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7ª Edição da FIDES

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7ª Edição da FIDES

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Mais seis meses se passaram e com uma intensa dedicação floresce a 7ª Edição

da Revista de Filosofia, do Direito e da Sociedade, a FIDES.

Três anos após nosso nascimento, essa edição vem renovar ânimos na busca pela

concretização dos objetivos que desde o início alentam nosso trabalho: a superação da

reprodução do saber e a valorização e o incentivo à produção acadêmica e cultural de

nossa Universidade. Por isso, desejamos ratificar a essência de nossa revista.

De início, cabe relembrar as três nuanças do verbete FIDES: do latim, fides

significa fé, confiança, valores que são aplicados na administração de uma produção

científica de qualidade, inovadora e crítica; em segundo lugar, temos a FIDES enquanto

aglutinação de uma filosofia para desocupados, para aqueles que não se atém apenas ao

conhecimento hermético, voltado para si mesmo, aos manuais formalistas e aos dogmas.

A FIDES valoriza as formas alternativas de saber! Por que não recriar o Direito e

questioná-lo por vias não normativas? Isso é filosofia! Como último pilar, temos a

FIDES como revista eletrônica, representando a democratização do acesso ao

conhecimento por sua gratuidade e incentivo à produção científica prazerosa e sem

formalismos, afinal, nosso processo editorial pauta-se pela simplicidade e

informalidade.

Apesar da própria sigla FIDES se referir à Filosofia de Direito, do Estado e da

Sociedade, se espera em um trabalho com publicação em nossa revista tão somente que

o autor fuja da repetição acrítica das ideias, da mera colação de pensamentos alheios e

da ausência de espaço ao posicionamento pessoal. Tudo isso para que, enfim, se possa

refletir sobre o que nos cerca. O que importa é o ato de pensar sobre, o ato de

questionar!

Nesta edição, ratificamos o compromisso de valorizar o que é nosso, de cultivar

nossa cultura, de prezar por nossas raízes. E, como tal, não poderíamos esquecer de um

dos grandes nomes do cenário potiguar que nos deixou há exatos trinta e cinco anos:

Palmyra Wanderley. Além de dedicarmos uma seção especial com uma sucinta

biografia da poetisa, trazemos uma das suas inúmeras obras que retratam tão bem a

natureza da mulher e o feminismo que tanto era defendido pela artista. Aprestamos,

ainda, nossa homenagem na capa com o seu poema mais famoso: “Pitangueira”.

EDITORIAL

Reafirmando nossa busca incessante da promoção de uma gradual mudança de

cultura no ambiente acadêmico, especialmente no que diz respeito à diversificação das

fontes de referência na pesquisa, trazemos a seção “Artigos Convidados” – na qual

publicamos o paper “As novas perspectivas do Processo Penal Brasileiro: um olhar sob

o enfoque dos ensinamentos de Guiseppe Bettiolo”, de autoria de Gudson Barbalho do

Nascimento, e o artigo “Reclamação constitucional perante o Supremo Tribunal

Federal”, de autoria de Eugênio Carvalho Ribeiro, – como forma de estimular o corpo

discente a se envolver cada vez mais com a pesquisa do Direito.

Gostaríamos de registrar nossos sinceros agradecimentos a todos que

colaboraram para o lançamento de mais uma edição. Aos autores, que engrandeceram

nosso periódico com a submissão de seus trabalhos e, com empenho e dedicação ao

longo de todo o processo editorial, puderam aperfeiçoar suas obras, agradecemos

imensamente a confiança depositada na Revista, parabenizando, desde já, aqueles que

tiveram seus artigos publicados.

Aos professores do nosso Conselho Científico que puderam colaborar com uma

produção científica de qualidade, sugerindo modificações pertinentes aos diversos temas

a nós trazidos e, por fim, mas não menos importante, ao nosso Conselho Editorial, que,

com seu incessante trabalho, pôde demonstrar, mais uma vez, o prazer e a dedicação em

contribuir com uma produção acadêmica de qualidade.

Sejam bem-vindos à nossa 7ª edição!

Ótima leitura a todos!

Natal/RN, 30 de abril de 2013.

Conselho Editorial

HOMENAGEM A PALMYRA WANDERLEI

VIDA E OBRA DA POETISA PALMYRA WANDERLEY

POEMA “BEM-TE-VI”

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ARTIGOS INICIAIS

AS NOVAS PERSPECTIVAS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Gudson Barbalho do Nascimento Leão 9 - 21

RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

22 - 33

Eugênio Carvalho Ribeiro

ARTIGOS CIENTÍFICOS

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEUS SUBPRINCÍPIOS

Sâmia Larissa Dias Barros

34 - 52

A NOVA DINÂMICA DE PROCESSAMENTO DOS ATOS DE CONCENTRAÇÃO NO

CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA E A REFORMA NO

SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA

Ângelo José Menezes Silvino

53 - 67

A PORTABILIDADE DOS PLANOS DE ASSISTÊNCIA PRIVADA À SAÚDE: UMA

ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA CONSUMERISTA

Émerson Antoinne Santos de Araújo

Laura Maria Pessoa Batista Alves

68 – 83

AS FUNÇÕES DA PROPRIEDADE E O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO

DE COMPOSIÇÃO DOS INTERESSES PRIVADOS E PÚBLICOS

Ana Marília Dutra Ferreira da Silva

84 – 97

ENTRE A FILOSOFIA ANALÍTICA E O CULTURALISMO JURÍDICO: A

APROXIMAÇÃO DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO DE NORBERTO BOBBIO

COM O DE MIGUEL REALE

Geailson Soares Pereira

JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DOS FINS QUE OS

MEIOS PUNITIVOS NÃO ALCANÇAM

Karina Bezerra Pinheiro

Raul Rocha Chaves

98 - 116

117 – 128

SUMÁRIO

O PRINCÍPIO DA MORALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A

MATIZAÇÃO DA DISTINÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL

Lucas Cabral da Silveira

Manoel Nicolau da Silva Júnior

O SURGIMENTO DO ESTADO – DE HOBBES A MARX: UMA QUESTÃO

FILOSÓFICA

Beatriz Costa Rodrigues Farias

129 -146

147 -165

RESPONSABILIDADE ESTATAL NOS CRIMES COMETIDOS CONTRA OS

DIREITOS HUMANOS DURANTE A VIGÊNCIA DA DITADURA MILITAR

BRASILEIRA

Andressa Câmara Grilo

Fernanda Maria de Oliveira Ramalho

166 - 184

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VIDA E OBRA DA POETISA PALMYRA WANDERLEY

Palmyra Guimarães Wanderley, filha de Celestino Carlos Wanderley e de Anna

Guimarães Wanderley, Nasceu em 6 de agosto de 1894, na Cidade do Natal – Rio Grande do

Norte.

Em 1914 fundou, juntamente com sua prima Carolina e outras jovens, a Revista Via-

Láctea que seria a primeira feita por mulheres e dirigida ao público feminino do Rio Grande

do Norte. A revista circulou até o final de 1915 e cumpriu o importante papel de incentivar e

divulgar a produção feminina no Estado.

Palmyra colaborou em diversos jornais e revistas de seu tempo, como A Imprensa, A

República e A União, do Rio de Janeiro; Revista Feminina e Revista Moderna, de São

Paulo; Paladina do Lar, da Bahia; e Estrela, do Ceará. Em Natal, colaborou em A República,

A Cigarra, o Diário do Natal e a Tribuna do Norte.

Sempre utilizou pseudônimos em seus textos. Entre eles, os mais famosos são

“Mirthô”, “Li Lá”, “Masako” e “Ângela Marialva”.

Em 1918, a poetisa publicou seu primeiro livro, Esmeraldas, e, em 1929, Roseira

Brava, que obteve, pela sua segunda edição de responsabilidade da Fundação José Augusto,

menção honrosa da Academia Brasileira de Letras. Apesar de irregular, Roseira Brava inova

ao tentar escapar dos dramas emocionais do eu poético. A autora elege a cidade de Natal

como centro de seu lirismo e tenta apreendê-la plasticamente em poemas que exaltam suas

formas e cores luminosas, cantando sua fauna, flora e tipos representativos da terra.

Em 18 de novembro de 1978, Palmyra Wanderley faleceu sozinha na cidade em que

nasceu.

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BEM-TE-VI

Todas as tardes, sempre à mesma hora,

vem visitar-me um passarinho amigo...

canta cantigas que eu cantava outrora,

canta coisas que eu sinto, mas não digo.

De onde ele vem, não sei; nem onde mora;

se lembranças me traz, guarda-as consigo.

Sinto, no entanto, quando vai-se embora,

que a minha alma não quer ficar comigo.

Hoje tardou... Há chuva nos caminhos,

mas chuva não faz mal aos passarinhos

e ele há de vir, a tarde festejando...

Lá vem ele, ligeiro como um sonho...

canta cousas tão minhas, que eu suponho

ser o meu coração que vem cantando.

Palmyra Wanderley

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Recebido 24 abr. 2013

Aceito 25 abr. 2013

AS NOVAS PERSPECTIVAS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: UM OLHAR

SOB O ENFOQUE DOS ENSINAMENTOS DE GIUSEPPE BETTIOL

Gudson Barbalho do Nascimento Leão1

São claras e sempre lúcidas as lições provenientes dos ensinamentos de Giuseppe

Bettiol, criminalista italiano que fez sua fama no correr do século passado. É sobre ele que

nos ocuparemos nas breves linhas que seguem, na tentativa de realizar um balançar de olhos

entre suas lições e o sistema processual penal brasileiro.

Segundo consta em seus escritos, o futuro do processo penal depende2 de duas

condições fundamentais, quais sejam: a consolidação da idéia democrática na vida política e

uma eventual reforma do código penal.

De fato, a evolução do processo penal e a harmonia do sistema acusatório com o

ordenamento jurídico estão umbilicalmente relacionadas aos avanços promovidos pela

conscientização político-democrática. Isto é, quanto mais evoluída a democracia em

determinado ordenamento, tanto maior será a responsabilidade do processo penal em trazer

para o seu bojo as diretrizes que já povoam o seio desta sociedade dita democrática.

Essa notável tarefa, de conduzir a democracia reinante na sociedade para dentro do

ordenamento jurídico incumbe, precipuamente, ao Poder Legislativo (com destaque, o Poder

Constituinte). Isto é, são os legisladores que, considerando as transformações jurídico-sociais

havidas, inovam o ordenamento jurídico através do enxerto de novas espécies normativas.

1 Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com atuação na área de

processo e garantia de direitos. Professor colaborador voluntário da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Inspetor de controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte. Advogado. 2 A bem da verdade, mais correto seria utilizar o verbo flexionado no pretérito, uma vez que datam da década de

60 e 70 suas contribuições mais relevantes.

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Esta valorosa missão tem, portanto, o condão de transformar o universo jurídico,

modificando institutos antigos, extinguindo paradigmas obsoletos e diretrizes vetustas, ao

trazer previsões de novos institutos. Em países onde o Código de Processo Penal é diploma

antigo, como é a realidade nossa, tal atribuição legislativa torna-se sobremaneira importante,

pois a desatualização do referido código termina ocasionando consequências deletérias ao

ordenamento jurídico, em geral, e aos sujeito do processo penal, em particular. Em outras

palavras, quando o ordenamento criminal falha é a sociedade quem padece.

Pois bem. Como já antecipado, o Brasil é um país de legislação criminal retrógrada,

pois nosso diploma adjetivo penal data do ano de 1941 e é fruto da época em que a sociedade

brasileira vivia sob a égide do Estado Novo, regime ditatorial getulista. Tanto é assim que o

código ali nascido trouxe como tônica o sistema misto (SILVA JUNIOR, 2011, p. 365), em

que coexistem e se mesclam tendências processuais distintas, a saber ,do sistema inquisito e

do sistema acusatório.

Ao longo dos anos, este código foi sendo reparado, mudado, corrigido.

Homeopaticamente, foram sendo inseridas alterações pontuais, com a nítida preocupação de

adequar a realidade normativa do processo penal aos incrementos ocorridos cotidianamente na

sociedade contemporânea, cujo traço de destaque é o seu dinamismo pujante.

De fato, o ordenamento jurídico foi bastante alterado; e melhorou consideravelmente,

frise-se. Mas ainda existem marcas notórias daquela época em que vigorava entre nós um

pensamento eminentemente policialesco (GRECO, 2012, p. 69). Agora, o grande papel do

legislador é desconstruir os ranços desse sistema inquisitivo que insiste em permanecer entre

nós, engendrando um sistema processual penal calcado no arcabouço acusatório, que

estabeleça como norte a preservação das cláusulas constitucionais veiculadoras de direitos

fundamentais (MARTINS, 2011, p. 42). É, como já se disse, tarefa árdua, que requer labor,

técnica, vontade política e razoabilidade em demasia.

Esse processo acusatório, para utilizar a expressão forjada por Bettiol (1973, p. 113),

tem como características fundamentais a plena publicidade de todo o procedimento, a

liberdade pessoal do acusado até a condenação definitiva (premissa que entre nós está

encapsulada no princícipio da presunção de não culpabilidade), a separação entre o órgão

julgador e a entidade acusadora, a igualdade absoluta dos direitos e poderes entre acusador

e acusado, a imparcialidade do juiz na coleta de provas e a celeridade processual, só para

citar algumas de suas marcas.

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Em nosso meio, tais mudanças ventilam a importância fulcral da Carta Magna de

1988, não poucas vezes subestimada, vilipendiada ou esquecida mesmo. Com efeito, foi essa

Constituição que promoveu, de maneira bem sucedida, a travessia de um estado autoritário,

repressivo, intolerante e quase sempre violento para um Estado Democrático Constitucional

de Direito. (BARROSO, 2012, p. 203)

Na verdade, em virtude do baixo nível de criticidade, de certo distanciamento

político-ideológico havido na sociedade brasileira e da desconfiança ainda reinante em relação

ao texto constitucional, não se consegue compreender a importância da Constituição Federal

para a consolidação deste Estado Democrático. Mas é quase inacreditável a evolução

(sobretudo, político-social) por que passou o Brasil nesses últimos tempos. A Constituição de

1988 tem, portanto, propiciado o mais longo perídodo de estabilidade da história institucional

da República Brasileira.

E não foram tempos banais. Como bem lembra Luis Roberto Barroso (2012, p. 191),

no breve percurso dessa nova Constituição, destituiu-se por impeachment um presidente da

República, houve um grave escândalo envolvendo a Comissão de orçamento da Câmara dos

Deputados, foram afastados senadores e ministros importantes na dinâmica de poder da

República, elegeu-se um presidente de oposição e do partido dos trabalhadores e, mais

recentemente, foi eleita a primeira presidente mulher da história de nosso país (também desse

partido dos trabalhores).

Além disso, sob a égide do modelo constitucional orquestrado pela Lex Legum de 88,

foi aprovada pelo Congresso Nacional um Proposta de Lei de iniciativa popular, a famigerada

Lei da Ficha Limpa, que teve por objetivo mitigar o acesso ao Poder por parte de pessoas que

tenham sofrido alguma espécie de condenação (penal ou administrativa) e surgem,

cotidianamente, denúncias escandalosas envolvendo esquemas de corrupção no sistema

eleitoral e de vantagens parlamentares, em meio a tantos outros episódios diuturnamente

veiculados na mídia nacional. Cite-se como exemplo a condenação, recém decretada, de uma

série de políticos e pessoas influentes no intrucado e mafioso esquema do mensalão.

De uma forma ou de outra, em nenhum desses momentos houve sequer a cogitação

de qualquer solução que não fosse o respeito e a estrita observância à legalidade

constitucional.

Isso reflete o nível de responsabilidade que a sociedade brasileira (agora

democrática) passou a exigir de seus representantes e dos institutos jurídico-políticos que

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lajeiam o Estado Democrático Constitucional. Nesse ínterim, exige-se do processo penal,

assim como dos demais ramos jurídicos, a escorreita disponibilização das ferramentas e

instrumentos necessários ao engenho deste Estado e à construção de uma sociedade livre,

justa e solidária, nos moldes definidos já no cabeçalho de nossa Constituição Federal.

Na grei do processo penal, o sistema acusatório une esforços nesse sentido. Sob sua

lente, voltam-se as atenções para os procedimentos ritualísiticos que ocorrem em seu seio, no

sentido de reconhecer a importância de tal seara jurídica. Mais: no Estado Democrático de

Direito é reconhecida a lesividade havida pelo direito criminal (em geral) e pelo processo

penal (em particular). Isto porque o mero fato de alguém figurar no pólo passivo de uma ação

penal (seja ela denúncia ou queixa) traz para o indiciado uma pecha indelével, que não

desaparece nem mesmo com a prolação de uma sentença absolvitória própria.

Por essa razão, o instante em que o juiz recebe uma suposta denúncia, por exemplo,

muito mais do que um mero ritual solene e simbólico, com importâncias técnicas para a

triangulação do processo e o prosseguimento da marcha processual, representa um divisor de

águas na vida da pessoa que ali está sendo denunciada; é, portanto, um rito de passagem que

aflige diretamente a vida do futuro réu e de todos aqueles que lhes são próximos. É que o

processo penal atinge, com força de machado, a honra e a dignidade daqueles porventura nele

envolvidos.

Bem assim, o recebimento da denúncia por parte do magistrado é o momento em que

o juiz decide se um indivíduo será (ou não) alvo das mazelas de um processo penal.

Justamente por isso, entendemos a justa causa como uma quarta condição da ação penal3,

pois, no instante em que ela torna exequível a existência de elementos de materialidade e

prováveis indícios de autoria, a um só tempo, robustece a ação penal, mitiga a possibilidade

de existência de processos penais temerários, e exerce a função de filtro constitucional dentro

do cenário do processo.

Até porque o surgimento do processo penal, em muitos pontos, se confunde com a

própria batalha pela afirmação dos direitos fundamentais. Ele surgiu dentro de um movimento

de valorização desses direitos e, por essa razão, defende-se a idéia de que a teoria do processo

penal se encontra imersa no universo representado pela teoria dos direitos fundamentais.

(SILVA JUNIOR, 2008, p. 254) Essas premissas proporcionaram o surgimento do processo

3 Nesse sentido, não é outra a lição de Walter Nunes da Silva Júnior (2008, p. 431)

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penal como instrumento abalizador dos limites iniciais ao poder do Estado, que embora possa

muito, não pode tudo, haja vista a necessidade de atuar sob a proteção dos dispositivos legais

e sempre respeitando os princípios e direitos fundamentais estampados em nossa

Constituição, sobretudo a dignidade da pessoa humana (PRADO, 2008, p. 88).

A bem da verdade, nossa Constituição Federal, no intante em que consagrou o

respeito aos Direitos Fundamentais, o fez com base na fundamentalidade formal (MARTINS,

2011, p. 112). Isto é, pouco importa o conteúdo e a essência que um determinado direito

fundamental possui, o simples fato de ter sido previsto no texto constitucional como tal,

dignifica sua importância e respalda-lhe a sua normatividade. Em outras palavras, não existem

valorações apriorísticas entre os direitos fundamentais.

Em havendo conflito entre dois ou mais direitos fundamentais, o critério será o do

sopesamento; o da ponderação. Isto nos leva a crer que a inexistência de direitos

fundamenatais superiores ou absolutos seja um dos requisitos para a viabilidade de tal

ponderação. Caso contrário, se não houver uma “paridade de armas” entre os direitos

fundamentais colidentes, não há falar em ponderação ou até mesmo em conflito entre esses

direitos. A colisão entre quaisquer direitos fundamentais nada mais é do que uma batalha

duelada por eles em um determinado caso concreto. Se não há batalha, porque a luta já fora

vencida antes mesmo de iniciada, não há colisão. Logo, se não houver colisão, não haverá

ponderação ou sopesamento a ser realizado.

Não existem direitos fundamentais absolutos, pelo menos, não em nosso ordenamento

jurídico. O que ocorre, isto sim, é que alguns direitos fundamentais, por possuírem uma

natureza mais substanciosa e encorpada, terminarão prevalecendo com maior freqûencia. Isto

não os torna super-fundamentais ou absolutos, apenas denota uma maior força, um maior

vigor ou uma aplicabilidade mais frequente. Talvez a Dignidade da Pessoa Humana seja um

desses direitos fundamentais, razão, por que o processo penal, vez ou outra, se voltará com

questões correlatas a essa dignidade.

Ora, já sabemos que os Direitos Fundamentais surgiram junto com o

Constitucionalismo Clássico na tentaiva de limitar a atuação estatal, como forma de

resguardar os avanços e direitos ideologicamente defendidos pela burguesia

(MARMESLTEIN, 2011, p. 58). A categoria de “direitos negativos”, aqui compreendidos os

direitos de liberdade civis e políticas tinham essa missão: preservar os interesses burgueses da

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nefasta atuação do Estado. Exigia-se, portanto, um não fazer por parte do ente estatal, que até

aquele instante havia dado marcas de que era inimigo do povo.

Destarte, assim como os direitos fundamentais, o processo penal surge a partir da

necessidade de se impor limites à atuação estatal. É refretário, portanto, das revoluções

liberais que povoaram o século XVIII e cujo legado foi mesmo o surgimento e consolidação

dos direitos fundamentais, em um primeiro instante os direitos civis e políticos e, com o

passar do tempo, os demais direitos prestacionais, de segunda, terceira, quarta e até quinta

geração (BONAVIDES, 2010, p. 437). Justamente por isso, a teoria do processo penal e a

teoria dos direitos fundamentais, em alguns pontos, se confundem , de modo que, para se

conhecer a teoria processual penal, torna-se necessária a compreensão de como essas

categorias ou esses princípios estão ditados no sistema jurídico; é também imprescindível que

saibamos em qual momento histórico, político, social e jurídico está situado o nosso sistema

hodierno.

Daí porque é importante analisar momentos históricos marcados pelo perfil autoritário,

como o ocorrido na Alemanha nazista e na Itália fascista (CUNHA, 2008, p. 163). Acolá, a

estrutura e finalidades do processo penal assumiam características notadamente inquisitoriais,

uma vez que a direção das provas era conduzida pelo arbítrio do juiz (e, na maioria das vezes,

ao arrepio da lei), não havia distinção entre órgão acusador e julgador e o processo seguia o

trâmite às escuras, manifestando-se secreto não apenas em relação aos cidadãos como também

em relação ao indiciado, naquele formato processual exposto e já criticado por Franz Kafka.

Ademais, vigora nos instantes ditatoriais a força da prisão provisória, como

instrumento da absoluta segregação do indiciado em relação aos demais cidadãos até o

momento da defesa (TOURINHO FILHO, 2007, p. 222). No estádio democrático em que se

encontra nosso ordenamento jurídico, por exemplo, a regra da prisão preventiva obrigatória

não tem mais razão de ser, mostrando-se de todo incoerente com a sistemática constitucional

trazida pela Carta Política de 1988.

No Brasil contemporâneo, a prisão processual, qualquer que seja a sua modalidade

(preventiva, temporária, prisão em flagrante, etc) só será utilizada como medida

excepcionalíssima, até porque, como já citado, vigora entre nós o princípio da presunção de

não culpabilidade, que milita em favor do indiciado e reza que ninguém será condenado antes

do trânsito em julgado da decisão judicial. Assim, o juiz apenas poderá decretar a prisão

preventiva (modalidade excelsa de prisão cautelar) quando houver uma das hipóteses do art.

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312 do Código de Processo Penal e o fará de maneira fundamentada, pois, desaparecendo os

motivos que a ensejaram, a liberdade provisória4 será tempestivamente concedida.

Pois bem. Segundo Bettiol, na Itália de 1967, a primeira condição para um futuro

promissor do processo penal estava relacionada à consolidação da idéia democrática na vida

política. A segunda condicionante ligava-se à premência da reforma do código penal, isto é,

uma reforma estrutural e não reformas pontuais como ocorre com frequência nos mais

diversos países5. Conforme nos ensina Bettiol, é necessário promover uma reforma de tal

sorte que consiga alterar a própria natureza normativa, atribuindo ao direito penal uma nova

fisionomia, com a respectiva abolição, por exemplo, das medidas administrativas de

segurança, pois o processo penal não pode assumir tarefas de políticas de segurança.

O processo penal, como instrumento de verdade e de justiça, está a serviço dos valores

morais supremos e absolutos, não devendo conhecer de matérias e objetos relacionados, por

natureza, a uma função pública totalmente alheia à atividade de jurisdição penal. Na visão

bettioliana, a função judicial resta humilhada e mortificada quando se tendem a confundir

entre si funções estatais diversas, em detrimento da segurança jurídica.

Outro fator tangenciado em sua obra diz respeito à tão sonhada celeridade processual.

Para tanto, arremata que um dos problemas básicos do processo penal está relacionado com

uma maior rapidez do processo no interesse não apenas do imputado, mas também da

prevenção geral, de sua própria manifestação e da sociedade que deseja conhecer, às vezes

com uma angustiosa impaciência, a verdade sobre um dado caso judicial.

Ocorre que interesses públicos circundam todo processo penal, até mesmo por uma

razão lógica: se em tempos de direito penal mínimo só são consideradas lesivas aquelas

condutas que atingem aos bens jurídicos mais caros à sociedade (GRECO, 2011, p. 35) e se

apenas será alvo de um processo penal pessoas sobre a qual incidem os elementos mínimos

probatórios de autoria e de materialidade do delito, então o futuro de todos aqueles que estão

4 Em certo ponto, é até mesmo incoerente falar em liberdade provisória, pois o que é provisória é a pena

aplicada pela prática de determinada conduta considerada lesiva a bens relevantes da sociedade (crime ou delito).

A liberdade necessita ser perene e a pena é que tem de ser provisória, sobretudo em um ordenamento jurídico

como o nosso, que rechaça a previsão de penas perpétuas. Assim, embora julguemos pouco acertada a expressão

liberdade provisória, fazemos uso dela por faltar, no presente instante, outra que transmita o sentido que dela se

extrai.

5 A obra de Bettiol intitulada O problema penal foi escrita nos idos de 1967 e naquele instante eram frequentes

as alterações tópicas no código penal.

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envolvidos num processo criminal e a marcha que esse processo seguirá, interessa,

sobremaneira, a todo o grupo social, lesado pela suposta prática daquele crime.

Nesse ponto, é verdade que interessa à sociedade o castigo, e um castigo rápido, para

aqueles porventura considerados culpados; mas é igualmente desejado por essa sociedade que

os inocentes sejam postos em liberdade. Até porque quando se condena um inocente, dois

fatos ocorrem no mundo jurídico e real: um condenado fica impune e a alguém, inobstante sua

inocência, será imputada uma sanção pelo delito supostamente cometido.

Da outra banda, quando se inocenta um condenado, embora seja postura rechaçada por

muitos, se há falar em prejuízo, ao menos tal prejuízo é único, isto é, configura-se em uma

única mazela: uma pessoa que cometeu uma conduta considerada típica, ilícita e culpável

restará impune. Todavia, é preferível inocentar um condenado, por falta de provas ou

elementos necessários, a condenar um inocente, afastando-o do convívio dos seus, e

timbrando-o com o estigma e rótulo indeléveis e tão peculiares do processo penal.

Em matéria de ação penal, Giuseppe Bettiol abomina a hipótese de ação penal privada,

pois alega que o processo penal não pode se tornar palco de vinganças pessoais, cenário para

discussões motivadas por paixões e rancores individuais. De fato, já vai longe o tempo em

que a persecução criminal era realizada pelas partes (o ofendido ou seus representantes) e a

justiça era feita com as próprias mãos. Não foi outra a razão para se equipar o Ministério

Público franqueando-lhe a possibilidade de atuação nos processos criminais, sempre em

defesa do interesse da sociedade. O representante do Ministério Público, por ser advogado

sem paixão (CALAMANDREI, 2000, p. 104), atua na tutela dos bens sociais e (ao menos

deveria) com razoabilidade, exercendo a função de dominus litis.

Acontece que o legislador, envolto nas opções de política criminal que lhes são

próprias, preocupou-se em estabelecer uma modalidade de ação pública que esteja submissa à

manifestação de vontade da vitima (ação penal publica condicionada) e uma outra para as

hipóteses em que a titularidade da ação seja da própria vitima (ação penal privada).

Assim, mesmo considerando os interesses públicos e o fato de o Ministério Público

permanecer como autor da ação, o legislador leva em consideração que existem espécies de

crime em que não interessa (tanto) à vítima a apuração do crime. Nesses casos, a mera

publicidade do fato criminoso havido contra si já traria inúmeros prejuízos (MENDONÇA,

2008, p. 194), consubstanciados nas mais diversas órbitas (profissional, psíquica, familiar,

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social, etc). Por essa razão, o legislador optou por deixar na esfera do interesse do ofendido a

decisão de levar (ou não) a questão à frente.

Justamente por isso, não haveria motivos para a manutenção da ação penal privada,

visto que o ordenamento já previu uma modalidade de ação que equilibra as duas tensões: a

necessidade de o Ministério Público figurar como dominus litis e a possibilidade de oitiva da

vítima (ou seus representantes) para averiguar se ela deseja (ou não) ver aquele determinado

processo seguir seu fluxo. Em nosso entender, duas seriam as hipóteses de melhor desfecho:

transformar a ação privada em ação penal pública condicionada à representação ou

extinguir o suposto delito do seleto rol incriminador, por se tratar de conduta que ofende

apenas bens privados, sem afetar bens jurídicos socialmente relevantes6.

Se a conduta não põe em risco bens jurídicos tão importantes à coletividade,

prejudicando interesses preponderantemente particulares (ou exclusivamente particulares),

mais correto seria retirar a titularidade da ação penal das mãos do Ministério Público (órgão

que representa a coletividade) a fim de colocá-la nas mãos da própria vítima, e fazê-la discutir

tal conduta em esferas que não a criminal. Isso porque, em verdade, essa conduta tipificada

como crime, não merecia estar inclusa no vergastado catálogo penal, devendo ser tratada por

outras searas jurídicas (civil, administrativa, tributária, etc)7.

Contudo, embora concordemos com muitos pontos abordados por Bettiol, não

festejamos todas as posições por ele ventiladas. Ele, por exemplo, refuta, com veemência, a

participação privada no palco do processo penal, abominando qualquer possibilidade de ação

penal privada. Apesar de criticarmos esta modalidade de ação, consideramo-na viável em uma

única hipótese: naqueles casos em que o Ministério público não ofereça a respectiva denúncia,

visto que nestes casos deveria poder a vítima e seus representantes legais, bater as portas do

Judiciário a fim de buscar a respectiva prestação jurisdicional. Essa a interpretação mais

lógica do art. 5º, LIX da Constituiçao Federal, ao dipor que será admitida ação privada nos

crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal. Logo, o ofendido poderia

6 Assim, se aquele fato social interessa a sociedade, deve ficar a titularidade sob a batuta do MP e esses crimes

poderiam estar sujeitos a uma ação penal pública condicionada, visto que estaria resolvido o problema: se

preservaria o interesse do ofendido e deixaria a titularidade nas mãos do próprio Estado, no caso o MP

representando a sociedade.

7 É justamente sob tal assoalho que se ampara a grande discussão acerca da agressão à honra de uma pessoa; se

ela deve permanecer no campo penal ou se apenas no ambiente civil, mormente na parte referente à

responsabilidade civil (a ensejar o ressarcimento do dano).

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ajuizar ação penal subsidiária da pública, nas hipóteses de inércia ministerial, ou ainda quando

o Parquet manifeste-se pelo arquivamento da denúncia.

Ao ofendido necessita ser resguardada a possibilidade de ver o delito do qual foi

vítima ser analisado perante o Poder Judiciário, e de atestar que o suposto indiciado pela

prática daquela conduta ilícita será responsabilizado pelos atos que atentaram contra a

disciplina legal e atingiram diretamente a vítima. É que o ofendido sempre foi o grande

esquecido do processo penal, tanto que, em tempos de justiça restaurativa (JESUS, 2011, p.

de internet), voltam-se os olhos para ele no sentido de minorar os traumas e sequelas havidas

com o crime e reparar, sempre que possível, aquilo que a conduta delituosa maculou.

(ALTAVILLA, 1957, p. 91)

Aliás, quando o Ministério Público acusa alguém e para tanto oferece a devida

denúncia, não está atuando em nome do ofendido e sim representando toda a sociedade,

atingida pela suposta prática de um delito. Longe de querer vingança, o Parquet pretende

alcançar a justiça; e no caso contreto pode pedir a absolvição sumária do indiciado e até

mesmo impetrar habeas corpus na defesa de algum indivíduo (MAZZILLI, 2001, p. 136).

Frise-se: o Ministério público necessita atuar com razoabilidade na defesa dos interesses da

sociedade e não necessariamente fazer sua as vontades da vítima ou dos seus representantes

legais, atrevés de atitudes muitas vezes sanguinárias; a ele cabe manejar o Direito e não o

chicote, ao menoscabo da verdadeira Justiça.

O instrumento de trabalho dos promotores e procuradores deve ser a balança da

razoabilidade. Nada obstante, muitos representantes do Parquet (e alguns magistrados) fazem

do tacape verdadeiro instrumento de trabalho e apenas se satisfazem quando conseguem o

encarceramento deste ou daquele indivíduo. Isto, em algumas situações, pode revelar uma

incoerência, pois de nada adianta o ordenamento jurídico ser inovado, a legislação se alterar e

a doutrina avançar, se os operadores do Direito (promotores, procuradores, advogados,

acadêmicos e magistrados) não mudarem sua postura e permaneceremm com olhos fincados

em institutos obsoletos e premissas anacrônicas (LEÃO, 2011, p. 71).

A reforma do processo penal é algo necessário. Mais do que isso: é de uma urgência

lancinante, até porque não se toleram mais reformas tópicas e alterações homeopáticas que,

embora tenham o objetivo de melhorar o sistema, tornando-o condizente com nossa realidade

constitucional, não se harmonizam com o código editado noutrora. É que essas alterações

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pontuais deixam cicatrizes; ficam sempre resquícios e incongruências daquele sistema misto,

que ainda não foi abolido em sua plenitude.

Ademais, há de ressaltar que existem momentos em que o mero remendo de algo

defeituoso não é suficiente para corrigir as falhas havidas. Nesses instantes, outra saída não

resta senão lançar fora o objeto a se reformar e envidar esforços para que seja alcançado um

novo objeto, apto a satisfazer as presentes necessidades.

Vivemos a angústia e perplexidade dessa hora: o código de processo penal que hoje

utilizamos esmorece dia após dia; as incoerências em seu texto são flagrantes e em tudo isso

há prejuízo, pois, apesar de muitos operadores atuarem com os olhos atentos, a messe é

enorme e sempre há aqueles que pestanejam às inovações, atuando com espeque em regras

que, embora válidas, mostram-se já ultrapassadas.

Daí, tão relevante quanto a mera inovação legislativa, torna-se imperisosa a mudança

comportamental dos operadores do direito, que necessitam abandonar o conforto de suas

premissas, desvencilhando-se de posturas vetustas e insustentáveis na dinâmica processual

penal contemporânea. E aqui, mais do que uma simples constatação, fica um apelo:

Mudemos!

Tanto que, se na Itália de 1967 o futuro do processo penal estava condicionado, tão

somente à consolidação da idéia democrática na vida política e à reforma penal, no Brasil

contemporâneo o futuro de nosso processo penal condiciona-se ao fortalecimento

democrático de nossa nação, mas também a uma reforma, não apenas do código penal, mas

do diploma adjetivo criminal. O êxito desse processo penal exige, também, a mudança de

mentalidade e postura por parte dos operadores do Direito, sobretudo, daqueles que figuram

como sujeitos na relação processual penal.

Entre nós, o sucesso do processo penal depende também da escorreita estruturação das

defensorias e do Ministério Público, o qual é parte do processo no sistema acusatório e como

tal há de ser tratado. Depende, igualmente, da inclusão da vítima e de seus representantes no

cenário da discussão processual, como forma de tentar reparar, sempre no máximo possível,

aquilo que dela foi subtraído com a prática do crime.

E, acima de tudo, depende de políticas públicas que consigam instrumentalizar as

penas quantificadas pelos magistrados e consignadas nas decisões judiciais, através de um

sistema penitencial adequado, seguro e propício ao desenvolvimento dos indivíduos que ali

estiverem, pois o simples fato de terem falhado no convívio social e de terem cometido uma

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conduta considerada delituosa, a ponto de serem declarados culpados pelo Estado-Juiz, não os

tornam menores que ser humano algum e tampouco desmantela sua dignidade de pessoa

humana, constitucionalmente garantida.

REFERÊNCIAS

ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária: personagens do processo penal. Tradução:

Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1957.

LEÃO, Gudson Barbalho do Nascimento Leão. O papel do juiz de garantias na

consolidação do sistema acusatório brasileiro. 2011. 399 f. Dissertação (Mestrado em

Direito) – Curso de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

2011.

BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a

construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Editora

Forum, 2012.

BETTIOL, Giuseppe. Instituições de Direito e Processo Penal. São Paulo: Editora Pilares,

2008.

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CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Processo penal: doutrina e prática.

Salvador: Editora Juspodivm, 2008.

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constitucionais. Niterói: Editora Impetus, 2010.

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______. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. Niterói: Editora

Impetus, 2011.

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Atlas,

2011.

MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria geral dos direitos fundamentais. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

MENDONÇA, Andrey Borges de. Reforma do Código de Processo Penal. São Paulo:

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PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo Rudge. Processo penal e democracia. São Paulo:

Editora Lumen Juris, 2008.

SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria

(constitucional) do processo penal. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2008.

TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, tecnologia, dromologia, garantismo.

Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo penal. São Paulo: Editora

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Recebido 11 out. 2012

Aceito 02 fev. 2013

RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL

Eugênio Carvalho Ribeiro1

Ulpiano dizia que onde está a sociedade, está o direito. O homem é um animal social,

sendo que todos dependemos de alguma atividade alheia para conseguir satisfazer nossas

necessidades.

A idéia de justiça remonta à Grécia. Os sofistas fizeram a separação entre o

pensamento racional e o pensamento de que tudo era obra divina. Desse ponto em diante,

percebeu-se que as leis eram fruto da vontade dos homens, não de Deus.

Depois dos sofistas, apareceu Sócrates. Para ele, justiça seria cumprir as leis.

Sócrates dizia que era preciso que os homens bons cumprissem as leis más, para que os

homens maus cumprissem as leis boas.

Já Platão, discípulo de Sócrates, dizia que justiça seria virtude. Essa virtude consistiria

em dar a cada um o papel social que lhe cabia, de acordo com suas aptidões e predisposições.

Institui-se o critério da meritocracia, ou seja, as pessoas teriam acesso aos cargos públicos de

acordo com seus méritos.

Aristóteles, por sua vez, dizia, também, que a justiça seria uma virtude, mas essa

virtude seria representada pelo equilíbrio, pelo meio-termo, evitando-se os extremos, daí a

imagem que temos até hoje de a justiça ser simbolizada por uma balança. Contudo, este

último pensador afirmava que a lei em si poderia ser injusta, já que fora pensada para ser

1 Advogado. Especialista em Direito Processual Civil. Concluinte da Escola da Magistratura do Rio Grande do

Norte (ESMARN) e da Fundação Escola Superior do Ministério Público (SEMST). Aprovado nos concursos de

analista judiciário – área judiciária do TRF (Tribunal Regional Federal) da 5ª Região; técnico judiciário do TRT

(Tribunal Regional do Trabalho) da 21ª Região; e analista – área administrativa do TRE (Tribunal Regional

Eleitoral) do Rio Grande do Norte. Aprovado nos concursos públicos de Promotor de Justiça do Rio Grande do

Norte e Sergipe.

