17
Revista de Direito Público, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 106 MÍDIA E CRIME: LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA MEDIA AND CRIME: FREEDOM OF JOURNALISTIC INFORMATION AND PRESUMPTION OF INNOCENCE Carla Gomes de Mello 1 RESUMO: Este artigo científico teve como objetivo demonstrar a maneira como os meios de comunicação se utilizam da prerrogativa da proibição da censura pela Constituição Federal, o que garante a liberdade de informação jornalística, para manipular fatos, impor opiniões e influenciar a população. Ao agir dessa maneira, a mídia, ao retratar acontecimentos criminais, viola outras garantias igualmente constitucionais, invadindo privacidades, presumindo culpas e decretando inocên- cias. Provoca uma colisão de direitos fundamentais que se harmoniza utilizando-se o Princípio da Proporcionalidade, a depender do caso concreto. Palavras-chave: Mídia; Informação; Direitos fundamentais; Presunção de inocência. ABSTRACT: This scientific article demonstrate the manner like the means of com- munication are using the prerogative from the prohibition of the censure present in the Brazilian Constitution to guarantee the freedom of the journalistic information, to manipulate suits , to impose opinions and to influence the population. Therefore, the media when report criminal events, infract others constitutionals guarantees, to invade the privacies, to suppose blame and to decree innocences. It provoke a bump of the fundamental rights that only obtain harmony with Proportionality principle, the one depend of the concretion case. Palavras-chave: Media; Information; Fundamental rights; Presumption of innocence. INTRODUÇAO O Brasil, como a maioria das democracias do mundo, vive um Estado Democrá- tico de Direito. Nele, o ordenamento jurídico se impõe como uma base auxiliadora para resguardar e efetivar os direitos e garantias fundamentais. Esses direitos e garantias foram consagrados na Constituição Federal Brasileira de 1988, a fim de oferecer proteção ao cidadão perante o Estado. Dentre eles, a Lei Maior assegura a todos o direito de informação, que efetiva a liberdade de expressão e manifestação de pensa- mento, quando, sob formas apropriadas, garante a difusão para o público de notícias, fatos ou elementos de conhecimento, idéias ou opiniões (SILVA, 2007). 1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Investigadora de Polícia do Estado do Paraná

7381-26662-1-PB

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo - Direito à Informação

Citation preview

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 106

    MDIA E CRIME: LIBERDADE DE INFORMAO JORNALSTICA E PRESUNO DE INOCNCIA

    MEDIA AND CRIME: FREEDOM OF JOURNALISTIC

    INFORMATION AND PRESUMPTION OF INNOCENCE

    Carla Gomes de Mello1

    RESUMO: Este artigo cientfico teve como objetivo demonstrar a maneira como os meios de comunicao se utilizam da prerrogativa da proibio da censura pela Constituio Federal, o que garante a liberdade de informao jornalstica, para manipular fatos, impor opinies e influenciar a populao. Ao agir dessa maneira, a mdia, ao retratar acontecimentos criminais, viola outras garantias igualmente constitucionais, invadindo privacidades, presumindo culpas e decretando inocn-cias. Provoca uma coliso de direitos fundamentais que se harmoniza utilizando-se o Princpio da Proporcionalidade, a depender do caso concreto.

    Palavras-chave: Mdia; Informao; Direitos fundamentais; Presuno de inocncia.

    ABSTRACT: This scientific article demonstrate the manner like the means of com-munication are using the prerogative from the prohibition of the censure present in the Brazilian Constitution to guarantee the freedom of the journalistic information, to manipulate suits , to impose opinions and to influence the population. Therefore, the media when report criminal events, infract others constitutionals guarantees, to invade the privacies, to suppose blame and to decree innocences. It provoke a bump of the fundamental rights that only obtain harmony with Proportionality principle, the one depend of the concretion case.

    Palavras-chave: Media; Information; Fundamental rights; Presumption of innocence.

    INTRODUAO

    O Brasil, como a maioria das democracias do mundo, vive um Estado Democr-

    tico de Direito. Nele, o ordenamento jurdico se impe como uma base auxiliadora para

    resguardar e efetivar os direitos e garantias fundamentais.

    Esses direitos e garantias foram consagrados na Constituio Federal Brasileira de

    1988, a fim de oferecer proteo ao cidado perante o Estado. Dentre eles, a Lei Maior assegura

    a todos o direito de informao, que efetiva a liberdade de expresso e manifestao de pensa-

    mento, quando, sob formas apropriadas, garante a difuso para o pblico de notcias, fatos ou

    elementos de conhecimento, idias ou opinies (SILVA, 2007).

    1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Investigadora de Polcia do Estado do Paran

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 107

    Carla Gomes de Mello

    O direito informao se traduz no direito de informar e de ser informado (LENZA,

    2006, p. 540), que se realiza na liberdade de informao jornalstica, atravs da mdia ou imprensa.

    A liberdade de informao jornalstica da mdia, no entanto, s existe e se justifica na medida

    em que os indivduos tm o direito ao acesso e a uma informao correta e imparcial. Sobre a mdia

    incide, alm do direito, o dever de informar coletividade, fatos, acontecimentos e idias, porm,

    de maneira objetiva, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhe o sentido original (SILVA, 2007).

    Porm, atualmente, segundo expe Contera (1996), a comunicao jornalstica tende a

    criar uma realidade outra do que simplesmente retratar o fato em si.

    Com o intuito de lhe gerar lucro, a mdia explora o fato, transformando-o em verdadeiros

    espetculos, em instrumentos de diverso e entretenimento do pblico; as notcias no passam

    por crtico processo de seleo, tudo notcia, desde que possam render audincia e, conseqen-

    temente, dinheiro. Mais grave que isso, o fato de a mdia constituir um poderoso instrumento de

    formao da opinio pblica. Quando um fato divulgado pelos meios de comunicao, sobre

    ele, j incide a opinio do jornalista, ou seja, o modo como ele viu o acontecimento a notcia

    e, esta viso, justamente pelos motivos acima apresentados, nem sempre demonstra a realidade.

