que fica patente nas preocupaes de Oeiras em restaur-la114

    . Todos os marinheiros

    capazes se empregam na marinha mercante, porque, alm do proverbial mau pagamento da

    Coroa aos homens de guerra, os homens do mar ainda recebem menos que os soldados e

    oficiais de terra. Na armada, quando no esto em servio, recebem apenas parte de seu

    soldo: um tero para os oficiais, dois teros para a tripulao. por isso que a soluo

    empregar pilotos civis na armada, que no precisam se submeter a esse sistema115

    . No

    governo de Pombal a Marinha de guerra est igualmente desmantelada. O embaixador

    francs em Lisboa em 1772 escreve se lastimando por uma nao que abrira os mares do

    mundo aos portos europeus. Ele escreve que a marinha de guerra lusa se limitava a doze

    navios que apodreciam no Tejo116

    .

    Assim, o que vemos durante o reinado de Dom Jos I (1750-1777) uma fora

    militar desorganizada, a no ser durante os dois perodos de guerra. Durante todo o resto do

    tempo, durante a paz, as tropas burocrticas se vem em um estado de penria

    alegadamente gerado pela falta de dinheiro nos cofres pblicos. Como sustentar as tropas

    agora permanentemente contratadas uma questo eterna para os Estados absolutistas, e

  • 50

    que nunca ser satisfatoriamente solucionada. Menos ainda em Portugal. O prprio

    Marqus de Pombal, em escritos de fim de vida, explica essa situao: no faltava zelo

    administrativo para cuidar do exrcito, a acreditarmos nele, faltava dinheiro:

    No ano de 1762... trabalhei infatigavelmente (...) para servir e ajudar a El-Rei meu

    amo em descobrir os meios, que no haviam, para formar, pagar, vestir e armar o exrcito

    (...)117

    .

    E nesse mesmo ano, de 1762, ainda como Conde de Oeiras, num impulso de doze

    dias, ps-se a suprir o que em doze anos de governo deixara de fazer. (...) Legislou sobre o

    alargamento dos quadros do exrcito, promoes, comandos, munies de guerra e de

    boca, tudo enfim, at ninharias, como a ementa do rancho dos oficiais (...)118

    .

    Mas regular o rancho, isto , as provises dos oficiais, no ninharia se

    considerarmos os gastos que essa corte militar barroca impe ao errio rgio. Seguindo o

    mesmo princpio, ele decreta a reduo das bagagens dos generais, alm de um limite para

    o nmero de pratos nas mesas dos oficiais superiores:

    Ficavam estas reduzidas a uma cobertura de vinte pratos sorteados de cozinha e

    outra coberta respectiva de frutas e doces. Isto para os chefes. Quanto aos ajudantes de

    campo, deviam contentar-se com um prato de sopa, outro de cozido, outro de assado,

    outro de guisado, e quatro de sobremesa.(...)119

    .

    Se esse o rancho reduzido dos oficiais, bem se v que est longe de ser ninharia

    esse tipo de regulamentao.

    O que no podemos nos esquecer que, enquanto os generais e oficiais assim se

    servem, os soldados esmolam uma escudela de comida nas portas dos conventos.120

  • 51

    J dissemos que entre as medidas tomadas pelos ministros portugueses antes da

    chegada do Conde de Lipe, est o pagamento dos soldos atrasados s tropas. Esse

    pagamento realizado para responder s exigncias que a Inglaterra faz para a melhoria da

    estrutura militar lusa. por causa dessas exigncias que a Coroa efetua o mesmo de seis

    meses de soldos atrasados e decreta algumas providncias para que o pagamento passasse a

    ser regular a partir de ento.121

    Providncias nas quais no devemos nos fiar.

    Seis meses de soldos atrasados.

    Sobre algumas medidas parecidas que toma, ainda impulsionado pelas

    circunstncias, que lemos como Inglaterra , Oeiras escreve:

    No esqueci, mas antes desejei bem mandar pagar s mesmas

    tropas os atrasados dos meses que lhes eram devidos

    anteriores a agosto ltimo. Tive mesmo toda a esperana de

    poder faz-lo. Mas os subsdios da Inglaterra, que se

    julgavam a caminho, no chegaram at agora. As munies

    de boca em todas as provncias e respectivos transportes

    custaram muito mais do que noutras circunstncias

    custariam.122

    Essa carta escrita como explicao e desculpa ao Conde de Lipe, ento preocupado

    com a falta de pagamento de suas tropas, em novembro de 1762. Notemos que Oeiras diz

    ter pretendido pagar os meses anteriores a agosto. E mesmo assim no o fez.

    Como essas atitudes de abandono refletem no contexto social uma questo que

    precisa ser observada. E no apenas no reinado de D. Jos e na metrpole, pois, se esse

    quadro de descalabro esteve acentuado durante o absolutismo setecentista portugus, ele

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    no , de forma alguma, uma caracterstica particular desse tempo e lugar. E mais

    interessante se lembrarmos que a poltica da Coroa observa o princpio de se pagar primeiro

    s tropas antes de qualquer outro servio pblico123

    . Poltica adotada para o imprio

    ultramarino tambm.

    Oeiras, nessa mesma carta a Lipe, afirma que as tropas nunca foram to bem pagas

    em Portugal como estavam sendo naquele momento. Afirma ainda que, de qualquer forma,

    eram sempre pagas com prioridade sobre os outros assuntos da Coroa124

    .

    Talvez, afinal de contas, falte mesmo dinheiro para se pagar a burocracia. Por que

    falta, a questo. E talvez o estado precrio das tropas portuguesas possa mesmo ser

    imputado burocracia da Coroa, falta de numerrio, ou mesmo prpria poltica do

    Estado que desde D. Joo III est militarmente defensiva, desinteressada em constituir

    grandes mecanismos blicos. Mas o desinteresse estatal na construo desses grandes

    mecanismos blicos pode passar tambm por aquela crena medieval no valor militar do

    soldado enquanto unidade singular. a valorao do individual, que o adestramento militar

    das outras monarquias j suplantara.

    O que pode nos exemplificar essa descrena no treinamento militar a inexistncia

    em Portugal de tratados tericos sobre a arte da guerra, enquanto estes proliferam em

    Estados como a Frana e a Holanda. Evaldo Cabral de Mello nos oferece algumas idias

    sobre a situao terica do militarismo portugus. Segundo ele

    quase inexistente a teorizao sobre arte militar por parte

    do portugus de quinhentos ou seiscentos. Em 1631, j

    iniciada a guerra do Brasil, o Abecedrio Militar de Joo

    de Brito Lemos visava precisamente a preencher a grave