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aplicada à coletividade das pessoas. Para fazer com que a lei fosse realmente justa, ele

sistematizou o instituto da equidade, que seria a justiça do caso concreto. A equidade é um

método de interpretação e integração da lei.

Em uma sociedade de homens livres, como vivemos atualmente, a liberdade escraviza

e a lei liberta. Parece um paradoxo, mas pode ser facilmente explicada. Se vivêssemos

totalmente livres, sem as amarras das leis, o homem voltaria a ser o lobo do homem. Para

exemplificar, poderíamos pensar nas garantias dos trabalhadores, como por exemplo o salário

mínimo. Se não houvesse lei garantindo esse direito, a maioria dos trabalhadores receberiam

salários ainda mais baixos, pois os empregadores se aproveitariam da situação de miséria da

população para impor salários cada vez menores, diante da necessidade dos empregados.

Vista a importância das leis, temos que pensar agora em como elas serão aplicadas,

melhor dizendo, como serão recebidas pela população. Seria melhor se tivéssemos menos leis,

mas com plena efetividade, do que termos uma imensa gama de comandos legais, sendo que

muitas delas ficam sem aplicação na prática.

Infelizmente, a opção feita pelos legisladores brasileiros foi a hiperinflação de leis. A

contrapartida disso é que há pouca efetividade, muitas leis são descumpridas e, na maioria dos

casos, o violador da lei não sofre sanção alguma. Isso causa descrença na população, que

passa a acreditar que também pode violar a lei e nada lhe ocorrerá.

Marcelo Neves, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco, introduziu a

ideia de constitucionalização simbólica, que se refere à discrepância entre a função

hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas

constitucionais.

Aquele autor desenvolveu o conceito de legislação simbólica, cujo conteúdo pode ser:

confirmar valores sociais; demonstrar a capacidade de ação do Estado e adiar a solução de

conflitos sociais através de compromissos dilatórios. Não cabe, neste artigo, discorrer sobre

esse tema específico, mas o que fica claro é que a constitucionalização simbólica é

extremamente perniciosa para o ordenamento jurídico, diante da grande quantidade de leis

sem eficácia.

Agora, passaremos aos aplicadores das leis. A lei, por si só, não tem validade

nenhuma. O Poder Legislativo legisla, o Poder Executivo executa as leis e, quando surge o

litígio, o Poder Judiciário é chamado para resolver a contenda. Diante de tão importante papel,

é vedado ao juiz deixar de julgar, é proibido o non liquet.

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Apesar de termos uma imensa quantidade de leis, elas não abrangem todos os fatos da

vida. A sociedade evolui, fazendo com que os operadores do direito façam interpretações

progressivas dos comandos legais existentes, procurando adaptá-los às transformações sociais.

Há uma frase popular interessante, que se refere indiretamente ao Poder Judiciário.

Essa frase diz: cada cabeça é uma sentença. Portanto, a ideia corrente entre a população é de

que um mesmo fato pode ser interpretado de forma diferente, de acordo com as concepções

particulares do magistrado.

Para interpretarmos uma lei, nos valemos da hermenêutica jurídica, aplicando a lei ao

caso concreto e buscando solucionar o conflito entre as partes. Peter Häberle nos fala sobre a

sociedade aberta dos intérpretes da constituição, uma interpretação pluralista e democrática,

feita por aqueles que se submeterão à norma, ou seja, a própria população. Assim, quanto

mais pluralista for a sociedade, mais aberto serão os critérios de interpretação. No direito

brasileiro, com relação a este tema, podemos destacar a figura do amicus curiae e das

audiências públicas.

Toda lei deve ser interpretada, por mais claro que pareça o seu conteúdo. Os

doutrinadores nos brindam com seus pensamentos acerca de alguma lei, suscitando dúvidas,

afirmativas, falhas ou evoluções. Contudo, embora o debate doutrinário, com

posicionamentos totalmente divergentes sobre um mesmo tema, seja salutar para o

melhoramento do conteúdo e alcance das leis, essa diversidade de interpretações é

extremamente prejudicial quando provém do Poder Judiciário.

É importante para a preservação da segurança jurídica e para a confiança no sistema

judiciário que as decisões para casos iguais sejam proferidas de maneira uniforme. Não é

razoável se admitir que casos semelhantes sejam resolvidos de maneira diversa, tendo como

única justificativa o fato de terem sido proferidos por outros juízos.

Os juízes, ao aplicarem as leis, precisam estar atentos aos escopos da jurisdição. A

jurisdição possui três escopos: jurídico, social e político.

O escopo jurídico nada mais é do que a aplicação do direito material, ou seja, é a

aplicação da lei ao caso concreto.

Por sua vez, o escopo social é subdividido em: 1 - pacificação social com justiça, que

significa que o conflito social deve ser resolvido de forma justa, para que acalme os ânimos

dos contendores, fazendo com que estes se conformem com a solução dada pelo juiz e 2 –

educacional, significando que o juiz, ao julgar, acaba por dizer como devem se comportar as

pessoas em geral, além de mostrar o caminho para a resolução de conflitos, ou seja, o violador

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do direito aprenderá que, se infringir a lei, sofrerá sanções e a população em geral aprenderá

como resolver o seu problema diante de um caso semelhante.

Por fim, o escopo político se subdivide em três: afirmação do poder estatal; culto às

liberdades públicas e participação dos jurisdicionados nos destinos da sociedade.

Quando estamos diante de uma divergência judicial, percebemos que o escopo da

jurisdição mais afetado é o social, na sua parte educacional, pois o leigo não consegue

entender como o mesmo problema foi solucionado de modo diverso.

É importante que se diga que as interpretações divergentes sempre estarão presentes.

Há de se observar que, por vezes, elas são imprescindíveis para o desenvolvimento do direito,

com novos pontos de vista sobre um mesmo fato. Contudo, é primordial que essas

divergências se concentrem no âmbito doutrinário. O jurisdicionado fica em situação de

indignação, diante de uma decisão absolutamente díspare de outra anterior proferida por outro

juízo sobre caso idêntico.

A atual Constituição Federal nos forneceu uma ampla gama de direitos e garantias,

tratando de diversos temas, das mais diversas áreas, o que fez Raul Machado Horta falar sobre

a natureza polifacética do texto constitucional, ou seja, a Constituição tem muitas faces. Esses

direitos e garantias devem ser aplicados e garantidos de forma uniforme à população em geral.

Se há o direito para uns, deve haver para todos, privilegiando-se o princípio da isonomia.

Para privilegiar o princípio da segurança jurídica, fazendo com que as decisões dos

Tribunais sejam uniformes para casos semelhantes, foi previsto, de forma expressa na

Constituição Federal de 1988, o instituto da reclamação.

A natureza singular do ser humano e a complexidade do mundo moderno constituem

fatores que, frequentemente, impingem resistência ao cumprimento das decisões judiciais.

Normalmente o descumprimento é solucionado pela aplicação de determinada coação ou

sanção dirigida ao indivíduo renitente. Também o Estado, enquanto parte de um litígio, por

vezes se insubordina a ordem judicial, empregando estratagemas diversos. Tal fenômeno se

dá no âmago do Poder Executivo e Legislativo, em relação aos atos passíveis de controle

jurisdicional, e também no cerne do próprio Poder Judiciário, fruto de juízes ou tribunais

insubordinados. Mas não parece razoável que as decisões judiciais possam ser descumpridas.

Muito menos que as decisões dos Tribunais possam ser descumpridas. Daí a utilidade da

reclamação.

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A reclamação é um instrumento posto à disposição das partes, para impor aos órgãos

judiciários e aos órgãos administrativos a observância do que foi decidido por Tribunal

Superior a cuja jurisdição deve respeito.

A origem desse instituto remonta à idéia da teoria dos poderes implícitos, utilizada

pela Suprema Corte Norte Americana, em que foi decidido que o Congresso Nacional daquele

país poderia imunizar o Banco Central dos tributos estaduais, mesmo diante da falta de

previsão expressa em sua Constituição. A decisão (embora referindo-se à sobreposição

administrativa), acabou sedimentando a idéia de sobreposição jurisdicional, um reforço à

autoridade exercida pela Supreme Court em relação aos demais tribunais.

No Brasil, de acordo com os ensinamentos de Pontes de Miranda, a reclamação foi

criada pela Justiça do Distrito Federal, sendo mais tarde incorporada pelo STF, quando fez

previsão expressa desse instituto no seu Regimento Interno de 1940, por meio da Emenda de

2 de outubro de 1957. O Regimento Interno deste Tribunal, de 1970, manteve a previsão da

reclamação, prevista em seus artigos 7º, I, alínea “h” e 161, e os artigos 85 a 88. Durante a

primeira parte do século XX foi aceita por construção jurisprudencial, tendo por parâmetro o

julgamento acima citada, proferido pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América,

baseado na teoria dos poderes implícitos.

Atualmente, está prevista em duas passagens da Constituição Federal. É encontrada,

primeiramente, no artigo 102, inciso I, alínea “l” da Constituição Federal de 1988, quando

trata da reclamação que é dirigida ao Supremo Tribunal Federal. Logo após, o artigo 105,

inciso I, alínea “f” do mesmo diploma legal, cuida da reclamação que é endereçada ao

Superior Tribunal de Justiça.

Além da previsão constitucional, há leis federais que tratam desse instrumento.

Podemos citar o Decreto-Lei número 1002 – Código de Processo Penal Militar, de 1969, onde

foi introduzida a reclamação no âmbito da Justiça Militar, prevista nos artigos 584 a 586.

Cumpre lembrar ainda a Lei 8.038, de 1990, que trata da reclamação no âmbito do Supremo

Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, prevista nos artigos 13 a 18.

Cumpre acrescentar que a nossa Corte Constitucional admite que este instituto seja

utilizado pelos Tribunais de Justiça Estaduais e pelos demais Tribunais Superiores. Esse

entendimento do STF surgiu com o julgamento do RE 405031, cujo relator foi o Ministro

Marco Aurélio, ocasião em que houve um expresso pronunciamento deste tribunal sobre o

instituto de que ora se trata. Nessa ocasião ficaram assentados os seguintes entendimentos:

com relação à reclamação no processo trabalhista, ou seja, de reclamação a ser julgada pelo

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Tribunal Superior do Trabalho, o Supremo entendeu que há necessidade desse instrumento

estar previsto em lei no sentido formal e material. De acordo com o relator, o Supremo já

admitiu a possibilidade de constituição estadual introduzir a reclamação com base no artigo

125, parágrafo 1º , da CF . No entanto, ele destacou que, em âmbito federal, cabe ao

Congresso Nacional dispor sobre a matéria. O que é rechaçado pelo STF é a possibilidade de

criação desse instrumento por meio de Regimento Interno do Tribunal.

Um tema que foi objeto de muita discussão foi a natureza jurídica da reclamação. Uns

diziam que se tratava de recurso, outros que era uma ação, alguns diziam que se tratava de

providência de caráter administrativo. O próprio Supremo Tribunal Federal tomava posições

divergentes, apontando em direções diversas a cada novo julgamento. Na ADI nº 2212, o STF

firmou o posicionamento de que a reclamação não é ação e nem recurso, pois não há autor e

não há réu, não há pedido, não há contestação, não havendo litígio. Para a Suprema Corte,

trata-se de procedimento destituído de litígio, cujo escopo é apenas possibilitar ao Tribunal a

defesa e manutenção de suas decisões. Em assim sendo, o STF firmou o entendimento de que

a reclamação possui a natureza jurídica de direito de petição, o que possibilita sua adoção em

nível estadual, pela Constituição local.

O entendimento que anteriormente prevalecia no Supremo Tribunal Federal era de que

a reclamação só podia ser ajuizada pelos legitimados ativos da ação direta de

inconstitucionalidade. Contudo, com o julgamento da questão de ordem na Reclamação 1.880,

em 07 de novembro de 2002, a Suprema Corte optou por um novo posicionamento,

declarando constitucional o parágrafo único do artigo 28 da Lei nº 9868, de 1999, passando a

considerar parte legítima para a propositura de reclamação todos aqueles que forem atingidos

por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido

em ação direta de inconstitucionalidade. Nesse julgamento, foi reconhecida a legitimidade

ativa a todos que comprovem prejuízo oriundo de decisões dos órgãos do Poder Judiciário,

bem como da Administração Pública de todos os níveis, contrárias ao julgado do Tribunal.

É oportuno se falar que o Supremo Tribunal Federal pode editar Súmula Vinculante.

Tal súmula vincula os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, seja ela direta

ou indireta, de qualquer esfera de governo. Só não vincula o próprio STF nem o Poder

Legislativo, sob pena de fossilização da Constituição.

Conforme previsão expressa do artigo 103-A, parágrafo 3º da Constituição Federal de

1988, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, do ato administrativo ou

decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá

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reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato

administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que oura seja proferida

com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.

Sendo assim, qualquer decisão do Supremo Tribunal Federal que possua efeito

vinculante, seja ela, por exemplo, uma ação direta de inconstitucionalidade, uma arguição de

descumprimento de preceito fundamental ou mesmo uma súmula vinculante, será cabível a

utilização da reclamação. A reclamação é a garantia do efeito vinculante, pois permite a parte

interessada fazer valer a decisão do STF.

O STF entendeu plenamente possível o manejo de reclamação constitucional por

estado estrangeiro. Deve-se, portanto, proceder a uma ampliação do conceito de parte

interessada (art. 13 da Lei 8038/90) para abranger todos os sujeitos que comprovem prejuízo

oriundo de violação da jurisprudência dos tribunais superiores.

A reclamação só é admissível para três fins - assegurar a integridade da competência

do Supremo Tribunal, assegurar a autoridade dos seus julgados e para garantir a correta

aplicação de enunciado de súmula vinculante pelos órgãos jurisdicionais e administrativos –

os atos judiciais serão cassados e os administrativos anulados. Para a consecução desses fins,

poderá o Supremo tribunal avocar o processo onde se esteja verificando a usurpação da sua

competência ou o desrespeito do seu julgado, compreendida na hipótese de usurpação a

demora injustificada da remessa de recursos para ele interpostos.

Isso cria uma situação inusitada e bastante curiosa no direito brasileiro. Como foi

prevista a vinculação de órgãos administrativos às decisões da Suprema Corte, tornou-se

possível, por exemplo, que se impetre uma reclamação perante nossa Corte Constitucional,

para que um governador faça determinado ato administrativo em conformidade com o que foi

decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

Ao falar sobre a preservação da competência, engloba-se a civil e criminal, recursal ou

originária. Contudo, merece registro o fato de se relacionar somente à competência absoluta,

pois esta é a competência dos tribunais. Sendo assim, a competência relativa não comporta

controle pela via da reclamação.

Ressalte-se que quando se fala em resguardar a competência do tribunal, fala-se

especificamente da competência jurisdicional, de modo que a sua possível violação somente

pode partir de autoridade judiciária. Não há como um órgão não-jurisdicional pretender

usurpar a competência de órgão jurisdicional (nesse sentido: Rcl-QO nº 2066, rel. Min.

Sydney Sanches, j. 19/08/2002).

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Já se admitiu reclamação contra ato do Ministério Público, que se negara a cumprir

decisão do STF (Rcl. N. 1047, rel. Min. Sidney Sanches, j. 02/09/1999). Porém, não pode

haver a utilização indiscriminada da reclamação, pois há que se respeitar os recursos cabíveis

contra determinada decisão judicial. O STF entendeu ser incabível o uso da reclamação,

quando cabível Habeas Corpus ou Mandado de Segurança (Rcl. n. 173, rel. Min. Mário

Guimarães, j. 20/06/1953).

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça são chamados Cortes de

Superposição, porque suas decisões de mérito prevalecem em confronto com Acórdãos dos

tribunais inferiores, e mesmo sobre as decisões das cortes superiores quando a decisão

divergir do entendimento sobre interpretação direta da Constituição Federal de lei federal.

Se o juiz monocrático, ou mesmo o tribunal de origem, não acatar a parte dispositiva

do Acórdão prolatado pelo STF ou STJ, caberá a Reclamação Constitucional para a

preservação da autoridade da decisão destes últimos, conforme preceituam o art. 102, I, l e

105, I, f da Constituição Federal.

No que se refere à garantia da autoridade dos julgados, a ofensa ocorrerá nas hipóteses

de resistência à execução de seus julgados, ou na decisão que determine a execução de um

julgado de maneira diversa daquela determinada pelo tribunal. Contudo, não cabe reclamação

da decisão que contrarie orientação jurisprudencial dominante do tribunal, devendo a parte

utilizar o recurso cabível. A decisão, porém, deve ser de mérito, pois se o tribunal não se

pronunciou sobre o mérito da ação, não há autoridade a ser preservada (Rcl. n. 219, rel. Min.

Moreira Alves, j. 29/04/1987).

A recorribilidade da decisão não afasta o cabimento da reclamação e a hipótese de

usurpação de competência é exemplo claro disso, pois nela persiste, além da violação do

dispositivo constitucional de forma direta, a invasão da competência. A Lei 11.417/2006

assentou expressamente que a reclamação pode ser ajuizada “sem prejuízo dos recursos

cabíveis”, de modo que não mais se sustentam os posicionamentos que deixam de apreciar a

reclamação com base na (in) existência de recurso concomitante, ou mesmo trânsito em

julgado.

O descumprimento pressupõe ainda a identidade, não apenas de causas, partes e

pedido, mas também da causa de pedir. A existência de fato novo ou lei nova incidente sobre

fato prejudica a análise da reclamação, ficando a desobediência restrita ao que já foi decidido.

A demora no cumprimento das decisões das cortes superiores também dá ensejo a reclamação

por desacato (Recl. 50/63 STJ).

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Tanto STJ quanto STF sedimentaram o entendimento de que o destrancamento de

Recurso Extraordinário ou Recurso Especial não pode ser objeto de Reclamação, quanto ao

juízo de admissibilidade recursal, questão que deve ser suscitada em Agravo de Instrumento,

conforme art. 144 do CPC.

Não há necessidade de que haja processo judicial em trâmite para o cabimento da

reclamação por usurpação de competência. A reclamação pode, p.ex., fulminar a instauração

de inquérito para investigação de autoridade com foro privilegiado perante as Cortes

Superiores.

É cabível reclamação não só contra ato judicial que desobedeça a decisão do STF em

processo subjetivo, mas também a decisão prolatada em sede de Ação Direta de

Inconstitucionalidade ou Ação Declaratória de Constitucionalidade, definitiva ou liminar, seja

de procedência ou improcedência, cabendo ainda do que decidido em Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental.

Por último, caberá reclamação para assegurar a aplicação do comando de súmula

vinculante, quando esta deixar de ser aplicada quando seria o caso de aplicá-la, bem como

quando ela foi aplicada quando for o caso de não aplicá-la. Desta forma, caberá a reclamação

para corrigir o desrespeito frontal ao enunciado de súmula vinculante pelos seus destinatários,

bem como o desvio desarrazoado de interpretação.

A adoção da súmula vinculante foi alvo de intensa polêmica. A reforma do judiciário

preconizada na Emenda Constitucional n° 45/04 acabou erigindo o instituto à seguinte

redação: “Art. 103-A, §3°. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação,

mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria

constitucional, aprovar súmula vinculante que, a partir de sua publicação na imprensa oficial,

terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração

pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua

revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”

O efeito vinculante significa que todos os órgãos do Poder Executivo e do Poder

Judiciário ficam jungidos à decisão do entendimento, exceto o próprio Supremo Tribunal

Federal e o Poder Legislativo.

O desrespeito à súmula vinculante ou a dúvida decorrente de sua interpretação (art. 7°

da Lei 11.417/06) gera direito subjetivo à Reclamação Constitucional, podendo redundar na

anulação do ato administrativo ou cassação da decisão judicial reclamada, com determinação

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para que outra seja proferida em seu lugar, com ou sem aplicação da súmula (art. 103-A, §3°,

CF).

A reclamação permanece incabível para impor o cumprimento de jurisprudência ou

súmula sem efeito vinculante, pois é vedado ao STF decidir questão que não tenha percorrido

todas as instâncias ordinárias. O ataque em abstrato da súmula vinculante, ou seja, no intuito

de removê-la do ordenamento jurídico, não será objeto da reclamação, mas de incidente

específico promovido nos termos da Lei 11.417/06.

A Emenda Constitucional n° 03, de 17 de março de 1993 alterou a redação do art. 102

da Constituição Federal, imprimindo efeito vinculante às decisões definitivas de mérito,

proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações declaratórias de constitucionalidade de

lei ou ato normativo federal. Foi o início do efeito vinculante em nosso sistema constitucional.

A EC n° 45, de 30 de dezembro de 2004, ampliou o efeito para as ações diretas de

inconstitucionalidade.

Considerando a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões proferidas em

controle concentrado, haveria a possibilidade de impetração da Reclamação Constitucional

para fazer valer tais pronunciamentos em processos subjetivos, de partes diversas das

originalmente figurantes no processo objetivo.

O Supremo Tribunal Federal já admitiu a reclamação, para o Superior Tribunal de

Justiça, contra ato de Turma Recursal de Juizado Estadual, para fazer prevalecer, até a criação

da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do STJ na

interpretação da legislação infraconstitucional. Objetivou-se, com isso, evitar a existência

dentro do sistema jurídico pátrio de decisões divergentes do entendimento adotado pelo STJ,

bem como a coexistência de decisões contraditórias no âmbito dos juizados especiais

estaduais.

Em observância a esse entendimento, o STJ editou a Resolução n. 12, de 14 de

dezembro de 2009, que disciplina a apresentação de reclamação a este tribunal, quando existir

divergência entre as decisões de turma recursal estadual e a sua jurisprudência. O prazo para

oferecimento da aludida reclamação é de 15 dias, contados da ciência da decisão impugnada,

e sua admissibilidade não depende da realização de preparo.

Os legitimados ativos para ajuizarem a reclamação são o órgão do Ministério Público

e qualquer interessado, parte ou terceiro, que tenha interesse na causa. Hoje, prevalece o

entendimento de que todos aqueles que forem atingidos por decisões contrárias ao

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entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido em ação direta de

inconstitucionalidade, sejam considerados parte legítima para a propositura da reclamação.

Já os legitimados passivos podem ser qualquer pessoa, órgão ou ente, que descumpra

decisão do tribunal. Quando houver usurpação de competência do tribunal, o sujeito passivo

deve ser necessariamente órgão jurisdicional.

A competência para julgar a reclamação é determinada pelo órgão prolator da decisão

cuja autoridade de pretende garantir, ou que tenha tido a sua competência usurpada pelo órgão

judicial inferior.

A petição inicial deverá preencher os requisitos do art. 282, do CPC, sendo instruída

com as provas documentais que o autor entender necessárias, não se admitindo a produção de

provas no curso do processo. É importante registrar que quando a decisão descumprida tiver

sido prolatada em sede de controle abstrato de constitucionalidade, ainda que se trate de

medida liminar, a juntada da decisão cuja autoridade se quer preservar é desnecessária.

A petição será endereçada ao Presidente do Tribunal, que mandará autuá-la e a

encaminhará à distribuição. Ao despachar a petição inicial, o relator requisitará informações

da autoridade reclamada, que as prestará no prazo de 10 dias. Quando não for parte, o órgão

do Ministério Público terá vistas por cinco dias, quando exaurido o prazo para informações.

No STF o julgamento final competirá ao Plenário (art.6°, I, g, RISTF), no STJ à Corte

Especial (art. 11, X, RISTJ). Em ambos haverá prioridade de julgamento (art. 145, VIII

RISTF e art. 173, IV RISTJ), e se o relator estiver licenciado por mais de 30 (trinta) dias,

proceder-se-á a redistribuição da reclamação, desde que haja requerimento do interessado

(art.68 RISTF e 72, I RISTJ). O julgamento será feito pelo Plenário do Tribunal, quando a

reclamação se referir a competência originária do próprio Plenário ou garantir a autoridade de

suas decisões plenárias e pela Turma, nos demais casos. Permite-se ao relator julgá-la, quando

a matéria em questão for objeto de jurisprudência consolidada na Corte.

A reclamação no STF estará sujeita ao preparo perante a Secretaria, no prazo de 10

(dez) dias (art. 59 RISTF), salvo nas hipóteses de isenção, como nos casos de reclamação

interpostas pelo Procurador-Geral da República. Também no STJ haverá a necessidade do

preparo, em regra.

Julgando procedente a reclamação, o tribunal irá avocar o conhecimento do processo,

se for o caso de usurpação de competência, ou ordenará que lhe sejam remetidos os autos do

recurso para ele interposto; pode ainda cassar a decisão exorbitante de seu julgado ou

determinar medida adequada à observância de sua jurisdição.

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Quando a reclamação for fundada em violação de enunciado de súmula vinculante,

anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra

seja proferida com ou sem aplicação da súmula.

Quando a violação da súmula vinculante tiver origem em órgão da administração, o

tribunal dará ciência à autoridade prolatora da decisão e ao órgão competente para o

julgamento do recurso, que deverão adequar as futuras decisões administrativas em casos

semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e

criminal.

Proferida a decisão, o Presidente do Tribunal ou da Turma determinará o imediato

cumprimento da decisão, lavando-se o acórdão posteriormente.

Da decisão da reclamação, caberá embargos de declaração e, sendo a decisão

monocrática, caberá agravo regimental. Quando o julgamento da reclamação couber a outro

tribunal, caberá, ainda, Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal e também

Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça. Não são cabíveis embargos

infringentes, por falta de previsão legal.

Em conclusão, percebe-se a enorme utilidade da Reclamação no nosso ordenamento

jurídico. Enquanto a divergência doutrinária é saudável, fazendo com que haja uma

oxigenação das ideias e soluções de conflitos, a divergência jurisprudencial há de ser

combatida. Não significa isso que a interpretação das leis não possa sofrer alterações,

significa apenas que uma pessoa deve ter o mesmo direito reconhecido a uma outra com o

mesmo problema submetido ao Estado-juiz, em épocas semelhantes.

É de causar estranheza ver um direito assegurado a uma parte e negado a outra,

derivado de uma mesma situação fática, tendo como única causa de divergência das decisões

o fato de terem sido submetidas a julgadores diferentes.

Enfim, a Reclamação privilegia o princípio da isonomia, além de estar diretamente

relacionado ao princípio da celeridade, pois permite o acesso imediato aos Tribunais de

Superposição para a solução de um litígio que demoraria anos para ter um pronunciamento

judicial definitivo.

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Recebido 05 mar. 2013

Aceito 12 abr. 2013

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS SEUS SUBPRINCÍPIOS

Sâmia Larissa Dias Barros1

Orientadora: Professora Yara Maria Pereira Gurgel

RESUMO

O presente artigo tem por escopo analisar a dignidade da pessoa

humana, valor intrínseco a todos os seres humanos, desde o momento

de sua concepção, até a morte, sob o enfoque de quatro dos seus

subprincípios: liberdade, igualdade, solidariedade e integridade

psicofísica. Como ponto de partida, analisa-se o contexto histórico

global para, em seguida, atribuir à Constituição de 1988 o papel de

proteção da dignidade humana no plano do Direito nacional e

internacional.

Palavras-chave: Dignidade. Subprincípios. Direito. Nacional.

Internacional

1 INTRODUÇÃO

Dignidade, palavra polissêmica. Qualquer capacidade de conceituação será vista

como uma tendência uniforme de compreensão. Por isso, o presente trabalho oferece uma

percepção sistêmica, contemporânea e ocidentalizada, sem olvidar o contexto internacional,

em que o homem ocupa o centro do ordenamento jurídico, como fonte e finalidade da Carta

de 1988.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista da CAPES no programa

“Jovens Talentos para a Ciência”.

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Para tais afirmações, a lei, doutrina e jurisprudência serão utilizadas para garantir a

ordenação axiológica e teleológica dessa cláusula pétrea, no auxílio à interpretação das

normas constitucionais e de todo ordenamento jurídico, atuando como reforço argumentativo

nas situações em conflito.

Nesse ínterim, estende-se a centralidade aos fatores relativos à preservação da

dignidade do homem, em destaque para análise dos princípios: liberdade, igualdade,

solidariedade e integridade psicofísica, respectivamente. Sobretudo, atenta-se para o fato de

que, não só o caráter individual, mas, majoritariamente, a realidade social será adotada como

alicerce na consideração do quem vem a ser um ato valorativamente digno para o ser humano.

Em sequência, procura-se demonstrar a relação entre o Direito brasileiro e o Direito

internacional sob o enfoque de proteção dos direitos humanos, no destaque,

impreterivelmente, a influência entre nações no fomento à máxima da salvaguarda à

dignidade dos cidadãos.

2 ESCORÇO HISTÓRICO

“Os direitos do homem são direitos históricos que nascem e se modificam de acordo

com as condições históricas e com o contexto social, político e jurídico em que se inserem.”

(BOBBIO, 1992, p. 5). Por isso, desde séculos, diversificadas concepções metodológicas

conferem considerações ao princípio da dignidade.

No plano religioso, fundamento da cultura e da preservação da lei moral, “foi o

cristianismo que, pela primeira vez, concebeu a ideia de uma dignidade pessoal, atribuída a

cada indivíduo”. (MORAES, 2003, p. 112).

Nesse pensamento, o cristianismo formatou a cultura Ocidental: a dignidade reside

na alma de cada homem, que, descrente em Deus, demonstra-se inviável a exercer suas

liberdades, sem ferir o ideal de respeito ao próximo.

Já com os expoentes filosóficos do Século das luzes, rompe-se, gradativamente, o

vínculo da centralidade em Deus para ocupar, em seu lugar, o homem, dentro dos padrões da

ética humanista.

Nada obstante, no século XIX, a situação agrega caráter político. O Estado, todavia,

na medida em que tem o seu poder limitado, organiza os direitos, garantias e deveres dos

cidadãos, conferindo-lhes liberdade individual. Os valores, então, conduzem não apenas o

poder estatal, mas, também, a proteção aos indivíduos.

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No entanto, somente no século XX a dignidade da pessoa humana entra na pauta de

discussão dos ordenamentos jurídicos. As primeiras Constituições a adotarem-na como

fundamento dos direitos humanos foram a do México de 1917 e da Alemanha de 1919.

(BONAVIDES, 2011).

Em particular, após a Segunda Guerra Mundial, com a carta da ONU (1945) e

consagração da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), esse princípio integra

os tratados internacionais e os mandamentos legais de posicionadas nações. Em reação,

portanto,aos atos atentatórios contra a humanidade, prevalecentes nos anos de dominação dos

regimes totalitários, no intuito de reformar as constituições e assegurar a integridade humana.

Importa salientar, dessa forma, a Constituição italiana de 19472, Alemã de 1949

3 (Lei

fundamental de Bonn), portuguesa de 19764e espanhola de 1978

5. Todas influenciaram

Constituições de diversos países com prestações à devida salvaguarda da integridade física,

psicológica e mental do homem. (MORAES, 2003, p. 116-117)

Desse modo, inspiraram, ainda, a transposição da justificativa moral e normativa dos

direitos fundamentais com carga axiológica consagrada na preservação da dignidade da

pessoa humana, para a consagração da Constituição brasileira de 1988. A primeira, do

ordenamento jurídico brasileiro, a consagrar o princípio as dignidade da pessoa humana como

cláusula pétrea, fonte, fundamento e a elevá-lo na dogmática da democracia internacional dos

Direitos Humanos.

3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Somente a união entre a Constituição e a justiça escreve a evolução do Direito, a

sobrevivência a gerações. (BONAVIDES, 2011). Assim, a pretensão de eficácia da relação

norma-realidade constrói a ideia de sociedade ordenada, atrelada à ética, que concebe a

pluralidade humana sob a ótica do respeito, como germe material da constituição. Por isso, a

dignidade da pessoa humana não pode ser fixada a único conceito, caso contrário, caminhará

de encontro à construção da diversidade de valores sociais.

2 “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei”

3 “A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os poderes estatais”

4 “Portugal é uma República soberana, baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa humana e na

vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária’’ 5 “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade,

o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social”

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A propósito, a dignidade estende-se a todos os seres humanos, até mesmo aos que

cometem atitudes levianas. Para tal, afirma-se: “pode (e deve) ser reconhecida, respeitada,

promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada,

concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como

algo que lhe é inerente.” (SARLET, 2006, p. 42). Adquirida, assim, “antes do nascimento do

homem e perpetua até a sua morte”. (NOVAES, 2011, p. 59).

Destarte, atribui-se ao então princípio o “valor moral legitimador da força normativa

da Constituição”. (NOVAIS, 2011, p.51). É nesse sentido, portanto, que se manifesta a

concepção de dignidade como “limite e tarefa dos poderes estatais”. (SARLET, 2006, p. 47).

Sobretudo, sustenta-se a ideia de uma dúplice dimensão da dignidade: defensiva e

prestacional. Naquela o indivíduo se considera em pleno exercício parcial, ou totalmente, de

manter suas necessidades existenciais básicas e, por isso, exige o afastamento do Estado

frente às suas liberdades. Já nesta, introduz-se a concepção de um Estado provedor dos

direitos sociais, bem-estar da comunidade, que subsidia os setores da economia, distribui a

renda, estabiliza os preços, mantém a taxa de emprego, investe nos setores educação e saúde,

quando ineficiente a autodeterminação do homem. Tais direitos fundamentais, por outro lado,

não surgem para assegurar a dignidade, mas, sim, para criar as condições de sua prestação,

seja na ausência ou atuação estatal. (SARLET, 2006).

Nessa qualidade, o princípio da dignidade concebe juridicamente ao homem o

parâmetro de fundamento e fim da sociedade e do Estado. (MIRANDA, 2002). Como se

observa, a fonte jurídico-positiva é erigida como princípio-matriz da Constituição de 1988, de

modo a influenciar a interpretação das normas e garantir o desenvolvimento da personalidade

de qualquer pessoa humana, até mesmo àquele que não respeita o seu semelhante e comete

atos ilícitos. Conforme alude o Superior Tribunal de Justiça:

asseverou-se que a transferência de condenado não sujeito a regime aberto para

cumprimento da pena em regime domiciliar é medida excepcional, que se apóia no

postulado da dignidade da pessoa humana, o qual representa, considerada a

centralidade desse princípio essencial, significativo vetor interpretativo, verdadeiro

valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente no

país e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta a

ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional

positivo[...]mediante perícia idônea, a impossibilidade de assistência e tratamento

médicos adequados no estabelecimento penitenciário.6

6STJ, RHC 94358/SC, 2° T., rel. Min. Celso de Mello, j. 29.4.2008, DJU 09.05.2008.

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Dessa forma, a dignidade denomina-se como “postulado-guia para orientar a

hermenêutica teleológica da Constituição”. (PIOVESAN, 2012, p. 83). Perceptível, sobretudo,

na abordagem do julgamento dos direitos fundamentais, em que a dignidade da pessoa

humana far-se-á presente, com o propósito de fornecer suporte e inclinar a decisão para a

tutela da preservação dos princípios da igualdade, liberdade, solidariedade e integridade

psicofísica do indivíduo.

3.1 Liberdade

Na classificação sobre os direitos fundamentais, a primeira geração, século XVIII,

enfatiza os direitos civis e políticos, na necessidade de se impor limites e controle aos atos

abusivos praticados pelo Estado absolutista. Com efeito, sobrepuja o destaque ao direito à

liberdade individual no plano jurídico. (BONAVIDES, 2011). Um pouco mais além, propõe-

se o conceito: “liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios

necessários à realização da felicidade pessoal.” (SILVA, 2011, p. 233).

Posteriormente, a História revela o progresso dessas atividades humanas na medida

em que passam a influenciar positivamente outros mandamentos. Em destaque, a Constituição

da República Federativa Brasileira: incorpora os direitos de liberdade como princípio inerente

à personalidade do homem, uma “das exigências da dignidade da pessoa humana”. (SARLET,

2006, p.46).

Nesse âmbito, sob a tutela jurídica do princípio da legalidade (CF, art. 5°, II), a

liberdade individual se vê limitada ao comando de agir em conformidade com a lei, no intuito

de permitir o livre arbítrio do homem, desde que suas atitudes estejam subordinadas ao

respeito para com os direitos alheios, sem o aviltamento da dignidade humana.

No entanto, a ideia de tolerância e respeito não deve ser entendida, somente, no

manto das relações intersubjetivas, mas, também, entre o cidadão e o Estado. Para tanto, o

desenvolvimento de uma nação nos planos econômico, social e político, só se torna

possível quando há a consideração da liberdade individual e das condições básicas que a

mantém. (SEN, 2000).

Impreterivelmente, a fome, sede, ausência de moradia, insegurança no ambiente

laboral, o não acesso à escola, têm a previsão de negar a liberdade de sobreviver. Por isso, o

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Estado deve ser pensado para agir como fomentador das políticas públicas sociais, assegurado

pela força normativa da Constituição Federal, em atenção ao artigo 6º.7

Caso contrário, situações exploradoras da dignidade humana, como a existência do

trabalho infantil, tenderão a sua manutenção e perpetuidade. (SEN, 2000). Isso se dá, em

grande parte dos casos, ao fato de que famílias sem estrutura econômica suficiente para

assegurar a liberdade de sobrevivência de seus entes utilizam a prole para incrementar a

renda.

Desse modo, rompe-se a liberdade de uma criança, no processo inicial de formação

da mentalidade crítica, de desfrutar da oportunidade à educação, pois, quase sempre, a

ausência de maturidade e o elevado cargo de responsabilidade, resultam em precários índices

de rendimento escolar.

Nesse caso, a divisão do tempo entre a escola e o trabalho instiga a evasão que,

futuramente, marca a desqualificação para o mercado de trabalho, o crescimento do

subemprego, desemprego e a continuidade do ciclo da pobreza: fonte de privação das

liberdades. Para tanto, precisa-se, além de reconhecer a igualdade formal, de que todos, sem

distinção de valor, devem ter acesso à educação, convém garantir a igualdade material, a qual

admite o intermédio de ações afirmativas na tentativa de igualar os desiguais. Como exemplo,

o auxílio financeiro às famílias hipossuficientes que ingressarem os seus filhos na rede

pública de escolas.

Sob os aspectos em questão, “a liberação do homem de todos esses obstáculos”

aviltantes da sua personalidade é função do Estado, que atua como instrumento de mitigação

das pressões econômicas, políticas e naturais. (SILVA, 2011, p. 234-235). Por isso, a

necessidade de um regime político democrático capaz de oferecer ao homem o

desprendimento dos óbices que restringem as formas de liberdade e a sua expansão, no

contexto de propiciar a felicidade do ser, conforme as seguintes classificações: liberdade de

locomoção, pensamento, expressão coletiva, ação profissional, conteúdo econômico e social.