    Dessa maneira, o pblico acredita ser verdade aquilo que foi apresentado na notcia e

    faz seus julgamentos a partir dela.

    fcil notar essa manipulao exercida pelos meios de comunicao, quando um cri-

    me vira notcia.

    Diariamente, vrios delitos muito parecidos em sua maneira de execuo, pessoas en-

    volvidas, perfis e personalidades dos suspeitos, so cometidos no pas. Porm a mdia seleciona

    um deles e o transforma no acontecimento nacional.

    As cenas do crime se repetem incessantemente; imediatamente o at ento suspeito

    feito autor do delito; tem sua imagem revelada; seu perfil estereotipado; sua privacidade

    invadida; tudo notcia: para onde vai, de onde veio, quando saiu, o que comeu e at mesmo

    quem so seus familiares e amigos. O circo est armado e vai comear o espetculo; o palhao

    entrou em cena e o pblico sutilmente convidado a participar do show.

    Em analogia ao circo, a mdia identifica o acusado, o transforma em celebridade e

    chama o pblico para julg-lo. Ms ser esse julgamento imparcial, decorrente da razo e do

    bom senso? Onde fica a presuno de inocncia garantida pela Constituio? O que fazer para

    impedir a ao manipuladora da mdia?

    a essa e a outras questes que o presente artigo tem objetivo de analisar e apresentar

    resposta. Passemos a isso.

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 108

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    LIBERDADE DE INFORMAO JORNALSTICA

    A Constituio Federal (BRASIL, 1988) assegura em seu art. 5, inc. IV e XIV, res-

    pectivamente, as liberdades de manifestao de pensamento e de informao, sendo que, entre

    elas, h uma relao de dependncia.

    Neste sentido, afirma Silva (2007) que a liberdade de informao se centra na liber-

    dade de expresso ou manifestao de pensamento, mas que da primeira depende a efetividade

    desta ltima.

    A liberdade de informao compreende a liberdade de informar e a liberdade de ser in-

    formado, sendo que, a primeira, segundo Greco (apud SILVA, 2007), coincide com a liberdade

    de manifestao de pensamento e a segunda, por sua vez, demonstra o interesse da coletividade

    em estar informada para exercer, conscientemente, as liberdades pblicas.

    A liberdade de informao, portanto, nessa perspectiva, se realiza na procura, no aces-

    so, no recebimento e na difuso de idias e informaes (SILVA, 2007).

    Diante disso, preocupou-se a Constituio em proteger tal liberdade, consagrando-a

    como um direito fundamental, a fim de impedir que o Poder Pblico crie empecilhos ao livre

    trnsito das informaes (ARAUJO, NUNES JR., 2002).

    Desse teor o texto constitucional que prev em seu art. 220, caput, que a manifes-

    tao do pensamento, a criao, a expresso e a informao, sob qualquer forma, processo ou

    veiculo no sofrero qualquer restrio, observado o disposto nesta Constituio (BRASIL,

    1988).

    Observa-se, na dico literal do artigo acima, a utilizao pelo legislador da expresso

    sob qualquer forma, determinando, dessa maneira, segundo o 1 do mesmo, que a liberdade

    informao, inclusive informao jornalstica nos meios de comunicao social, deve ser

    plena, no podendo nenhuma lei conter dispositivos que possam gerar embaraos a ela, sendo

    vedada qualquer espcie de censura prvia, segundo dispe o seu 2 (BRASIL, 1988).

    na liberdade de informao jornalstica que se realiza a liberdade de informao (anti-

    gamente, denominada de liberdade de imprensa), ou seja, o acesso informao, a sua obteno

    e transmisso sob a forma de notcia, comentrio ou opinio, por qualquer veculo de comuni-

    cao social, seja ele impresso ou de radiodifuso, e o direito de ser informado (SILVA, 2007).

    Para tanto, a Constituio Federal gera repulsa a qualquer tipo de censura prvia

    imprensa, significando dizer que nenhum texto ou programa destinado exibio ao pblico

    necessita, previamente, ser submetido a controle ou interveno (MORAIS, 2005).

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 109

    Carla Gomes de Mello

    Essa desnecessidade de exame ou vedao da censura, no entanto, no deve ser enten-

    dida de forma a dar imprensa liberdade absoluta. Muito pelo contrrio, a liberdade de infor-

    mao jornalstica deve enfrentar restries frente aos outros direitos fundamentais igualmente

    garantidos pela Constituio.

    Importante ressaltar que a funo dos veculos populares de comunicao servir co-

    munidade, reunindo e distribuindo notcias, de forma correta e verdadeira, transformando-as em

    propriedade comum da nao (BRIGGS; BUNKE, 2006; FERNANDES; FERNANDES, 2002).

    Como bem ensina Miranda (apud COSTA, 2008, p. 04),

    a verdadeira misso da imprensa, mais do que a de informar e de divulgar fatos, a

    de difundir conhecimentos, disseminar a cultura, iluminar as conscincias, canalizar

    as aspiraes e os anseios populares, enfim, orientar a opinio pblica no sentido do

    bem e da verdade.

    A imprensa propicia a formao da opinio pblica atravs do pensamento crtico, da-

    quele juzo de valor ou opinio que recai sobre a notcia, e que oportuniza reflexes construtivas

    para que os indivduos possam fazer suas renncias e escolhas diante do que lhes exigido pela

    sociedade (SOUZA NETTO, [200-]).