Assim, entrelaçam-se as liberdades civis e políticas, responsáveis por mitigar a

repressão às liberdades individuais. Porque, “ter mais liberdade melhora o potencial das

pessoas para cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo, questões centrais para o

processo de desenvolvimento.” (SEN, 2000, p. 33).

7“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta

Constituição.”

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Doravante, assegurada pela Constituição brasileira como princípio de preservação da

dignidade da pessoa humana, permite a expansão do pensamento individual, “o olhar para

enxergar o outro”, na medida em que as pessoas tornam-se capazes de externar a sua religião,

nacionalidade, tendência sexual, filosofia de vida e, assim, entender a cultura alheia. No

intuito de enriquecer as suas concepções a partir do respeito às liberdades individuais. Pois, “a

recusa do etnocentrismo é um esforço da civilização”. (ALMEIDA; BITTAR, 2011, p. 685-

686).

Logo, convém enfatizar: a “liberdade humana não é ilimitada”. (ALEXY, 2011, p.

357). A autonomia de realizar escolhas pode encontrar normas de eficácia contida, no sentido

de promover a restrição da liberdade individual, na tentativa de estender o bem-estar coletivo.

(SILVA, 2011). Por exemplo, a norma constitucional que priva a utilização de armas, a

frustação de uma reunião anterior e exige aviso prévio à autoridade competente, quando uma

reunião em lugar público for promovida (CF, art.5º, XVI).

Isso se deve à vinculação sistemática de todos os indivíduos residentes na sociedade:

a liberdade torna-se restringível na presença de direitos de terceiros, em prol da harmonia e

ordem. Sem desconsiderar, também, a autonomia humana de realizar escolhas.

Diante do exposto, o destaque dos direitos defendidos na Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão de 1789 alicerça o porquê dessa limitação: “A liberdade consiste em

poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de

cada homem não encontra outros limites além daqueles que asseguram aos outros membros da

sociedade os mesmos direitos”.

3.2 Igualdade

No século XX, pós-guerra, os direitos fundamentais de segunda geração introduzem

a concepção de um Estado provedor do bem-estar da comunidade, prestacionista. Tudo isso,

salvaguardado pelo ideal de liberdade e, nessa fase do constitucionalismo, igualdade, pois: “a

liberdade e a igualdade do dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir;

não são uma existência, mas uma valor; não são um ser, mas um dever ser.”(BOBBIO, 1992,

p. 29).

Diante do caso, o princípio da igualdade fora introduzido no ordenamento jurídico

brasileiro para regular a sociedade e as relações entre os seus membros, com o foco voltado

para a equidade e justiça. Por isso,“não há como pensar em liberdade de desenvolvimento do

ser humano, [...], sem pensar na igualdade de oportunidades e na conseqüente inclusão

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social”. (GURGEL, 2010, p.34). Há, portanto, o valor natural humano da titularidade de

direitos iguais.

Destarte, a Constituição Federal revela ao cidadão a premissa da igualdade formal,

todos são iguais perante a lei, sem distinção, com tendência à neutralidade, conforme o artigo

5º. Essa concepção do princípio de modo linear retira o substrato material da dignidade e

favorece a ascensão das diferenças sociais, visto que os grupos minoritários precisam de

maior atenção do governo para com o apoio das políticas assistencialistas. (GURGEL, 2010).

No mesmo mérito, a igualdade não deve ser fática, concebida para tratar os homens

de maneira equitativa, em todos os aspectos. (ALEXY, 2011). Então, é com esse ponto de

vista que o Estado desperta para a ideia de igualdade na lei não se adequar à realidade social

brasileira: atrelada a um índice histórico de concentração de renda, terra e poder concomitante

ao mascaramento e à acentuação do número de pessoas marginalizadas sócio-político e

economicamente.

Em virtude da temática, resulta a mudança de mentalidade estatal na promoção de

dispositivos axiológicos e teleológicos, em favor do hipossuficiente, sobretudo, baseada nos

Direitos Sociais. Atenta, indubitavelmente, à necessidade de transcender a igualdade formal,

sempre na garantia do respeito e não discriminação às diversidades, para atingir a forma de

igualdade substancial no plano normativo, sob a fórmula clássica: “o igual deve ser tratado

igualmente; o desigual, desigualmente.” (ALEXY, 2011, p. 397). “Seja no plano das

concepções de vida (concepções culturais, filosóficas, religiosas), seja no plano dos

comportamentos (usos, costumes, tradições)”. (MORAES, 2003, p. 125).

Por sua vez, pode-se inferir que o critério de tratamento encontra o seu alicerce na

medida da desigualdade. Não convém oferecer o mesmo patamar para pessoas que são

diferentes. Contudo, não é qualquer diferença que pode ensejar em uma diferenciação no

tratamento pelo Estado, ou nas relações intersubjetivas. Assim sendo, a demarcação da busca

pela igualdade material, na Constituição Cidadã, faz-se necessária para consolidar o Estado

Democrático de Direito, livre de discriminações.

Logo, convém destacar, para fins de suporte dos iguais direitos na diferença, a

proteção ao grupo vulnerável das mulheres. No Brasil do século XXI, tem-se a garantia da

proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos (CF, art. 7°,

XX); a providência do direito de repouso da gestante, sem prejuízo de seu trabalho (CF, art.

7°, XVIII); a aposentadoria da mulher com menor tempo de contribuição (CF, art. 40).

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Nesse mérito, para entender melhor o funcionamento do ordenamento jurídico

brasileiro, calcado no princípio da dignidade da pessoa humana e atrelado ao direito à

igualdade, os exemplos tomados servem para realçar a seguinte concepção:

Os Estados-Partes têm o dever de eliminar a discriminação contra a mulher através

da adoção de medidas legais, políticas e programáticas. Essas obrigações se aplicam

a todas as esferas da vida, a pública e a privada, e incluem o dever de promover

todas as medidas apropriadas no sentido de eliminar a discriminação contra a mulher

praticada por qualquer pessoa, organização, empresa e pelo próprio Estado.

(PIMENTEL, 2010, p. 307).

Todavia, diante de uma série de fatores que conduzem à condição de igualdade entre

homens e mulheres, a alfabetização destaca-se como a base para a consolidação de tal

princípio. (PIMENTEL, 2010, p. 307). Pois, como dimensão do direito à educação,

condiciona a mentalidade humana a pensar criticamente, almejar o desenvolvimento de uma

sociedade livre, sem pessoas submetidas a condições insalubres e precárias de trabalho,

alimento, enfim, necessitando do mínimo existencial.

Além de prover responsabilidade ao ato de eleger os seus representantes políticos,

encarregados das oportunidades educacionais, da qualidade do setor saúde e do acesso a

outros direitos providos a manter a dignidade da pessoa humana. Como fatores, então, da

redução dos níveis de pobreza, no suporte aos ideais de liberdade frente aos abusos de poder

estatal, concomitante ao aperfeiçoamento da personalidade.

Desse modo, observa-se nos casos citados que as implicações para a melhora da

qualidade de vida são, ainda, mais corriqueiras no grupo das mulheres do que nos dos

homens. Por isso, a necessidade de tratar de forma diferenciada aqueles que estão em

patamares sociais diferentes, para que possa existir o nivelamento futuro do acesso à

educação, tão negligenciado pelas metas de determinados países, conforme enunciado a

UNESCO, até mesmo, para os homens. (PIMENTEL, 2010).

No entanto, o Supremo Tribunal Federal alerta para o peculiar caso da não extensão

do princípio isonômico, pelo Poder Judiciário, de vantagens a grupos que não se encaixam na

lei, visto que estaria a colidir com o princípio da separação dos poderes, no qual o juiz não

pode criar regras, legislar positivamente e olvidar atos inconstitucionais. Ou seja, legislar

negativamente. (ALEXANDRINO; VICENTE, 2008, p. 110). Conforme exemplo,

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assim, não poderá o poder judiciário, por exemplo, sob o fundamento de conferir

tratamento isonômico, estender aos servidores públicos da categoria ‘A’ vantagem

concedida pela lei somente à categoria ‘B’, ainda que tais categorias se encontrem

em situação de plena igualdade jurídica.

3.3 Solidariedade

Dotado de valor humanista e universal, os direitos de liberdade e igualdade abraçam-

se à solidariedade, em foco pela terceira geração dos direitos fundamentais, século XX.

(BONAVIDES, 2011). Isso se deve pela consequência das atrocidades cometidas contra a

vida humana, durante o período das grandes guerras mundiais. Em soma, o Direito, sobretudo,

passa a atuar como instrumento controlador das ações do homem, ser gregário, normatizando

as suas condutas, a fim de estabelecer a paz coletiva, a ordem e o bem comum.

Em arremate, a idéia de impor limites às atitudes do indivíduo para que não as

excedam e, por conseguinte, infrinjam os direitos de terceiros faz o Estado Democrático de

Direito ter por fundamento a dignidade da pessoa humana, a qual se estende em referência,

também, à solidariedade.

Logo, por autoconsciência, o princípio da solidariedade surge para ser pensando no

fato social. Com o anseio de conquistar as liberdades individuais, o homem naturalmente se

afasta do individualismo, da concepção centralizada de que as suas crenças são as únicas a

proporcionar a felicidade da maioria e, assim, começa a enxergar na interação intersubjetiva a

força motriz para alcançar o desenvolvimento de sua personalidade, por intermédio dos

interesses comuns. Por isso, a Constituição Federal de 1988 conduz o valor solidariedade a

princípio fundamental expresso no art. 3°, “Constituem objetivos fundamentais da

República”, inciso I, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

Essa intenção, portanto, decorre da necessidade de projetar uma nação com menores

desigualdades sociais, onde, voltado para a igualdade substancial, os indivíduos possam

desfrutar de uma melhor qualidade de vida, com pretensão de trabalho, saúde, alimentação,

educação, moradia e erradicação da pobreza: ideal a ser alcançado pela sociedade brasileira,

em processo de referência “feita pelo legislador constituinte, [...], mas também nos momentos

de interpretação e aplicação do Direito”. (MORAES, 2003, p. 140).

Desse modo, o Direito é capaz de instigar transformações sociais, quando galgado a

princípio jurídico instigador do respeito à qualidade de vida humana. Para tal, convém o

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destaque da aplicação de alguns resultados do princípio da solidariedade na construção da

justiça social.

Primeiramente, a fundamentação da seguridade social, campo do Direito

previdenciário (CF, art. 194). Isso se torna possível, por exemplo, no momento em que as

pessoas com maior fonte de renda contribuem em maior peso para contrabalancear a

arrecadação dos hipossuficientes, de modo a caracterizar subjetivamente o sistema

previdenciário: todos os membros da sociedade, em atenção à legalidade, podem ser

garantidos dos benefícios futuros desse sistema.

Bem como, em relação à violação de um direito subjetivo, a solidariedade social

também pode tutelar em defesa da dignidade da pessoa humana. Para isso, tem-se no Direito

Civil o princípio da solidariedade familiar atuando como garantidor do cumprimento da

pensão alimentícia da criança pelo seu responsável, na intenção de primar o desenvolvimento

físico e intelectual do ser em formação. Na garantia, sobretudo, das condições do mínimo

existencial para uma vida com dignidade. Conforme a ementa de um ato julgado pelo

Tribunal de Justiça do Espírito Santo obtém-se:

1 - A Ação de Alimentos em apenso tem como autoras as filhas do casal, figurando

a Apelada como representante.

2 - O dever de prestar alimentos fundamenta-se no Princípio da Solidariedade

Familiar. O cônjuge pode ser devedor ou credor dos alimentos, por estar inserido

entre os deveres decorrentes do casamento o da mútua assistência.8

No que tange o Direito do Consumidor, é permitido ao cliente que teve o seu produto

danificado atribuir a responsabilidade solidária ao fornecedor da mercadoria para reclamar e

pedir indenização pelo defeito do serviço, caso contrário o consumidor encontrará óbices a

quem recorrer no acesso à justiça. Por conseguinte, o princípio da solidariedade também atua

quando o funcionário de um estabelecimento não possui “meios para indenizar pelos

eventuais danos causados.”, vindo o patrão a assumir a responsabilidade. Exemplificando: “o

hospital é responsável por eventuais erros cometidos pelos médicos que lhe prestam

serviços.”9

8 TJ/ES,AC 26039000497 ES 26039000497. 2° Câmara Cível, rel. Antônio Carlos Antolini, j. 21.09.2004, DJU

18.11.2004 9CARDOSO, Antônio Pessoa. Princípio da Solidariedade no CDC. Migalhas, 01 dez. 2006. Disponível

em:<http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI33148,21048-Principio+da+solidariedade+no+CDC>. Acesso

em: 01 fev. 2013.

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Por conseguinte, em outro ramo do Direito, o Superior Tribunal de Justiça tem

adotado o princípio da solidariedade à proteção ambiental como tarefa constitucional para

regular as jurisprudências no âmago do Direito Ambiental. Nesse ínterim, define:

princípio da solidariedade. Princípio-base do moderno Direito Ambiental, pressupõe

a ampliação do conceito de ‘proteção da vida’ como fundamento para a constituição

de novos direitos. Para tanto, impõe o reconhecimento de que a vida humana que se

protege no texto constitucional não é apenas a vida atual, nem é somente a vida

humana. Tudo está inserido no conjunto global dos interesses e direitos das gerações

presentes e futuras de todas as espécies vivas na Terra.10

Logo, o substrato material da dignidade, com efeito, para o princípio da

solidariedade, pode ser corolário da elaboração de vários postulados em diferenciados ramos

do Direito. Reitera-se, portanto, o advento do princípio matriz do ordenamento jurídico

brasileiro não ser rotulado a definições unânimes, visto que, para cada situação adotar-se-á o

posicionamento do quem vem a ser mais digno ao ser humano.

3.4 Integridade psicofísica

O princípio de proteção à integridade psicofísica revela um direito fundamental do

indivíduo. Baseado nisso, o ordenamento jurídico brasileiro tutela o estado salutar da pessoa,

relacionando “vida, nome, imagem, honra, privacidade, corpo, identidade pessoal”, sempre à

luz da salvaguarda da dignidade do homem. (MORAES, 2003, p. 127).

Além de eliminar a pena de morte, prisão perpétua, o trabalho forçado, na esfera

penal, sob o pretexto de que “ninguém será submetido à tortura ou a tratamento desumano ou

degradante” (CF, art. 5º, III), pois, a dignidade é inerente a qualquer pessoa humana, não

devendo desconsiderá-la, até mesmo, quanto àqueles que cometem os piores crimes. Diante

do mesmo raciocínio, subjaz o art. 1º da Declaração Universal da ONU (1948): “todos os

seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...].”

Daí, a proposição de que o subprincípio da dignidade, em destaque, se encontra sob a

tutela dos direitos fundamentais de quarta geração, segundo a qual defende a pluralidade e a

democracia isenta de hermetismo da exclusão. (BONAVIDES, 2011). Assim como, a

10

STJ. Princípios de interpretação ajudam o STJ a fundamentar decisões na área ambiental. Disponível

em:<http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=97483>. Acesso em: 27

fev. 2013.

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absorção da subjetividade do interesse individual perante a tendência do pensamento social

majoritário, oriunda dos direitos de primeira geração.

Nesse aspecto, convém destacar o direito à livre orientação sexual, com ênfase ao

transexualismo, não só no âmbito da mudança de sexo, mas, também, na alteração do

prenome, como modo de consentir a integridade física e psíquica do homem, em detrimento

dos valores morais convencionados pela humanidade. Sob esta ótica, a jurisprudência vem

atuando em prol da mitigação das diferenças que os inferiorizam, a exemplos:

assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual

consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana,

cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os

aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua

integridade psicofísica.11

Por conseguinte,

vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo

em uma insustentável posição de incerteza e conflitos [...] No caso, a possibilidade

de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em

vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se

identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido de sobrenome

familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n° 6.015/73.12

Isso advém da necessidade de humanização do sistema e exegese legal, no intuito,

sobretudo, de constatar o princípio fundamento da Constituição Cidadã, a dignidade da pessoa

humana.

Logo, na busca consistente de integração física, social, emocional, com a

afirmação da identidade sexual, compreendida pelo ser de cada indivíduo, o mínimo a ser

feito em prol da amenização das angústias dessas pessoas é autorizar legalmente as cirurgias

de readequação sexual, em virtude do sofrimento causado pelo preconceito e intolerância

Além da rejeição própria devido à desconforme similaridade entre a mentalidade e o corpo

que lhe pertence. Posteriormente, faz-se necessária a alteração do registro de nascimento

relativo ao sexo e ao prenome, no propósito de adequar a nova identidade e evitar futuras

situações constrangedoras.

11

STJ. REsp.1008398/SP. Terceira Turma. Rel.Min.NancyAndrighi, Julgado em 15.10.09. DJU de 18.11.09. 12

STJ. REsp.1008398/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em 15.10.09. DJU de 18.11.09

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Sem dúvidas, os avanços científicos trazem consigo dilemas políticos e sociais.

Principalmente, no século XXI, com o desenvolvimento do Biodireito, ainda incipiente em

termos de regulação jurídica, sob o advento das biotecnologias. Por isso, indaga-se o fato do

homem ser capaz, ou não, de discernir o que é íntegro para o próprio desenvolvimento do

corpo e da mente. (MORAES, 2003).

Quanto a este assunto, dispõe-se uma resposta relativa, carente de conceito. A

título ilustrativo aduz-se: de acordo com os seguidores da religião Testemunhas de Jeová, a

transfusão de sangue e o transplante de órgãos, mesmo que garantidos pelo art. 1413

do

Código Civil, intricam o desrespeito a sua personalidade, não sendo aceitos sob nenhuma

hipótese. (FARIAS; ROSENVALD, 2012).Dessa forma, em caso da necessidade de receber

doação e os seres em questão não a autorizar, têm-se a liberdade de crença, componente do

conceito vida digna, em conflito com a tutela das idéias físicas, psíquicas e intelectuais.

Nesse ponto, a ideia do bem-estar humano prevalecer sobre o interesse da

sociedade, da ciência, ou, melhor, da sua própria vida precisa ser ponderada, sobrepujando o

fator mais harmônico ao caso concreto. Por isso, a doutrina contemporânea brasileira reporta à

dignidade da pessoa humana a posição de reforço argumentativo, critério hermenêutico utilizado

como fundamento para a solução de controvérsias, na tentativa de delimitar os direitos de

liberdade, antes de julgar um caso emblemático.

Uma vez que, o homem não é preço. Ou seja, ser alienável, objeto, substituível.

Todavia, é dignidade, único, consiste um fim em si mesmo, diante do imperativo da razão.

(KANT, 2002).

4 DIREITOS HUMANOS NO PLANO INTERNACIONAL: POSICIONAMENTO DE

FLÁVIA PIOVESAN

A noção de direitos inerentes à pessoa humana é um valor subjetivo: cada sociedade

apresenta os seus próprios padrões e convenções a respeito do que constitui a dignidade.

Critérios que variam conforme o local e a época, inclusive, de indivíduo para indivíduo.

Assim, não só sustentar o ser humano a sujeito do direito interno, mas, também, elevá-lo ao

Direito Internacional, caracteriza o marco de uma revolução.

13

É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte,

para depois da morte.

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É no cenário pós Segunda Guerra Mundial de tirania e repressão das liberdades que

os Diretos Humanos, essenciais para a promoção da dignidade inerente a todos os indivíduos,

ganham repercussão. O quadro introduz o cidadão como destinatário de diversas normas

supraconstitucionais, desde que conferidos os seus direitos e proporcionados os meios para

assegurá-los.

Logo após, a Declaração Universal Dos Direitos Humanos contribui para o processo

de internacionalização dos Direitos Humanos na seara de proteção aos padrões globais

mínimos de segurança, trabalho, ensino, liberdade, saúde, enfim, à manutenção da paz e da

justiça no mundo propícia ao desenvolvimento de relações amistosas: intersubjetivas e entre

nações. Consiste, portanto, na ideologia a ser atribuída a todos os povos, baseada no respeito

às liberdades fundamentais, à igualdade de direitos e autodeterminação dos povos; cooperação

nas questões internacionais de caráter econômico, cultural e social.

Esses institutos rompem com o conceito tradicional de sustentação do Estado como

único sujeito comunidade internacional, “o sistema internacional passa a reconhecer direitos

endereçados às crianças, aos idosos, às mulheres, às vítimas de tortura e de discriminação

racial, entre outros.” Desse modo, a realidade brasileira se dispõe a limitar a soberania estatal,

concebida como absoluta e livre de intervenção jurídica, em prol da incorporação dos Direitos

Humanos. (PIOVESAN, 2012, p. 256-257).

Sobretudo, por considerar a dignidade humana elemento guia do reconhecimento

dos direitos fundamentais na própria proteção do homem, do Direito subjetivo. Pois, só há

Direito onde há sociedade e, a esse Direito se sujeita o Estado: “O Estado não pode ser

compreendido sem direito- que transforma os homens em cidadãos, que estabelece as

condições de acesso aos cargos públicos, que confere segurança às relações entre os cidadãos

e entre eles e o poder.” (MIRANDA, 2002, p. 2).

Doravante, a dependência constatada, quando corroborada pelos Estados, eleva à

ordem jurídica internacional a corriqueira preocupação com os direitos do homem. Soma-se,

em efeito, a flexibilidade e relativização da comunicação entre nações para proteger a

dignidade. Nesse mérito, a Constituição de 1988 é a primeira, do Brasil, a introduzir-se no

plano das relações internacionais. Para tal, a prevalência dos Direitos Humanos constitui

tema-matriz da legislação brasileira na ordem jurídica supranacional, de acordo o artigo 4° da

Lei Maior.

A partir de então, as decisões legais e regulamentadoras incompatíveis com os

tratados internacionais, devido ao caráter violador da dignidade da pessoa humana, perdem a

sua vigência, segundo afirmação da escritora sobre o Direito Internacional. Não obstante, os

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direitos não previstos pela ordem interna, uma vez ratificado o tratado internacional, são

influenciados pelas outras nações a garantir o máximo de salvaguarda aos cidadãos.

Em prol de ilustrar, a proibição de atos em apologia ao ódio nacional, discriminação,

violência, em referência o art. 20 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o art.

13 da Convenção Americana. Bem como, a adoção de medidas favoráveis à igualdade

material do homem e da mulher, nos termos do art. 4° da Convenção.

No tocante à necessidade de articulação entre os países para tentar corrigir as

irregularidades em afronta à dignidade da pessoa humana, e, por isso, a importância do

Direito Internacional, o caso de Maria da Penha14

merece destaque. A brasileira recorreu à

Comissão Interamericana de Direitos Humanos sob a denúncia de que a República Federativa

do Brasil ausentou-se de protegê-la, sob as garantias judiciais, e de aplicar medidas punitivas

para com o seu marido, agressor da senhora por 15 anos.

Após julgamento do parecer, a Comissão Americana determinou que fosse

intensificado o processo de reforma, a fim de evitar a tolerância estatal e o tratamento

discriminatório, no intuito de mitigar a violência doméstica contra mulheres no Brasil. O país

acusado, então, reconheceu a situação de desigualdade entre os sexos. Para corrigi-la,

promulgou a lei n° 11.340/06, enfático do princípio da igualdade material entre homens e

mulheres, protegendo os direitos destas.

Dessa forma, o universo amplia os regulamentos domésticos para uma discussão

geral, na ótica do que vem a ser o núcleo mínimo garantidor dos direitos humanos para cada

país membro. E, assim, prosseguir com a política de criação de tratados responsáveis pela

preservação de normas condescendentes à manutenção da dignidade do indivíduo.

Concomitante, portanto, à preservação de sua liberdade, integridade psicofísica, mitigação das

diferenças substanciais, para assim, clamar por um mundo mais fraterno, cooperativo em

benefício o bem estar social.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, observa-se que o princípio da dignidade da pessoa humana sustenta, agrega e

concentra o sistema constitucional ao redor de seus subprincípios: liberdade, igualdade

14

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. CASO 12.051 Maria da Penha Maia Fernandes. Disponível

em:<http://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso em: 25 fev. 2013.

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material, solidariedade e integridade psicofísica. Sem olvidar, em vários casos, a interligação

e, até mesmo, dependência existente entre eles, a fim de salvaguardar os direitos humanos.

Dessa forma, atribui à pessoa humana a proteção do seu valor intrínseco, aptidões

e necessidades, tanto no âmago do Direito interno, quanto internacional. Mesmo que a

Confederação não tenha o poder de modificar a legislação doméstica dos países membros, em

virtude da soberania, a individualidade dos Estados encontra-se exposta a influências. Logo,

se a concepção do Brasil, hoje, sobre a igualdade de direitos entre o homem e a mulher,

exemplo hipotético, ocupa um espaço minoritário, futuramente, devido à dinâmica, pressão

social e a necessidade de adequar-se aos tratados externos, para poder se desenvolver, poderá

representar uma corrente majoritária. Todavia, o Direito é um fenômeno em adaptação a

épocas.

Por conseguinte, conforme observado, os seres humanos possuem concepções

ideológicas, econômicas, culturais, diferentes. Em temor à indiferença, faz-se necessário

analisar o indivíduo sob a ótica particular, submetendo cada caso a tratamentos diferenciados.

A violação, portanto, não consiste em tratar de forma desigual a humanidade diversificada,

mas, sim, de forma discriminatória, visto que alguns grupos precisam de maior suporte pelo

ordenamento jurídico e político do que outros, de modo a merecer tratamento social peculiar.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito constitucional descomplicado. Rio

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THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON AND ITS SUBPRINCIPLES

ABSTRACT

This article intends to analyze the human person dignity, value

intrinsic to all human beings, from the moment of conception until

death, under the focus of four sub principles: freedom, equality,

solidarity and psychophysical integrity. As bottom line, we evaluate

the global historical context to, then, assign to the 1988 Constitution

the role of protection of the human dignity in terms of national and

international Law.

Keywords: Dignity. Subprinciples. Law. National. International.

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Recebido 04 mar. 2013

Aceito 22 abr. 2013

A NOVA DINÂMICA DE PROCESSAMENTO DOS ATOS DE CONCENTRAÇÃO

NO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA E A REFORMA

NO SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA

Ângelo José Menezes Silvino1

RESUMO

A argumentação deste artigo se constrói sob o campo do Direito

Concorrencial, sendo seu principal objetivo analisar toda a

reformulação sofrida pelo Sistema Brasileiro de Defesa da

Concorrência (SBDC), especialmente em relação à análise e

julgamento dos atos de concentração horizontais. Para tanto, fora

estudada a evolução do direito concorrencial e algumas das teorias

formuladas no curso da história. A partir desse esforço foi possível

confirmar que o Brasil segue a tendência já anteriormente sentida nos

Estados Unidos, e, posteriormente, na União Europeia, principalmente

no que pertine à necessidade de análise a priori dos atos de

concentração horizontais.

Palavras-chave: Direito Concorrencial. Sistema Brasileiro de Defesa

da Concorrência. Atos de concentração horizontais. Análise Prévia

“A razoável economia está entre a prodigalidade e a avareza.”

(Axel Oxenstiern)

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-graduando em Gestão

Estratégica de Negócios pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UNIRN).

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1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 trouxe grandes avanços à tutela dos interesses e

direitos mínimos dos cidadãos brasileiros, sendo, por isso, reconhecida como uma

Constituição Social.

O Título VII da referida Constitução trata da Ordem Econômica e Financeira do

Estado Brasileiro, trazendo em seu capítulo I, precisamente no artigo 170, os princípios gerais

que hão de reger a atividade econômica do Estado.

Pode-se afirmar que os aludidos princípios, ao serem positivados pelo legislador,

adquirem a função precípua de assegurar uma existência digna à sociedade, bem como a de

direcionar a política econômica do Estado.

Nesse sentido, há de se destacar os princípios da livre iniciativa e da livre

concorrência, que juntos estabelecem as diretrizes para que a evolução econômica dos sujeitos

integrantes do mercado brasileiro ocorra com base no aprimoramento de suas eficiências

econômicas.

Tomando com base tal ideia, o legislador infraconstitucional editou a Lei 8.884,

promulgada em 11 de Junho de 1994, que se tornou a Lei Concorrencial Brasileira,

transformando o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE) em autarquia e

deixando a cargo deste órgão a fiscalização e o cumprimento da predita lei, e, em última

instância, a concretização dos princípios da liberdade de iniciativa, livre concorrência, função

social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

Ocorre que na antiga legislação concorrencial, a autorização dos atos de

concentração poderia ocorrer a posteriori, ou seja, era facultado às empresas informar sobre o

ato de concentração somente após a sua realização.

Em assim sendo, o marco teórico desse trabalho baseia-se na assertiva de que a

fórmula de análise dos atos de concentração horizontais a posteriori apresenta uma série de

desdobramentos indesejáveis, especialmente no que pertine à reversibilidade de operações

que por vezes são analisadas somente muitos anos após sua efetivação.

O legislador infraconstitucional, atento à lacuna desta lei ao reestruturar todo o

SBDC, com a promulgação da Lei 12.529, em 30 de Novembro de 2011, estabeleceu,

precisamente no parágrafo segundo do artigo 88, que o controle dos atos de concentração

passa a ser prévio e deve ser realizado em, no máximo, 240 (duzentos e quarenta) dias.

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Dessa forma, insere-se na legislação antitruste brasileira importante mecanismo

relativo à análise dos atos de concentração, impactando diretamente sobre toda a sistemática

adotada pelo SBDC, o que será alvo de estudo do presente artigo.

2 O FENÔMENO DA CONCENTRAÇÃO EMPRESARIAL SOB A ÓTICA DO

DIREITO ECONÔMICO

A concentração econômica é um fenômeno que vem adquirindo extrema importância

nos últimos dois séculos, o que atrai em larga escala o interesse dos pesquisadores advindos

das faculdades de Direito e Economia de todo o mundo.

Apesar de serem ora demonizados, ora tidos como salvação para economias

sucateadas, os processos de integração econômica vêm se mostrando como meio

indispensável para o progresso do sistema produtivo, devendo, contudo, ser conduzidos e

analisados com imenso cuidado por órgãos especializados, haja vista o seu potencial de criar

diversas distorções nas estruturas de mercado2.

No âmbito do Direito Econômico, o termo concentração possui diversas

conceituações, todas elas muito próximas, podendo ser sintetizadas no seguinte ensinamento

de Paula Forgioni (2010, p.415):

o termo concentração vem empregado no campo do antitruste para identificar

situações em que os partícipes (ou ao menos algum deles) perdem sua autonomia (o

que ocorre em operações de fusão, incorporação, etc.), ou constituem nova

sociedade ou grupo econômico cujo poder de controle será compartilhado.

Nesse desiderato, a concentração econômica se concretiza através daquilo que a

legislação concorrencial pátria define como atos de concentração, podendo estes ser divididos

da seguinte forma: (01) atos de concentração horizontais – realizados entre agentes

econômicos pertencentes ao mesmo mercado relevante; (02) atos de concentração verticais –

os quais se concretizam entre empresas que atuam em diferentes níveis (Ex. um posto de

gasolina e a distribuidora de combustíveis, ou esta última e uma refinaria, etc.); e (03) atos

2 A experiência histórica é o principal meio de prova da alegação, haja vista que ao longo dos séculos XIX e XX,

diversos foram os casos onde, a total ausência de controle por parte do Estado sobre os atos de concentração,

levaram a situações nefastas. Nesse sentido, observar os leading cases internacionais como: Standard Oil

Company of New Jersey vs. United States (1911) e United States vs. Alcoa Inc (1945).

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que resultam na formação de conglomerados – formados através de atos de concentração de

agentes que possuem atividades econômicas distintas.

Sobre as principais razões que incitam os agentes econômicos a se concentrarem,

Paula Forgioni (2010, p. 415) elenca os critérios e/ou razões utilizados pelos agentes do

mercado para justificar os atos de concentração econômica da seguinte forma: a) tentativa de

arrefecimento da concorrência; b) busca pela viabilização de economias de escala, bem como

o melhor aproveitamento dos recursos disponíveis; c) aquisição de pessoal especializado,

patentes e/ou direitos de propriedade intelectual; d) preservação da continuação das atividades

da empresa adquirida; e) obtenção de ganhos ou economias tributárias; f) razões de estratégia

empresarial, na qual a aquisição de determinada empresa está diretamente ligada com a idéia

(aparente) de crescimento; ou ainda g) quando a adquirente objetiva diminuir o risco de sua

atividade, ampliando o leque de mercados em que atua.

3 APROVAÇÃO A POSTERIORI? ANÁLISE COMPARATIVA DOS MODELOS

NORTE-AMERICANO (PREMERGER NOTIFICATION) E EUROPEU

(PRINCÍPIO DA NOTIFICAÇÃO OBRIGATÓRIA DAS CONCENTRAÇÕES)

A nova dinâmica de análise e julgamento dos atos de concentração econômica

submetidos ao SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), precisamente no que

pertine à revogação da hipótese de aprovação a posteriori, evidencia, conforme já mencionado

no início desse trabalho, um enorme avanço da legislação antitruste brasileira.

Nesse desiderato, é importante ressaltar que não é novidade que toda a disciplina

jurídica da concorrência pátria, tem, originalmente3, fortes inspirações nos modelos norte-

americano e europeu.

Contudo, na data de promulgação da antiga legislação concorrencial, Lei 8.884/94,

poucas eram, ainda, as evidências práticas acerca da necessidade de um sistema de controle

prévio dos atos de concentração.

Os Estados Unidos da América possuem um ordenamento econômico e

concorrencial considerado pela maioria dos doutrinadores como pioneiro na disciplina

jurídica da concorrência. Para isso, basta lembrar que ainda no final do século XIX, o

3 A primeira legislação antitruste brasileira teve forte influência norte-americana. O próprio responsável pela

edição da lei 4.137, de 10 de Setembro de 1962, Agamenon Magalhães, é claro ao afirmar nas razões de

exposição da predita lei, que estava adotando as diretrizes da legislação norte-americana.

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primeiro alento do direito concorrencial, enquanto disciplina jurídica, foi consolidado com a

promulgação do Sherman Act (1890).

Dentro da temática que é especificamente o cerne desta pesquisa, há de se ressaltar o

também pioneiro Hart-Scott-Rodino Antitrust Improvements Act (HSR Act), promulgado em

30 de Setembro de 1976.

A aludida cártula institui um dispositivo chamado Premerger Notification, ou seja,

fixa que a notificação deve ocorrer antes (previamente) que ato de concentração (merger) seja

consumado. Há de se ressaltar que a notificação não é imprescindível qualquer que seja o ato

de concentração; conforme restou aclarado naquele instrumento, pois somente concentrações

entre agentes de determinado tamanho prescindem de prévia notificação, cabendo a Federal

Trade Commission atualizar periodicamente os valores limites (new filing thresholds) a serem

observadores pelos agentes.

Na Europa, o sistema de controle dos atos de concentração ganha atenção da

legislação concorrencial comunitária apenas no ano de 1989, precisamente em 21 de

Dezembro, quando então é promulgado o Regulamento (CEE) número 4.064.

O artigo 4º do diploma supra mencionado tratava da notificação prévia das

operações de concentração. Ocorre que, sem embargo dos grandes avanços proporcionados

pela promulgação deste Regulamento, que dentre outras coisas, instituiu o princípio da

notificação obrigatória das concentrações, o legislador comunitário, ao fixar o título do

artigo 4º, não utilizou da melhor exegese jurídica.

Através de uma rápida análise do mencionado artigo, percebe-se que a notificação,

apesar de ser fixada como prévia pelo título do dispositivo, poderia ocorrer em até 07 (sete)

dias após a sua realização.

A experiência na Europa levou a uma mudança de postura4, e atualmente a matéria

referente à concentração econômica é contemplada em sua quase totalidade no Regulamento

139, de 20 de Janeiro de 2004, e no Regulamento 802, de 07 de Abril de 2004. Os preditos

dispositivos comunitários ainda preservam o já mencionado princípio da notificação

obrigatória das concentrações.

Contudo, no que condiz à análise dos atos de concentração, o legislador comunitário

fora mais feliz que quando da edição do Regulamento 4.064/89, haja vista que não

estabeleceu se a análise deveria ser prévia ou posterior. Fez melhor, estabeleceu que a eficácia

4 No ano de 1996 os debates acerca do controle de atos de concentração foram intensificados, devendo-se

destacar as discussões do Comitê Econômico e Social, donde surgiram não somente uma série de apontamentos

de viés prático, para melhorar a atuação da Comissão, como a reforma no Regulamento 4.064/89, pelo

Regulamento 1.310 de 30 de Junho de 2007

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do ato de concentração ficará suspensa até que a Comissão Européia analise e julgue o ato que

a ela deve ser submetido (por força do princípio mencionado no parágrafo imediatamente

anterior).

Desta forma, conforme pode se depreender da redação dada aos dois regulamentos, a

notificação tem um efeito jurídico favorável às partes uma vez que, quanto mais brevemente

(e previamente) as partes realizarem a comunicação acerca do ato de concentração, tão logo e

em menos tempo, poderão realizar, de fato, a operação de concentração econômica.

Conforme pode se perceber o legislador infraconstitucional pátrio, ao inserir no

parágrafo 4º do artigo 54, da Lei 8.884 de 11 de Junho de 2004, a hipótese na qual os atos de

que trata o caput deverão ser apresentados para exame, previamente ou no prazo máximo de

quinze dias úteis de sua realização, teve como nítida inspiração o modelo vigente na Europa à

época.

Contudo, hodiernamente, é notório que tal procedimento, conforme bem aponta

Calixto Salomão (2007, p. 326), pode trazer inúmeros custos sociais, aliados a uma enorme

insegurança jurídica, posto que o órgão concorrencial, ao constatar um impacto líquido

negativo sobre o bem-estar social, não só pode como deve reprovar o ato de concentração, o

que ocasiona, caso o predito ato já tenha sido consumado, em uma série de problemas que vão

desde o remanejamento (ou demissão) de colaboradores, passando pela comercialização das

ações das empresas envolvidas na bolsa de valores, até à reestruturação física das unidades

produtivas.

Tanto o exemplo norte-americano como o europeu demonstraram que a experiência

dos seus principais órgãos concorrenciais apontava para necessidade de análise prévia dos

atos de concentração. No Brasil, pode-se afirmar, com autoridade, que um dos maiores

avanços da legislação antitruste na última década foi a revogação da hipótese de aprovação a

posteriori dos atos de concentração econômica (nova redação conferida aos artigos 53 e 88

parágrafo segundo, da Lei 12.529/11), questão que será abordada de maneira mais técnica no

tópico seguinte.

4 A NOVA SISTEMÁTICA INTRODUZIDA PELA LEI 12.529 E AS ETAPAS DE

ANÁLISE DOS ATOS DE CONCENTRAÇÃO HORIZONTAIS

4.1 A Portaria Conjunta SEAE/CADE número 50 e o procedimento técnico de análise e

julgamento dos atos de concentração

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No Brasil, além da legislação antitruste já mencionada, pode-se dizer que, na praxis,

o controle dos atos de concentração encontra-se orientado pela Portaria Conjunta SEAE

(Secretaria de Acompanhamento Econômico) /SDE (Secretaria de Direito Econômico) Nº 50,

de 01 de Agosto de 20015.

Essa portaria, além de ter o escopo precípuo de orientar a própria atividade

desempenhada pelo, até então, principal órgão de Defesa da Concorrência brasileiro (CADE),

também serve como mecanismo de transparência administrativa, estabelecendo de forma

prévia os critérios e etapas das análises que serão realizados pela SEAE e SDE .

A razão de menção do predito documento, justifica-se pelo fato de que o mesmo

possui um viés prático enorme, haja vista que confere todas as diretrizes necessárias para que

o órgão máximo de defesa da concorrência brasileiro possa analisar e julgar os atos de

concentração horizontais, atividade que, ano a ano, vem ganhando mais relevância dentro do

CADE, e por isso mesmo, representa grande parcela do total das atividades ali

desempenhadas.

De uma análise acurada dos ideais transpostos pela aludida portaria, percebe-se o

viés extremamente estruturalista da política de defesa concorrencial brasileira, pois o

“impacto líquido não negativo sobre o bem-estar social”, utilizado como critério norteador da

aprovação ou reprovação do ato de concentração submetido a apreciação do CADE, é

firmado, senão, com base em elementos puramente estruturais (a análise do mercado

relevante, da existência de barreiras à entrada, etc.), ainda que existam ao longo da

mencionada Portaria algumas poucas referências aos ideais de eficiência propagados pela

Escola de Chicago nos anos 70 e 80.

Nesse sentido, convém ressaltar que o estruturalismo, enquanto teoria aplicada ao

Direito Concorrencial, encontra suas raízes na chamada Escola da Harvard, na qual surgiu o

modelo Structure-Conduct-Performance (SCP Paradigm)6.

A idéia do modelo Estrutura-Conduta-Desempenho funciona, segundo Viscusi

(2005, p. 62-63), da seguinte forma: o desempenho (eficiência, progresso tecnológico, etc.)

dos agentes de um dado mercado, dependerá das condutas nele adotadas. Já as condutas

5 BRASIL. Portaria Conjunta SEAE/CADE N°.50. Disponível em:

<http://www.seae.fazenda.gov.br/central_documentos/guias/portconjseae-sde.pdf>. Acesso em: 05/02/2012 6 Ainda no começo do século XX, na Harvard University, começam a se desenvolver uma série de trabalhos

acadêmicos que buscavam aproximar os campos da Economia e do Direito, tomando como base, os estudos do

francês Augustin Cournot. Desses trabalhos, surgem os primeiros ideais estruturalistas, posteriormente utilizados

na construção do SCP Paradigm.

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(estabelecimento de preços, publicidade, etc.) serão diretamente influenciadas pelas estruturas

(número de participantes, barreiras à entrada, etc.) deste mercado.

A relação existente entre a conduta e a estrutura indica que em certas ocasiões, a

adoção de determinadas condutas podem vir a interferir diretamente nas estruturas do

mercado7. Em uma última análise, portanto, o desempenho e os ganhos de eficiência de

determinada empresa, serão determinados, senão, pelos elementos estruturais.

Não resta dúvida, pois, que o Brasil faz uso de dinâmica mais estrutural quando da

análise dos atos de concentração, ficando a própria atuação do órgão concorrencial adstrita

aos elementos da conduta (Título V, da Lei 12.529/11) e da estrutura (Título VII, da Lei

12.529/11).

Ademais, as 05 (cinco) etapas de análise dos atos de concentração, estabelecidas pela

Portaria Conjunta SEAE/SDE Nº. 50, estão sempre relacionando-se com elementos

estruturais, veja: 1) definição do mercado relevante; 2) determinação do Market Share; 3)

determinação da possibilidade de exercício do Market Power; 4) Exame das eficiências

econômicas8; 5) avaliação entre os custos e os benefícios gerados pelo ato de concentração.

Com base no exposto, pode-se afirmar que, apesar do conceito de eficiência ser

mencionado em algumas partes da aludida portaria, através de uma simples leitura, resta claro

ao destinatário da norma administrativa que a preocupação dos experts responsáveis pela

elaboração da mesma foi tutelar as estruturas do mercado, de forma que todo e qualquer

ganho econômico (performance, eficiência, avanço tecnológico) seja compartilhado com a

sociedade.

4.2 O processamento do ato de concentração sob a égide da lei 12.529/12: o papel da

Superintendência-Geral e do Tribunal Administrativo

Ainda sob a égide da Lei 8.884, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência

(SBDC) se estruturava, conforme já mencionado, sob a Secretaria de Direito Econômico

(SDE), a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), e o próprio Conselho

Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE).

7 A expressão original utilizada por Viscusi (2005) é “feed back”, ou seja, a adoção de determinada conduta

algumas vezes pode estimular uma mudança estrutural. 8 Não há que se confundir o exame das eficiências mencionadas na portaria, com a noção construída pelos

neoclássicos da Escola de Chicago; essa última está relacionada com o uso da eficiência como critério absoluto

da defesa da concorrência, já o exame ao qual a norma administrativa faz referência, utiliza como critério as

estruturas mercadológicas.

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Ocorre que a própria estruturação do SBDC tal como vista na praxis, bem como a

atividade conjunta de todos os órgãos que o compunham, não encontrava previsão no

ordenamento infraconstitucional.

Em que pese a referência ao Plenário do CADE e suas atribuições no Capítulo II da

Lei 8.884, bem como à Secretaria de Direito Econômico, a verdade é que a estrutura do

SBDC não estava bem definida na legislação concorrencial pretérita, tanto que, foram

necessárias diversas portarias, normatizando a interação entre os componentes do SBDC –

que estavam, até mesmo, vinculados a diferentes Ministérios.

A Lei 12.529, de 30 de Novembro de 2011, não somente trouxe alterações no campo

do processamento dos atos de concentração em si, mas, de fato, reestruturou todo o Sistema

Brasileiro de Defesa da Concorrência.

Conforme estabelecem os artigos 3º e 5º da legislação em comento, o SBDC passa,

portanto, a ser composto basicamente pela SEAE e pelo CADE, este último, agora dividido

em três órgãos – devidamente discriminados, organizados e hierarquizados na própria lei

antitruste – quais sejam: (01) O Departamento de Estudos Econômicos (DEE), enquanto

órgão técnico integrante do CADE, eminentemente econômico, capaz de fornecer pareceres

iniciais que auxiliam no embasamento da aplicação da legislação antitruste pela (02)

Superintendência-Geral, órgão integrante do CADE, responsável pela aplicação da legislação

antitruste através da análise e julgamento dos processos administrativos e atos de

concentração, podendo suas decisões, em caso de impugnação serem revistas pelo (03)

Tribunal Administrativo, que passa a ser uma segunda instância da análise dos processos

administrativos e análise dos atos de concentração dentro do CADE, atuando somente

naquelas casos em que as decisões tomadas pela Superintendência-Geral forem impugnadas

pelos interessados.

Dessa forma, a análise, seja do processo administrativo, seja do ato de concentração,

se processará inteiramente e exclusivamente dentro do próprio CADE, sem a necessidade de

remessa para qualquer outro órgão vinculado a outro Ministério, como antes era feito.

A esse respeito, é igualmente importante analisar o artigo 13 da legislação ora

discutida, de forma que se possa concluir que as antigas atribuições da SDE encontram-se

hoje incorporadas pela Superintendência-Geral, deixando aquela de existir.

Nessa mesma esteira, um dos grandes avanços é a maior autonomia conferida a

Superintendência-Geral, especialmente no que pertine aos casos de análise e julgamento dos

atos de concentração, conforme estabelecem os artigos 54 a 57 da nova lei de concorrência.

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A atuação da Superintendência-Geral (SGE) dar-se-á, portanto, da seguinte forma:

(01) Cumpre a Superintendência-Geral conhecer, instruir e julgar os atos de concentração

submetidos ao controle do CADE; (02) No exercício de suas atribuições de análise dos atos

de concentração econômica, poderá a SGE aprová-los antecipadamente se dispensarem a

realização de novas diligências (ou seja, se os processos administrativos já estiverem

devidamente instruídos) ou ainda caso os atos tenham menor potencial ofensivo à

concorrência; (03) Caso contrário, será feita a instrução complementar, que abre duas

possibilidades, a) após terminada, julgar (acatar, ou impugnar perante o Tribunal) ou b)

declarar a operação como complexa e requerer diligências específicas (nesse caso, através de

decisão fundamentada, pode requerer a dilação do prazo de 240 dias); (04) Declarada como

complexa, e ao final das demais diligências, caberá a SGE julgar o ato de concentração a ela

apresentado, autorizando-o, ou impugnando-o perante o Tribunal Administrativo; (05) A SGE

só acata integralmente o pedido, haja vista que caso entenda que o ato a ela submetido deve

ser autorizado com restrições, deve impugná-lo perante o tribunal, trazendo as razões para

tanto.

Ao Tribunal Administrativo caberá basicamente o recebimento das impugnações,

seja por parte da SGE, seja pela parte de terceiros interessados, sendo também facultado ao

Tribunal Administrativo avocar o processo julgado pela SGE.

Em sua decisão, caberá ao Tribunal Administrativo: julgar o ato de concentração

econômica, aprovando-o (com ou sem restrições) ou reprovando-o; autorizar liminarmente o

ato, impondo-lhe condições que assegurem sua reversibilidade; ou ainda, determinar sua

instrução complementar.

Entretanto, de nada adiantaria ressistematizar todo o processamento interno dos atos

de concentração, se os problemas com os prazos não fossem resolvidos. Em assim sendo,

pode-se afirmar que também houve grande avanço legislativo, a partir do momento em que o

legislador retirou do ordenamento concorrencial as possibilidades de suspensão dos prazos

para análise e julgamento dos atos de concentração - atualmente, a única possibilidade de

suspensão de prazo encontra-se prevista no Artigo 6º, §5º, sendo a mesma extremamente rara.

Em breve síntese, pode-se afirmar que foram dados largos passos à frente, na medida

em que ao invés dos 03 (três) órgãos antes existentes – vinculados a diferentes Ministérios

(com até mesmo diferentes naturezas jurídicas sob a ótica administrativa), atuando

conjuntamente – ter-se-á um único órgão, reestruturado, no qual serão processados

inteiramente os atos de concentração, em prazos próprios e não susceptíveis de suspensão.

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Hodiernamente, em virtude das alterações legislativas retro mencionadas, o SBDC

encontra-se organizado e centralizado na figura do CADE, sem a necessidade de remessa dos

autos de um processo acerca de um ato de concentração para organismos vinculados a outros

Ministérios, com diferente corpo técnico e sujeitos a todos os entraves burocráticos dai

decorrentes. O ato se processará e será inteiramente analisado nas duas “instâncias” do novo

CADE, quais sejam: a Superintendência-Geral e, em havendo qualquer óbice à aprovação

integral do ato, o Tribunal Administrativo.

4.3 A análise prévia dos atos de concentração econômica: os custos sociais e a

irreversibilidade enquanto critérios justificadores da alteração legislativa

A nova sistemática introduzida pela Lei 12.529/11, sem dúvidas, ocasionará uma

série de mudanças nas próprias diretrizes da portaria alvo de estudo no tópico anterior. Mas o

que importa mencionar, dentro da temática estabelecida nesta pesquisa, são os avanços

sentidos em virtude da impossibilidade prática de aprovação dos atos de concentração a

posteriori.

Antes de mais nada, é importante mencionar que não existem dúvidas que dos atos

de concentração submetidos ao CADE nos últimos anos, pouquíssimos foram, de fato,

reprovados .

Tal constatação estatística, porém, é plenamente justificável pelo fato de que o

CADE, por diversas vezes, sente-se verdadeiramente pressionado a autorizar o ato de

concentração, ainda que com restrições. Isso ocorre em virtude da enorme dificuldade prática

de reversibilidade do ato de concentração já consumado, além, é claro, dos elevadíssimos

custos sociais envolvidos na reprovação a posteriori.

Deixando de lado o pouco referencial prático-teórico existente hoje na doutrina

pátria sobre a temática já exaustivamente discutida, há de se apontar, em construção

doutrinária própria, os seguintes fatores que merecem atenção enquanto justificativa da

análise prévia dos atos de concentração: os custos sociais e a irreversibilidade do ato.

Os custos sociais referem-se principalmente as alterações de pessoal existente

quando da realização de um ato de concentração econômica entre dois agentes. Explica-se: a

concretização de uma concentração é sempre seguida de uma completa reformulação na

estrutura e, consequentemente, no material humano das empresas envolvidas no ato. Por

vezes, é necessário apenas o remanejamento dos funcionários, alocando-os nos setores já

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existentes ou até mesmo naqueles que por ventura venham a ser criados em decorrência do

surgimento de uma “nova” empresa.

Contudo, na grande maioria das vezes, a reunião de duas ou mais empresas resulta

em planos de demissões, seja pelo excessivo alargamento da capacidade ociosa da empresa,

seja pelo fato de que há um aumento considerável na produção (em virtude do incremento das

economias de escala), fazendo com que a empresa consiga alcançar o custo marginal9 de

produção dos produtos por ela comercializados com menos funcionários do que teria caso

simplesmente continuasse com o número total resultante da soma do pessoal existente nas

duas empresas antes da concentração.

Quaisquer que sejam as hipóteses, percebe-se que acontecerá um verdadeiro descarte

da mão-de-obra excedente, ocasionado, unicamente, pela reunião das estruturas das duas

empresas. Ora, incorrer-se-ia em um verdadeiro pleonasmo inferir que o despejo de uma

grande quantidade de mão-de-obra no mercado de trabalho (além daquela que nele

normalmente ingressa diariamente) favorece o aumento dos índices de desemprego – que

precisará ser suportado pelo própria sociedade, e consequentemente, pelo Estado.

Por óbvio, é bem verdade o que algumas correntes, lideradas por Calixto Salomão

(2007, p. 326-327), afirmam no sentido de que as demissões ocorreriam, fosse o ato analisado

a posteriori, fosse analisado previamente. Nesse desiderato, é imperioso ressaltar que, em caso

de suspensão de todos os efeitos da concentração, até a completa análise do órgão de defesa

da concorrência, não há que se falar em demissões em ambos os casos, uma vez que,

constatado pelo órgão o elevado custo social em detrimento do impacto líquido não-negativo

sobre o bem-estar social, indubitavelmente, o ato de concentração seria reprovado,

inexistindo, dessa forma, plano(s) de demissão por parte dos requerentes.

Não obstante isso, o que merece destaque dentro deste primeiro aspecto, é que o

condicionamento da eficácia do ato de concentração à análise pelo órgão de defesa da

concorrência evita situações em que, após uma onda de demissões e/ou realocamento de

funcionários, uma dada empresa se vê diante da reprovação do ato de concentração, devendo

reverter o que é, obviamente, irreversível – principalmente no que concerne aos casos nos

quais há demissões.

Tomando como apoio didático o parágrafo imediatamente anterior, ter-se-á a

segunda hipótese, que concerne a (não) reversibilidade do ato de concentração reprovado.

9 Aqui se emprega o termo “custo marginal” dentro da linguagem empresarial informal, significando o custo

mínimo alcançável para produção de uma dada mercadoria, obtendo-se, portanto, máximo de lucro possível

dentro daquele mercado

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Trata-se de categoria residual, em que não estão inclusos os custos sociais,

exemplificados no tópico anterior. Ora, ao tratar daqueles, muitos autores tais como: Calixto

Salomão (2007, 327-333), Paula Forgioni (2010, 441), Armando Castelar Pinheiro & Jairo

Saddi (2005, 355-356) e Luis Fernando Schuartz (2002, 100-110), elencam como alternativa

para evitá-los, a utilização dos mecanismos dos Acordos de Preservação da Reversibilidade

das Operações (APRO), ou das Medidas Cautelares , ambos instituídos pela Resolução 28, de

24 de Junho de 2002 , pelo CADE. Em verdade, os aludidos instrumentos representaram

grande avanço no combate aos custos sociais ocasionados pela reprovação a posteriori de

determinados atos de concentração. Contudo, e nos demais casos?

Merecem profunda análise e reflexão os casos onde há, por exemplo, a reunião das

estruturas físicas (fábricas, montadoras, distribuidoras, etc.) das empresas envolvidas, e o

intercâmbio de técnicas de produção. Em casos análogos ao descrito, como operar-se-á a

reversibilidade do ato de concentração, uma vez que as informações já foram naturalmente

permutadas?

Convém ressaltar que são inúmeras as hipóteses residuais (impactos na bolsa de

valores, fuga de agentes ameaçados para outros setores, etc) que integram o conjunto dos

fenômenos decorrentes da irreversibilidade dos atos reprovados a posteriori. A presente

pesquisa cinge-se apenas à delimitação e comprovação da existência dos mesmos,

demonstrando que ao longo da história tais fatores foram utilizados como critérios

justificadores de uma mudança de postura das legislações antitruste.

4 CONCLUSÕES

Conforme mencionado, as experiências vivenciadas principalmente nos Estados

Unidos e na Europa resultaram na implementação da análise a priori dos atos de concentração

nessas localidades.

No Brasil, diversos casos relevantes julgados pelo CADE nos últimos anos10

,

deixaram claro não somente a necessidade do estabelecimento de prazos próprios,

improrrogáveis (ou prorrogáveis por tempo determinado) para a julgamento dos atos de

10

Ato de Concentração nº 08012.001697/2002-89 (Caso Nestlé-Garoto), Ato de concentração nº

08012.005846/1999-12 (Caso Ambev), Ato de Concentração nº 08012.004423/2009-18 (Caso Brasil Foods),

Atos de Concentração nº 08012.005789/2008-23 e 53500.012477/2008 (Caso Oi-Brasil Telecom), Ato de

Concentração nº 08012.001291/2003-87 (Caso Varig-TAM).

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concentração, como também a necessidade de que a análise dos mesmos fossem realizadas

previamente a sua consumação.

A presente pesquisa teve como principal foco o trato objetivo da temática proposta,

qual seja, a Reforma no SBDC e a análise dos atos de concentração, não sendo seu objetivo

exaurir todas as questões relativas aos possíveis efeitos decorrentes da inserção do dispositivo

do parágrafo segundo, do artigo 88, da Lei 12.529/11.

Em assim sendo, é possível inferir, acertadamente, que somente a atuação do CADE

sob a égide da nova lei nos próximos anos, poderá trazer dados concretos aos

questionamentos aqui feitos, sem que, contudo, os levantamentos teóricos aqui realizados

sejam despiciendos, podendo ser utilizados como orientação de estudos futuros.

REFERÊNCIAS

FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2010

PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de

Janeiro: Campus e Elsevier, 2005.

SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: As Estruturas. 3. ed. São Paulo:

Malheiros, 2007.

SCHUARTZ, Luis F. Ilícito antitruste e acordos entre concorrentes, in POSSAS, Mário L.

(Org.). Ensaios sobre economia e direito da concorrência. São Paulo: Singular, 2002.

VISCUSI, W. Kip. Economics of regulation and antitrust. Crambridge: The MIT Press,

2000.

THE NEW DYNAMIC OF PROCESSING OF MERGER ACTS IN

ADMINISTRATIVE COUNCIL FOR ECONOMIC DEFENSE AND THE REFORM

OF BRAZILIAN COMPETITION POLICY SYSTEM

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ABSTRACT

The argumentation of this article is based on the field of Competition

Law, being the main purpose of this academic research to analyze the

whole reformulation experienced by the Brazilian Competition Policy

System (BCPS), especially in relation to the analysis and judgment of

horizontal mergers. Therefore, it was studied the evolution of

competition law and some of the theories formulated along history.

Based on this study it was confirmed that Brazil follows the trend

previously felt in the United States and, later, in the European Union,

especially regarding the need for a premerger analysis.

Keywords: Competition Law. Brazilian Competition Policy System.

Horizontal merger acts. Premerger analysis.

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Recebido 04 mar. 2013

Aceito 13 abr. 2013

A PORTABILIDADE DOS PLANOS DE ASSISTÊNCIA PRIVADA À SAÚDE: UMA

ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA CONSUMERISTA

Émerson Antoinne Santos de Araújo1

Laura Maria Pessoa Batista Alves2

Orientador: Professor Victor Rafael Fernandes Alves

RESUMO

Este trabalho trata da portabilidade de carências nos planos privados

de assistência à saúde. Tem por objetivo verificar se a vigente

regulamentação dessa matéria adequa-se às necessidades

consumeristas, contrabalanceando a marcante hipossuficiência dos

usuários. É apresentado breve histórico sobre a evolução dos planos

de saúde no Brasil. São descritas as condições e restrições para que se

opere a portabilidade de carências, destacando-se as que sinalizam ir

de encontro à proteção insculpida no CDC. Conclui-se que a

regulação dos planos de saúde segue tendência lenta e gradual de

maior proteção aos consumidores, embora ainda possua aspectos

falhos.

Palavras-chave: Plano de saúde. Portabilidade de carências. Direito

do Consumidor.

"A saúde é direito de todos e dever do Estado [...]"

(Art. 196, Constituição Federal de 1988)

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Graduado em Ciência da

Computação pela mesma instituição. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Graduada em Biomedicina pela

mesma instituição.

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1 INTRODUÇÃO

O direito à saúde é, no ordenamento jurídico pátrio, alçado à categoria de direito

fundamental, sendo inerente e indispensável à dignidade da pessoa humana. A saúde é um

pressuposto elementar à ideia de qualidade de vida, escopo de todo ser humano, e em razão

disso, apresenta extrema relevância para a harmonia social, a qual é fundamento do Estado e

objetivo primário do Direito. Por seu caráter indispensável à sociedade, o direito à saúde é

consagrado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e, em nosso ordenamento, pela

Constituição Federal de 1988, que o impõe como direito fundamental, exigindo-se uma

prestação positiva do Estado.

Não obstante, vigora no Brasil um sistema de saúde misto: parte é custeada pelo

Estado, através do Sistema Único de Saúde (SUS) e parte é privada. O serviço público de

saúde é precário e insuficiente, atendendo, em regra, os grupos de baixo poder aquisitivo e

que não possuem condições de custear um plano de assistência privada. Nesse contexto, o

setor privado possui como grande aliada a insuficiência do poder público.

Percebe-se, contudo, que o mercado de serviços de saúde, em razão da natureza e

importância de sua prestação àqueles que dele se utilizam, possui uma particularidade

incomparável: envolve forte apelo moral e emocional. Se nas demais relações consumeristas é

notória a hipossuficiência do consumidor perante a magnitude técnica e econômica do

fornecedor, no âmbito dos serviços de saúde esse desequilíbrio é acentuado, uma vez que o

comprometimento desta fragiliza o ser humano porquanto o atinge no que lhe é mais precioso:

sua vida. Esse quadro agrava-se ainda mais diante da falência do sistema público de saúde

brasileiro. Desamparado pelo Estado, só resta ao cidadão buscar os planos privados de

assistência à saúde, de forma que o consumidor torna-se refém de tais operadoras.

Fazendo uma analogia, um seguro ou um plano de saúde assemelha-se a uma espécie

de jogo de apostas entre o usuário e a empresa ofertadora do plano. A empresa aposta que vai

ganhar mais dinheiro com as mensalidades do que vai ter que pagar em benefícios. E, em

razão disso, o usuário é que tende a sair prejudicado.

Nesse contexto e à luz do CDC brasileiro, busca-se responder, na presente pesquisa,

os seguintes questionamentos: está hoje o consumidor dos planos e seguros de saúde coberto

por uma regulamentação adequada? Está esse consumidor municiado de instrumentos que

diminuam a sua vulnerabilidade e a sua hipossuficiência frente a essas empresas? Questiona-

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se também, se a legislação vigente propicia àquele uma maior liberdade de escolha, e ainda,

se estimula a livre concorrência e a consequente melhora dos serviços prestados por essas

empresas.

2 BREVE HISTÓRICO DOS PLANOS DE SAÚDE

A primeira forma de plano de saúde foi o seguro por acidentes, que normalmente

pagava um valor específico e pré-determinado ao segurado no caso de um acidente.

Funcionava mais como o seguro de incapacidade de hoje e era o único tipo de seguro

disponível até então.3

O precursor dos planos de saúde modernos foi Justin Kimball, ao criar em 1929, na

cidade de Dallas, Estados Unidos, a empresa de seguro hospitalar Blue Cross. Essa empresa

segurava as despesas médicas das professoras locais, para os casos de uma eventual gravidez.

Esse seguro maternidade, paulatinamente, estendeu sua abrangência, passando a cobrir

também doenças e acidentes, o que, mais tarde, originou a empresa Blue Shield, sendo esta

uma das mais antigas empresas de planos e seguros de saúde em atividade no mundo.4

Já no Brasil, os Planos e Seguros de Saúde nasceram com a indústria automobilística e

com o deslocamento da economia para os centros urbanos, na década de 50. Em um estágio

anterior, nos anos 40, foram criadas as Caixas de Assistência de Funcionários, como a Caixa

de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (CASSI), a qual tinha o propósito de

complementar o atendimento médico que era realizado pela Previdência oficial através do

Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB).

A criação dessas caixas de assistência significou inegável avanço no setor de saúde

suplementar, uma vez que foram as pioneiras na complementação às prestações estatais

relativas à saúde. Contudo, devido às diferenças de poder político entre as classes

profissionais, às pressões sindicais para ampliação de beneficiários e à impossibilidade de

redistribuição entre as categorias de trabalhadores, havia possibilidades de acesso desiguais, o

que acabou por resultar na deterioração dessas caixas de assistência (FONSECA, 2004, p.14).

Apesar dessas primeiras iniciativas, os empresários americanos e franceses da

indústria automobilística, que chegaram ao país nos anos 50, mostraram-se insatisfeitos com a

3 OBRINGER, Lee Ann. Como funcionam os planos de saúde nos EUA. Disponível em:

<http://saude.hsw.uol.com.br/planos-de-saude1.htm>. Acesso em 25 out. 2011. 4 OBRINGER, Lee Ann.Como funcionam os planos de saúde nos EUA. Disponível em:

<http://saude.hsw.uol.com.br/planos-de-saude1.htm>. Acesso em 25 out. 2011.

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atenção médica oferecida pelo Estado à época. Assim, por iniciativa dos dirigentes das

montadoras Ford e General Motors e inspirados na experiência americana, surgiram sistemas

de seguros de saúde mais elaborados, que logo se estenderam a outras empresas.

A industrialização crescente da década de 50 levou à criação de sistemas de

assistência própria e à organização dos servidores públicos em Institutos de Aposentadoria e

Pensões aparte da Previdência Social. Um exemplo é o Instituto de Aposentadoria e Pensões

dos Industriários que hoje é o Grupo Executivo de Assistência Patronal – Geap (FONSECA,

2004, p. 14-15).

A primeira regulamentação do setor de seguros de saúde surgiu, embora de forma

muito tímida, através do Decreto Lei nº 73, de 21 de novembro de 19665, que abarcava o setor

de seguros privados como um todo, pois poucas empresas atuavam exclusivamente no ramo

dos planos de saúde nessa época. Foi somente no início dos anos 90, em decorrência da crise

institucional e financeira ocorrida no Brasil e com a consequente queda na qualidade e na

abrangência da cobertura do SUS, que houve uma explosão significativa no número de

empresas atuantes unicamente neste setor.

No contexto atual, existem mais de 1.600 empresas dessa natureza em atividade no

Brasil, que atendem mais de 46 milhões de usuários, quase 25% da população brasileira6. Mas

essa imensa e crescente categoria de consumidores ficou inserida, até final da década de 90,

em um contexto de fraca regulação, que conduziu à prevalência de práticas contratuais

abusivas ao consumidor, por exemplo, a seleção de riscos, à exclusão de tratamentos de alto

custo ou de longa duração e ainda o aumento unilateral de preços. Essa exploração dos

usuários por parte das operadoras de planos de saúde provocou uma robusta reação da opinião

pública, a qual repercutiu fortemente na mídia de modo a pressionar o Estado a interferir na

atividade através da implantação de um sistema regulador mais rigoroso (COSTA, 2003, p.

56).

A Lei nº. 9.656, de 03 de junho de 1998, foi um grande marco regulatório da

assistência suplementar de saúde. O referido ato normativo trouxe em seu bojo o conceito de

5

BRASIL. Decreto - Lei n. 73, de 21 de Novembro de 1966. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-73-21-novembro-1966-374590-

publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 20 out. 2011. 6 ANS. Dados Gerais sobre beneficiários de planos privados de saúde no Brasil de 2003 a 2011. Disponível

em: <http://www.ans.gov.br/index.php/materiais-para-pesquisas/perfil-do-setor/dados-gerais>. Acesso em: 27

out. 2011.

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plano de saúde7 e criou para os usuários várias garantias essenciais no tocante ao acesso e à

cobertura, tais como:

proibição da interrupção da internação hospitalar (inclusive em unidade de terapia

intensiva ou de alta complexidade), atendimento de urgência e emergência,

renovação automática dos contratos individuais, proibição da rescisão unilateral

(exceto por inadimplência superior a 60 dias) e garantia de inscrição e atendimento

ao filho recém nascido ou adotivo (FONSECA, 2004, p. 24).

A referida lei previa ainda a obrigatoriedade da conversão dos contratos antigos aos

seus moldes após um ano de sua vigência, de forma que em janeiro do ano 2000 todos os

contratos de planos de saúde deveriam estar adequados à nova regulamentação. Todavia, em

virtude de pressões da sociedade e de órgãos de defesa do consumidor, a adaptação contratual

inicialmente obrigatória passou a ser uma faculdade do usuário. A empresa tem o dever de

fornecer a opção de adequação, mas ao consumidor é oportunizado o direito de escolha.

Ressalte-se ainda que o Supremo Tribunal Federal, em decisão publicada no Diário Oficial da

União de 3/9/20038, declarou a inconstitucionalidade da aplicação retroativa da Lei 9.656/98

aos contratos firmados anteriormente à sua vigência.

Em 28 de janeiro de 2000, foi sancionada a Lei n°. 9.9619 que criou a Agência

Nacional de Saúde Suplementar (ANS), na qualidade de autarquia sob o regime especial,

vinculada ao Ministério da Saúde. Esse diploma traz em seu art. 3º, o objetivo primordial da

ANS, qual seja: “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde,

regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e

consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País”. Na

7 BRASIL. Lei 9.656/98. Art. 1º, I – Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviço ou

cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de

garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou

serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada,

visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da

operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor;:

(Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001) 8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1931/DF. Pleno. Min. Marco

Aurélio. j. liminar 21.08.03. DJU 28.05.04. 9 BRASIL. Lei 9.961/2000. Art. 1º - É criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, autarquia sob o

regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro - RJ, prazo de

duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de regulação, normatização, controle

e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde.

Parágrafo único. A natureza de autarquia especial conferida à ANS é caracterizada por autonomia administrativa,

financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos, autonomia nas suas decisões técnicas e mandato fixo de

seus dirigentes.

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qualidade de agência reguladora, a ANS, dispõe de autonomia administrativa, financeira e

decisória – esta última quanto a aspectos de ordem técnica.

A regulação dos serviços privados de saúde varia conforme o tipo de contratação,

podendo essa ser de três tipos:

1) plano individual ou familiar, contratado por pessoas físicas, no qual a

contraprestação pecuniária é integralmente paga pelo beneficiário, diretamente à

operadora; 2) plano coletivo sem patrocinador, contratado por pessoa jurídica, em

que a contraprestação pecuniária é integralmente paga pelo beneficiário,

diretamente à operadora; 3) plano coletivo com patrocinador, contratado por pessoa

jurídica, no qual a contraprestação pecuniária é, total ou parcialmente, paga pela

pessoa jurídica contratante, à operadora (ANDRADE; MAIA, 2006, p. 3).

Segundo dados da ANS10

, os planos coletivos (com ou sem patrocinador) – adesão

coletiva – respondem por cerca de 65% da cobertura, enquanto os planos individuais por cerca

de 22%. Paradoxalmente, mesmo respondendo por 2/3 de todos os contratos de planos de

saúde no Brasil, os contratos coletivos são justamente os regulados com menor intensidade,

sob o argumento de que por encontrarem no polo contraente uma pessoa jurídica – o

empregador – possuem maior poder de negociação. De outro modo, os planos individuais

passaram a ser regulados de forma mais ampla e intensa.

3 DA PORTABILIDADE DE CARÊNCIAS

Muito embora a Lei 9.656/98 tenha regulamentado os planos de assistência privada

de saúde, ela o fez de forma genérica, especialmente no que concerne à temática das

carências, não chegando sequer a definir seu significado. O citado diploma, todavia, fixa as

possibilidades de carência legalmente admitidas bem como seus prazos máximos.11

10

ANS. Dados Gerais sobre beneficiários de planos privados de saúde no Brasil de 2003 a 2011. Disponível

em: <http://www.ans.gov.br/index.php/materiais-para-pesquisas/perfil-do-setor/dados-gerais>. Acesso em: 27

out. 2011. 11

BRASIL. Lei 9.656/98 - Art.12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam

o inciso I e o § 1o do art. 1

o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as

respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes

exigências mínimas: V - quando fixar períodos de carência: a) prazo máximo de trezentos dias para partos a

termo; b) prazo máximo de cento e oitenta dias para os demais casos; c) prazo máximo de vinte e quatro horas

para a cobertura dos casos de urgência e emergência; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001).

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Essa matéria só foi regulamentada uma década depois, pela Resolução Normativa n°

186, de 14 de janeiro de 200912

, que finalmente trouxe o conceito jurídico de carência em seu

art. 2º, III:

Carência é o período ininterrupto, contado a partir da data de início da vigência do

contrato do plano privado de assistência à saúde, durante o qual o contratante paga

as mensalidades, mas ainda não tem acesso a determinadas coberturas previstas no

contrato, conforme previsto no inciso V do artigo 12 da Lei nº 9656, de 1998, nos

termos desta Resolução.

A definição de portabilidade de carência, conforme ressalta Fonseca (2004, p. 4), vai

além da “compra de carências”, prática habitual das operadoras de planos de saúde, as quais

dispensam o cumprimento de novos períodos de carência por parte de beneficiários oriundos

de outras empresas, mediante a negociação do tempo cumprido na empresa de origem,

fixando um valor adicional ao contrato a ser pago pelo consumidor.

A Resolução Normativa 186/2009, posteriormente alterada pela Resolução

Normativa 252/201113

, também da ANS, define, em seu art. 2º, inc. VII, a portabilidade de

carências como:

a contratação de um plano privado de assistência à saúde individual ou familiar ou

coletivo por adesão, com registro de produto na ANS, em operadoras,

concomitantemente à rescisão do contrato referente a um plano privado de

assistência à saúde, individual ou familiar ou coletivo por adesão, contratado após 1º

de janeiro de 1999 ou adaptado à Lei nº 9656, de1998, em tipo compatível,

observado o prazo de permanência, na qual o beneficiário está dispensado do

cumprimento de novos períodos de carência ou cobertura parcial temporária;

Percebe-se, pela simples leitura do artigo, que não estão acobertados pela

portabilidade os planos de saúde contratados anteriormente à vigência da Lei 9.656/98 ou que

a ela não foram adaptados.

Ademais, o dispositivo traz em seu inciso VIII um conceito de portabilidade especial

de carências, a qual ocorre nos casos de cancelamento compulsório do registro da operadora

12

BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Resolução nº 186. Brasília, 2009.

Disponível em:

<http://www.ans.gov.br/index2.php?option=com_legislacao&view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id

=1389> . Acesso em: 20 de outubro de 2011. 13

BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Resolução nº. 252. Brasília, 2011.

Disponível em:< http://www.ans.gov.br/texto_lei.php?id=1728> . Aceso: em 20 de outubro de 2011.

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(isto é, quando a empresa tem suas atividades encerradas em razão de descumprimento de

exigências feitas pela agência reguladora) ou de liquidação extrajudicial sem regime especial

prévio.

Conforme Souza (2009, p. de internet), a ANS verificou que a Resolução 186/2009

incidiu sobre cerca de 7,5 milhões de consumidores, o que equivale apenas a

aproximadamente 30% do número total de usuários de planos de saúde. Isso ocorreu em

virtude das suas determinações aplicarem-se somente aos consumidores pessoas físicas,

excluindo os contratos coletivos firmados por pessoas jurídicas, os quais correspondem à

maioria dos beneficiários.

Em contrapartida, a Resolução 252/2011 ampliou o raio de incidência regulatória ao

estender-se também aos planos de saúde coletivos por adesão, passando a atingir cerca de 12

milhões de beneficiários, segundo notícia da Folha de São Paulo14

.

Ressalta-se que a possibilidade de os beneficiários de planos de saúde migrarem de

plano ou operadora, sem a necessidade de cumprir novos períodos de carência ou Cobertura

Parcial Temporária, não é irrestrita, devendo ser realizada nos moldes dos ditames das

resoluções supramencionadas.

Desse modo, só faz jus à portabilidade de carências o usuário que está adimplente

junto à operadora do plano de origem. E nos casos de primeira migração, é necessário possuir

prazo de permanência de, no mínimo, dois ou três anos no plano de origem, na hipótese de o

beneficiário ter cumprido cobertura parcial temporária, ou de um ano, para as migrações

posteriores.

Ademais, só é possível o exercício da portabilidade na migração se houver

compatibilidade entre os planos de destino e de origem. Essa compatibilidade é pré-

determinada pela ANS e deve observar os critérios de abrangência geográfica (nacional,

estadual ou municipal), cobertura assistencial (sem internação, internação sem obstetrícia,

internação com obstetrícia ou odontológica), e ainda, a faixa de preços, sendo disponibilizada

pela agência em seu sítio eletrônico e devendo o consumidor consultá-la.

Além da compatibilidade, as resoluções da ANS determinam só ser possível a

mobilidade caso a faixa de preço do plano de destino seja igual ou inferior a que se enquadra

o seu plano de origem, considerada a data da assinatura da proposta de adesão (art. 3º, IV, RN

186/2009). Isso não significa que o valor do novo contrato deverá ser igual ou inferior ao

14

NOVA PORTABILIDADE DE CARÊNCIA DE PLANOS DE SAÚDE ENTRA EM VIGOR. Folha de São

Paulo, São Paulo, 27 jul. 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/950417-nova-

portabilidade-de-carencia-de-planos-de-saude-entra-em-vigor.shtml>. Acesso em: 29 out. 2011.

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antigo; ele poderá também ser superior. A faixa de preço representa uma referência e é

calculada com base em informações enviadas à ANS pelas operadoras, sendo expressas em

cifrões.

Há também uma restrição temporal para utilização da portabilidade: ela só poderá ser

requerida pelo beneficiário no período compreendido entre o primeiro dia do mês de

aniversário do contrato e o último dia útil do terceiro mês subsequente. Ou seja, o consumidor

dispõe somente de alguns meses no ano para o exercício do seu direito. Apesar disso, a

Resolução 252/2011 assegura a obrigatoriedade por parte da operadora originária de

comunicar, por qualquer meio que garanta a sua ciência, a todos os beneficiários cujos

contratos se submetem à Lei 9.656/98, acerca da data inicial e final do referido período.

A Resolução 186/2009 da ANS traz, expressamente, em seu art. 4º15

, vedação a

qualquer cobrança adicional para o exercício da portabilidade de carências, sob pena de multa

no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil Reais), conforme determinado pela Resolução Normativa

nº 124 de 200616

, a qual dispõe sobre a aplicação de penalidades para as infrações à legislação

dos planos privados de assistência à saúde. Além disso, o artigo subsequente proíbe a

discriminação de preços de planos em virtude da utilização da regra de portabilidade de

carências17

.