    O que se quer salientar, com isso, que o direito de informao jornalstica deve sa-

    tisfazer esse requisito. Em outras palavras, a liberdade de informao s existe diante de fatos

    cujo conhecimento seja de extrema importncia ao indivduo, afim de que venha a ajud-lo a

    participar do mundo em que vive.

    Para isso, a notcia veiculada deve obedecer aos critrios da verdade e do interesse

    pblico (entendido, neste caso, como de interesse social e no como uma exigncia do pblico).

    Do contrrio, versando sobre fatos sem importncia, no h que se falar em direito liberdade

    de informao jornalstica, pois levada ao rigor, a informao no teria qualquer carter jorna-

    lstico, apresentando, no mais das vezes, carter meramente especulatrio e contraditrio com o

    fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, ao se converter direitos individuais

    em diverso e entretenimento (SOUZA NETTO, [200-]).

    Assim, a divulgao pela imprensa de fatos ou notcias que no demonstram nenhuma

    finalidade pblica e carter jornalstico e que acarretam danos dignidade humana pode resul-

    tar na prvia proibio da matria, alm de possvel responsabilidade posterior em virtude do

    abuso no exerccio do direito informao (MORAIS, 2005).

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 110

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    A MDIA

    A informao, desde o sculo XVII, no qual j era claramente apreciada em alguns

    crculos polticos e cientficos e, mais precisamente no sculo XIX, quando foi ressaltada sua

    importncia na sociedade comercial e industrial, deu ao homem a sua liberdade intelectual,

    tirando-o da ignorncia para o conhecimento (BRIGGS; BUNKE, 2006).

    Ainda hoje, diante de um sistema capitalista altamente sufocador no comando da socie-

    dade e, onde as inovaes tecnolgicas se fazem cada dia mais frequente na vida de milhares de

    pessoas, a mdia desempenha um papel de extrema importncia, uma vez que imprescindvel

    ao crescimento e desenvolvimento de um pas, bem como formao da cultura, de forma geral.

    No entanto, como um paradoxo e em ntida expresso do Princpio da Ambivalncia,

    essa informao, que surge como forma libertria do ser humano, comea a agir de maneira a

    controlar as liberdades, a direcionar a sociedade e a ditar tendncias e opinies (SANTOS, 2009).

    Isto porque, em uma sociedade altamente veloz e concorrente, onde reina a mxima tempo

    dinheiro, a informao repassada ao pblico, pelos mais diversos emissores de comunicao e, em

    especial, pela televiso, jornais e revistas, parece estar descompromissada com a verdade e a seriedade.

    Foi-se o tempo em que a veracidade imperava as relaes com o telespectador, leitor

    ou ouvinte; o que importa, agora, a notcia, mesmo que ela seja falsa.

    Quando diante de um acontecimento, a imprensa noticia algo como verdadeiro, aquilo

    que foi noticiado ser tido como verdade, porque a partir do papel desempenhado pela mdia

    atualmente, verdadeiro tudo o que ela acredita como tal (RAMONET, 1999).

    Porm, considerar como verdade tudo o que dito pela mdia muito perigoso, prin-

    cipalmente, porque o que se v, so que as informaes, na maioria das vezes, so fabricadas,

    consideradas, antes de tudo, mercadorias e, por isso, esto sujeitas s leis do mercado, da oferta

    e da procura (LITVIN, 2007).

    Informaes tratadas como produtos ou mercadorias demonstram que, ao invs de informar,

    contribuindo, assim, para a formao dos valores da sociedade, a mdia nada mais faz do que

    vender os seus espaos de propaganda (TEIXEIRA apud SHECAIRA; CORRA JR., 2002).

    Hoje, compra-se e vende-se informao com o principal objetivo de obter lucros. A

    informao no mais se move em funo das regras de informao, nas quais a verdade o

    mais importante, mas se movimenta em funo das exigncias do comrcio e da concorrncia

    do mercado, que fazem do ganho, ou do interesse, seu imperativo supremo (MORAES, 2005).

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 111

    Carla Gomes de Mello

    O que se v, portanto, que para a mdia o mais importante no ser verdadeira a

    informao, mas sim, ser o mais rentvel. E, o que faz o valor comercial de uma informao

    a quantidade de pessoas que se interessam por ela (LITVIN, 2005).

    Para atrair o pblico, a mdia recorre ao sensacionalismo, reduzindo a realidade mera

    condio de espetculo (MORAES, 2005).

    Neste sentido, para Longhi (2005), a mdia que explora o sensacional aquela espetaculariza

    fatos e produz notcias, priorizando acontecimentos triviais e transformando-os em espetaculares.

    O veculo miditico sensacionalista faz da emoo o principal foco da matria, esque-

    cendo-se do contedo da notcia a ser repassada, se que ele existe.

    O sensacionalismo est ligado ao exagero, intensificao, valorizao da emoo;

    explorao do extraordinrio, valorizao de contedos descontextualizados; troca

    do essencial pelo suprfluo ou pitoresco e inverso do contedo pela forma (AMA-RAL, 2006, p. 21).

    O sensacionalismo, segundo Amaral (2006, p. 20) o grau mais radical de mercanti-

    lizao da informao, e por isso, capaz de macular a verdade do que est sendo veiculado.

    Assim, se vemos uma cena que suscita nossa emoo, o que nos garante que ela ver-

    dadeira? A verdade estaria na realidade dos eventos ou dos fatos que vemos na tela ou ouvimos

    no rdio, ou na materialidade das lgrimas que eles nos provocam?

    A mdia sensacionalista nos faz facilmente pensar que se as nossas lgrimas forem

    verdadeiras, os acontecimentos que lhes do origem tambm os so.

    Isto deu credibilidade idia de que qualquer informao sempre condensada e es-

    quematizada, capaz de converter-se facilmente em espetculo de massa e de decompor-se em

    vrios segmentos de emoes, tais como ira, dio e compaixo (RAMONET, 1999).

    Segundo Charaudeau (2007), a mdia est condenada a procurar emocionar seu pbli-

    co com o objetivo de desencadear o interesse e a paixo pela informao que lhe transmitida

    e, assim, garantir a sua audincia.

    Desse modo, a explorao do espetculo gera um sentimento de proximidade no p-

    blico e faz com que esse se identifique com o personagem ou a situao que lhes est sendo

    mostrada (HERNANDES, 2006).

    Consequncia disso a obsesso pelos furos jornalsticos e a tendncia a privilegiar as

    informaes mais recentes e de acesso mais difcil, que levam ao instantanesmo das informa-

    es (BOURDIEU, 1998).

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 112

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    Os jornalistas possuem um tempo muito reduzido para filtrar uma informao, j que

    a notcia deve ser apresentada de forma mnima e muito veloz.

    Essa nsia por informaes rpidas, porm as transformam em repetio, ou, na ex-

    presso de Ramonet (1999), ocorre um mimetismo miditico, o que quer dizer que passa a ser

    considerada informao aquela que est sendo noticiada por todos os meios de comunicao e

    que por todos eles est sendo confirmada.

    O mimetismo aquela febre que se apodera repentinamente da mdia (confundindo

    todos os suportes), impelindo-a na mais absoluta urgncia, a precipitar-se para cobrir

    um acontecimento (seja qual for) sob pretexto de que os outros meios de comunicao

    e principalmente a mdia de referncia lhe atribuam uma grande importncia. Esta

    imitao delirante, levada ao extremo, provoca um efeito bola-de-neve e funciona

    como uma espcie auto-intoxicao, quanto mais os meios de comunicao falam de

    um assunto, mais se persuadem, coletivamente, de que este assunto indispensvel,

    central, capital, e que preciso dar-lhe ainda mais cobertura, consagrando-lhe mais

    tempo, mais recursos, mais jornalistas. Assim, os diferentes meios de comunicao se

    auto-estimulam, superexcitam uns aos outros, multiplicam cada vez mais as ofertas e

    se deixam arrastar para a superinformao numa espcie de espiral vertiginosa, ine-briantem at a nusea (RAMONET, 1999, p. 8).

    Tal mimetismo aniquila o confronto pelos cidados entre a veracidade ou no da in-

    formao, uma vez que o nico meio de que eles dispem para tanto colocar em xeque os

    discursos dos diferentes meios de comunicao. No entanto, se todos se manifestam igualmente

    e afirmam as mesmas coisas, no resta mais nada a fazer, seno ser admitir esse discurso como

    nico e verdadeiro (RAMONET, 1999).

    A verdade das informaes tambm maquiada pelos jornalistas quando estes impri-

    mem a essas as suas impresses, sensaes e opinies (CHAU, 2006).

    Ao jornalista se d a permisso para que ele crie a sua verso do fato e do acontecimen-

    to, como se fossem o prprio fato e o prprio acontecimento.

    Chega-se, com isso, ao ponto de se imaginar que a informao principal no o que se

    passou, porm, como o jornalista nos diz o que se passou (RAMONET, 1999).

    Ao comentar e interpretar as notcias, opinando sobre elas, os jornalistas modificam e for-

    mam a opinio pblica, formando e deformando comportamentos sociais (SCHNEIDER, 1998).

    Assim sendo, influenciada pela mdia, atravs da sensao ou impresso de um grupo,

    a opinio do pblico, seja pelo poder da palavra, ou pelo poder da imagem, deixa de se formar

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 113

    Carla Gomes de Mello

    ou se modifica, uma vez que sobre a informao no mais se recai o juzo pblico de reflexo e

    expresso da razo, j que estes foram emitidos, anteriormente, pelos jornalistas.

    Diante de tudo o que foi exposto, sustentam Schecaira e Corra Jr. (2002, p. 376) que

    a informao, em um sentido amplo, ou a mdia, em sentido estrito, um verdadeiro poder.

    Ela tem o poder de deliberar, agir e mandar (SHECAIRA; CORRA JR., 2002, p.

    376). Tem o poder de julgar e aferir o funcionamento de outros poderes (RAMONET, 1999).

    Por isso, muitos chegaram a afirmar que seria ela o 4 poder na escala dos poderes de-

    finida por Montesquieu, o que para Ramonet (1999) constitui um grande engano, j que defende

    ser a mdia representante do 2 poder, perdendo, apenas, para o poder econmico. O poder po-

    ltico, desdobrado em executivo, legislativo e judicirio apareceria em 3 lugar.

    Importante ainda salientar que todos esses mecanismos e caractersticas da mdia

    atual acabam por produzir um efeito global de desinformao, exatamente contrrio daquele

    que deveria ocorrer (BOURDIEU, 1998).

    A avalanche de notcias que nos oferecida acarreta esse efeito, porque elas so apre-

    sentadas de forma vazia, rpida, emocional e superficial demais (HERNANDES, 2006).

    Por isso, conclui Marcondes Filho (apud HERNANDES, 2006, p. 120):

    [...] Tudo vai direto para o lixo, tudo esquecido, tudo desaparece instantaneamente.

    Nenhuma notcia sobrevive, nenhum relato suficientemente trabalhado para criar

    raiz, tudo evapora. [...] Uma mquina incessante de fazer o nada.

    MDIA E CRIME: REALIDADE E IMAGINRIO

    Todo este cenrio de manipulao da mdia exposto, se complica ainda mais quando os

    fatos divulgados giram em torno de cenas criminais.

    O crime, desde os tempos mais remotos, onde predominavam execues pblicas que

    se constituam em verdadeiros espetculos de horror, fascinava a populao e era notcia.