Assim, pode-se ver que existem várias restrições, sejam de ordem temporal, espacial

ou qualitativa, para que o consumidor seja dispensado do cumprimento de novos períodos de

carência.

4 A PORTABILIDADE COMO ARMA DO CONSUMIDOR

O consumidor de plano de saúde possui uma informação assimétrica sobre as

empresas fornecedoras deste tipo de serviço, ou seja, quase sempre detém pouca ou nenhuma

informação acerca da eficiência, qualidade e abrangência do seu plano de saúde, exceto as

informações óbvias repassadas pelo vendedor. Por outro lado, as empresas possuem um perfil

e um estudo muito mais minucioso sobre os seus clientes em potencial. Devido a essa

15

RN 186/2009 - Art. 4º Não poderá haver cobrança de custas adicionais em virtude do exercício do direito

previsto nesta Resolução, seja pela operadora de plano de origem ou pela operadora de plano de destino. 16

RN 124/2006 - Art. 62- Cobrar custas adicionais em virtude do exercício do direito à portabilidade de

carências ou à portabilidade especial de carências:(Redação dada pela RN nº 252, de 28/04/2011). Sanção –

advertência; Multa de R$ 30.000,00. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/texto_lei.php?id=790> . Acesso

em: 21 de outubro de 2011. 17

RN 186/2009 - Art. 5º Não poderá haver discriminação de preços de planos em virtude da utilização da regra

de portabilidade de carências.

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assimetria, não são raros os casos de insatisfação com o plano de saúde escolhido, e o

conseqüente, para não dizer natural, desejo de trocar de plano.

O ônus para aquele consumidor que optava por essa mudança de plano cristalizava-

se sob a forma de perda dos prazos de carência já cumpridos e também de perda do direito ao

tratamento de doenças pré-existentes, ferindo frontalmente a essência da tão almejada

proteção ao consumidor perseguida pelo CDC. Com isso em mente, e tendo por fulcro o

princípio da vulnerabilidade do consumidor, a obrigatoriedade da intervenção estatal com o

intuito de proteger os interesses daquele (expressos no art. 4º do CDC) e o princípio da

equidade, expressos no art. 7º e no inciso IV do art. 51, também do já referido código,

entende-se que a portabilidade era não só cabível, mas também necessária.

O direito à troca do plano de saúde, cujo atendimento se mostra insatisfatório ou

demasiadamente oneroso, sem a necessidade de enfrentar novos prazos de carência e com a

absorção de doenças pré-existentes, é arma indispensável para restabelecer o poder do

consumidor frente às operadoras de planos de saúde, estimulando a livre concorrência e a

competitividade entre as empresas deste setor.

Se por um lado as empresas alegam que a portabilidade é geradora de custos

adicionais e que esses custos não deveriam ser suportados integralmente por elas, entende-se

que, por outro lado, esse eventual custo faz parte do natural risco do empreendimento e que

obviamente ele estaria diluído pelas mensalidades de todos os seus usuários. Portanto, pode-se

chegar à conclusão de que esse custo seria inversamente proporcional à eficiência e qualidade

do serviço prestado pela empresa: quanto melhor o serviço menor seria o percentual de evasão

dentre os seus usuários e maior o percentual de novos clientes oriundos de outras empresas.

5 ANÁLISE DA ATUAL REGULAMENTAÇÃO DA PORTABILIDADE

Tendo em vista a perspectiva consumerista no que concerne à portabilidade de

carências nos planos de saúde, há três questões que merecem ser destacadas por irem de

encontro aos interesses e à proteção do consumidor: a) a não incidência sobre os contratos

anteriores à Lei 9.656/98 ou a ela não adaptados; b) a exigência de tempo mínimo de

permanência no plano anterior; e c) a restrição da possibilidade de migração somente no

período de aniversário do contrato.

5.1 A não incidência sobre os contratos anteriores à Lei 9.656/98 ou a ela não adaptados

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Os atos normativos da ANS regulamentam a Lei 9.656/98. E esta não incide

retroativamente sobre os contratos anteriores à sua vigência, de forma que toda a cadeia

regulatória dela subsequente também não alcançará os chamados contratos antigos, isto é,

anteriores à Lei dos Planos de Saúde. A adaptação dos planos antigos aos novos parâmetros

contratuais é uma faculdade conferida ao usuário, todavia, não se pode falar em direito de

escolha quando não é evidenciado o direito à informação, esse previsto no art. 6º, II, do

CDC18

, como um dos direitos básicos.

No que diz respeito aos contratos de planos de saúde, a educação dos consumidores é

praticamente inexistente, especialmente no que se refere à adequação aos diplomas

normativos que surgem no ordenamento. O que o consumidor busca é ter um custo razoável,

que não comprometa excessivamente o seu orçamento familiar e que lhe dê segurança em

suas despesas médicas. O usuário de plano de saúde, leigo e hipossuficiente (uma vez que o

ordenamento pátrio presume a hipossuficiência dos consumidores), não está preocupado se

seu contrato será regulamentado por esta ou aquela lei, o que ele deseja é a pronta utilização

dos serviços médico-hospitalares quando se fizerem necessários.

Na perspectiva das operadoras, mostra-se bastante conveniente a manutenção desses

contratos antigos, uma vez que são frouxamente regulados. A elas basta o oferecimento da

possibilidade de adequação do plano antigo à lei vigente. Contudo, a apresentação dessa

oferta não significa o esclarecimento do usuário sobre todas as vantagens e desvantagens

acerca da manutenção ou não do contrato. Some-se a isso o fato de os contratos antigos não

estarem acobertados pela portabilidade. Dessa forma, caso opte por permutar de plano ou de

operadora, o beneficiário que não realiza a adaptação terá que cumprir novos prazos de

carência, ficando, assim, refém do contrato presente.

Nesse passo, é de se esperar que o consumidor permaneça nos moldes a que já está

acostumado, uma vez que toda mudança traz consigo certa dose de insegurança. Além disso, o

consumidor teme a elevação dos preços cobrados pelas operadoras, já que os valores dos

novos contratos, por demandarem a obrigatoriedade de uma série de coberturas onerosas -

como a hemodiálise, a absorção de doenças pré-existentes e a internação sem limitação de

permanência -, tendem a ser mais elevados que os antigos. Esse contexto explica a

prevalência quantitativa dos contratos antigos sobre os novos, mostrando, entretanto, o

descumprimento da proteção ao consumidor.

18

Art. 6º, CDC - São direitos básicos do consumidor: II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado

dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

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5.2 A exigência de tempo mínimo de permanência no plano anterior

Um segundo aspecto a ser destacado nos atos normativos da ANS que regulamentam

os pré-requisitos da portabilidade, é a exigência de um tempo mínimo no plano anterior. Esses

prazos são definidos no artigo 3º, II, ‘a’, que estabelece, para a primeira portabilidade, um

prazo mínimo de 2 anos no plano de origem ou de 3 anos no caso do usuário ter cumprido

cobertura parcial temporária. E também um prazo de 1 ano de permanência para as eventuais

portabilidades subsequentes.

Sob a perspectiva do consumidor, entende-se que esses prazos são descabidos e

prejudiciais ao usuário, pois na prática, o torna “refém” do plano de saúde ineficiente e/ou

excessivamente oneroso, por um prazo muito além do razoável. Ora, a grande vantagem da

portabilidade é justamente a absorção dos prazos de carência, de modo a prover o usuário com

liberdade de escolha e de forma que o consumidor não seja prejudicado na migração. Logo,

essa espécie de quarentena para a portabilidade estabelece, na prática, uma carência para

exercer o direito de não ter que cumprir a carência, o que configura algo paradoxal, para não

dizer surreal.

Nesse sentindo, fazendo uma analogia dessa problemática com o art.20 do CDC,

observa-se que, no caso de um bem ou serviço apresentar um vício, tem o fornecedor apenas

30 dias para saná-lo, sob pena do consumidor exigir a restituição dos valores pagos sem

prejuízo das perdas e danos. Mas será que obrigar o consumidor de plano de saúde a

permanecer, por dois ou até três anos, atrelado a um plano de saúde “viciado”, sem que ele

possa exercer a portabilidade, poderia realmente ser considerada uma forma encontrada pela

ANS de mitigar um pouco os danos e perdas sofridos por este consumidor? Parece-nos que

não.

Entende-se, diante do que foi exposto, que o direito à portabilidade deveria poder ser

exercido num prazo de “quarentena”, chamemos assim, bem mais curto, de três ou quatro

meses, por exemplo, de modo que a sua observância não pudesse comprometer em demasia as

finanças ou a saúde do usuário, acaso fosse ele vítima de um plano insatisfatório sob qualquer

critério. Ou, numa perspectiva ainda mais protetora, essa quarentena não deveria sequer

existir, isto é, uma vez cumpridos os prazos de carência para determinada cobertura, não seria

necessário o beneficiário aguardar esse período para exercer a portabilidade.

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5.3 A restrição da possibilidade de migração somente no período de aniversário do

contrato

Por fim, destacamos a restrição de portabilidade somente em um período específico

do ano. A já referida resolução 186 da ANS estabelecia no seu art. 3º, § 2º, que a migração de

plano de saúde só poderia ser requisitada pelo usuário no período compreendido entre o

primeiro dia do mês de aniversário do contrato e o último dia útil do mês subseqüente, dando

a este usuário um intervalo para o exercício da portabilidade de cerca de apenas 2 meses por

ano.

Posteriormente, a também já aludida resolução 252 da ANS, estendeu esse prazo,

mudando a redação do § 2º, e estabelecendo um prazo que vai do primeiro dia do mês de

aniversário do contrato ao último dia útil do terceiro mês subseqüente. E estabelece ainda

algumas ressalvas a esse prazo, aumentando na prática, a janela de migração do usuário de

dois para quatro meses por ano.

Pode-se vislumbrar por parte das empresas operadoras de planos de saúde, alguns

argumentos que fundamentam tal restrição. Um deles poderia ser o fato de que os reajustes

dos planos são anuais, justamente nas datas em que fazem aniversário, e é com base no

volume de receitas e despesas dos doze meses anteriores que as operadoras definem o

percentual de seu reajuste para os doze meses subsequentes, de modo que a eventual dispersão

de usuários, a qualquer tempo, colocaria por terra a mais eficiente planilha financeira. Isso

comprometeria sobremaneira a viabilidade econômica do plano e, consequentemente, a sua

própria existência, além de prejudicar terrivelmente aqueles usuários que nele permanecessem

Entretanto, do ponto de vista prático, pode-se acreditar que uma saída em massa de todos os

usuários de um plano, concentrada em um único período do ano, é pouco provável. Portanto, a

eventual diminuição da receita por migração de usuários é um risco inerente ao

empreendimento, e proporcional à qualidade dos serviços oferecidos.

Assim, entende-se que este pré-requisito, a exemplo da situação abordada no item

anterior, fere frontalmente o conteúdo principiológico do CDC, na medida em que limita

temporalmente o exercício de um direito do consumidor, restringindo-o a somente

determinadas épocas do ano.

Adotando a mesma linha de raciocínio do tópico acima, ao fazer uma leitura do

art.26 do CDC, que trata dos prazos de decadência e prescrição, percebe-se que a existência

desse período anual de migração cria, na prática, um prazo decadencial cíclico para o

consumidor, que se vê obrigado a permanecer com o seu plano de saúde eivado de “vício”,

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em 2/3 do ano, todos os anos. Diante disso, apreende-se que a existência dessa limitação não

se assenta em qualquer fundamento razoável, não devendo ela existir, sendo franqueada ao

usuário a migração de plano em qualquer época do ano.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, percebe-se que apesar dos planos e seguros de saúde no

Brasil existirem há décadas, somente nos últimos 12 anos o Estado realmente preocupou-se

com a sua regulamentação, sendo prova disso a edição da Lei 9.656/98, a criação da Agência

Nacional de Saúde no ano 2000 e a publicação, por essa agência, de uma série de atos

normativos.

No entanto, esse é um processo lento, que precisa ser alvo de um amplo debate entre

as empresas, do poder público e dos usuários, uma vez que qualquer mudança mais brusca na

sua regulamentação espraiará os seus efeitos por milhões de pessoas, numa área essencial

como a saúde.

De todo modo, a ANS vem desempenhando um papel significativo no contínuo

processo de aprimoramento da legislação, e nesse sentido, a criação da portabilidade de

carências, há muito almejada pelos consumidores, é um passo importante em direção ao seu

aperfeiçoamento. Desprovidos do temor de ter que passar por novos períodos de carência, os

consumidores ganharam maior força para exigir melhorias nos contratos de planos de saúde,

bem como maior liberdade para mudar de operadora, caso seus anseios não sejam atendidos

pela empresa.

Entretanto, no que tange especificamente à portabilidade, observa-se que muito ainda

pode ser aprimorado, principalmente ao analisar sua regulação à luz do CDC. Além disso, foi

possível verificar que determinados aspectos das normatizações da ANS ainda conflitam com

balizamentos principiológicos do CDC, inclusive em pontos considerados nevrálgicos, como

a possibilidade de migração somente no período de aniversário do contrato, a exigência de

tempo mínimo de permanência no plano anterior e a não incidência da Lei 9.656/98 sobre os

contratos a ela anteriores ou não adaptados.

Todavia, pode-se acreditar que a regulação exercida pela ANS, nos moldes em que

está sendo realizada, com a ampla participação das empresas, da sociedade civil e do Estado,

encontra-se no rumo certo, embora não se possa jamais esquecer que tal regulação deve ser

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objeto de um aperfeiçoamento contínuo, sempre tendo por norte os princípios que regem o

CDC.

RFERÊNCIAS

ANDRADE, Mônica Viegas; MAIA, Ana Carolina. Demanda por planos de saúde no

Brasil. 2006. Disponível em: <http://www.anpec.org.br/encontro2006/artigos/A06A106.pdf>.

Acesso em: 27 out. 2011.

COSTA, Nilson do Rosário. O regime regulatório e a estrutura do mercado de planos de

assistência à saúde no Brasil. In: Ministério da Saúde; Agência Nacional de Saúde

Suplementar; MONTONE, Januário; CASTRO, Joaquim Werneck de (Org.). Regulação e

saúde: documentos técnicos de apoio ao Fórum de Saúde Suplementar de 2003. Tomo 1. v. 3.

Rio de Janeiro, 2004, p 49-64. Disponível em:

<http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/Prod

EditorialANS_Serie_regulacao_e_saude_Vol_3_Tomo_1.pdf>. Acesso em: 25 out. 2011.

FONSECA, Artur Lourenço da. Portabilidade em planos de saúde no Brasil. Dissertação

(Mestrado Profissionalizante em Regulação de Saúde Suplementar) - Escola Nacional de

Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2004. Disponível em:

<http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/Disse

rtacoes_Portabilidade_Formas_de_Implementacao.pdf> Acesso em: 25 out. 2011.

SOUZA, Felipe Hannickel. Planos de saúde: portabilidade de carências. Jus Navigandi,

Teresina, ano 14, n. 2251, 30 ago. 2009. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/

13418>. Acesso em: 26 ago. 2011.

LA PORTABILIDAD DE LOS PLANES DE ATENCIÓN DE SALUD: UN ANÁLISIS

EN LA PERSPECTIVA DEL DERECHO DEL CONSUMIDOR

RESUMEN

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Este artículo trata la portabilidad del plazo de gracia de los planes

privados de atención a la salud, con el objetivo de verificar si la

materia regulatoria vigente se adapta a las necesidades consumeristas.

Se presenta breve historia de la evolución de los planes de salud en

Brasil se describen las condiciones y restricciones para que opere la

portabilidad del plazo de gracia, especialmente aquellas que van en

contra la insculpida protección del CDC. Concluimos que la

regulación de los planes de salud siguen una tendencia lenta y gradual

de mayor protección a los consumidores, aunque tenga aspectos fallos.

Palabras clave: Planes de salud. Portabilidad del plazo de gracia.

Derecho del Consumidor.

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Recebido 01 mar. 2013

Aceito 03 abr. 2013

AS FUNÇÕES DA PROPRIEDADE E O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO

DE COMPOSIÇÃO DOS INTERESSES PRIVADOS E PÚBLICOS

Ana Marília Dutra Ferreira da Silva1

RESUMO

A noção de propriedade e sua funcionalidade sempre permeou o

histórico das sociedades humanas, de modo que os choques de

interesses sociais ocasionaram um processo de relativização de seu

conceito. O presente trabalho objetiva caracterizar o Plano Diretor

como instrumento de composição dos interesses públicos e privados

dentro da perspectiva do direito urbanístico e da interpretação

principiológica constitucional. Defende-se que a função individual da

propriedade é pressuposto da função social e que ambas assentam-se

no princípio da dignidade humana para concretizar interesses

econômicos à luz da justiça social. Metodologicamente, lança mão dos

recursos teórico-analíticos nas searas jurídica e histórica.

Palavras-chave: Propriedade. Dignidade Humana. Função Individual

da Propriedade. Função Social da Propriedade. Plano Diretor.

1 INTRODUÇÃO

A concepção humana do que seja propriedade é variável, sujeitando-se às mudanças

filosóficas, econômicas e sociais. Em geral, tem-se notícia de regulamentação da propriedade

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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no Código de Hamurábi, no qual se disciplinava a compra e venda de imóveis. Mais adiante,

na Roma Antiga, a propriedade passou a ter uma conotação religiosa, permanecendo ligada

aos direitos personalíssimos. No entanto, foi após a Idade Média que o caráter absoluto desse

instituto alcançou o seu grau mais alto, em decorrência principalmente da ascensão política da

burguesia, isso porque este conceito está intrinsecamente relacionado à liberdade econômica e

individual.

Por outro lado, o estudo da propriedade deve ser acompanhado da noção de sua

funcionalidade e foi essa ideia básica de utilidade social que norteou as transformações

políticas e jurídicas do conceito de propriedade no decorrer do século XX. Assim, ressaltou-se

a dignidade humana como fundamento do direito de propriedade, o qual passou a ser encarado

como um verdadeiro direito humano, sem o qual não é possível conferir condições mínimas

de existência ao ser humano.

No Brasil não foi diferente, de maneira que, com a Constituição Cidadã, buscou-se

harmonizar os princípios do Estado Democrático de Direito com o sistema econômico

capitalista, compondo a valorização do trabalho e da livre iniciativa privada com os valores da

justiça social. É nesse contexto em que está situado este trabalho, sendo norteado, por

conseguinte, pelos arts. 5º e 170, da Constituição Federal, os quais resguardam o direito à

propriedade privada, ao passo que sobreleva o princípio da função social da mesma.

Buscou-se demonstrar que no centro da tensão entre as duas concepções de

propriedade, quais sejam: uma posição extremamente liberal e patrimonialista,

diametralmente oposta a uma perspectiva voltada às necessidades da coletividade, não deve

prevalecer quaisquer das duas, havendo de ambas as concepções conviverem

harmonicamente. Nessa trilha, expõe a diferenciação entre os conceitos de função individual e

social da propriedade, os quais alcançam efetividade e harmonia através da instituição de um

Plano Diretor Municipal.

Este instituto, por sua vez, será abordado tão somente em seu viés jurídico, no que

for suficiente ao presente trabalho. Ressalta-se o seu caráter constitucional e indica-se seus

principais objetivos, a fim de encontrar o fundamento de sua criação, bem como a sua

essencialidade no contexto da Política Urbana, sendo caracterizado como elemento

condicionante à concretização da função social da propriedade.

2 O DIREITO FUNDAMENTAL À PROPRIEDADE: CONCEPÇÃO LIBERAL

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VERSUS CONCEPÇÃO SOCIAL

A ascensão da lógica burguesa de organização socioeconômica acarretou uma

transformação na maneira de encarar-se a propriedade. Isso porque, se no mundo greco-

romano a noção de domínio sobre a terra relacionava-se intrinsecamente com a tradição

familiar e na Idade Média havia um sistema de hierarquia e de superposições de títulos

dominiais, além de haver uma vinculação do indivíduo a uma ordem objetiva, natural e divina

(GOBBO, 2008, p. 17-21), na sociedade liberal a propriedade passou a ser concebida com

uma conotação individual e econômica, inadmitindo-se a interferência do soberano sobre a

mesma.

Assim, como bem expõe Comparato, o direito burguês gerou a propriedade “como

poder absoluto e exclusivo sobre coisa determinada, visando a utilidade exclusiva do seu

titular” (2008, p. 93). Tal entendimento ganhou ênfase com a doutrina de John Locke, o qual

vislumbrava na propriedade privada um direito natural, de modo que não poderia haver

quaisquer restrições ou intervenções estatais sobre a mesma, além de que deveria o Estado

protegê-la contra ingerências externas. O direito à propriedade insere-se, portanto, no rol da

Declaração dos Direitos Humanos de 1789, constituindo direito de status negativus, através

do qual limita-se as possibilidades de ação do Estado “para preservar a liberdade pessoal que

inclui a atuação econômica e o usufruto da propriedade” (MARTINS e DIMOULIS, 2008, p.

67).

Ocorre que o acesso à propriedade privada não foi democratizado, mas permaneceu

sob o domínio de uma elite burguesa, ensejando o despontamento de inúmeras críticas ao

pensamento liberal e novas maneiras de entender-se a propriedade sob a perspectiva de sua

funcionalidade. Destaca-se à contribuição dessas mudanças, a doutrina marxista e o

pensamento de Duguit, segundo o qual os direitos só se justificam por meio de sua

contribuição social (CARBONARI, 2007, p. 62). Percebe-se, assim, que a sociedade começou

a buscar a concretização dos valores da igualdade e da justiça, esquecidos, na prática, pela

revolução liberal.

Por conseguinte, nesse processo de mudança de concepção, promulga-se, em 1919, a

Constituição alemã de Weimar, a qual afasta o caráter absoluto do direito à propriedade e

reveste-a de funcionalidade, ao instituir expressamente que “a propriedade obriga” (DIAS

JUNIOR, 2008, p. 356). Desse modo, os ordenamentos jurídicos de vários países ocidentais

foram absorvendo as ideias de solidariedade humana, equidade, justiça, interesse social e,

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destarte, estabeleceu-se o liame entre propriedade e defesa da dignidade humana, exigindo-se

do Estado medidas concretas de política social, a fim de proibir o uso abusivo e possibilitar o

acesso democratizado das terras. Nesse contexto, Nusdeo (2008, p. 209) insere o conceito de

poder-dever, revelando que o titular do direito de propriedade, além do poder de dominar um

bem, deve cumprir um dever de agir sobre a sua propriedade de maneira a conferir

“benefícios gerais, por exemplo, construindo um edifício ou plantando em terrenos que

estejam até então ociosos.

3 O DIREITO À PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O sistema jurídico brasileiro, até recente período da história do país, tendeu a

acompanhar os fluxos e refluxos dos ordenamentos jurídicos alienígenas, mormente europeus.

Partindo-se desta premissa não é de estranhar-se o caráter liberal das Constituições de 1824 e

1891, o qual se manteve até a Constituição de 1934, a qual ineditamente apresenta um

capítulo acerca da ordem econômica e social, dispondo que o direito à propriedade não pode

sobrepujar o interesse social ou coletivo (BARBOSA, 2006, p. 70-71).

Em razão disso, o Código Civil de 1916 restou impregnado dos ideais burgueses da

revolução francesa, sobrelevando os interesses patrimoniais como parâmetro na vida dos

sujeitos de direito em detrimento dos interesses coletivos da sociedade, ou seja, a legislação

civilista não priorizou a realidade dos indivíduos destituídos do poder econômico conferido

pela propriedade.

Três razões principais foram responsáveis pela mitigação da influência liberal nas

constituições brasileiras, quais sejam: a crise econômica do pós-Primeira Guerra Mundial; o

movimento revolucionário russo e a Constituição de Weimar. Assim, a partir de 1934 todas as

Constituições foram paulatinamente inserindo direitos eminentemente sociais e aumentando a

intervenção do Estado no âmbito econômico. Exceção a esta tendência consistiu na Carta

Magna de 1937, a qual, devido ao seu caráter autoritário e direitista, suprimiu as limitações ao

exercício do direito de propriedade, não aludindo em momento algum ao princípio da função

social (SANTOS, 2006, p. 6).

Desta feita, ao passo que a Constituição de 1946 tratou explicitamente do interesse e

bem-estar social e previu a justa distribuição de terras, objetivando compor aquilo que era útil

para o capital e as reivindicações do proletariado; a Constituição de 1967, em seu art. 157,

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inseriu a função social da propriedade como princípio fundamentador da ordem econômica.

Com o fim do regime militar, período de extremas violações aos direitos humanos,

promulgou-se no Brasil uma Constituição repleta de garantias individuais e coletivas. Dentre

elas encontra-se o direito fundamental e individual à propriedade privada, o qual é

introduzido, ademais, no rol dos princípios da ordem econômica, como abordado adiante.

Além disso, os capítulos II e III, do Título VII, da Carta Magna, dispõe acerca do Política

Urbana, a qual terá ênfase neste trabalho, e da Política Agrícola e Fundiária a da Reforma

Agrária, impondo restrições ao exercício do direito de propriedade, no âmbito urbano e rural,

respectivamente.

O lastro jurídico à persecução ao direito de propriedade não se limita, no entanto, ao

previsto nos capítulos supramencionados, mas resulta também da interpretação sistemática e

teleológica da Carta Magna. Isso porque, a implantação de políticas públicas direcionadas à

efetivação da função social da propriedade e à ordenação equitativa do solo urbano e rural é

corolário dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, constantes no art. 3º, da atual

Constituição Federal. Tais objetivos consistem na construção de uma sociedade livre, justa e

solidária; promoção do desenvolvimento nacional e do bem de todos; erradicação da pobreza

e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais. Não se

concebe, portanto, o alcance desses objetivos sem uma “política de distribuição equitativa das

propriedades, sobretudo de imóveis rurais próprios à exploração agrícola e de imóveis

urbanos adequados à construção de moradias” (COMPARATO, 2008, p. 98).

Desta feita, a função social da propriedade assume hierarquia de norma

constitucional com caráter restritivo (DIAS JÚNIOR, 2008, p. 357), de maneira a incentivar o

uso responsável, racional e adequado do solo urbano e rural. Como reflexo dessas

modificações de paradigmas e valores, o Código civilista vigente a partir de 2002 passou a

conter dispositivos como o art. 1.228, §1º, segundo o qual o direito de propriedade deve ser

exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, ressaltando-se o dever

de preservação e recuperação do meio ambiente.

Inobstante, não é pertinente olvidar-se que o direito brasileiro nunca deixou de ser

influenciado por concepções liberais, seja na seara econômica, social ou política, isso porque

adotou-se o sistema de produção capitalista. O que há é uma mitigação desses paradigmas, a

fim de conceder importância às conjunturas sociais, sopesando o conflito de interesses

existente entre os detentores do poder econômico e a coletividade. Assim, como será visto

adiante, a função individual da propriedade é pressuposto da sua função social, não podendo

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haver esta sem aquela, no contexto do Estado Constitucional atual.

4 AS FUNÇÕES INDIVIDUAL E SOCIAL DA PROPRIEDADE E A DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA

A dignidade da pessoa humana é um dos alicerces que sustentam o Estado

Democrático de Direito. Afastar este preceito quando do estudo ou interpretação de quaisquer

dos direitos fundamentais, aqui entendidos como a positivação constitucional dos direitos

humanos, é mitigar sua densificação semântica. Por outro lado, como bem aduz Mattar (2010,

p. 5) a dignidade da pessoa humana depende da proteção e garantia dos direitos fundamentais,

os quais “tutelam a liberdade, a segurança e a autonomia da pessoa frente ao poder estatal e

aos outros membros da sociedade”. Dentre estes direitos essenciais à defesa da dignidade da

pessoa humana enquadra-se o direito à propriedade, o qual será compreendido adiante, através

de seu duplo aspecto conferido pela Constituição Federal.

Antes, porém, é necessário entender-se o princípio da dignidade humana em suas

dimensões individuais e coletivas. Como supra exposto, a dignidade humana envolve tanto a

pessoa em sua individualidade, abarcando as necessidades materiais mínimas a uma vida

digna, quanto a pessoa inserta no âmbito social, constituindo “valores e fins superiores da

ordem jurídica, que reclamam a ingerência ou a abstenção dos órgãos estatais” (MATTAR,

2010, p. 10). Ademais, sendo a dignidade humana um dos escopos da ordem econômica2, toda

e qualquer relação ou atividade econômica deve guiar-se à consecução de uma existência

digna a todos (GRAU, 2010, p. 198). Sendo assim, a fim de que o direito à propriedade atenda

o preceito da dignidade humana, deve-se necessariamente conjugar a função individual e

social do domínio.

Nessa trilha, o constituinte prevê, no art. 5º, caput e inciso XXII, o direito subjetivo à

propriedade, através do qual se garante o mínimo de condições patrimoniais à manutenção de

uma vida digna. Consoante salienta Dias Junior (2008, p. 358), eis a função individual da

propriedade: garantir a efetivação da dignidade humana, favorecendo a sobrevivência e o

esteio do proprietário e de seu núcleo familiar, bem como a efetivação de outros direitos

fundamentais relativos à segurança, à liberdade e à vida. Ou seja, o Estado deve,

2 Art. 170, caput, da Constituição Federal de 1988: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho

humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça

social, observados os seguintes princípios: (...)”.

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primeiramente, esforçar-se por manter o domínio da terra daqueles que a usufruem como

elemento de dignidade humana, posto a função individual que cumpre. Este direito, no

entanto, não é absoluto, sendo restringido em decorrência de abusos ao uso da propriedade, os

quais são sancionados por meio do poder de polícia estatal.

Cumprindo a propriedade sua função individual, pugna-se pela concretização da

função social da propriedade privada, sendo esta entendida agora como princípio da ordem

econômica e não mais como direito subjetivo. Nesse diapasão, tem-se que a função social da

propriedade impõe-se no que excede a função individual, posto ser no mínimo injusto e

violador das garantias constitucionais, exigir-se o cumprimento de um dever social se as

carências básicas individuais não restarem supridas. Desta feita, conforme indica Grau (2010,

p. 243), este excedente constitui a “propriedade detida para fins de especulação ou acumulada

sem destinação ao uso a que se destina”.

A função social da propriedade visa adequar a riqueza proveniente da terra em um

modelo que otimize o desenvolvimento coletivo, pretendendo a realização da justiça social,

sem, no entanto, suprimir a propriedade privada (DIAS JUNIOR, 2008, p. 359). Ademais, a

concepção desta função social concede direitos aos não proprietários, os quais são legitimados

a fiscalizar o uso do solo, reivindicando dos seus titulares ações que vislumbrem o

aproveitamento racional e adequado, dentro da lógica de um modelo sustentável e que

acarrete o bem-estar populacional. Percebe-se, portanto, que a função social da propriedade

transcende e muito a sua função individual, posto que envolve os direitos difusos da

coletividade, como o direito a um meio ambiente saudável.

Por fim, inobstante a função social da propriedade integrar a estrutura do conceito

jurídico de propriedade, consoante doutrina de Victor Carvalho Pinto (2005, apud BICUDO,

2008, p. 34), a propriedade constitui um direito e não uma função, haja vista que a

propriedade que não cumpre a sua função social permanece sendo protegida pelo

ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque, mesmo nos casos de desapropriação, o

proprietário do imóvel detém ainda o direito de perceber justa indenização.

Assim, entende-se que a função social da propriedade constitui o equilíbrio entre o

interesse público e o privado, no qual este é subjugado por aquele (SARNO, 2004, citado por

BICUDO, 2008, p. 25). Isto posto, conclui-se que a propriedade apresenta-se primordialmente

como elemento de concretude dignidade humana, bem como da liberdade individual,

cumprindo, ademais, uma função economicamente útil à luz da justiça social.

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5 O PLANO DIREITOR COMO MEIO DE COMPOR A FUNÇÃO INDIVIDUAL E

SOCIAL DA PROPRIEDADE

O escopo de planejar a cidade não foi acompanhado, inicialmente, da promulgação

de regras jurídicas. Isso porque, até a Constituição de 1988 não havia obrigatoriedade de os

Municípios elaborarem leis nesse sentido. O estudo da necessidade de ordenar a cidade era de

interesse unicamente da Ciência da Administração e Economia, exceto quando o legislativo de

algum ente municipal promulgava uma lei ou um decreto, no qual estabelecia-se sanções ao

descumprimento de suas regras. Fora desse âmbito o direito não agia. Quando muito, discutia-

se acerca da competência para a elaboração desse planejamento – se do Executivo ou do

Legislativo.

Nesse contexto, Câmara (2010, p. 319) aduz que a adoção do planejamento urbano,

como materializado normalmente em um plano diretor, era fruto de uma avaliação meramente

político-administrativa. Destarte, é cabível inferir que não havia parâmetros, através dos quais

fosse possível conferir conteúdo mínimo a tal regulamentação, que ficava a critério tão

somente das conjunturas governamentais.

À Carta Cidadã, por sua vez, deve-se “a definitiva positivação do paradigma do

direito urbanístico” (SUNFELD, 2010, p. 51), posto constituir o plano diretor como

instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana e tornando-o

obrigatório à cidades com mais de duzentos mil habitantes. Não obstante, a Constituição

Federal limitou-se a estabelecer diretrizes, deixando de estabelecer definições jurídicas, fixar

sanções à não implementação desse instrumento e esclarecer quanto ao conteúdo mínimo que

deveria constar no mesmo. O direito urbanístico carecia, portanto, de clarividência.

Esta situação foi revertida e, para alguns, parcialmente revertida, apenas em 2001,

com a promulgação do Estatuto das Cidades, Lei federal nº 10.257, a qual tem como objetivo

a regulamentação dos arts. 182 e 183, da Constituição Federal, os quais versam acerca da

Política Urbana, além de possuir um capítulo específico para o Plano Diretor. A Lei supra

busca uma organização urbana justa e solidária, primando pela inclusão social na seara

urbanística e por uma gestão democrática, a fim de difundir o acesso à propriedade ou os

benefícios do exercício de sua função social. Ademais, preocupa-se com o equilíbrio

socioambiental, harmonizando os interesses e bem-estar social e privado com a preservação

ambiental.

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Por outro lado, Sunfeld (2010, p. 52) atenta para o fato de que o Estatuto da Cidade é

um conjunto normativo intermediário, posto que, com exceções, as suas normas exigirão

desdobramentos jurídicos complementares. Percebe-se que o seu principal desdobramento é o

Plano Diretor, por meio do qual i) determina-se as áreas urbanas em relação as quais se

poderá exigir o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; fixa-se ii) delimita-se as

áreas em que o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de

aproveitamento básico adotado; iii) fixa-se o coeficiente de aproveitamento básico, que

poderá ser unificado em toda zona urbana ou diferenciado para áreas específicas; iv) define-se

os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, mediante

contrapartida do beneficiário; v) delimita-se as bases para que leis municipais específicas

delimitem as áreas em que incidirá o direito de preempção e aquelas em que serão realizadas

operações consorciadas; vi) fornece-se lastro para que a lei municipal autorize a transferência

do direito de construir3.

Ressalte-se que o Plano Diretor compõe um dos instrumentos da política de

desenvolvimento e expansão urbana, adquirindo realce constitucional quando caracterizado

no art. 182, §1º, da Constituição Federal como o instrumento básico desta política. Diz-se

básico em razão de sua fundamentalidade, posto que ele lastreia todo o ordenamento urbano,

englobando os interesses da população local.

Não obstante, seus propósitos transcendem essa fundamentalidade para materializar-

se como elemento através do qual se definirá a função social da propriedade relativamente ao

contexto em que vive a respectiva comunidade. Este entendimento origina-se da interpretação

conjunta do art. 182, §2º, da Constituição Federal e do art. 39, do Estatuto da Cidade. Ambos

preceituam que “propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências

fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Assim, o Plano Diretor

consiste no instrumento jurídico “competente para precisar a fluidez do conceito de função

social da propriedade urbana” (CÂMARA, 2010, p. 323). Ou seja, o Plano Diretor deve

nortear, delimitar, fixar os deveres aos quais os proprietários de imóveis urbanos estarão

sujeitos, a fim de favorecer o interesse coletivo.

Não se trata, no entanto, de norma arbitrária, elaborada por critérios meramente

subjetivos do legislador, conforme complementa a segunda parte do art. 39: a função social da

propriedade urbana é assegurada no momento em que as necessidades dos cidadãos quanto à

3 BRASIL, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 18 jul. 2012.

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qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas são

atendidas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º, da mesma lei. Assim, o Plano Diretor

não pode violar ou omitir tais elementos norteadores da organização social e econômica das

cidades.

As diretrizes resumem-se em i) garantir a sustentabilidade e gestão democrática das

cidades; ii) buscar a cooperação entre todos os atores sociais visando o interesse social; iii)

corrigir as distorções do crescimento urbano, impedindo as suas consequencias negativas; iv)

ofertar os equipamentos urbanos e comunitários adequados às características locais; v)

efetivar a justa distribuição de benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;vi)

concretizar o bem-estar geral nos diferentes segmentos sociais; vii) preservar o meio ambiente

e o patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; viii) efetuar a

regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda; ix)

promover a igualdade de condições para os agentes públicos e privados na promoção de

empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse

social.

Percebe-se, em suma, que o cerne fundador do Plano Diretor consiste na defesa e

proteção da dignidade humana, seja em sua dimensão individual ou social. Isso porque, visa

garantir condições mínimas de existência à população urbana, por meio da efetivação de

direitos essenciais, como o direito à moradia, ao acesso ao transporte público, ao saneamento

básico, ao lazer e à energia elétrica, por exemplo.

Desse modo, apesar de, à primeira vista, imaginarmos que a implantação do Plano

Diretor sobreleve a função social da propriedade em detrimento de sua função individual, é

necessário enfatizar que o que ocorre é uma composição de interesses, de maneira que a

política urbana possui como escopo proporcionar o pleno desenvolvimento das funções da

urbe como um todo, bem como de cada propriedade em particular, harmonizando os possíveis

conflitos e conjugando os reais interesses.

É possível exemplificar a ideia aqui esposada através da análise do papel central do

Plano Diretor no estabelecimento do instituto do solo criado. Nessa trilha, define o coeficiente

de aproveitamento básico, o qual consiste em direito subjetivo do proprietário, de maneira a

resguardar o uso e disposição do solo urbano. Ao garantir o aproveitamento deste e,

concomitantemente, ao limitá-lo impedindo uma sobrecarga na infraestrutura urbana, está-se a

instituir um equilíbrio entre função individual e social da propriedade, cerne da construção do

direito urbanístico.

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Desta feita, seguindo concepção de Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 808-

809), apesar de reconhecer-se os direitos inerentes à propriedade, quais sejam, o uso e

disponibilidade do bem, caberia à legislação estipular limitações. Concebe-se, portanto, o

direito de propriedade em sua relatividade, dado que a extensão de seu exercício é balizada

pelos marcos legais (MARQUES NETO, 2010, p. 236-237) estabelecidos pelo Plano Diretor.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde a instituição da concepção de propriedade, esta sempre permaneceu em

destaque no âmbito político e jurídico, posto a sua característica de bem econômico e o poder

conferido ao proprietário das terras. O século XX, por sua vez, assistiu às revoluções

socialistas e a organização da sociedade civil em prol da efetivação de políticas públicas que

promovessem a justiça social. Desta feita, elevou-se o princípio da dignidade humana ao seu

mais alto grau, passando a constituir esteio ao Estado Democrático de Direito.

Por outro lado, a dignidade humana apresenta-se também como um dos princípios da

ordem econômica, de forma que, encontrando-se a propriedade no cerne das questões

relativas à produção, ao mercado e ao capitalismo em geral, a aplicação social do direito à

propriedade deve primar pela efetivação da dignidade humana, a qual só será alcançada com o

reconhecimento da função individual e social da propriedade.

Percebe-se que a Carta Magna de 1988 admitiu a proteção da propriedade privada e

ressaltou sua funcionalidade. Não há que se pensar, portanto, em caráter absoluto do direito à

propriedade, posto que a sua relativização já alcançou níveis constitucionais. Ademais, a

mesma Carta previu o Plano Diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento

e de expansão urbana, tornando-o obrigatório à parcela majoritária da população brasileira.

A importância desse instituto está no fato de que, por meio dele é possível compor os

interesses privados e públicos, materializando e assegurando a função individual e social da

propriedade e, por conseguinte, tornando possível uma vida digna a todos os habitantes de

determinada comunidade.

Ressalta-se, ainda, que este trabalho encontra-se em um nível teórico jurídico,

valendo-se de uma análise teleológica da Constituição Federal. Desta feita, não se olvida das

problemáticas inerentes à implementação eficaz deste instrumento perante a municipalidade,

mormente devido a questões políticas. Sustenta-se, no entanto, que o Plano Diretor constitui

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um dos caminhos para atingir-se o máximo de justiça social no meio urbano. Para tanto,

torna-se indispensável a clareza de suas disposições, bem como sua objetividade, além de um

trabalho técnico multidisciplinar, a fim de entender-se as reais dificuldade do

desenvolvimento sustentável de uma comunidade urbana, bem como elaborar soluções

conjuntas para superá-las.

8 REFERÊNCIAS

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às políticas públicas de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Dissertação

(Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

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Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 45-60.

THE FUNCTIONS OF PROPERTY AND THE MASTER PLAN AS A TOOL FOR

COMPOSING PUBLIC AND PRIVATE INTERESTS

ABSTRACT

The concept of property and its functionality has permeated the

history of human societies, so that the collisions of social interests led

to a relativization of its concept. This study analyzes the Master Plan

as a tool for composing public and private interests within the

perspective of urban law and principled constitutional interpretation.

It defends that the individual function of property is the

presupposition of social function and that both are based on the

principle of human dignity to achieve economic interests in the

spotlight of social justice. Methodologically, lays hold of analytical

and theoretical resources, in historical and legal fields.

Keywords: Property. Human Dignity. Role of the Individual

Property. Social Function of Property. Master Plan.

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Aceito 06 abr. 2013

ENTRE A FILOSOFIA ANALÍTICA E O CULTURALISMO JURÍDICO: A

APROXIMAÇÃO DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO DE NORBERTO BOBBIO

COM O DE MIGUEL REALE

Geailson Soares Pereira1

RESUMO

Examina a semelhança existente entre o pensamento jusfilosófico do

italiano Norberto Bobbio e do brasileiro Miguel Reale dentro do

contexto jurídico no qual os autores viveram. Analisa os aspectos

fundamentais da teoria tridimensional do direito de Reale, assim como

investiga a questão da justiça, da eficácia e da validade na obra de

Bobbio. Conclui que o pensamento de Bobbio não exclui o aspecto

tridimensional do Direito, embora ele próprio se auto rotule como um

filósofo analítico.

Palavras-chave: Filosofia do Direito. Miguel Reale. Norberto

Bobbio. Teoria Tridimensional do Direito.

“Contrariando a história positivista, chegou o tempo de redescobrir a

dependência congênita das ciências jurídicas em relação às

ontologias e representações do mundo inventadas por filósofos”

(Michel Villey)

1 INTRODUÇÃO

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estagiário do Tribunal de Justiça do

Rio Grande do Norte. Membro do projeto de pesquisa “A Teoria da Linguagem e o Direito: nova via de acesso

ao mundo jurídico”, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 98

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Norberto Bobbio e Miguel Reale são juristas contemporâneos do século passado. A

doutrina jurídica quase não vacila em classificar Bobbio como adepto do neopositivismo

jurídico assim como não oscila em colocar Reale dentro do culturalismo jurídico. Por outro

lado, o senso teórico comum dos juristas afirma que o positivismo jurídico - do qual decorre o

neopositivismo lógico - tem como base teórica elementos distintos do culturalismo jurídico.

Consequentemente, o pensamento de Bobbio não poderia guardar maiores semelhanças com o

de Reale.

No entanto, partindo de uma releitura da teoria do direito de Bobbio, em especial da

obra Teoria da norma jurídica, é possível perceber que seu pensamento não destoa por

completo da tridimensionalidade do direito – e, por conseguinte, do culturalismo jurídico -

que tem como um de seus representantes Miguel Reale. Dito com outras palavras, é possível

visualizar semelhanças entre o pensamento dos dois jurisconsultos que, em uma primeira

leitura, talvez passem despercebidas pelo leitor mais apressado.

Antes de prosseguir, se faz necessário delimitar três questões fundamentais. A

primeira delas refere-se aos termos Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito. O leitor

mais apressado poderá crer que se faz confusão com esses termos quando na verdade se

enfoca de forma a mostrar que a linha divisória entre eles, enquanto disciplinas propedêuticas

do Direito, é tão tênue que há momentos que aparenta não existir separação entre elas. Isto é,

não há um compartimento estanque determinando que esse assunto diz respeito à Filosofia do

Direito e aquilo diz respeito à Teoria Geral do Direito. Há quem fale, inclusive, em Filosofia

do Direito como Teoria Geral do Direito!

Logo, embora por mero arbítrio se use o termo “pensamento jusfilosófico” de

Bobbio, não se afirma que o pensamento deste autor de resume à justiça, eficácia e validade,

nem muito menos que o pensamento jusfilosófico de Miguel Reale se limite à teoria

tridimensional do direito. Bobbio, além de jurista, foi um grande cientista político. Não

caberia aqui citar a quantidade de grandes obras que escreveram os dois juristas supracitados.

A segunda questão refere-se à quantidade de obras de Bobbio usadas na produção

deste trabalho. Embora a tridimensionalidade do direito seja encontrada na maior parte dos

livros de Reale, o fio condutor do pensamento doutrinário de Bobbio a uma espécie de

tridimensionalidade do direito somente é encontrado na Teoria da Norma Jurídica, daí a

desnecessidade trabalhar outras obras do autor italiano.

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Por fim, a terceira questão diz respeito à importância que Bobbio dispensa à

linguagem no estudo do Direito. O fato de se buscar traços da tridimensionalidade do direito

na obra do italiano não implica seu divórcio com a corrente da Filosofia Analítica. É lição

comezinha que o precursor do estudo do Direito sob o prisma da Filosofia da Linguagem foi

Bobbio a partir de meados do século passado.

Portanto, como não poderia deixar de ser, para o propósito deste trabalho, optamos

por trabalhar, em relação aos dois autores, obras que bebem, ao mesmo tempo, na Filosofia do

Direito e na Teoria Geral do Direito e que enalteçam a aproximação entre os autores.

De forma geral, o presente trabalho busca mostrar a semelhança existente entre o

pensamento de Bobbio e o de Reale. Especificamente, objetiva analisar a relação existente

entre a teoria tridimensional do direito e a concepção de justiça, eficácia e validade na obra

dos autores.

2 CORRENTES DO PENSAMENTO JURÍDICO: O POSITIVISMO JURÍDICO, A

FILOSOFIA ANALÍTICA E O CULTURALISMO JURÍDICO

A origem do Direito remonta a períodos pré-históricos em que a escrita era

desconhecida. No seu alvorecer, as normas jurídicas eram impregnadas de sentimento

religioso e fundavam-se numa autoridade sobrenatural. Certo é que, passados alguns séculos,

em tempos bem mais recentes, diversas teorias surgiram com o intuito de fundamentar a

origem do direito e suas instituições (PEREIRA, 2011).

Os diversos prismas teóricos pelos quais se pode estudar o Direito remontam à

filosofia, à teoria do conhecimento e suas correntes epistemológicas, como facilmente se

percebe da leitura de obras como a de Hessen2.

Carvalho (2009) cita dentre as principais correntes jurídicas que se propuseram a

explicar o fenômeno jurídico estão – não em ordem cronológica - o jusnaturalismo, a escola

da exegese, o historicismo, o realismo jurídico, o positivismo jurídico, o pós-positivismo, o

culturalismo jurídico e a filosofia analítica3. Interessa ao objetivo desse trabalho as correntes

do positivismo jurídico, do culturalismo e da filosofia analítica.

2Torna-se fácil a compreensão das correntes jurídicas quando se sabe o que é dogmatismo, empirismo, ceticismo,

dentre outras correntes do pensamento filosófico. Sobre o tema, Hessen (2000). 3 Esmiuçar cada uma das escolas foge do foco deste trabalho. No mais, não faríamos com tanta maestria como o

fizeram Diniz (2008) e Carvalho (2009). 100

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2.1 O positivismo jurídico

O positivismo jurídico é a corrente do pensamento jurídico que empregou ao Direito

fundamento diverso do dispensado pela longa tradição jusnaturalista. Enquanto o positivismo

jurídico vê na autoridade estatal o fundamento e validade das normas postas num dado

ordenamento, o direito natural via na natureza humana, na moral e na justiça as bases do

fenômeno jurídico4.

Bobbio (1995) ensina que a distinção entre “direito positivo” e “direito natural” é

imanente à tradição do pensamento jurídico do ocidente e pode ser encontrada inclusive no

pensamento grego. Lembra, ainda, o autor que geralmente se faz confusão entre o positivismo

de sentido filosófico e o jurídico5.

Controvérsias à parte, o gérmen do positivismo jurídico pode ser visto na Grécia.

Nesse sentido, Villey (2005, p. 37), ao analisar o ideal de Direito em Platão, chega à

conclusão de que

é digno de nota que Platão, tendo partido de tão alto, acabe terminando, no fim das

contas, numa espécie de positivismo jurídico bastante grosseiro. [...] O direito

deveria emanar do filósofo; como não há filósofo ou, se o filósofo existe, ele não

está no governo, entrega-se o direito à ditadura do príncipe.

Modernamente, o positivismo normativo ou jurídico – para diferenciá-lo do

positivismo sociológico de Augusto Comte, Durkheim, Duguit, dentre outros – tem como jaez

a busca em fundamentar o Direito como ciência autônoma, livre de marcas sociológicas,

políticas e morais. Seria – como o próprio nome da obra de Hans Kelsen sugere – um direito

puro.

Nessa concepção, o fato social e os valores são afastados do estudo do Direito; é

dizer, muito embora possa haver fatores sociais ou filosóficos no Direito, ao jurista não cabe o

estudo deles. O jurista deve se preocupar como as normas se articulam no ordenamento

jurídico, sua validade e critérios que lhes conferem unidade sistêmica (CARVALHO, 2009).

4 Diniz (2008, p. 116) ressalta “o positivismo jurídico apareceu como tentativa de amoralização completa do

direito e da ciência jurídica”. 5 Bobbio (1995, p. 15, grifos do autor) ressalta ainda que “a expressão ‘positivismo jurídico’ deriva da locução

direito positivo contraposta àquela de direito natural”. 101

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Para o positivismo jurídico, o direito válido é o direito posto por uma autoridade

competente para tal feitio, independe do conteúdo de suas normas. O direito, dentro dessa

perspectiva, confere validade a ele próprio através de normas até que se chegue ao último

fundamento - a norma fundamental (grundnorm)-, não sendo necessário que se pergunte por

quaisquer outros fundamentos.

2.2 O culturalismo jurídico

O culturalismo jurídico teve sua origem no neokantismo da escola de Baden. Surgiu

para contrapor o positivismo jurídico cujo jaez, conforme supra, era a análise do aspecto

estrutural do Direito. Foi com Lask e Radbruch que o culturalismo buscou seus fundamentos

filosóficos e, por conseguinte, o aspecto valorativo para o Direito.

Sob a perspectiva desta corrente do pensamento jurídico-filosófico, o Direito é fruto

da cultura e, por isso, impregnado de valores que podem variar no decorrer do tempo. Nesse

sentido, ao comentar sobre as características da escola, Carvalho (2009, p. 75) ensina que “o

‘direito’ constitui-se num conjunto de significações, analisado como objeto da compreensão

humana, impregnado de valores e condicionado culturalmente”.

Enquanto a escola do positivismo jurídico apenas como norma (como fizera Kelsen

na primeira edição da Teoria Pura do Direito), o culturalismo jurídico quis superar essa visão

ao defender que o Direito seria formado por três elementos – fato, valor e norma –

indispensáveis à compreensão do fenômeno jurídico.

No escólio de Diniz (2008, p. 132) “o culturalismo jurídica enfatiza os valores do

direito, sendo que alguns desses valores assumem maior importância sob o influxo de

conteúdos ideológicos em diferentes épocas e conforme a problemática social de cada tempo e

lugar”.

Assim, é o culturalismo a corrente jurídica que analisa o Direito como construção

cultural. Dentro dessa perspectiva fático-normativo-axiológica, é importante lembrar das

quatro principais correntes que do culturalismo decorrem, quais sejam, a concepção

raciovitalista de Recanséns Siches com ligação à filosofia de Ortega y Gasset, o egologismo

existencial de Carlos Cossio, a concepção de Emil Lask e, por fim, - a que mais interessa a

esse trabalho - o tridimensionalismo jurídico do brasileiro Miguel Reale (DINIZ, 2008).

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A teoria tridimensional do Direito ganhou da pena de Reale concepções próprias que

a diferenciam por traços peculiares em relação as outras correntes do culturalismo. Adiante,

essa questão será revisitada.

2.3 A filosofia analítica

Como pondera Oliveira (2006), a linguagem se tornou no século passado a

questão central da filosofia. Com isso, os diversos campos do conhecimento científico

passaram a dispensar maior interesse no estudo de suas disciplinas sob a perspectiva da

linguagem6.

A primeira “análise crítica” da linguagem remonta ao Crátilo de Platão, ainda que

tenha colocado a mesma como instrumento secundário na busca do conhecimento. Em tempos

mais recentes, Neopositivismo Lógico, Positivismo Lógico, Filosofia Analítica, Empirismo

Contemporâneo ou Empirismo Lógico são alguns dos nomes que recebe uma corrente do

pensamento filosófico da primeira metade do século XX (BARROS CARVALHO, 2009).

Nos albores daquele século, cientistas e filósofos se encontravam em Viena com o

intuito de discutir problemas relativos ao conhecimento científico. Havia no grupo filósofos,

matemáticos, psicólogos, lógicos, juristas, dentre outros. Eles tinham como foco principal o

conhecimento qualificado como científico e não como simples conhecimento (BARROS

CARVALHO, 2009).

É nesse sentido que Oliveira (2006, p. 71) ressalta que “nos anos 30, Carnap

tornou-se um grande líder da assim chamada filosofia analítica, cargo exercido nas décadas

anteriores por Bertrand Russell. Depois de Frege e Russell, Carnap foi, sem dúvida, o grande

teórico da ciência de nosso século”.

Carnap buscou a todo custo uma linguagem pura, formal e artificial com o escopo

de consistência lógica da ciência e de suas teorias. Adotou uma concepção da linguagem no

seu aspecto puramente sintático (OLIVEIRA, 2006).

Entretanto, a obra fundamental para o neopositivismo do Círculo de Viena – no

pelo qual ficou conhecido o movimento filosófico liderado por Carnap – nasceu nas

trincheiras da Primeira Guerra da pena de Ludwig Wittgenstein sob título de Tractatus

Logico-Philosophicus.

6 No Brasil, atualmente destaca-se a escola paulista no estudo do Direto sob a perspectiva da Filosofia da

Linguagem. 103

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Além disso, a própria filosofia iria sofrer anos depois uma verdadeira reviravolta

linguística pelas mãos novamente de Wittgenstein com a obra Investigações Filosóficas e sua

filosofia da linguagem ordinária publicada em 1953 (OLIVEIRA, 2006).

Fato é que, até o segundo Wittgenstein, a filosofia da linguagem fundava-se na

proposição representacional do estado de coisa, tendo a referência com questão central. Em

outras palavras, a linguagem deveria ser apurada, adaptada, com significados precisos e

isentos de ambiguidades, com cada nome correspondendo a um ente nomeado, revelando

assim o caráter puro e cristalino de uma linguagem liberta dos obstáculos da linguagem

cotidiana. Com a reviravolta linguístico-pragmática, a referência supracitada passa a ser

periférica e perde a importância que a semântica tradicional lhe concedia (ARAÚJO, 2004).

Portanto, a Filosofia da Linguagem é corrente de pensamento que enaltece a

linguagem como instrumento do saber científico, partindo da análise das dimensões

significativas, quais sejam, a sintaxe, a semântica e a pragmática. Graças a recursos

semióticos7 ou semiológicos, permite a análise das três dimensões da linguagem, cujas

características são as relações sígnicas particulares. A sintaxe trata da análise dos signos

linguísticos na relação signo-signo. A semântica se ocupa da relação do signo com o objeto

representado por ele. Por fim, a pragmática trata da relação dos signos com os utentes da

linguagem (BARROS CARVALHO, 2009).

Grande contribuição de Bobbio foi o estudo do Direito sob a perspectiva da sua

linguagem. Nesse sentido, Pulido (2006, p. 55, tradução livre) ressalta “[...] [Bobbio] tem o

mérito de ter antecipado no âmbito continental a aplicação da filosofia analítica ao estudo da

natureza e da função do direito8.”.

Para compreender o pensamento de quaisquer autores, é necessário antes analisar o

contexto de onde advêm.

3 O CONTEXTO NO QUAL SURGIRAM OS AUTORES

7 Como pondera Barros Carvalho (2009, p. 36), “a semiologia, como Ciência que estuda a vida dos signos no

seio da sociedade, foi apresentada por Ferdinand de Saussure e voltou-se mais para a linguagem verbal, uma vez

que o autor era linguista. Todavia, o projeto foi concebido para a pesquisa de todo e qualquer sistema sígnico.

Quase simultaneamente, Charles Sanders Peirce, filósofo americano, fundava a Semiótica como disciplina

independente, tendo por objeto, também, os signos dos mais variados sistemas. De caráter mais acentuadamente

filosófica, a teoria de Peirce teve, desde o início, o mesmo campo objetal que a Semiologia de Saussure, razão

por que a maioria dos autores emprega dois nomes como sinônimos para designar a teoria geral dos signos”. 8 No original: “[...] tiene el mérito de haber anticipado en el ámbito continental la aplicación de la filosofia

analítica al estudio de la natureza y la función del derecho”.

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No meio acadêmico, não raro surgem diversas comparações teóricas entre autores e

obras sem que seja feita a devida contextualização com o momento histórico no qual estão

inseridos tanto autores quanto obras. Já dizia um grande filósofo que, no que concerne ao

indivíduo, cada um é, aliás, um filho do seu tempo. Logo, não se deve analisar e criticar este

ou aquele autor olvidando o tempo histórico no qual viveu submerso.

3.1 Miguel Reale

Miguel Reale está entre os grandes juristas do século passado em nível mundial.

Nasceu em 1910 e formou-se em 1934. No mesmo ano, publicou seu primeiro livro O Estado

Moderno. Em 1940 entrou para a Universidade no papel de professor de Filosofia do Direito

na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (REALE, 2012, p. de internet).

Com a tese Fundamentos do Direito, lançou as bases da Teoria Tridimensional do

Direito (REALE, 2012, p. de internet).

3.2 Norberto Bobbio

Norberto Bobbio nasceu em 1909, na cidade de Turim, Itália. Em 1927 começou a

estudar Direito na Universidade daquela cidade, formando-se em 1931. A partir daí, escreveu

diversas obras sobre política, direito e filosofia, dentre outras (BOBBIO, 2012, p. de internet).

Exerceu entre os anos de 1948 e 1984 o magistério na Universidade de Turim,

cadeira de Filosofia do Direito. Foi nomeado, em 1985, senador vitalício da Itália. Em 1996,

publicou, aos 87 anos, sua autobiografia sob título O tempo da Memória. Faleceu em 09 de

janeiro de 2004 (BOBBIO, 2012, p. de internet).

3.3 O Movimento jusfilosófico predominante

Como é facilmente perceptível, Bobbio e Reale são contemporâneos, ou seja,

nasceram nos albores do século XX.

Naquela época, nascia a reação ao empirismo positivista clássico por meio das

estruturas teóricas próprias do pensamento kantiano. O neokantismo, como ficou conhecido,

passou a exercer forte influência na Filosofia do Direito, porquanto era o pensamento

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predominante nas universidades alemãs desde meados do século XIX. Até mais ou menos o

início da década de 1930 e o surgimento do existencialismo e da fenomenologia, era o

neokantismo a principal corrente jusfilosófica (LOSANO, 2010).

Ocorre que foi também nesse contexto que surgiu o maior jurista do século XX:

Hans Kelsen, jurista cuja tese teórica foi seguida inicialmente por Bobbio e contestada por

Reale. O contato que Kelsen estabeleceu no início dos anos de 1920 com o neokantismo,

sobretudo por meio de Georg Jellinek, foi fundamental para que o mestre de praga

desenvolvesse seu purismo. Nesse ínterim, o neokantismo não só ganha forças na obra de

Hans Kelsen a partir dos anos de 1920 como passou a dominar o cenário jurídico de então. A

Teoria pura do direito buscou seu aporte mais relevante, qual seja, o transcedentalismo da

norma fundamental (em alemão, grundnorm), no neokantismo, para finalmente estabelecer o

positivismo jurídico na sua formulação mais completa (HESSEN, 2000).

Isso é fundamental para compreender em que contexto Bobbio e Reale passaram a

estudar Direito e, principalmente, de quais movimentos sofreram influência. Portanto, resta

evidente que tanto Reale quanto Bobbio são filhos do positivismo jurídico, isto é, construíram

suas concepções jusfilosóficas no contexto do positivismo jurídico (HESSEN, 2000).

4 O PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO DE REALE E BOBBIO

Embora filhos de um mesmo tempo, as concepções jusfilosóficas de Bobbio e Reale

não são idênticas. De um lado, Reale desde seus primeiros escritos já desconfiava que a teoria

kelsiana era insuficiente para explicar o Direito. Por outro lado, Bobbio, nos seus primeiros

escritos era defensor da obra do positivismo, cujo maior expoente foi Kelsen (HESSEN,

2000).

4.1 Reale e a teoria tridimensional do direito

Conforme dito, Reale é adepto do movimento conhecido como culturalismo

histórico9. Gizou as bases teóricas da sua teoria tridimensional em 1940 na obra Fundamentos

do Direito. Cabe ressaltar, como o próprio Reale o faz, que a Teoria Tridimensional do

9 Ensina Diniz (2000) que, sob o prisma desse movimento, o direito é criação humana ou objeto cultural dotado

de caráter valorativo. 106

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Direito não surgiu de um estalo, como que passe de mágica, mas sim como uma construção

paulatina ao longo dos anos, sob influência de outros grandes jurisconsultos da época.

Um breve escorço contribui para compreender como surgiu a teoria tridimensional

do direito. Nos primórdios, o Direito apareceu como Justiça ou algo valorado (axiológico). A

experiência jurídica foi vivida inicialmente como algo envolto nos liames do místico, do

Divino. Em seguida, na época Moderna, o Direito passou a ser perquirido como fato, embora

inicialmente não houvesse preocupação em esmiuçá-lo.

Nesse sentido, Reale (1999, p. 506) lembra que “o direito, como fato, como

acontecimento social e histórico, só foi objeto de ciência autônoma muito mais tarde, em

tempos chegados a nós, no decorrer do século passado”.

Tempos depois, no Direito Romano surgiu uma nova concepção de Direito que

passou a ser visto como norma ou lex. Foi a intuição normativa do Direito (REALE, 1999).

Esse breve escorço mostra como Reale, ao gizar a teoria tridimensional do Direito,

não partiu de “um nada”. O grande problema dos juristas de outrora foi que, embora fossem

tentados a compreender o Direito à luz de um ou dois dos elementos citados, soçobraram em

teorias reducionistas responsáveis por amputar o fenômeno jurídico.

Antes da tridimensionalidade do direito proposta por Reale, houve outras concepções

tridimensionais, embora com viés genérico e antinômico, conforme exposto acima. Assim foi,

por exemplo, o pensamento de Gustav Radbruch. Além dele, pode-se falar no trialismo de

Lask, no trialismo perspectivístico de Legaz e Lacambra, no trialismo de Roscoe Pound e

Julius Stone10

(DINIZ, 2008).

Em suma, todas as formas de tridimensionalidade jurídica têm como escopo alcançar

um visão integral do Direito, isto é, busca-se superar visões reducionistas do fenômeno

jurídico (REALE, 1994).

Isso não significa a indiferença quanto aos pontos de vistas. Nesse sentido, ainda

pondera o autor que

Há duas verdades correlatas a serem preservadas. De um lado, torna-se necessário

firmar que os pontos de vista do sociólogo ou do filósofo não podem coincidir com

o do jurista, sob pena de tudo se comprometer numa unidade amorfa e

indiferenciada. Por outro lado, se a tridimensionalidade é da essência mesma do

direito, compreendido como experiência social e histórica, aqueles três pontos de

10

De forma bem didática, Diniz (2000, p. 132) ensina que “Quatro são as direções principais das teorias

culturalistas do direito: a concepção raciovitalista [de Ortega y Gasset] [...], a de Emil Lask, a concepção

tridimensional de Reale e a egológida de Carlos Cossio”. 107

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vista distintos sobre o direito não podem fazer abstração de uma qualidade intrínseca

à própria juridicidade, mas, ao contrário, devem determiná-la e expressá-la de

modos diversos, segundo as três direções de pesquisa acima apontadas (REALE,

1992, p. 60).

O ponto chave que diferencia a teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale é a

dialética da complementaridade. Trocando em miúdos, fato, valor e norma não existem

separados uns dos outros e se implicam de forma ininterrupta e dialética. Essa dialética da

complementaridade é o que diferencia, em especial, a teoria tridimensional de Reale.

4.2 Bobbio e o positivismo crítico

No seu trabalho de conclusão de curso, ainda no primeiro quarto do século XX,

Bobbio comentou alguns tratados de Teoria do Direito. É possível perceber claramente o viés

juspositivista do autor no início de carreira, porquanto na sua obra defendeu Kelsen contra os

críticos da época (BOBBIO, 2010).

Durante aproximadamente vinte anos entre o fim da Primeira Guerra e fins da década

de 1960, Bobbio se dedicou ao estudo da teoria do direito. Pelo menos até meados do século

passado, é possível perceber a preferência de Bobbio pelo positivismo jurídico (BOBBIO,

2010).

Bobbio (2010, p. 11) ressalta:

nunca neguei que os dois cursos [teoria da norma jurídica e teoria do ordenamento

jurídico] são de inspiração kelseniana, e qualquer leitor um pouco atualizado sobre a

disciplina pode perceber isso: para começar, é kelseniana a distinção entre teoria da

norma (singular) e teoria do conhecimento (conjunto estruturado de normas) [...].

Embora Bobbio, à época, fosse tido como um positivista, seu pensamento não era

idêntico ao de Kelsen, porquanto o que diferenciava o Direito para o jurista italiano era o

ordenamento jurídico e não a norma jurídica, além da ênfase que o italiano empregava à

linguagem ordinária na sua obra.

Com o passar dos anos, Bobbio cada vez mais adentrou os campos da filosofia da

linguagem:

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Nesta perspectiva, a Filosofia Analítica encontrou o seu desdobramento na Teoria do

Direito, através da análise lógico-formal do direito. Esta visão desde o normativismo

Kelseniano, passando por Bobbio até as tentativas de elaboração de lógicas

jurídicas, das quais foram pioneiros Von Wright e Kalinowski” (ROCHA, 1993, p.

107).

Dando forma ao seu viés neopositivista lógico, em outra passagem, Bobbio ressalta

que seu curso de teoria do direito foi produzido no contexto da época em que o positivismo

jurídico ainda tinha grande força. Além disso, o jurisconsulto italiano (2010, p. 11-12), ao

comentar a celeuma da época, relata:

Refiro-me, em primeiro lugar, ao caloroso debate pró e contra o positivismo jurídico

de que participei ativamente na época [...] Os temas próprios do positivismo jurídico

estão continuamente presentes em minhas aulas, tanto que a etiqueta sob a qual

rotulei a concepção do direito neles representada é a do positivismo jurídico, embora

teoricamente não rígido nem ideologicamente conotado, que chamei de ‘critico’.

Doutro flanco, não se pode olvidar que a Teoria da norma jurídica e a Teoria do

ordenamento jurídico do autor foram desenvolvidas entre 1957 e 1960, no contexto do pós-

guerra. E como sabemos, o positivismo jurídico sofreu duro golpe com o fim da Segunda

Guerra. Disso decorre a mitigação do positivismo de Bobbio nas duas obras supracitadas.

Ao introduzir a análise das proposições prescritivas, Bobbio (2010, p. 64) inicia

ressaltando se tratar de um estudo formal da norma jurídica, mas não sem antes, lembrar de

que o estudo puramente formal do Direito é insuficiente para compreendê-lo. Nesse sentido,

lembre de que

[...] o ponto de vista formal do qual partimos não tem nada a ver com nenhum dos

três formalismos, pois não pretende ser uma teoria exclusiva da justiça, nem do

direito, nem da ciência jurídica, mas é pura e simplesmente um modo de estudar o

fenômeno jurídico na sua complexidade, um modo que não só não exclui os outros,

mas os exige para que se possa obter um conhecimento integral da experiência

jurídica.

Portanto, é partindo da análise percuciente dos escritos de Bobbio que se percebe a

impossibilidade de se reduzir seu pensamento ao de um positivista ou analítico.

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4 APROXIMAÇÕES TEÓRICAS ENTRE BOBBIO E REALE

Como foi afirmado, embora Bobbio até início da década de 1980 quando deixou o

ensino na universidade, deixasse transparecer seu viés positivista, é possível perceber na obra

do italiano uma aproximação com a teoria tridimensional do direito de Reale, entretanto a

recíproca quanto ao brasileiro não é verdadeira.

Para Reale (1992), o neo-positivismo jurídico, dentre os quais Norberto Bobbio é um

dos adeptos, seria uma teoria contemporânea inspirada na “análise da linguagem”. Para os

adeptos desta corrente variante do tecnicismo, o caráter científico do Direito se fundaria na

coerência lógica interna, dados e pressupostos dos preceitos normativos. Compreender o

Direito sob essa perspectiva até poderia ser possível, desde que não se reduzisse a norma

jurídica a uma simples proposição lógica esvaziada de conteúdo, como o faz a referida teoria.

Ao se vincular a essa corrente, Bobbio termina, insista-se, de acordo com Reale (1992), por

cair na superada ideia de “verba” e “mens legis”.

É importante ressaltar que não se afirma que Bobbio é adepto da teoria

tridimensional do direito nos moldes realeanos. Até mesmo porque a importância que o

filósofo italiano dispensa à linguagem no Direito, conforme vem se demonstrando ao longo

deste trabalho, é algo minorado – quando não criticado - na obra do professor paulista11

. Nas

palavras de Reale (1999, p. 330):

Não negamos o valor das contribuições da Filosofia Analítica, e, mais amplamente,

do Neo-positivismo, no que se refere à depuração da Ciência do Direito de pseudo-

problemas, mas, do ponto de vista que diretamente aqui nos interessa, os seus

adeptos, ou repisam, sob terminologia nova, velhas teses empiricistas, ou então

excluem, sumariamente, dos domínios filosófico-jurídicos um de seus temas

fundamentais, que é o da indagação sobre a consistência e a validade do

Direito. A declaração de que o jurista deve se limitar ao estudo do Direito que é,

com abstração do Direito que deve ser, pode valer como atitude metodológica, mas

deixa em suspenso uma série de questões que o filósofo do Direito não pode

desprezar.

11

Praticamente toda a obra Teoria da norma jurídica tem como base a análise da linguagem. Bobbio analisa o

Direito como proposição linguística: “Como toda proposição, também a norma tem uma estrutura lógico-

linguística própria, que pode ser preenchida com os mais diversos conteúdos”. Já em Reale não se faz a análise

propriamente dita do Direito pelo prisma da linguagem. É bem verdade que na obra O direito como experiência,

Reale (1992) faz breve análise da analítica e dialética jurídica de forma preliminar ou introdutória. Além disso,

na obra Lições preliminares de Direito (2002), o autor faz uma breve análise da linguagem do direito e enaltece

a importância da teoria da comunicação e teoria da linguagem na formação do jurista, mas, infelizmente, para

nesse ponto. 110

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Ademais, Reale, desde seus primeiros escritos, no que diz respeito aos elementos

constitutivos do Direito, é incompatível com Kelsen e o juspositivismo, enquanto Bobbio é,

em tese, ferrenho defensor deste teórico. O mestre paulista ressalta inclusive que um dos seus

maiores orgulhos é ter conseguido questionar a obra do maior jurista do século XX, Hans

Kelsen (REALE, 1994).

Segundo Reale, da análise da palavra Direito surgem três aspectos principais:

normativo, fático e axiológico. Em outras palavras, o Direito é um amálgama de fatos, valores

e normas (REALE, 2002; 1999; 1992; 1994).

Como ressaltado anteriormente, a grande diferença da teoria do mestre paulista em

relação à teoria dos outros adeptos da teoria tridimensional do direito é justamente, para

Reale, a impossibilidade dos elementos fato, valor e norma, no Direito, existirem separados

uns dos outros. Em verdade, eles se implicam de forma dinâmica e dialética, num processo

denominado dialética da complementaridade.

A aproximação da teoria do Direito de Bobbio com a teoria tridimensional do Direito

é revelada no capítulo II (justiça, eficácia e validade) do livro Teoria da norma jurídica.

Aparentemente sem muita pretensão, o jusfilósofo italiano (2010, p. 37) abre o supracitado

capítulo com a seguinte mensagem: “O estudo das regras de conduta, em especial as regras

jurídicas, apresenta muitos problemas interessantes, que estão na ordem do dia não só da

teoria geral do direito (sobretudo após Kelsen), mas também da lógica e da filosofia

contemporâneas”.

Em seguida, Bobbio ressalta que qualquer norma jurídica pode ser submetida a três

critérios de valoração independentes e distintos: justiça, validade e eficácia. Examinando os

argumentos do mestre italiano de modo mais perspicaz, torna-se perceptível as bases do

tridimensionalismo do direito (BOBBIO, 2010).

Ora, o problema da justiça, ressalta Bobbio (2010), diz respeito aos valores últimos

que inspiram dado ordenamento. Com isso, o autor enaltece o direito como valor.

Adiante, o autor passa a analisar o problema da validade da norma jurídica. Para

Bobbio, o problema da validade diz respeito a existência de dada norma, independente de

juízo de valor. Ou seja, norma válida é a que existe em dado ordenamento (BOBBIO, 2010).

Ao comentar o problema da validade, Bobbio (2010) inculca seu viés positivista,

embora sua concepção não seja tão reducionista quanto o positivismo kelseniano.

Por fim, o autor passa a análise do terceiro elemento da norma jurídica, qual seja, a

eficácia. Para ele, esse problema refere-se ao fato das pessoas seguirem ou não a norma 111

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jurídica. Ele não olvida de lembrar que os três critérios são independentes uns dos outros

(BOBBIO, 2010).

Esse jaez de independência é o ponto no qual a teoria de Bobbio se bifurca da teoria

Realeana. Como dito, para Reale, tais elementos se implicam em um processo denominado

como dialética da complementaridade.

É importante ressaltar que ao afirmar que tais elementos são independentes, Bobbio

momentaneamente se afasta do tridimensionalismo específico de Reale e se aproxima da

concepção tridimensional de viés genérico.

No entanto, essa separação é tênue, pois adiante o mestre italiano novamente cai no

terreno da tridimensionalidade do direito, ao ressaltar que

é claro que essa distinção de problemas não deve ser concebida com uma separação

em compartimentos estanques. Quem quiser compreender a experiência jurídica nos

seus vários aspectos deverá levar em contra que ela é aquela parte da experiência

humana cujos elementos constitutivos são ideais de justiça a realizar [valores],

instituições normativas para realizá-los [normas], ações e reações dos homens

[fatos] diante desses ideais e dessas instituições (BOBBIO, 2010, p. 45)

Posteriormente, ressalta que comumente se fala em três teorias reducionistas do

Direito que insistem em reduzi-lo a um dos aspectos citados ou, quando muito, dois. Ou seja,

ao menos implicitamente, o jurista italiano deixa claro que não se pode compreender o Direito

fora da concepção de fato, valor e norma. Dito com outras palavras, o Direito somente passa a

ser compreendido por quem entendê-lo como experiência humana (BOBBIO, 2010).

Bobbio, é bem verdade, na sua Teoria da norma jurídica, cita Roscoe Pound como

fonte para dizer que o estudo do Direito somente é completo quando abordado por essas três

partes. No entanto, deve-se lembrar que a concepção tridimensional de Pound não se

assemelha por completo a de Reale. Não há, em Pound, a dialética da complementaridade,

embora haja a tridimensionalidade de caráter genérico.

Ademais, Bobbio lembra que quaisquer das três concepções se usadas de forma

isolada para analisar o Direito, soçobram no reducionismo. Nesse sentido ele ensina: “A nosso

ver, todas essas três concepções estão viciadas pelo erro do ‘reducionismo’, que leva a

eliminar ou no mínimo ofuscar um dos três elementos constitutivos da experiência jurídica e,

portanto, a mutila.” (BOBBIO, 2010, p. 46).

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Deveras, defende Bobbio (2010) que há três problemas fundamentais do Direito: o

deontológico (valor), o ontológico (norma) e o fenomenológico (fato) que, se estudados

separados, não permitem a compreensão correta do fenômeno jurídico.

Portanto, embora o Direito em Bobbio não se resuma a tridimensionalidade do

Direito, haja vista o autor analisar a norma jurídica sob a perspectiva da Filosofia Analítica,

pode-se observar perfeitamente a aproximação entre a teoria jusfilosófica de Bobbio com a de

Reale no que diz respeito à essência da tridimensionalidade do direito, embora a recíproca não

seja verdadeira.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer da história, diversas teorias surgiram com a finalidade de explicar ou

fundamentar o fenômeno jurídico. Dentre elas, estão o positivismo jurídico, o culturalismo

jurídico e o neo-positivismo lógico ou filosofia analítica.

Nos destroços da Segunda Guerra, o positivismo jurídico ofegava, demonstrado ser

insuficiente como espeque teórico do Direito. A partir daí, correntes do pensamento jurídico

que começavam a dar seus primeiros passos ganharam força no ocidente. Dentre elas,

destacaram-se o culturalismo jurídico (do qual decorre a teoria tridimensional do Direito) e a

filosofia analítica (ou neo-positivismo lógico).