    A mdia, sabedora desse fascnio e atrao do pblico pelos acontecimentos violentos,

    desde ento, explora o assunto. Segundo Barbosa e Kahn (2001), isso ocorre, principalmente

    porque o assunto crime de grande disponibilidade e variedade. Todos os dias, milhares de

    delitos so praticados e, por isso, o jornalista tem uma gama imensa de opes para selecionar

    entre aqueles que so aptos a mais interessar a populao e, ainda, ser-lhe mais rentvel. Pos-

    teriormente, ocorre porque o delito um problema social e, como tal, interessa e preocupa a

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 114

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    maioria das pessoas. E, enfim, porque o crime oferece drama, violncia, ao, caractersticas

    que oferecem mdia um elevado potencial noticioso e ficcional.

    A questo criminal, portanto, ocupa uma posio estratgica na mdia, uma vez que o

    sangue sempre aumenta as vendas. Quanto mais se fala ou se publica sobre um fato delituoso,

    mais interesse gera no pblico at que se atinja, depois de longos dias, a saturao da informa-

    o. A, o pblico se cansa e a mdia perde o interesse j que este acontecimento deixa de render

    (BATISTA, [199-?]).

    Porm, antes disso ocorrer, a empatia da populao pelo fato criminoso se transforma

    em nitroglicerina pura nas mos da mdia.

    Ela banaliza a violncia, transforma um fato superficial em um acontecimento mun-

    dial, dramatiza a dor humana e a explora, de forma a catalisar a aflio das pessoas, suas emo-

    es e suas iras (GOMES, 2009).

    As notcias sobre a criminalidade so abordadas de forma sensacionalista e, por isso,

    alm de no transmitirem a realidade, passam a emocionar, a estimular a curiosidade, a intole-

    rncia e, por fim, o prprio medo (PASTANA, 2003).

    Ao misturar realidade e imaginrio surge o temor e a sensao de insegurana que

    sempre acabam desembocando em temas de poltica criminal (ELBERT, 2002).

    A sociedade s se tranquiliza quando h a aniquilao do delinquente e as necessrias

    reformas legislativas. Exigem-se mais leis, mais prises, mais castigos (GOMES, 2009).

    Influenciada pelo discurso miditico, a populao exige penalizao. E vai mais longe,

    impe a criminalizao de condutas, como se isso resolvesse o problema (BATISTA, [199-?]).

    Neste sentido, argumenta Shecaira ([200-?], p. 137): o estado subjetivo da inseguran-

    a acaba por influenciar, inexoravelmente, o funcionamento da justia criminal e a inferir na

    prpria criao legislativa penal.

    Ocorre que para este sistema utilizado pela mdia h um fim maior: desviar a ateno

    do pblico de outros problemas sociais, facilitando as campanhas promovidas pela imprensa de

    cunho autoritrio e repressivista (LIVTIN, 2007).

    o que chama Ramonet (1999, p. 12) de efeito paravento, no qual poderes (e a m-

    dia verdadeiramente um poder)

    [...] se aproveitam das distraes da aldeia planetria, ocupada em seguir com paixo

    um grande drama da informao, para desviar a ateno do pblico de alguma ao

    passvel de crtica.

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 115

    Carla Gomes de Mello

    A mdia quer mostrar, apenas, quem so as criaturas ms e perversas de nossa sociedade,

    onde eles se encontram e como devem ser eliminados. Porm, no transmitida populao nenhuma

    informao real a respeito da maneira como essas criaturas se puseram, a no ser pelo nico motivo

    da maldade, que ameaa a vida e os bens dos cidados honestos e sem proteo (CHAU, 2006).

    Esquece-se a mdia (e a no por acaso, mas propositadamente pelo nico motivo de

    que no lhe seria rentvel) de estabelecer, na notcia, qualquer relao entre a criminalidade

    e suas possveis causas, tais como outros problemas sociais (desemprego, m distribuio de

    renda, educao ineficiente e de baixa qualidade) e econmicos (MORAES, 2005).

    O que se observa, portanto, que os fatos so retirados de seu contexto concreto, sendo

    transmitidos como se fossem eventos fragmentados, como se no tivessem causas nem efeitos

    futuros (CHAU, 2006).

    Agindo dessa maneira, a mdia alm de propagar a violncia, tambm constitui um

    componente da violncia organizada pelas elites contra a nao (MORAES, 2005, p. 386).

    A maneira como a mdia alimenta o crime leva-nos a esquecer ou a no notar que a violn-

    cia no ser controlada seno com aes que possam atingir suas possveis causas e, ainda, com a

    observncia aos princpios constitucionais, os quais, absolutamente, no so abrangidos pela mdia.

    A imprensa deveria ter o cuidado de resguardar bens jurdicos que pudessem ser, even-

    tualmente, atingidos com a publicao de uma notcia criminal, tais como a presuno de ino-

    cncia, a intimidade, o devido processo legal e a plenitude de defesa (LIVTIN, 2007).

    Como dito anteriormente, a liberdade de imprensa valor constitucional, porm, este

    valor, em certas ocasies, como na divulgao de fatos delituosos, deve ser limitado para no

    ferir outros valores igualmente constitucionais. Se assim no for, nas palavras de Livtin (2007,

    p. 83), corre-se o (srio) risco de no saber se a notcia que gerou a investigao ou se a inves-

    tigao que gerou a notcia. E isso, exatamente o que pode ocorrer.

    Como bem lembra Batista ([199-?]), em 30 de maro de 2001, o programa Globo

    Reprter, da Rede Globo de Televiso, tratou do assdio sexual, que at a data da exibio do

    programa, no era considerado crime.

    Nessa ocasio, segundo o autor, o programa ocupou-se de casos reais, nos quais vti-

    mas e supostos autores eram livremente apontados, individualizados e divulgados. Estes lti-

    mos eram considerados acusados de um crime que nem sequer existia, em rede nacional.