A teoria tridimensional do direito destaca o direito como algo construído

culturalmente tendo como elementos estruturante fatos, valores e normas. A segunda defende

a análise do Direito sob a perspectiva linguística, tendo a linguagem como seu próprio

fundamento. Ambas somam forças para superar a visão reducionista do positivismo jurídico

do entre-Guerras.

No Brasil, Reale foi o principal representante da teoria tridimensional do Direito. Foi

responsável por desenvolvê-la e dá-lhe características peculiares não observadas nas outras

correntes do culturalismo jurídico, como a dialética da implicação-polaridade (ou dialética de

complementaridade).

Bobbio, embora carregue traços do positivismo na sua obra, foi responsável por

trazer para o Direito a análise da norma jurídica sob a perspectiva da Filosofia da Linguagem.

Certamente uma leitura mais apressada do mestre italiano concorra para se afirmar,

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erroneamente, que ele seja formalista. O próprio autor ressalta, como ficou gizado no decorrer

deste trabalho, a impossibilidade de se compreender o Direito apenas pelo ângulo formal.

Por fim, a aproximação teórica do pensamento de Bobbio com o de Reale restou

configurada. Para o mestre paulista, compreender o Direito somente é possível sob o prisma

da Teoria Tridimensional do Direito, qual seja, fato, valor e norma.

Insista-se que, para o mestre italiano, as concepções que veem o direito sob apenas

um dos ângulos dos elementos são reducionistas, pensamento esse ratificado por Miguel

Reale. Logo, em Bobbio e sem desconsiderar a importância que o autor dispensa à Filosofia

Analítica, não basta analisar o direito somente como fato, ou somente como norma, ou ainda

como valor, mas sim de forma conjunta como fato, valor e norma. Tudo isso sem prejuízo da

análise linguístico-formal, o que demonstra ser a teoria proposta por Bobbio mais completa do

que a de Reale, afinal, quaisquer teorias que olvidem a perspectiva linguística nascem

defeituosas.

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BETWEEN JURIDICAL NEO-POSITIVISM AND JURIDICAL CULTURALISM:

THE PROXIMITY OF NORBERTO BOBBIO’S JUSPHILOSOPHICAL THOUGHTS

WITH MIGUEL REALE’S

ABSTRACT

Examines the similarity between the Italian Norberto Bobbio's and the

Brazilian Miguel Reale’s jusphilosophical thoughts during the

juridical context in which the authors lived. Analyzes the fundamental

aspects of Reale’s three-dimensional theory of law, and investigates

the question of justice, efficiency and validity in the Bobbio’s work. It

concludes that the Bobbio’s thought does not exclude the three-

dimensional aspect of the law, although he considers himself a critical

positivist.

Keywords: Philosophy of Law. Miguel Reale. Norberto Bobbio. The

Three-dimensional Theory of Law.

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Recebido 26 fev. 2013

Aceito 18 mar. 2013

JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DOS FINS QUE OS

MEIOS PUNITIVOS NÃO ALCANÇAM

Karina Bezerra Pinheiro1

Raul Rocha Chaves2

RESUMO

O sistema penal brasileiro enfrenta uma verdadeira crise de

legitimidade, visto que não se mostra capaz de reduzir os indices de

criminalidade. As soluções simplistas não se mostram adequadas para

diminuir esses índices. A realidade mostra que o direito penal atua

mais intensamente para as camadas mais vulneráveis da sociedade,

sendo urgente se pensar em maneiras que humanizem o direito. O

pluralismo jurídico ratifica a incapacidade do direito formal em

promover a justiça validamente. A justiça restaurativa se configura

como proposta para a humanização do direito penal.

Palavras-chave: Direito Penal. Pluralismo Jurídico. Justiça

Restaurativa.

1 INTRODUÇÃO

O sistema penal é o instrumento de que se vale o Estado para punir devidamente os

infratores da lei. Pretende-se que, por meio da aplicação de sanções penais, as condutas

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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reprováveis sejam devidamente punidas, e por isso não se repitam. Uma vez que o indivíduo

infrator tem a certeza de que sofrerá as conseqüências legalmente estabelecidas de repressão

de atos ilícitos, ele supostamente se absteria de cometer crimes. Porém, a realidade nos mostra

o contrário, pois os índices de reincidência criminais são cada vez maiores, o que demonstra

uma falha no alcance do propósito de garantia da segurança social a que as medidas punitivas

se propõem e uma verdadeira crise de legitimidade do sistema criminal.

Pode-se dizer que o sistema é incapaz de administrar a conflitualidade social, por ser

discriminatório e estigmatizante e atuar em favor das classes privilegiadas. As formas

simplistas de solução do problema da criminalidade são pouco funcionais, assim como a

forma de ditadura penal sobre as classes inferiorizadas, para as quais o direito penal é mais

rígido, evidenciando seu caráter discriminatório que não promove a justiça. Nesse contexto se

destaca o pluralismo jurídico como instrumento na busca pela justiça, que o sistema formal

não consegue garantir prontamente.

Ainda, percebendo os ambientes de privação de liberdade enquanto meios mais

comuns os quais o Estado se vale para garantir a punição dos delinqüentes, observa-se que a

diminuição da taxa de criminalidade com medidas privativas de liberdade é um fato que

historicamente nunca foi constatado. Pelo contrário. Mesmo garantindo a detenção dos

criminosos, a criminalidade permanece a mesma e as taxas de reincidência tendem a

aumentar. Isso é preocupante, pois implica uma crescente insegurança nas sociedades. A

justiça restaurativa figura, nesse contexto, como medida possível de reduzir as conseqüências

negativas gerais de medidas repressivas utilizadas pelo Estado, já que se vale de uma

percepção humanizada das relações conflituosas.

2 CRÍTICA À POLÍTICA DE LINHA DURA ENQUANTO SOLUÇÃO IMEDIATA À

CRISE DE SEGURANÇA SOCIAL

Para começar a análise proposta, apresentar-se-á a crítica de Bernardo Kliksberg

(2010, p. 259-285) ao analisar o crescimento da insegurança urbana na América Latina, para

então conflitar lógicas de atuação.

De início sabe-se que o aumento da criminalidade provoca conseqüências negativas

em toda sociedade, primeiramente com as vidas perdidas, bem como os gastos com o sistema

de saúde, segurança e aparato judicial, além dos custos intangíveis, que, embora difíceis de

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mensurar, são bastante concretos, a exemplo da sensação de insegurança, o medo, o terror e a

deterioração da qualidade de vida.

A fim de tratar o problema rapidamente, aparecem discursos e soluções simplistas, a

começar pela visão de “tolerância zero” ou “mão firme”. Com base na teoria da “janela

quebrada” elaborada em 1982 por Wilson e Kelling (citado por KLIKSBERG, 2010, p. 266) –

cuja defesa é a punição com total rigidez, inclusive às infrações menores, visto que uma

“quebra de vidros” pode servir como antecedente de ações criminosas mais graves – a

resposta consiste em, sobretudo, reforçar os aparatos de segurança. Assim, de acordo com

essa corrente, é preciso afinar as estratégias e os programas de controle policial, de maneira a

ampliar a presença da polícia nos lugares públicos (especialmente a vigilância sobre os

setores mais pobres da população), além de conter, sem sensibilidade ou receio, os

delinqüentes. Seria preciso, também, reformar a legislação para a ação policial ser facilitada,

por meio da retirada das garantias individuais e pelo o aumento da possibilidade de prisão, do

ajuizamento e encarceramento de jovens desde cedo; e ainda, para alguns mais radicais,

implantar a responsabilização penal dos pais por crimes cometidos pelos filhos, medidas

completamente desproporcionais no estágio democrático em que o Brasil se encontra, visto

que são medidas incompatíveis com as conquistas, sobretudo referentes aos direitos humanos,

conseguidas historicamente.

Todavia, observa-se essa solução simplista de tratamento da criminalidade, de

maneira disfarçada, apesar de ser aparentemente absurda, através de uma imposição

discriminatória contra determinados grupos de pessoas em certas áreas simbólicas. Isto é, essa

política de “tolerância zero” configura-se como uma guerra contra os sem-teto, os mendigos,

os bêbados, dentre outros considerados potencialmente perigosos. As infrações que tendem a

se concentrar nas populações pobres são abordadas de forma tendenciosa e dirigida, em

detrimento de outros crimes – como os de colarinho branco.

Somam-se a isso, ainda, operações sistemáticas conhecidas como “limpeza social”,

cujos exemplos mais drásticos são o extermínio a crianças de rua, de modo a “prevenir” a

possibilidade dessas crianças se tornarem bandidas. Percebe-se, então, um raciocínio de busca

por uma qualidade demográfica semelhante aos que já inspiraram inúmeros genocídios, a

exemplo do nazismo.

Logo, nota-se que não há realmente uma “tolerância zero”, mas, de fato, uma

“intolerância seletiva” sobre os grupos mais frágeis da sociedade, desvirtuando assim, a

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função do direito penal, que seria apenas de retribuir os crimes socialmente relevantes com as

sanções estabelecidas em lei, visando intimidar possíveis manifestações semelhantes que

viessem a acontecer. Independente de quem seja o infrator, ao representar uma ameaça ao

bem estar social, deve ter, de acordo com o sistema instituído, sua conduta repreendida. Na

realidade, o que se percebe é que a busca pela segurança está disfarçada num tratamento

desigual de grupos vulneráveis em favor de minorias que, socialmente aceitas, tem vantagens

quando estão em conflito com a lei.

O sistema penal, portanto, não é o mesmo para todos. Funciona com rigidez para as

massas, em benefício da classe dominante que o manipula e utiliza-o como instrumento de

repressão. O direito penal perde o sentido por adotar uma vigilância máxima contra amplos

setores da população, de forma intensa e não minimamente, conforme deveria intervir. Essa

intervenção intensa acaba promovendo tensões críticas em todas as dimensões da coesão

social.

Esse tratamento desigual leva, devido à repressão incisiva que os grupos mais

vulneráveis sofrem, à ampliação do recrutamento deles pelos bandos criminosos para terem

sua proteção garantida face à repressão que sofrem, fato que acaba levando a uma maior

articulação criminosa no futuro. Em seguida, falha por certamente ampliar o número de

jovens nas prisões, formando uma superpopulação carcerária que, ao invés de ter sua

restauração garantida, é alvo de medidas que corroboram para sua desestruturação enquanto

indivíduo possuidor de direitos.

O fenômeno que se observa, portanto, é o de uma verdadeira criminalização da

pobreza, pois o Estado, em sua dimensão policial mais notadamente, trata como suspeito todo

aquele que apresenta sinais de pobreza ou que pertencem a minorias étnico-raciais excluídas

da sociedade, grupos que na verdade são vítimas de sistemas econômico-sociais que não

criam oportunidade para todos.

Diante disso, percebe-se que o que existe é uma verdadeira ditadura penal sobre os

pobres, que são sempre alvo de medidas mais fortes que destoam completamente do que

deveria garantir uma democracia.

3 DITADURA PENAL SOBRE OS POBRES

Diante da função discriminadora supradescrita que o Estado vem desempenhando, é

bem exposto por Loic Wacquant (1999, p. 4-9) o grande paradoxo do Estado, sobretudo o

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brasileiro, ao querer remediar a sua omissão econômica e social com uma ação policial e

carcerária mais intensa. As forças estatais fogem de propostas guiadas pelos valores de justiça

e solidariedade, que instituem um tratamento social benéfico de longo prazo, priorizando o

tratamento penal de curto prazo que não fornece real solução ao crescimento exacerbado da

insegurança pública, apenas passa a falsa sensação de remediação do problema.

Ademais, o desinteresse e a incapacidade dos tribunais de fazer a justiça e de a lei ser

respeitada encorajam a busca de soluções privadas para a insegurança – os “bairros

fortificados”, os guardas armados, os justiceiros – cujo efeito principal é justamente propagar

e intensificar a violência.

Outro fator problemático é a hierarquia de classes, a estratificação étnico-racial e a

discriminação baseada na cor, que tem influência não só na polícia, mas também no

judiciário, visto que os negros, sobretudo pobres, não só sofrem com uma vigilância mais

particular por parte da policia, bem com têm mais dificuldades de acesso a ajuda jurídica,

além de serem punidas com penas mais pesadas, e de, dentro da prisão, sofrerem com

condições de detenção mais duras e violências mais graves; um conflito que se busca tornar

invisível com a simples penalização da miséria.

Por fim, é importante lembrar as condições do sistema prisional de nosso país, no

qual a dignidade humana é esquecida e a função do direito penal de retribuir o mau causado

através da privação da liberdade é deixada em último plano. As violações das garantias

individuais, que não deveriam ocorrer, são confundidas com a pena que o infrator merece

receber, ainda que a lei determine que apenas a privação da liberdade é suficiente para punir

devidamente o mal causado. Fora as péssimas condições (de higiene, saúde, alimentação,

maus tratos, violência e tortura), o que se percebe é que o tempo estabelecido em lei para

cumprimento de pena na maioria das vezes é ignorado, o que submete os apenados a maiores

períodos encarcerados, cumprindo uma pena que não é equivalente ao delito praticado e que

certamente não atingirá os fins de redução de criminalidade a que se propõe. Provocará

reações negativas no comportamento do individuo que se encontra numa situação

completamente revoltante.

A solução de aprisionamento não é válida ao que se quer para o infrator, já que ele

não tem o crime compensado com uma sanção justa; tampouco à vítima, que será sempre alvo

da revolta daqueles ignorados pelo Estado e largados em calabouços, sem condições de

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reerguerem-se, pois estigmatizados e incapazes de reconstituírem-se, reincidindo, pois, no

crime.

4 O PLURALISMO JURIDICO E O DIREITO PENAL

Pelo fato do nosso atual Estado democrático encontrar-se em uma situação

embaraçada, a sociedade sente a necessidade de recorrer a um pluralismo jurídico concreto,

em que se reconheçam os fenômenos jurídicos que ocorrem na sociedade civil e sua própria

capacidade em resolver as situações problemáticas, buscando uma maneira mais eficiente e

menos onerosa às suas liberdades individuais de fazer justiça.

Para que isso ocorra, é preciso primeiro uma confrontação de valores aliada à noção

de justiça social e de condições econômicas para reverter a tendência do Estado em

criminalizar condutas referentes a classes de menor poder aquisitivo e em punir severamente

o que é criminalizado; em seguida, é necessário superar o princípio de que somente as

instituições estatais constituem ordens jurídicas, e reconhecer o pluralismo extra-estatal como

medida válida que dissolve conflitos constantemente e é ignorado. A concepção que confunde

o Direito com a lei, e o considera um direito autêntico e indiscutível, passa a idéia de que não

há direito além ou abaixo das leis, quando na verdade a lei não é igual para todos e tampouco

faz justiça, sendo o pluralismo jurídico um exemplo da incapacidade do direito em regular a

sociedade igualitariamente e de maneira eficaz.

É em face desse pluralismo jurídico, voltado à resolução de conflitos esquecidos e

discriminados pelo direito penal, que se percebe a crise de legitimidade do sistema penal, uma

vez que ele atua de maneira deturpada, em favor de poucos e guiado por princípios

completamente distorcidos do seu real intuito de garantir a exata responsabilização do infrator

diante do crime cometido para que a paz social seja alcançada. É um sistema que não

promove a verdadeira justiça por não ser capaz de solucionar os conflitos de forma satisfatória

para todos.

5 JUSTIÇA RESTAURATIVA

Diante da crítica desenvolvida às medidas imediatistas de redução da criminalidade e

da relação que a ineficácia dessas medidas mostra diante da dimensão que o pluralismo

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jurídico vem desenvolvendo nos segmentos sociais em detrimento da ordem jurídica

formalmente posta, é possível perceber que o direito penal, na prática, não atinge os objetivos

que pretende. As prisões, como medida punitiva mais característica do sistema penal, não

garantem a restauração do ofensor, a segurança da vítima, e tampouco a resolução do conflito

que ocorreu entre essas duas partes e os indiretamente envolvidos, pois o encarceramento não

garante uma reflexão por parte dos envolvidos a respeito das conseqüências daquele crime,

nem garante um entendimento dos motivos geradores do conflito, de maneira a garantir que

ele não venha a ocorrer novamente. A função do direito penal de garantir a segurança e

promover a harmonia social não é cumprida com medidas incisivas e discriminatórias, fato

que precisa ser pensado. Como alternativa possível de caminhar junto ao sistema penal, de

forma a humanizá-lo promovendo a justiça, tem se desenvolvido em alguns lugares do mundo

e em cidades do Brasil a justiça restaurativa, como opção mais humanizada de resolução de

conflitos, com propostas de resultado mais significativas do que as rígidas anteriormente

mencionadas e comprovadamente ineficazes.

5.1 Conceito

A justiça restaurativa consiste, baseado na união entre os conceitos propostos por

Marshall (citado por LARRAURI, 2004, p. 444) e Jaccoud (citado por PALLAMOLLA,

2009, p. 54), na aproximação dos indivíduos ligados a um conflito, seja ele proveniente de

ação coletiva ou individual, unidos com o objetivo de minimizar as conseqüências negativas

decorrentes de determinada infração, resolver o próprio litígio ou reconciliar as partes.

Analisada de uma maneira mais ampla, a justiça restaurativa ocorre com a tentativa

de tornar o sistema punitivo mais humano, voltada para garantir a harmonia entre as pessoas

envolvidas, direta ou indiretamente, num conflito, priorizando a compreensão dos motivos

determinantes do litígio, o entendimento da história de vida e as motivações dos envolvidos. É

uma proposta favorável à verdadeira resolução dos conflitos – condizente, sobretudo, com a

justiça que esperamos desse universo caótico de violações de direitos – , que não se faz

apenas com a aplicação da medida punitiva normativamente estabelecida e direcionada a o

infrator, mas com a prevalência de valores morais nas relações humanas, hodiernamente

pouco observados na sociedade cada vez mais individualista.

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5.2 Sua relação com o sistema criminal

A prevalência desses valores facilita a resolução do conflito e o entendimento entre

os envolvidos, o que não acontece no sistema tradicional, no qual as partes envolvidas são

pólos passivos do processo de análise e decisão das conseqüências do caso. Conforme Zehr

(2008, p. 191-2) expõe,

a justiça precisa ser vivida, e não simplesmente realizada por outros e notificada a

nós. Quando alguém simplesmente nos informa que foi feita a justiça e que agora a

vítima irá para a casa e o ofensor para a cadeia, isto não dá a sensação de justiça. (...)

Não é suficiente que haja justiça, é preciso vivenciar a justiça.

A justiça restaurativa considera a reparação do dano causado no conflito pode ser

feita sem que o ofensor passe por processos dolorosos ou humilhantes, como ocorre na prática

punitiva vivenciada nas prisões brasileiras, mas com a sua participação como pólo ativo na

resolução da situação gerada, parte que entende o contexto geral do caso e poder contribuir

para a melhor forma de resolução. A questão central está na verdadeira solução do problema,

e não das conseqüências que o ofensor deve sofrer para que a vítima tenha a (falsa) sensação

de que a justiça foi alcançada e o conflito resolvido.

Isso não passa de uma falsa impressão da vítima, pelo simples fato de que o sistema

punitivo de privação de liberdade que conhecemos – que vai além da privação de liberdade,

violando direitos, conforme já mencionado - faz perceber que a aplicação da pena na medida

certa do crime cometido não resolve o problema enfrentado, além de essa punição ocorrer de

maneira desproporcional na prática, e por isso não corresponder aos preceitos de um estado

democrático de Direito. Conforme o posicionamento doutrinário, Luiz Flávio Gomes (2006,

p. de internet) coloca os objetivos a que a pena se destina, que são relacionadas a “ideias de

retribuição (ao mal do crime o mal da pena) e prevenção, tanto geral (ameaça a todos para que

não venham a delinqüir) como especial (evitar que o criminoso volte a delinquir)”.

Diante dos casos de reincidência, é fácil constatar que as penas dificilmente

alcançam os fins a que se propõem. Ainda, em concordância com o entendimento de que a

aplicação da pena como retribuição ao dano causado é algo incompatível com a democracia,

Juarez Cirino dos Santos (citado por BARREIROS, 2008) entende que “retribuir um mal com

outro mal (...) não é um argumento democrático, nem científico"; ou seja, o sistema

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retributivo, ainda que funcionasse conforme a lei estabelece, carece de fundamentos fáticos

que comprovem sua função preventiva.

Isso porque exclui o infrator do convívio em sociedade, impedindo que seja

restaurado e reinserido na comunidade abalada pelo delito ameaçador. Além de prejudicar a

ressocialização do individuo, por não oferecer meios de que ele possa se valer para que não

volte a delinqüir, a sua detenção em regime fechado consiste num fato que o estigmatiza de

uma forma que fará com que as demais pessoas percebam-no com olhos de desconfiança e

preconceito, por se tratar de alguém perigoso e ameaçador, merecedor de todo o sofrimento

causado quando infligiu a lei. Leva-o, portanto, a ter a prática criminosa como única saída, já

que o reconhecimento de seus valores de ser humano foram esquecidos durante todo o

processo.

Essa concepção rígida de passar a ver o outro como o próprio crime cometido, e não

como ser humano falho, consequência da nossa forma de resolver contravenções penais, não

permite que o ofensor tenha seu valor reconhecido nem a oportunidade de perceber e

possivelmente arrepender-se do erro cometido. Na justiça restaurativa é dada essa chance ao

infrator, que além de ter voz no processo que tenta solucionar o problema causado, tem a

oportunidade de se desculpar coma vítima e se propor a reparar os danos causados à mesma

(PALLAMOLLA, 2009, p. 58). Dessa maneira, a boa convivência social pode ser

restabelecida por meio do diálogo entre os envolvidos, do perdão e da compreensão da

situação, sem que seja necessário a utilização de medidas fortemente repressivas geradoras de

conseqüências psicológicas e sociais altamente danosas.

5.3 Sua aplicação e funcionalidade

As formas de desenvolver a justiça restaurativa não são rígidas, mas são descobertas

a partir das experiências de sua utilização, e aperfeiçoadas pouco a pouco. Por ser um

processo voluntário, requer apenas que haja interesse das partes em iniciar um diálogo sobre o

que deu origem àquele conflito e as suas conseqüências para cada envolvido (direta ou

indiretamente), tentando uma solução capaz de garantir, além da reparação dos danos pessoais

dos envolvidos, a harmonia social que foi quebrada. Ela é realizada com auxilio de um

facilitador, que tem como atribuição guiar o encontro dos envolvidos, devendo evitar que o

ocorram possíveis manifestações prejudiciais ao alcance do consenso final, estabelecendo o

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equilíbrio. Atua de maneira a pedir ou sugerir ações referentes ao delito que atendam aos

anseios de todos, também incentivando a ocorrência de tais ações, porém, de forma imparcial.

O processo inerente a essa forma de fazer justiça é complementar, está associado ao

sistema criminal, já que não há casos de substituição da forma punitiva tradicional pela

restaurativa. Apesar de ser subsidiária, sua prática surte efeitos significativos nos resultados

procedimentais formais, o que se comprova pelas experiências positivas deflagradas em São

Caetano do Sul, Porto Alegre e Brasília, cidades brasileiras, que comprovaram que através do

diálogo, adolescente, famílias e vítimas construíram acordos, algumas vezes com tarefas

simples, mas de grande significado para os envolvidos, com a responsabilização de todos ao

final.

5.4 Críticas

As principais críticas ao modelo restaurativo de justiça são referentes à participação

da vítima e a privatização do conflito, e aludem que a vítima não deve interferir no conflito

sugerindo a pena que o ofensor irá receber, já que o que está em jogo, além do dano causado

aos envolvidos no conflito, é, sobretudo, o interesse público. A participação da vítima pode

ser parcial e corresponder a um sentimento de vingança legitimado.

Questiona-se, portanto, qual interesse deve preponderar nos delitos que são de maior

interesse privado do que público, nos quais a vítima é a mais prejudicada, e não o Estado,

enquanto representante e garantidor do bem estar social, e que mesmo assim são abarcadas

pelo direito penal. A justiça restaurativa não prescinde de limites, e justamente por isso sua

prática deve ser dada em auxilio e complemento ao direito penal estatuído. Apesar disso, a

mera submissão dela ao direito penal é algo contestável, pois frente a crise de legitimidade e

de eficiência do penalismo, faz-se necessária uma redefinição do caráter aflitivo da resposta

penal (PALLAMOLLA, 2009, p. 61), bem como dos verdadeiros objetivos que seus meios

buscam alcançar.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depreende-se, portanto, que nosso sistema penal mostra-se ultrapassado e

ineficiente, não apenas pelo continuo crescimento da violência e a criminalidade, mas pela

escalada da intervenção penal que, ao invés de ser utilizada em ultima ratio, age de forma

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desproporcional, violando de forma de cada vez mais onerosa à vida e as liberdades do

cidadão sem justificativas suficientes, dado que os fatos mostram que essa atitude agrava a

situação.

É preciso que ocorra uma reforma da política criminal do país, que aspire o modelo

de Estado desejado por todos, que respeite a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e se

busque a construção de uma sociedade livre, justa, solidária, fraterna, pluralista e sem

preconceitos, fundada numa harmonia social e solução pacifica dos conflitos, como diz a

nossa Constituição.

O Estado brasileiro precisa agir de forma coerente, não se guiando pelas ideologias

que pregam o endurecimento da resposta penal, mas pela corrente que clama pela pacificação

social e pela resolução do conflito.

Nesse sentido, aparece a Justiça Restaurativa como oportunidade de uma justiça

criminal participativa que opere real transformação, abrindo caminho para uma nova forma de

promoção dos direitos humanos e da cidadania, da inclusão e da paz social, com dignidade, e

para sua aplicação.

Vale salientar que os programas restaurativos não precisam, necessariamente, estar

inseridos no sistema criminal estatal, podendo ser manejados pela sociedade civil organizada,

com a mediação extrajudicial como forma de resolução dos conflitos pela própria

comunidade, o que já vem se fortalecido em diversos estados do nosso país.

REFERÊNCIAS

BARREIROS, Yvana Savedra de Andrade. A ilegitimidade da pena privativa de liberdade

à luz dos fins teóricos da pena no sistema jurídico brasileiro. 2008. Disponível em:

<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/13612-13613-1-PB.pdf>. Acesso

em: 23 jun. 2012.

GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina,

ano 10, n. 1037, 4 maio 2006. Disponível em:

<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8334>. Acesso em: 25 jun 2012.

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KLIKSBERG, Bernardo. Como enfrentar o crescimento da insegurança na América

Latina?: As lógicas em conflito. In: SEM, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em

primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. São Paulo:

Companhia Das Letras, 2010. p. 259-276.

LARRAURI, Elena. Tendências actuales de la justicia restauradora. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 12, ano XII, p. 67-103, nov./dez, 2004.

PALLAMOLLA, Rafaella da Porciúncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São

Paulo: Ibccrim, 2009.

WACQUANT, Loïc. As prisões da Miséria. 2004. Disponível em:

<http://www.fesppr.br/~daiane/Artigos%20de%20Sociologia%20Jur%EDdica/_2__WACQU

ANT__Loic__Prisoes_da_Miseria__Redistribudo_por_BPI.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2012

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo:

Palas Athena, 2008.

RESTORATIVE JUSTICE: A SOCIOLOGICAL ANALYSIS OF GOALS THAT

PUNITIVE MEANS DO NOT REACH

ABSTRACT

The criminal justice system faces a real legitimacy crisis, since it is

not able to reduce the criminal rates. Simplistic solutions do not

appear appropriate to reduce these rates. The reality shows that

criminal law is more intensive on the most vulnerable sections of

society, so thinking about ways to humanize it became a necessity.

Legal pluralism is an alternative to the traditional system, confirming

the inability of formal law to promote justice properly. Restorative

justice is configured as a proposal to a humanized criminal law.

Palavras-chave: Criminal Law. Legal Pluralism. Restorative Justice.

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Recebido 04 mar. 2013

Aceito 18 abr. 2013

O PRINCÍPIO DA MORALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A

MATIZAÇÃO DA DISTINÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL

Lucas Cabral da Silveira1

Manoel Nicolau da Silva Júnior2

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo discutir a diminuição da distinção

entre Direito e Moral a partir do princípio da moralidade, elencado na

Constituição Federal. Será feito um discorrer histórico do tema para,

em seguida, discutir se o princípio configura fundamento autônomo,

podendo mesmo na existência de lei, anular um ato administrativo.

Também serão analisadas questões correntes e de discussão jurídico-

social: o nepotismo e os suplentes de Senadores. Por último,

debateremos brevemente o instituto da ação popular voltado para a

moralidade administrativa, com possíveis aplicações práticas.

Palavras-Chave: Direito. Moral. Princípio da moralidade.

1 INTRODUÇÃO

A literatura técnico-jurídica especializada, desde muito tempo, distingue o Direito da

Moral, conceituando esta como um conjunto maior de “regras” sociais dentre as quais estaria

implícita ou explicitamente o Direito. Por outro lado, segundo a ideia clássica, a conduta

Moral não é dotada de caráter vinculante, não possuindo, dessa forma, característica de norma

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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jurídica. O escopo do presente artigo é propor uma interpretação diferente dessa distinção

clássica, ainda forte, tendo como embasamento primeiro o “princípio da moralidade”,

elencado na nossa Constituição Federal no art. 37, o qual propõe uma matização dessa

distinção, sobretudo em se tratando da Administração Pública. Diante da força principiológica

desse dispositivo, o mesmo não pode ser mera forma subsidiária de revestir os atos públicos, e

sim, um pressuposto de validade para esses atos.

Inicialmente, será feita uma abordagem histórica e doutrinária da distinção entre

Direito e Moral, para situar as controvérsias jurídicas sobre o tema, inclusive ainda em aberto.

Não há um consenso sobre a maior ou menor relação entre o Direito e a Moral ou até mesmo

se há autonomia ou união plena, como propõem os mais radicais de cada ala. A questão

permanece em discussão, e, nesse ponto, cabe demonstrar ao leitor a possibilidade jurídico-

filosófica da temática da matização da diferença entre o Direito e a Moral, não indo de

encontro a preceitos estabelecidos pacificamente no Direito.

Em seguida, será mostrado como é abordado o tema “princípio da moralidade” em

nossa Carta Maior, a partir da abordagem da autonomia deste dispositivo (fundamento

autônomo), possuidor de eficácia plena, sobretudo, se encarado do ponto de vista da nova

hermenêutica constitucional e da força principiológica dos preceitos constitucionais. Da

análise constitucional argumentar-se-á a favor da diminuição da distinção entre a Moral e o

Direito, abarcando este, novas áreas de forma salutar, isto é, sem adentrar em questões de

mera etiqueta social, por exemplo.

Ademais, serão enfrentadas questões práticas e discussões bastante recentes na

mídia, na jurisprudência e na sociedade em geral, a exemplo do nepotismo e dos suplentes de

senadores, ambos em processo de mutação. Mas também, será feita uma análise pontual

acerca da eficácia de novas medidas legais e se, na eventual falha, é possível tomar

providências concretas apenas baseando-se no princípio da moralidade. Ou melhor, como este

pode afetar a criação dessas normas ou até afastar as ainda vigentes.

No último tópico, será debatido o instituto da ação popular de eficiência bastante

discutível até o momento, muito embora revestido de um poder constitucional ainda a ser

descoberto. Dentro do rol de possibilidades para propor tal ação está a moralidade

administrativa. Nesse ponto, surge novamente a problemática da necessidade ou não de lei

prévia ou se a moralidade pura é princípio autônomo suficiente para desconfigurar a

aplicação de uma lei e anular atos administrativos, perquirindo, pontualmente a dificuldade de

uma possível anulação desses atos.

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2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO E

MORAL

A eterna busca pela cientifização do Direito, com início no século XIX, trouxe

profundos benefícios para a área, separando-o da religião, moral, política, economia, e, com

isso, propiciando mais autoridade e seguridade em um momento no qual, de fato, existia uma

necessidade de afirmação da matéria através da ciência. O positivismo foi nesse momento a

corrente predominante.

Contudo, já com uma base fundada de segurança nas instituições do Direito, retoma-

se uma busca por aliar o intérprete e o aplicador às outras áreas do conhecimento tornando-o

mais complexo e, mais do que isso, enraizado com as construções sociais do momento. É a

ideia do Ius como parte da cultura de um povo ou, em outras palavras, presente e sujeito às

modificações da sociedade que o respira. Se, por um lado, não existe ordenamento jurídico

sem sociedade, também não existe sociedade sem um conjunto organizado de normas

jurídicas, muito embora possam ser minimamente desenvolvidas, como foi o caso de algumas

organizações sociais da idade Antiga.

Sendo assim, dissociar os diferentes ramos das ciências sociais dos anseios da

sociedade é, por um lado, válido, todavia é necessário saber até que ponto deve existir essa

fissura e até onde uma área não depende reciprocamente da outra.

A tendência de diferenciação entre Direito e Moral ganhou destaque a partir das

lições de Kant e tem por ponto máximo as ideias de Hans Kelsen (2006, p.58). Segundo este

autor, o Direito não precisa ser revestido de um valor moral ou justo, sendo necessária apenas

uma ordem jurídica instituída, um complexo de normas:

Por tal forma, pois, não se aceita de modo algum a teoria de que o Direito, por

essência, representa um mínimo moral, que uma ordem coercitiva, para poder ser

exigida como Direito, tem de satisfazer alguma exigência moral mínima. (...) Ora,

isto significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente da sua

concordância ou discordância com qualquer sistema de Moral (KELSEN, 2006,

p.58).

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A experiência histórica demonstrou as consequências práticas de sistemas jurídicos

completos e válidos despidos de qualquer valor moral. Os acontecimentos da Segunda Guerra

Mundial inspiraram novas formulações em prol de direitos humanos, em combate à Teoria

normativista de Kelsen e também às correntes do estrito positivismo de forma geral. Outras

questões surgem diante do quadro caótico de atrocidades geradas dentro de um sistema dito

legal e eleito, como é o caso dos regimes nazifascistas. Que Direito é esse que, num estado

democrático de direitos, não se interliga com a sociedade, podendo ser inclusive imoral e

subjugar seu próprio povo?

A sempre crescente racionalização/cientifização do Direito, com especial destaque

para os séculos XIX e início do século XX, sofre choque com um sistema “puro”, porém

muito pior do que se sofresse influência de outras áreas das ciências sociais, revestindo as

elucubrações magníficas, prolixas e de difícil entendimento de um caráter valorativo e

humano.

Evidenciam-se, então, as ideias do jusnaturalismo, mais especificamente dos direitos

humanos, antes mesmo do ordenamento jurídico. Um “confronto” é estabelecido entre a

corrente dos direitos naturais e o positivismo, gerando o benefício de mesclar o ordenamento

jurídico de leis fundamentais, sociais, normas abstrato, entre outras construções, e fugindo em

parte do legalismo puro.

No atual estágio do Direito, pós-positivista ou neoconstitucionalista, existe uma

tendência de aliar os estudos do Direito à sociologia, psicologia, economia, favorecendo uma

maior integração das normas e dos profissionais às realidades sociais existentes. Uma mescla

entre os sistemas positivista e jusnaturalista.

Dentro dessa problemática a questão da matização ou não da distinção clássica entre

Direito e Moral não poderia ficar de fora do debate, principalmente após a promulgação da

Constituição Federal atual que dá novos rumos à hermenêutica do Direito e inspira novos

debates na seara Jurídica. Momento oportuno para, de forma pontual e sem exaurir o debate,

exemplificar como é entendida mais minuciosamente essa divisão entre Moral e Direito,

sobretudo a partir das predisposições constitucionais e para tratar de questões controversas da

administração pública.

3 DIREITO E MORAL NA DOUTRINA BRASILEIRA

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Antes de iniciar propriamente a discussão a cerca do princípio da moralidade cabe,

brevemente, tecer alguns comentários de como os doutrinadores brasileiros vem tratando o

tema, partindo duma visão histórica macro e adentrando na nossa realidade jurídica.

Vicente Ráo (1952, p.72), com uma abordagem bastante social já àquela época,

preleciona sobre a distinção entre Direito e Moral:

Na verdade, se ambas tem por objeto atos humanos, uma, a Moral, os encara, por

modo predominante, em seu momento interno, volitivo, ao passo que a outra, o

Direito, os regula, precipuamente, quando se exteriorizam, isto é, quando revestem

realidade física, não incidindo, aliás, na esfera do direito, (...).

Miguel Reale (2002, p.658) defende a impossibilidade de existir coação a um ato

moral, sendo única e exclusivamente de faculdade interna do agente, diferenciando-se por

esse motivo do Direito, já que não existiria coercibilidade nas normas morais. Todavia,

entendemos ser possível a coercitividade a partir do momento que a ação moral deixa de ser

puramente de uma vontade espontânea e passa a estar presente nas normas de Direito:

Sendo o ato moral pertinente ao indivíduo em sua essência, em sua dignidade

universal de homem, qualquer intromissão externa, obrigando-o a agir, macularia a

sua natureza. A possibilidade de coação inexiste no mundo estritamente moral, que

requer sempre a adesão espontânea do obrigado, que só assim poderá ser fiel a si

mesmo, nota ética fundamental. Em resumo, como o ato moral pertence à instância

do sujeito, não é dado a outrem realizar o ato (impossibilidade de substituição) ou

coagir o sujeito a praticá-lo (impossibilidade de execução forçada). (grifo do autor)

(REALE, 2002, p. 658).

Em sentido contrário e de forma mais atual, Bittar (2011, p. 522) preleciona a favor

de uma aproximação entre Direito e Moral quando explica: “A moral é, e deve sempre ser, o

fim do Direito. Com isso, pode-se chegar à conclusão de que o Direito sem moral, ou o

Direito contrário às aspirações morais de uma comunidade, é puro arbítrio, e não Direito.”

Já Adeodato (2009, p.240) encara o sistema jurídico de forma diferente, não aderindo

à ideia da necessidade e possibilidade de um Direito atendendo a normas morais, muito pelo

contrário. Isso seria impossível tendo em vista a resistência de certos indivíduos a uma

moralidade forçada:

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A impossibilidade aparece quando se fala no outro sentido do direito, o direito

enquanto legitimidade, ou seja, a questão da universalização de conteúdos éticos

definidos. Parece claro que a universalização de regras procedimentais,

instrumentais, é mais fácil; o problema é o lado ético do direito e a consequente

compulsão que precisa ter sobre aqueles que não querem ser moralmente

persuadidos. Mas é justamente essa universalização, incompatível com o direito

enquanto objetivação de uma moral circunstancial, que querem os fundamentalistas

dos mais diversos matizes.3

O que se pretende demonstrar é que a literatura jurídica especializada não é una.

Cada autor segue uma preferência ideológica ora dando mais peso ao Direito em detrimento

da Moral ora o inverso, ou mesmo relacionando-as umbilicalmente. O objetivo aqui não é se

delongar a fazer um resumo da doutrina, mas sim, demonstrar opiniões divergentes dotando a

matéria de pontos abertos a serem discutidos.4

4 O PRINCÍPIO DA MORALIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

O Art. 37, caput, da CF diz: “A administração pública direta e indireta de qualquer

dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos

princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao

seguinte: (...)”.