    Viu-se, a, ntido afronte aos princpios constitucionais da intimidade e da inocncia,

    chegando ao ponto de se formalizar investigaes criminais sobre um crime que at o momento

    no existia e que, por influncias da reportagem, estava por vir.

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 116

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    Supostas prticas criminosas so veiculadas pela mdia de maneira imprudente e sen-

    sacionalista. So eleitas como objeto de explorao e se potencializam ao serem divulgadas pe-

    los meios de comunicao, causando um clamor pblico desmedido. Indivduos so execrados

    em flagrante ultraje ao princpio da presuno de inocncia.

    Assevera a Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado, da Organizao das

    Naes Unidas (ONU), em seu art. 11, que todo ser humano acusado de ato delituoso tem o direito

    de ser presumido inocente at que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei [...].

    Neste sentido, tambm o texto constitucional, que prev em seu art. 5, LVII, que ningum ser

    considerado culpado at o trnsito em julgado de sentena penal condenatria (BRASIL, 1988).

    Segundo Dotti (1993, p. 68), o princpio da presuno de inocncia tem a funo de

    [...] garantir ao acusado o exerccio dos direitos humanos civis e polticos enquanto

    no forem direta e expressamente afetados pela sentena condenatria transitada em

    julgado ou pelas decises cautelares.

    Isto quer dizer que enquanto no ocorrer o julgamento final (ou enquanto no for pro-

    ferida uma deciso pela qual no penda mais recurso) pela Justia, todo cidado que suposta-

    mente praticar um delito considerado inocente, at que se prove o contrrio.

    Autores como Bechara e Campos (2005) utilizam a denominao de princpio da no

    culpabilidade ao invs de presuno de inocncia, uma vez que a Constituio Federal no pre-

    sume a inocncia, mas determina quem so os considerados culpados, ou contra quem se compro-

    vou legalmente a culpa, devendo o termo culpa aqui utilizado, ser entendido como culpabilidade.

    J para Mirabete (1992, p. 42) o que h um estado de inocncia, uma vez que o su-

    posto acusado inocente durante todo o desenvolver do processo e, essa situao s se modifica

    quando uma sentena condenatria transitada em julgado o declare culpado.

    Pouco importando para ns a denominao que se d a tal garantia constitucional para

    o desenvolvimento do presente artigo, a mdia age contrariamente a ela. Ao noticiar um crime,

    ela expe abusivamente o acusado, divulgando fatos, nomes, imagens e expresses e, ainda,

    projeta efeitos na persecuo penal ao manipular a opinio pblica.

    Holofotes cinematogrficos so dirigidos ao suspeito do crime com o intuito de re-

    velar sua identidade e personalidade. Em poucos segundos, sabe-se de tudo, detalhadamente,

    a respeito da vida privada desse cidado e de seus familiares. Tudo vasculhado pela mdia.

    Bastam alguns momentos para que eles se vejam em todas as manchetes de telejornais, revistas

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 117

    Carla Gomes de Mello

    e jornais. A mdia, assim, vai produzindo celebridades para poder realimentar-se delas a cada

    instante, ignorando a sua intimidade e privacidade.

    Neste sentido, o comentrio de Farias (1996, p. 59):

    [...] fotografar ou filmar pessoas detidas ou suspeitas de perpetrarem infraes lei,

    sem o consentimento das mesmas, alm de constituir violao do direito imagem

    daquelas pessoas, expe ainda execrao pblica cidados que geralmente no fo-ram julgados e condenados por sentena transitado em julgado, sendo, pois presumi-velmente inocentes.

    A mdia, como construtora de uma sociedade mais democrtica, tem o direito e o dever

    de relatar os acontecimentos, porm ao realizar tal ao, deve evitar adentrar na vida privada do

    indivduo, uma vez que isso s ser permitido quando a violao estiver revestida de interesse

    pblico (SOUZA NETTO, [200-]).

    Seguindo esse entendimento, podero surgir argumentos de que a omisso de imagens

    ou dos nomes dos suspeitos pela imprensa deixaria a sociedade indefesa, ao no poder identi-

    ficar os criminosos. Assim, a violao intimidade e privacidade poderia ser justificada pelo

    interesse pblico. Porm, se realmente a omisso viesse a ocorrer, no se estabeleceria um dano

    efetivo e claramente estabelecido, ao passo que, o sofrimento daquele que seria exposto, em ra-

    zo da violao sem razo, restaria patente, isto , se fosse considerado, ao final, inocente, essa

    exposio j teria lhe causado danos imensurveis e de naturezas diversas (LEITO, 2006).

    Quando recai sobre o homem a suspeita de ter cometido um delito, dado ab bestias,

    como se dizia no tempo dos condenados que eram oferecidos como comida s feras. A

    fera, indomvel e insacivel, a multido. O artigo da Constituio, que d a iluso de

    garantir a incolumidade do imputado, praticamente inconcilivel quele outro artigo

    que sanciona a liberdade de imprensa. To logo surgiu a suspeita, o imputado, sua

    famlia, sua casa, seu trabalho, so inquiridos, requeridos, analisados, esmiuados,

    na presena de todos. O indivduo, desta forma, feito em pedaos. E o indivduo,

    recordemo-lo, o nico valor que deveria ser salvo pela civilidade (CARNELUTTI,

    2006, p. 48-49)

    O jornalista, ainda, ao narrar um crime, explora os fatos de maneira distorcida, buscan-

    do direcionar a conscincia e a vontade dos membros da sociedade (SOUZA NETTO, [200-]).

    A mdia, assim, manipula a opinio pblica, toma partido, investiga, presume culpas e

    decreta inocncias. Constitui, no dizer de Dotti (2001, p. 288), juzes paralelos.

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 118

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    Os jornalistas deixam de narrar os acontecimentos de acordo com a verdade e fidedig-

    nidade da investigao criminal para assumirem, diretamente, a prpria funo investigatria,

    promovendo uma reconstruo dramatizada do caso, com o intuito de comover o pblico e

    provocar clamor (BATISTA, [199-?]).

    Quando uma acusao se torna pblica, ela j vem carregada de um olhar moralizante e ma-

    niquesta que decorre do prprio jornalista e que assimilado pela sociedade (BATISTA, [199-?]).

    Tomemos como exemplo, a edio n. 2057, da Revista Veja, de 23 de abril de 2008. Na

    capa, estampados esto os rostos do pai e da madrasta suspeitos de terem assassinado a menina

    Isabela. Logo abaixo da imagem, o ttulo impactante, cujo final nos chama ateno, uma vez

    que escritos em tamanho maior e em cores diferentes da utilizada no incio do texto: Para a

    polcia, no h mais dvidas sobre a morte de Isabela: FORAM ELES.

    A revista no esconde com esse procedimento, o papel de promotora de acusao e ten-

    ta mostrar com o ttulo e tambm com a reportagem que somente aquela pode ser a concluso.

    V-se, com isso, que a mdia promove um julgamento pblico antecipado, que parece

    no dever satisfao nem mesmo Constituio Federal ou s leis.

    Os julgamentos so influenciados pela formao e, tambm pelo que os meios de co-municao nos apresentam como verdade. Somos cruis em nossos julgamentos. Na

    maioria das vezes, esquecemos que eles so mediados. Se no forem pela imprensa,

    podem ser pelos nossos prprios preconceitos, pelo inconsciente ou pela linguagem.

    [...] os maniquesmos se apresentam e o veredicto se resume velha luta entre o bem

    e o mal. S que os indivduos so muito mais complexos do que isso (PENA, 2007,

    p. 113).

    A fora que os meios de comunicao produzem e projetam ao noticiarem um crime pas-

    svel de influenciar at mesmo o juiz, no momento adequado de decidir. Muitas vezes, pelo temor

    de gerar nos cidados a sensao de insegurana jurdica, juzes decidem da maneira como espera

    a mdia e toda a sociedade por ela influenciada (MORAES, 2009), no sendo objetivo e parcial.

    No se importa a sociedade manipulada pela mdia se contra o suspeito houve tortura

    que o levou a confessar o ato criminoso, se, da mesma maneira, houve fora excessiva, se est

    preso inocentemente e sem necessidade, se os direitos dele esto sendo violados, se ele tem a

    chance de no ser considerado culpado e se ele faz jus a um julgamento justo. A poderosa voz

    manipuladora exige imediata ao do Estado e assim, todos passam a exigir tambm, porm,

    [...] impor a um homem uma pena grave, como a privao da liberdade, uma man-cha em sua honra, como a de haver estado na priso, e isso sem que fosse provado

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 119

    Carla Gomes de Mello

    que ele culpado e com a probabilidade de que seja inocente, algo que est muito

    distante da justia (ARENAL, 1877, p. 12).

    COLISO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Sabe-se que no permitido aos meios de comunicao, se utilizar da prerrogativa da

    liberdade de informao jornalstica, que lhe garantida pela Constituio Federal, para divul-

    gar notcias que ofendem a outras liberdades igualmente garantidas, tais como a intimidade, a

    vida privada e a presuno de inocncia.

    Quando essa regra, no entanto, no obedecida e as liberdades se chocam, estamos

    diante de uma coliso de direitos fundamentais.

    Canotilho (1996, p. 643) entende haver tal coliso quando o exerccio de um direito funda-

    mental por parte de seu titular colide com o exerccio do direito fundamental por parte de outro titular.

    Para Alexy (1999), a coliso acontece quando algo vedado por um princpio e ao

    mesmo tempo, permitido por outro, situao em que um dos princpios deve recuar.

    Porm, como os direitos em conflito no podem ser hierarquizados, o caso concreto

    dir qual deles deve recuar.

    No problema apresentado pelo artigo, surge o conflito entre o interesse na informao

    e na presuno de inocncia em relao a um suposto infrator da lei penal, da qual decorre a

    tutela de seu ntimo.

    A imprensa quer se valer da liberdade de informao jornalstica para presumir culpas,

    nos casos criminosos, j que a inocncia nunca notcia. Alm do mais, quer se apoiar na mes-

    ma liberdade para invadir a esfera do privado daquele que supostamente cometeu o crime e que

    apontado pela mdia, com toda certeza, como seu verdadeiro autor.

    Com a finalidade de impedir a coliso dos direitos apresentados, deve-se fazer um esforo

    organizado e orientado no sentido de se elevar o nvel educacional e cultural da populao como um

    todo, o que poderia diminuir o interesse dessa pelo sensacionalismo explorado pela mdia, e assim, in-

    fluenciar para que a imprensa diminua ou acabe com essa prtica (SHECAIRA; CORRA JR., 2002).

    Assim, como bem expe Ramonet (1999, p. 23), os cidados tambm tm uma obri-

    gao: a de serem ativos e no passivos na busca de informaes.

    Outra opo seria a criao de mecanismos legais que visassem a restringir publi-

    caes que eventualmente pudessem atingir bens jurdicos fundamentais, efetivando-se uma

    espcie de censura, nestes casos (SHECAIRA; CORREA JR., 2002).

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 120

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    Mas, enquanto isso no ocorre, a sada para os direitos fundamentais em conflito se d

    com o princpio da proporcionalidade, que segundo Souza Netto ([200-?], p. 18)

    [...] , pois uma construo do pensamento jurdico, inerente ao Estado de Direito que

    exige a concordncia prtica e a harmonizao dos conflitos entre bens jurdicos, pro-piciando soluo de combinao, sem a ocorrncia de sacrifcios de uns em relao

    aos outros.

    O princpio da proporcionalidade busca solucionar o conflito de forma moderada e

    equilibrada, a fim de indicar qual dos direitos fundamentais em conflito deve prevalecer, no

    caso concreto.

    CONCLUSO

    Do exposto no artigo, permite-se concluir que ao mesmo tempo em que a Constituio

    Federal assentou o princpio da liberdade de informao, visando garantir ao cidado o direito

    de receber a informao mais completa possvel sobre todos os fatos de interesse pblico, tam-

    bm assegurou o princpio da presuno da inocncia com o objetivo de preservar o seu estado

    de inocncia at que seja formalmente considerado culpado por sentena penal transitado em

    julgado, pela prtica de um delito.

    Assim agindo, a Magna Carta imps limites para o exerccio destes direitos fundamen-

    tais, esperando que um no invadisse a esfera do outro.

    Porm, os ideais capitalistas tambm se firmaram entre os meios de comunicao e

    raro no , a violao de garantias constitucionais, com o intuito de obter lucros.

    Por isso, e em especial, no raro o choque entre a liberdade de informao jornalsti-

    ca, em que se ampara a mdia, e a garantia da presuno de inocncia.

    Os meios de comunicao no se preocupam mais em respeitar a ntegra desse direito

    constitucional, uma vez que expem de forma abusiva o suposto acusado e ainda, projetam

    efeitos sobre o julgamento deste.

    No entanto, tem o dever toda a populao e mais precisamente todos os profissionais

    que atuam na persecuo criminal, de preservar o direito de o cidado presumir-se inocente, no

    se deixando influenciar pela opinio miditica.

    Cabe populao ser mais ativa no tocante informao. Ela deve exigir notcia, ver-

    dade e, principalmente, informao.

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 121

    Carla Gomes de Mello

    Para tanto, o nvel educacional do cidado deve ser elevado, a fim de se reduzir o poder

    miditico. A populao, com isso, ser capaz de reconhecer a verdade, distingui-la da fico e

    tomar posies prprias frente a esse reconhecimento.

    Alm do mais, a mdia necessita de tica e respeito pelo ser humano, a fim de tratar a

    informao com toda responsabilidade que exige um Estado Democrtico de Direito.

    Mas, enquanto isso no ocorre, a coliso entre liberdade de informao e presuno de

    inocncia harmonizada pela proporcionalidade, a depender do caso concreto.

    REFERNCIAS

    CHAU, Marilena. Simulacro e poder: uma anlise da mdia. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2006.

    CONTERA, Malena Segura. O mito na mdia: a presena de contedos arcaicos nos meios de comunicao. 2. ed. So Paulo: Annablume, 1996.

    COSTA, Isngelo Senna. Os segmentos de segurana pblica em face da colidncia entre direi-tos fundamentais: liberdade de informao versus presuno de inocncia. In: FRUM NA

    DOTTI, Ren Ariel. As dez pragas do sistema penal brasileiro. In: TUBENCHLAK, James (Org.). Doutrina: v. 11, Rio de Janeiro: ID, 2001, p. 288.

    ELBERT, Carlos Alberto. Criminologia latino-americana: teoria e proposta sobre o controle social do terceiro milnio. v. 2. So Paulo: LTr, 2002.

    FARIAS, Edilson Pereira de. Coliso de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a ima-gem versus a liberdade de expresso e informao. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1996.

    FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. rev. atual. ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

    GOMES, Luiz Flvio. Mdia e caso Nardoni: haver julgamento objetivo e independente? So Paulo, mai./2009. Disponvel em: Acesso em: 20 mar. 2009.

    HERNANDES, Nilton. A mdia e seus truques: o que o jornal, revista, TV, rdio e internet fa-zem para captar a ateno do pblico. So Paulo: Contexto, 2006.

    LEITO, Luiz. A mdia e a liberdade de imprensa. Jornal da mdia: dez. 2006. Dispon-vel em: . Acesso em: 20 mar. 2009.

  • Revista de Direito Pblico, Londrina, v. 5, n. 2, p. 106-122, ago. 2010 122

    Mdia e crime: liberdade de informao jornalstica e presuno de inocncia

    LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 10. ed. So Paulo: Mtodo, 2006.

    LITVIN, Juliana. Violncia, medo do crime e meios de comunicao. Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal: dez. jan. 2007, n. 41, p. 73-87.

    LONGHI, Naiara. Sensacionalismo e Jornalismo Popular: um estudo de caso. In: XXVIII con-gresso brasileiro de cincias da comunicao, 2005.

    MORAES, Dnis de. Por uma outra comunicao: mdia, mundializao cultural e poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

    MORAES, Maurcio Zanoide. Presuno de inocncia & excessos da mdia. Associao dos magistrados do Paran: Curitiba, jan. 2009. Disponvel em:. Acesso em: 20 mar. 2009.

    MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. So Paulo: Atlas, 2005.

    PASTANA, Dbora Regina. Cultura do medo: reflexos sobre violncia criminal, controle social e cidadania no Brasil. So Paulo: Mtodo, 2003.

    PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo. So Paulo: Contexto, 2007.

    RAMONET, Igncio. A tirania da comunicao. Petrpolis: Vozes, 1999.

    SANTOS, Fbio Antnio Tavares dos. Preocupaes com a era da informao e a desformali-zao penal. Boletim IBCCRIM: (LOCAL), mar. 2009, n. 196, p. 9-10.

    SCHECAIRA, Srgio Salomo; CORRA JR., Alceu. Teorias da Pena. In: Finalidades, direito positivo, jurisprudncia e outros estudos de cincia criminal. So Paulo: RT, 2002.

    ______. A criminalidade e os meios de comunicao de massas. Revista brasileira de cincias criminais: So Paulo, [200-?], v. 10, p. 137.