Podemos extrair que esses princípios como um todo garantem uma série de direitos e

deveres da administração pública. A título exemplificativo demonstra: Um tratamento

isonômico para todos os cidadãos, a publicidade decorrente de órgãos públicos, a novel busca

por eficiência administrativa, entre diversos outros pontos.

Vale ressaltar que os princípios, notadamente os constitucionais, são as normas

basilares do ordenamento jurídico de um Estado Constitucional e Democrático, que sustentam

um ordenamento jurídico e desta forma devem inspirar a todos os operadores do direito, quer

3 Javier Hervada (2006, p.87), jurista espanhol, se posiciona nesse mesmo sentido: “Descumprir os chamados

deveres sociais é expor-se à rejeição social e, nesse sentido, é conveniente e oportuno cumpri-los; mas, em todo

caso, seu descumprimento não viola nada fundamental da pessoa, de modo que pode ser um erro, porém não

uma imoralidade nem uma injustiça.” (grifo nosso). Não coadunamos com essa ideia especialmente em se

tratando de um caso de violação de um dever social com efeitos posteriores (violando “algo fundamental de

outras pessoas”) sobre toda a comunidade. 4 Hart (2009, p.249): “Há muitos tipos diferentes de relações entre o direito e a moral, e nada existe que possa ser

isolado e estudado como se fosse a única relação entre eles. Ao contrário, é importante distinguir alguns dos

muitos significados diferentes da afirmação, ou da negação, de que o direito e a moral se relacionam.”

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seja na elaboração da lei, quer seja na sua interpretação. Nesse sentido, preleciona o jurista

Celso Antônio Bandeira de Mello (1980, p.24), um conceito de princípio:

É, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,

disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o

espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente

por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a

tônica e lhe dá sentido humano. É o conhecimento dos princípios que preside a

intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome

sistema jurídico positivo. Violar um Princípio é muito mais grave que transgredir

uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme

o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema,

subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço e

corrosão de sua estrutura mestra.

Importa, contudo, adentrar mais especificamente no princípio da moralidade. Este,

como decorre da interpretação do artigo, deve estar presente em qualquer um dos poderes do

Estado Constitucional sob pena de macular o ato proferido pela autoridade pública. Todavia,

não é de conhecimento geral, por exemplo, nenhum caso de grande relevância pública

utilizando como ponto fundador da discussão unicamente esse princípio, já que é atribuído

por boa parte dos doutrinadores como sendo de “baixa normatividade”. Só ocorre quando

cumulado com algum caso de violação a alguma lei, e mesmo assim em raras ocasiões.

O ponto da baixa normatividade do princípio é extremamente discutível. Basta ver o

princípio da dignidade humana, consagrado no Direito pátrio sem, contudo, possuir uma

definição de aceitação majoritária e abarcar as mais diversas situações. Em sentido mais

simples encontra-se a moralidade: possui objeto definido e melhor conceituação lógica,

mesmo não sendo unívoca.

A moralidade contempla um rol maior até que o da probidade administrativa. Atentar

a essa moral não é, numerus clausus, ou seja, não se restringe como já dito à probidade, vai

mais além, e aqui reside a mudança: ultrapassa os limites da própria lei, se esta eventualmente

possibilitar uma atuação imoral embasada em uma norma infraconstitucional ou mesmo na

ausência de regulação legal. Um ato, por exemplo, com o objetivo de favorecer alguém,

descumpre esse princípio mesmo dentro de uma suposta legalidade.

Ademais, os princípios constitucionais devem guiar o legislador na sua produção

normativa, aliás, não só ele, mas também o aplicador do direito, que deve interpretar as

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normas ordinárias à luz dos princípios constitucionais. Além disso, coadunando-se com o

exposto, assevera o Decreto-lei Nº 4.657/42 (LINDB)5.

Isto é, o legislador de 42, ao tratar do tema da aplicação legal, já naquele momento

histórico, emplaca fins éticos e morais, visando vincular o operador no sentido de interpretar o

ordenamento jurídico de forma a não contrariar totalmente a moral social.

Ora, se a constituição é hierarquicamente superior a qualquer lei, nenhuma disciplina

infraconstitucional haverá de se esbarrar com o principio da moralidade sob pena de ser

retirada do ordenamento Jurídico. Entende-se, portanto, em se tratando da administração

pública, a moralidade é essencial.

Avançando ainda mais na discussão, o princípio em pauta é posicionado

topograficamente ao lado de uma série de garantias principiológicas mais concretas como é o

caso da legalidade e publicidade. Se o constituinte originário desejasse revestir o princípio da

moralidade com um caráter subsidiário, não teria o posicionado junto e sem nenhuma

distinção de regras tão práticas e fundantes da atuação pública.

5 DECORRENTE MATIZAÇÃO DA DISTINÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL

Com o exposto sobre o presente princípio, entende-se, logo, que algo, sendo imoral,

é mais do que ilegal, é inconstitucional em se tratando da administração pública. A distinção

clássica não pode resistir à força normativa da constituição. O Direito ganha, sobre essa

perspectiva, mais espaço dentro do rol dito mais amplo, denominado Moral, e pode se alargar

dentro dessa esfera até a medida do necessário, sem adentrar, contudo, em questões de mera

etiqueta.

Alegações clássicas de imoralidade eternizadas na frase: “Isso pode ser até imoral,

mas não é ilegal”, como meio legitimador para revestir determinados atos manifestamente

incorretos de figuras do poder público, não podem permanecer. Sobretudo, se o argumento for

uma suposta omissão ou comissão legislativa delituosa. Se o parlamento for omisso, os

princípios do ordenamento devem suprir as ausências.

5 “Art. 4

o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios

gerais de direito. Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do

bem comum.”

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Tais práticas, sustenta-se aqui, podem e devem ser confrontadas à luz do princípio da

moralidade. Não subsiste esse argumento, na verdade deveria ser mais do que claro a não

permanência da estrita legalidade ante o Neoconstitucionalismo. Quando se trata de

gerenciamento estatal, ou seja, da influência na vida de cada cidadão seja através de tributos

ou da utilização dos serviços públicos, a norma moral deixa de ser simplesmente de

cumprimento voluntário para ser constringente.

E ainda, o principio da legalidade (estrita) no âmbito da atuação dos agentes

públicos, jamais poderá ser entendido, sujeito à consequência de restringir a essência da mens

legis, como faculdade de atuar preocupado apenas em não cometer atos que afrontem à lei,

muito pelo contrário. O dever do agente público é atuar onde a lei permite, expressamente

regula, devendo omitir-se em ocasiões de lacuna legal, conforme alude Hely Lopes Meirelles

(2002, p.86):

A legalidade, como principio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o

administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos

mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou

desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar,

civil e criminal, conforme o caso. (...) A eficácia de toda atividade administrativa

está condicionada ao atendimento da Lei.

Na concepção atual de democracia, esta deve prezar cada vez mais uma gestão

clarificada e honesta, sem benefícios pessoais e sem prejudicar os interesses sociais; tais

anseios se coadunam com a moralidade do serviço público a qual esta além da legalidade, é,

de fato, moralidade do serviço, um julgamento em grande medida de valor construído

socialmente e majoritário. A opinião pública demanda essas mudanças e de tempos em

tempos traz à tona casos correntes de imoralidade na gestão pública ocasionando um repúdio

popular por política e burocracia estatal. O argumento de a Moral ser somente faculdade

interna de cada indivíduo torna-se até contraditório quando confrontado com o sistema estatal.

A forma de administrar tem consequências para todos e não só internamente a cada um.

Para não permanecer apenas no plano teórico, exemplifica-se, por exemplo, com um

orçamento público que maneje vultuosas somas de dinheiro para a mera realização de

propagandas mesmo diante do caótico quadro em diversos setores sociais. Em tese (e na

realidade fática acaba sendo muito comum), é possível tomar tal medida, e o pior de tudo, será

uma atitude legalmente instituída. No entanto, não estará dentro da moralidade mínima

exigida de um gestor público por seus eleitores (os que, em ultima instância, são os seus

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legitimadores), e, com a visão aqui defendida, deve dependendo do grau de descaso ser

motivo de reprimenda, sem prejuízo de outras sanções penais e civis já reguladas em outras

leis de eficácia discutível. A moralidade Pública é fundamento autônomo e é pressuposto de

validade e eficácia dos atos administrativos e não apenas auxiliar a administração pública.

Passaremos agora a analisar casos práticos onde o princípio da moralidade poderia

ter caráter cogente diante de uma ausência normativa ou de seus efeitos e alcance não serem

os desejáveis. Trataremos do Nepotismo, um exemplo de uma prática imoral que até pouco

tempo se perpetuava (o que não significa a interrupção da sua ocorrência, muito pelo

contrário); e o suplente de Senador, a discussão sobre a legitimidade da atual forma, a qual

não privilegia o sufrágio popular.

5.1 Suplentes de Senadores

Assunto dos mais controversos e debatidos no âmbito político e jurídico é sobre as

condições do suplente de Senador. Na Constituição Federal atual, um senador eleito pode

dispor de dois suplentes os quais o substituirão nos casos previstos no art. 56 § 1º e § 2º,

comumente por assumir outro cargo ou com licença superior a cento e vinte dias. Deste

dispositivo legal decorrem os maiores problemas.

A escolha dos suplentes independe de disposições do partido ao qual o senador faz

parte, sujeita apenas à vontade íntima do membro do Senado, como se o cargo pudesse ser de

propriedade de algum particular. Pior ainda, não há vedações à colocação de familiares

próximos, sendo muito comum, filhos, esposas, estabelecendo verdadeira perpetuação

familiar no cargo6. Na prática, acontece de senadores eleitos, nas próximas eleições,

disputarem para outro cargo e diante de vitória passar o cargo para seu suplente de discutível

elegibilidade. Ou a nomeação para ministro de Estado.

O primeiro ponto a ser debatido é: o eleitor não votar no suplente e, em quase

totalidade dos casos, desconhecer sua procedência. Diferentemente do vice-presidente da

República, por exemplo, que participa avidamente da campanha, angaria votos e dispõe

6 “Na troca de cadeiras do Senado, há filho que assume o mandato do pai e pai que entra enquanto o filho sai,

porém ocupando mandatos diferentes. O senador Edison Lobão Filho (PMDB) deverá substituir, a partir do

segundo dia de mandato, o pai, Edison Lobão (PMDB), que já é o ministro de Minas e Energia.” TUPYNAMBÁ, José Paulo. Legislatura começa com dez suplentes exercendo o mandato. Agência Senado,

Brasília, 13 jan. 2011. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/noticias/Especiais/possesenadores2011/noticias/legislatura-comea-com-dez-

suplentes-exercendo-o-mandato.aspx>. Acesso em: 17 jun. 2012

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abertamente seu nome para julgamento da sociedade, além de que sua escolha decorre, na

maioria das vezes, de alianças políticas.

O suplente de senador, por outro lado, configura o total oposto. O indivíduo não

exerceu influência política sobre o eleitorado e mesmo assim poderá assumir um cargo eletivo

de extrema importância cujo voto pode definir drasticamente ou não a aprovação de uma lei

(basta ver que a casa possui somente 81 senadores e em uma votação de maioria simples, a

não presença de um número mínimo de senadores, e subtraídas as abstenções, faz com que

menos de quarenta e uma pessoas decidam questões da nação, muitas delas não eleitas – os

suplentes).7

São cargos de efetiva aplicação do poder com possibilidade de exercício - não

democrático uma vez que deveriam, no mínimo, atender aos princípios de outras

candidaturas: Deputado Federal, Vereador, Deputado Estadual; e à eventual substituição pelo

próximo candidato da lista do partido que recebeu mais votos, em outras palavras,

efetivamente participou da eleição. Não bastasse isso, a ausência de vedações para a

estipulação da suplência nos relembra das situações grotescas de nepotismo presentes nessa

casa desde longas datas. O cargo parece muitas vezes ser de propriedade do candidato eleito e

não apenas uma função temporária de ordem pública.

O princípio da moralidade está totalmente esquecido nesses casos, bem como os da

publicidade e impessoalidade. Quando a legalidade não estipula vedação à quebra da

moralidade (nepotismo, falta de claridade da gestão), o princípio constitucional deve entrar

em choque. Sobretudo quando o tema já é de amplo conflito na seara jurídica e causa repulsa

e indisposição política dos cidadãos.

A insuficiência de medidas políticas para readaptar o dispositivo à realidade

democrática é causa de possível regulação pelo poder judiciário ou, no mesmo caminho, pela

opinião pública, no sentido de resolver a querela por pressão política e instrução social de

quem desconhece a problemática, iluminando a questão. A tese defendida no presente artigo é

da não necessidade de uma regulação legal sobre o tema. Uma decisão jurisdicional mesmo

não constringente (no caso das súmulas vinculantes, tem força de ato normativo), nesse

7 “A nova legislatura começa com dez suplentes no exercício do mandato, 12,3% da composição total da Casa,

que tem 81 senadores. O número pode parecer alto, uma vez que a eleição do ano passado colocou em disputa

dois terços das cadeiras da Casa, mas reduz para menos da metade o número de suplentes que chegaram ao final

da atual legislatura como senadores: 22.” Esse dado só reforça o poder de pessoas “não eleitas” e com

procedência discutível tomarem decisões importantes no Senado. TUPYNAMBÁ, José Paulo. Legislatura

começa com dez suplentes exercendo o mandato. Agência Senado, Brasília, 13 jan. 2011. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/noticias/Especiais/possesenadores2011/notici. aspx>. Acesso em: 17 jun. 2012

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sentido, poderia inspirar debates e até mesmo nova legislação condizente com a necessidade

social. O problema é a dificuldade de um poder chocar-se abertamente contra outro.

Atualmente, tramita uma proposta de emenda constitucional (PEC Nº 37 de 2011)

com intuito de reduzir para um o número de suplentes e impossibilitar a nomeação de cônjuge

ou parente consanguíneo ou afim até segundo grau. Nada garantido. A autolimitação de um

dos poderes é sempre dificultosa e nada impede a derrubada do projeto no plenário ou sua

ineficácia posterior, de fato já aconteceu com outras leis limitando os arbítrios imorais (lei nº

9.421/96 que precisou de resolução do CNJ em 2005 para confirmá-la, tema abordado

novamente a seguir).

5.2 Nepotismo

O problema da pessoalidade (não se pode ainda falar em imoralidade sem a

existência de uma sociedade com preceitos culturais e morais definidos) no trato público, nas

terras brasilianas, vem de longa data, tecnicamente, vem desde antes de se chamar Brasil.

Pero Vaz de Caminha ao relatar à Coroa Portuguesa pede, em sua primeira carta, o seguinte:

E, pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra

qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem

servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São

Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê. (grifo

nosso) 8

Isto é, desde o “descobrimento” do Brasil já existe o problema endêmico de gestores

da res pública utilizarem dos cargos para obtenção de favores pessoais. Entretanto, de forma

alguma isso deve servir de justificativa para que não se lute contra, vez que a construção

social e cultural do momento atingiu um ponto no qual se considera o nepotismo como uma

imoralidade dentro do sistema sócio-politico-cultural.

8CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em:

<http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/perovazcaminha/carta.htm>.

Acesso em: 20 mar. 2013.

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Abstraindo-se a reminiscência histórica que seria possível de adaptar para a definição

etimológica da palavra Nepotismo9, temos, segundo Antônio Roberto Hildebrand (2005,

p.208), em seu “Dicionário Jurídico”, a conceituação do termo: “favoritismo, patronato”.

O problema dessa prática se dá, justamente pelo fato de faltar ao ato do administrador

o fundamento de interesse público. Prevalecendo, nessas circunstâncias, atos que violam os

princípios basilares da administração pública, em detrimento dos que coadunem com esses

princípios.

Nesse diapasão, surgem justificativas que tentam legitimar tais atos subsidiando-se

da definição legal de cargos como os de “livre nomeação” podendo o gestor,

discricionariamente10

, escolher dentre os cidadãos os que adequem às funções de determinado

cargo, sendo o administrador nomeante o único legitimado a exercer essa valoração. O que,

em princípio, não excluiria os parentes dos ocupantes desse cargo.

Porém, como já aludiu Júlio César: “À mulher de César não basta ser honesta, deve

parecer honesta” 11

, isto é, ao administrador não basta apenas pautar-se na estrita legalidade,

deve ele respeitar os ditames da moral social/jurídica. O nepotismo é, pois, social e

juridicamente, uma prática imoral inaceitável.

Nesse viés, deve o gestor da coisa pública guiar-se pelo princípio constitucional da

moralidade no sentido de não nomear parentes em cargos de livre escolha, colocados a seu

9 A divulgação do vocábulo (ao qual foi acrescido o sufixo-ismo), no sentido hoje difundido em todo o mundo,

em muito se deve aos pontífices da Igreja Católica. Alguns papas tinham por hábito conceder cargos, dádivas e

favores aos seus parentes mais próximos, terminando por lapidar os elementos intrínsecos ao nepotismo.

(GARCIA, 2006, p. 1-9) 10

Importante discussão acerca do termo “discricionariedade” é levada a cabo por Ronald Dworkin (2007, p.51-

63): “Os positivistas extraíram o conceito de poder discricionário da linguagem ordinária. (...) O que significa

dizer, na vida cotidiana, que alguém tem um ‘poder discricionário’? a primeira coisa a notar é que o conceito está

sempre deslocado, exceto em contextos muito especiais.” Discricionariedade não pode ser encarada como

liberdade total de decidir, mas necessita o atendimento de certos padrões legais, ou, a divisão –funcional- de

tomar uma decisão. Muito embora alguns gestores acreditem possuir total controle dos mandos e desmandos. 11

Vale ressaltar que a temática do Nepotismo resta-se pacificada - no âmbito da legalidade - em nosso

ordenamento jurídico. Nesse sentido, faz-se mister uma sucinta reminiscência histórica das leis sobre o tema.

Antes de 1996 não existia disposição legal no Brasil que proibisse efetivamente a prática de empregar parentes

em cargos comissionados (havia a Lei 8.172/90, porém só restringia o emprego de parentes/afins sob a chefia

imediata), até que, nesse mesmo ano, edita-se a lei nº 9.421/96 que em seu artigo 10º normatizava que: “No

âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo é vedada a nomeação ou designação, para os Cargos em

Comissão e para as Funções Comissionadas de que trata o art. 9° , de cônjuge, companheiro ou parente até o

terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, salvo a de servidor ocupante de cargo de

provimento efetivo das Carreiras Judiciárias, caso em que a vedação é restrita à nomeação ou designação para

servir junto ao Magistrado determinante da incompatibilidade.” Porém essa lei, era descaradamente ineficaz,

pois foi preciso, já em 2005, uma resolução do CNJ regulando o tema, a Resolução nº 7/05, que, com o fito de

dar efetividade a proibição do nepotismo no Poder Judiciário, ainda precisou ser declarada constitucional no

Supremo Tribunal Federal através da ADC 12, de relatoria do ministro Ayres Brito. E por fim, em um passe de

grande acerto, foi editada a Súmula Vinculante nº 13 proibindo a pratica do nepotismo em qualquer dos três

poderes da nação.

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critério discricionário, com a consequência de dar vazão a práticas que contrariem os

princípios de um Estado Democrático de Direito.

Aqui se alude, entre outros pontos, aos cargos Ad Nutum. Pode um gestor, protegido

por um suposto manto de necessidade de confiança (critério moral?), nomear pessoas

próximas? É dizer, para o bom entendedor, que: ou a população e a sociedade em geral não

são dignas de confiança, ou os funcionários públicos devidamente investidos não o são.

5.3 Ação popular como meio idôneo para nulidade de atos administrativos

Diante do exposto, procura-se um meio de eficácia possível para anular atos

atentatórios à moralidade do serviço público, para os céticos em utilizar unicamente o

princípio. A formação de uma consciência social pressionando os órgãos políticos e o

posicionamento dos órgãos judicantes é meio de atingir tal objetivo. Necessitam, todavia, de

uma democracia em estágio bastante amadurecido, o que pode dificultar em certos casos a

eficácia.

No entanto, a Constituição Federal privilegiou o instituto da ação popular e em seu

Art. 5º, LXXIII dispõe como um dos fundamentos autônomos para propô-la a “moralidade

administrativa”. Ainda pouco utilizado, pode ser um meio de confrontar, partindo da

sociedade, ato lesivo à moralidade administrativa. A doutrina sobre o tema não é pacífica.

Alguns doutrinadores afirmam a necessidade de se mostrarem presentes os dois institutos

clássicos para a sua impetração: ilegalidade e lesividade.

Lesividade tem a ver com real interesse público, deixando de fora questões de mera

etiqueta ou irrelevantes. Já a ilegalidade se torna bastante discutível, principalmente por sua

necessidade não ter sido expressa pelo constituinte. Simplesmente o requisito de “anular ato

lesivo à moralidade administrativa” é, pela leitura da constituição, suficiente para propor uma

ação popular, vez que foi colocado de forma autônoma. Soma-se a isso a interpretação

sistemática, dando força vinculante aos princípios constitucionais, incluso nesse rol da

moralidade administrativa. Assim, não é necessário, segundo opinião aqui proposta, o

requisito da ilegalidade, podendo existir ação na lacuna da lei ou em sua inexistência. Trata-se

de um dispositivo que apenas dá maior força ao exposto nos tópicos anteriores. A questão

agora é saber da dificuldade de anular atos do poder público, e da viabilidade prática do

instituto. Contudo, a possibilidade existe, resta agora a modulação dos efeitos.

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Em sentido parecido se posiciona José Afonso da Silva (2011, p.464-465) quando

diz:

Se se exigir também o vício de ilegalidade, então não haverá dificuldade

alguma para a apreciação do ato imoral, porque, em verdade, somente se considerará

ocorrida a imoralidade administrativa no caso de ilegalidade. Mas isso nos parece

liquidar com a intenção do legislador constituinte de contemplar a moralidade

administrativa como objeto de proteção desse remédio. Por outro lado, pode-se

pensar na dificuldade que será desfazer um ato, produzido conforme a lei, sob o

fundamento de vício de imoralidade. Mas isso é possível porque a moralidade

administrativa não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque

tem conteúdo jurídico a partir de regras e princípios da administração. No caso de

defesa da moralidade pura, ou seja, sem alegação de lesividade ao patrimônio

público, mas apenas de lesividade do princípio da moralidade administrativa, assim

mesmo se reconhecem as dificuldades para se dispensar o requisito da ilegalidade,

mas quando se fala que isso é possível é porque se sabe que a atuação administrativa

imoral está associada à violação de um pressuposto de validade do ato

administrativo.

De difícil acontecimento, mas possível. A existência de vontade política ou popular

suficiente ocasionará lesividade, mesmo sem predisposição anterior de lei. Ainda mais

porque, o principio da moralidade passa a ser um pressuposto de todo ato da administração e

não apenas acessório à sua atividade. É inerente. Surge antes do próprio ato, para dar

predisposições de como esse deve ser realizado.

Passaremos agora à fase final, concluindo com os principais pontos do artigo em

questão.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do artigo não é exaurir o tema, e sim, propiciar o debate constante entre

Direito e Moral e, agora, relacionando com o princípio da moralidade presente na

Constituição Federal. Tentou-se demonstrar a força desse princípio a partir de uma

interpretação literal, o posicionamento dado pelo constituinte e, sobretudo, pela interpretação

sistemática de fornecer aos princípios constitucionais maior eficácia.

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O confronto entre Direito e Moral deixa o tema em aberto, possível de ser debatido

sob o viés aqui exposto. A mera existência de uma lei não pode barrar a utilização do

princípio da moralidade. A anulação de atos da administração pública pode ser pautada

unicamente no argumento da moralidade pura, sem necessidade de outros institutos, contudo,

se houver indisposição política, existem outros meios, como é o caso da ação popular,

pronunciamento do judiciário e participação da opinião pública cobrando resultados.

A questão central é dar primazia a esse princípio para impossibilitar a gestão imoral e

contra os anseios sociais diminuir a força do chavão: “É imoral, mas não ilegal”. Sob o ponto

de vista desse artigo, é mais do que ilegal, passa a ser inconstitucional independente de lei

regulando o caso.

Em suma, a moralidade pública ganha novas feições diante desse quadro que pede

para ser concretizado por um governo mais claro, democrático e moral. Sobretudo em virtude

dos desmandos sempre recorrentes na gestão da coisa pública até o dia de hoje. Portanto, algo

tem de ser feito, e a ferramenta jurídica para isso, já existe.

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PRINCIPLE OF MORALITY IN THE PUBLIC ADMINISTRATION AND THE

BLENDING OF THE DISTINCTION BETWEEN LAW AND MORAL

ABSTRACT

The following article wishes, as it main objective, to discuss the

decrease of distinction between law and Moral starting with the

principle of morality, listed on the constitution. There will be made an

historical analysis of the theme and then a discussion on whether the

principle is considered a standalone fundament, being able, even

despite the existence of a law, to annul an administrative act. Also

practical questions will be analyzed as well as juridical-social:

nepotism and alternate senator. At last, we will briefly debate the

institute of popular demand focused on administrative morality with

possibility of practical application.

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Keywords: Law. Moral. Principle of morality.

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Recebido 30 ago. 2012

Aceito 20 abr. 2013

O SURGIMENTO DO ESTADO – DE HOBBES A MARX: UMA QUESTÃO

FILOSÓFICA

Beatriz Costa Rodrigues Farias1

RESUMO

O surgimento do Estado e da Política são objetos de freqüente estudo

desde a Antiguidade até os dias hodiernos. Tais abordagens são de

suma importância para a compreensão do comportamento do ser

humano em sociedade afim de possibilitar a construção de uma

sociedade mais harmônica. Destarte, segue uma análise das obras dos

principais filósofos e pensadores que debateram essa questão, tais

como Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke, John

Stuart Mill, Jeremy Bentham e por fim Karl Marx. Será mostrada,

logo, a evolução das doutrinas filosóficas e políticas ao longo da

História.

Palavras - chave: Estado. Política. Filósofos. Sociedade

“O maior debate contemporâneo de filosofia política - e não vejo

como poderia ser compreendido de outro modo - um dos temas

tradicionais da Filosofia, um tema do ótimo Estado, ainda que de uma

visão moderna, está longe de ter-se exaurido. Eu diria ao contrário,

que está mais vivo do que nunca”.

(Norberto Bobbio)

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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1 INTRODUÇÃO

Ao longo da história vários pensadores tentaram compreender como se construiu e se

moldou o convívio entre os homens até que se formasse a sociedade hodierna, com seus

Estados, suas leis, códigos, normas e formas de governo. Procurando, pois, entender essa

dinâmica humana, diversas correntes filosóficas abordaram esse tema, criando suas diferentes

teorias para justificar a organização do poder político e demonstrar como os indivíduos

evoluíram socialmente.

Dessa maneira, é importante a análise dos principais ramos da filosofia que possuem

tal objeto de estudo. Uma vez que, a compreensão das transformações sócio-ideológicas que

surgiram ao longo da história é crucial para visão crítica sobre a atualidade, a qual auxilia a

resolução de problemas cotidianos, bem como, possibilita o melhor exercício das ciências

sociais e jurídicas. Afinal, aprimora o entendimento das relações humanas.

2 A CORRENTE JUSNATURALISTA E O ESTADO DE NATUREZA

Várias vertentes da Filosofia tentaram compreender a formação do Estado, dentre elas

daremos, primeiramente, o destaque à corrente contratualista. Isto é, os detentores do

pensamento de que o Estado surgiu por meio de um contrato firmado entre os homens, os

quais o fizeram para sair do denominado Estado de Natureza – momento em que eles viviam

sem uma organização plena de poder – e entrar no Estado Civil, no qual seriam criadas regras

de convivência social e sujeição política com o intuito de buscar a paz.

Nessa perspectiva, serão abordadas as obras “O Leviatã”, “Segundo tratado sobre o

governo” e “O Contrato Social” de Thomas Hobbes (1588 – 1679), John Locke (1632 – 1794)

e Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), respectivamente.

A descrição de tal “Estado de Natureza” - assim como da conduta do ser humano

quando se encontra nessa condição - difere ao compararmos a ideologia de cada um desses

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dois autores. No entanto, todos eles utilizam a natureza do comportamento humano para

entender a formação do Estado político.

Hobbes observou que os homens são todos semelhantes, dotados igualmente de

faculdades racionais e passionais. Conforme Limongi (2002, p. 16), “a razão para Hobbes –

assim como para Descartes e outros racionalistas do século XVII, como Espinosa e Leibniz –

é uma ordem demonstrativa”. Esse contratualista absolutista afirma que tal igualdade é difícil

de ser compreendia pelos próprios homens, pois cada um tem uma apreensão altiva de sua

própria sabedoria.

Todavia, isso torna os homens ainda mais iguais, uma vez que todos pensam dessa

mesma maneira. O próprio Hobbes (1988, p.74) assegura:

Pois a natureza dos homens é tal que embora sejam capazes de reconhecer em

muitos, maior inteligência, maior eloqüência, ou maior saber, dificilmente acreditam

que haja muitos sábios como eles próprios (...). Mas isto prova que os homens são

iguais quanto a esse ponto, e não sejam desiguais.

Essa condição de igualdade gera, por conseguinte, a esperança de que todos possam

alcançar seus desejados fins. No entanto, essa esperança vem a suscitar a disputa, uma vez

que dois homens podem desejar alcançar um mesmo fim que não pode ser desfrutado por

ambos. Com isso, por terem a igual capacidade de prever situações, será mais razoável para

cada um atacar o outro antes de ser atacado.

Assim confirma Lyra: “Cada um toma-se, desta forma, para o outro, um rival, um

adversário, um obstáculo na procura da felicidade. Daí a hostilidade constante, uma rivalidade

perpétua pelas honras, riquezas e autoridade” (2006, p. 42). Com esse fato, há a generalização

da guerra entre os homens, pois são semeadas as três fontes da discórdia: a competição, a

desconfiança e a glória. “A primeira leva os homens a atacarem uns ao outros tendo em vista

o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação” (HOBBES, 1988, p.75).

Surge, desse modo, o Estado de Guerra em que todos os homens guerreiam entre si.

Isto é, eles viviam em um constante e inseguro ambiente de barbarismo com a contínua

tentativa de imposição de um sobre o outro. Este fato poderia implicar no desaparecimento da

humanidade. Destarte, a vida do homem seria curta, solitária, temerosa e de contínuo risco de

morte violenta.

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Para Hobbes, tal Estado de Guerra confunde-se com o Estado de Natureza, uma vez

que a guerra não consiste apenas na batalha, mas também na iminência da luta. Enquanto os

homens tivessem a vontade de atacar uns aos outros, o Estado de Guerra iria se perpetuar.

Como no Estado de Natureza não há um poder capaz de controlar a convivência

social dos indivíduos para que esses possam conviver em respeito, sempre haverá o Estado de

Guerra. Afinal, “a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição

para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário” (HOBBES, 1988, p. 76).

Além desse entendimento, em uma análise hobbesiana, no Estado de Natureza o

homem era regido por uma série de leis de natureza, as quais o direcionam para a sua

sobrevivência. Hobbes (1988, p. 78) assevera:

Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito, ou regra geral, estabelecido pela

razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua

vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense

poder contribuir para melhor preservá-la”

Como, para Hobbes, o homem encontrava-se em guerra no Estado de Natureza, cada

um era comandado pela sua própria razão. Não havendo, assim, nada de que ele não possa se

utilizar para lutar pela sua sobrevivência. Destarte, no estado de natureza os seres humanos

têm direito a todas as coisas – inclusive aos corpos uns dos outros. Essa condição de ter

direito a tudo leva a uma insegurança, atentando contra a vida, intensificando mais ainda,

assim, o Estado de Guerra.

Por essa razão, apenas as leis de natureza – por mais que de maneira geral elas tendam

a buscar a paz – não são suficientes para retirar os homens do Estado de Guerra.

Dessa forma, a extrema instabilidade e falta de segurança do Estado de Natureza era

um obstáculo para o progresso, uma vez que o desenvolvimento das atividades produtivas

necessita de ordem, estabilidade e paz. Sendo assim, a garantia do avanço social seria possível

apenas com o estabelecimento de um poder capaz de controlar a conduta dos indivíduos,

equilibrando, portanto, politicamente a sociedade.

Por conseguinte, torna-se fundamental a presença de um poder soberano que atue com

a coerção, garantindo primordialmente a segurança de seus súditos. Já dizia, pois, Ribeiro: “É

preciso que exista um Estado dotado de espada, armado, para forçar os homens ao respeito”

(2011, p.61)

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Dessa maneira, a sociedade civil só surge com o Estado: é a saída do homem do

Estado de Natureza. Para que o homem possa voltar a ter a segurança fundamental para

usufruir do seu próprio labor, sem temer a sua própria sobrevivência. Para o homem sair do

Estado de Guerra, é essencial adjudicar todos os seus direitos – força e poder – a um só

homem ou uma assembléia de homens que poderá resumir as diversas vontades emergentes a

apenas uma – por meio de uma votação.

Para tanto, os súditos terão de eleger esse poder soberano e realizar um pacto com a

seguinte prerrogativa: “Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este

homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito,

autorizando de maneira semelhante todas as suas ações” (HOBBES, 1988, p. 105).

No entanto, o poder soberano escolhido não entrará no pacto, uma vez que se esse

poder sofrer algum tipo de circunscrição não haverá quem julgue se suas ações são ou não

justas, se ele é ainda ou não soberano. Dessa forma, o poder há de ser absoluto, no qual o

soberano será detentor de alguns direitos que garantam o exercício pleno de sua soberania,

como o direito de não ser deposto, nem morto, nem punido.

Afinal, ao transferir todos os seus direitos ao soberano cada súdito vira autor das ações

instituídas pelo seu soberano, e se ele por acaso depor ou punir o príncipe, ele estará

castigando outro alguém por atos cometidos por si mesmo. Ainda que os súditos não gostem

de estar submetidos ao soberano, devem reconhecer que é melhor do que permanecer no

Estado de Natureza.

Em contrapartida, é dever do soberano garantir aos seus súditos a segurança

fundamental e necessária para garantir a sobrevivência de todos. Os súditos, por conseguinte,

terão o direito de resistir a qualquer tentativa passional do soberano de atentar contra a sua

vida, uma vez que o pacto “mata-me e eu não resistirei” constitui-se num pacto nulo.

Outro conceito importante estabelecido por Hobbes é o de liberdade. Para ele

“liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os

impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e

inanimadas que às racionais.” (HOBBES, 1988, p. 130). Um homem livre, em seu

entendimento, é aquele que não tem impedimentos para fazer o que sua força e capacidade o

permitem fazer.

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Dessa maneira, no momento em que o súdito transferiu seus direitos ao soberano ele

abdicou ao seu direito de natureza, isto é, de ter direito a fazer tudo o que pretende para a sua

sobrevivência. No entanto, ao firmar o pacto para garantir a sobrevivência, ainda resta ao

súdito uma liberdade: a de não dever mais obediência ao soberano caso este deixar de garantir

sua sobrevivência. Isso acontece devido ao soberano faltar com a razão que levava o súdito a

ser seu submisso.

Afinal, no Estado Absoluto de Hobbes há a conservação do direito à vida. No entanto,

o comentador dessa literatura, Renato Janine Ribeiro (2011, p.61) afirma:

Mas esse estado hobbesiano continua marcado pelo medo (...) Porque sem medo,

ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não temesse a

morte violenta, que homem renunciaria ao direito que possui, por natureza, a todos

os bens e corpos?

Porém, não há só a teoria de Hobbes para o surgimento do Estado Civil. O Porém, não

há só a teoria de Hobbes para o surgimento do Estado Civil. Como havia dito anteriormente, o

inglês John Locke – também contratualista – expõe seu raciocínio acerca dessa questão em

seu livro “Segundo tratado sobre o governo”.

Para Locke, diferentemente de Hobbes, o Estado de Natureza constitui-se num

estágio que antecede a organização política, cujas características principais são a harmonia,

liberdade e igualdade. Em que - em contraposição ao pensamento hobbesiano - tal Estado

Natural não se confunde com o Estado de Guerra. De acordo com o comentador Leonel

Iatussu Almeida Mello (2011, p. 85), “esse Estado de Natureza deferia do Estado de Guerra

hobbesiano, baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz,

concórdia e harmonia”.

Locke também afirmava essa condição de natureza ser um âmbito de igualdade,

sendo qualquer poder e jurisdição, recíprocos. Isto é, todos os homens são iguais: possuem as

mesmas vantagens da natureza e a mesma capacidade para o uso de mesmas faculdades. Tal

Estado de Natureza possui, para este filósofo inglês, apenas uma lei de natureza: a razão. Ou

seja, “sendo todos os homens iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na

vida, na saúde, na liberdade, ou nas posses” (LOCKE, 1978, p. 36). E para garantir a devida

aplicação dessa lei, impedindo que os direitos dos indivíduos sejam invadidos, todos os

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homens estão aptos a julgar e condenar qualquer outro homem que transgrida a lei de

natureza, com o intuito de coibir a sua violação.

A condição de guerra lockiana dá-se, pois, quando um indivíduo atenta contra a

propriedade de outrem (propriedade como conceito de vida, liberdade e bens, todos esses

originados como fruto do labor individual). Portanto este é um dos grandes inconvenientes

Estado de Natureza, o qual faz o homem sentir a necessidade de uma organização política e

social mais complexa. Outro problema concomitante è violação da propriedade é o fato de um

homem poder ser juiz da própria causa, levando em consideração no seu julgamento suas

paixões e erros em detrimento da razão.

Dessa forma, o governo civil é uma alternativa para resolver esses infortúnios do

estado de natureza. Inclusive, afirmava Locke: “A força sem o direito sobre a pessoa de um

homem provoca um estado de guerra não só quando há como quando não há juiz comum. Mas

quando desaparece a força atual, cessa o estado de guerra” (LOCKE, 1978, p. 41).

O contrato social em Locke distingue-se completamente daquele pensado por Hobbes.

Na leitura hobbesiana há a formulação de um pacto de submissão entre os homens, que ficam

subordinados às vontades de um soberano ao qual foram cedidos todos os seus direitos.

Em contraposição na visão lockiana, o contrato social é tratado como um acordo, no

qual os homens pactuam a favor da formação uma sociedade em que se possa resguardar

ainda mais seguramente os direitos garantidos no estado de natureza, isto é, o direito a

propriedade. De acordo com o comentador Leonel Iatussu Almeida Mello (p. 86, 2011), “no

estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão

melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político

unitário.”

Depois de firmado tal acordo de formação de uma sociedade politicamente

organizada, os indivíduos devem eleger uma forma de governo, sendo, nesse caso, o poder

supremo de decisão a denominada maioria. Não importa qual a forma de governo adotada,

esta deve garantir essencialmente a conservação da propriedade.

Após sagrar a forma de governo, o passo seguinte é estabelecer o poder supremo,

denominado poder Legislativo - o qual terá como principal dever a formação de leis que

normatizem a convivência social com o intuito de garantir o direito à propriedade, para que

todos os indivíduos possam usufruir em paz dos resultados de seus trabalhos.

No entanto, há também dois outros poderes subordinados ao legislativo: o Executivo

e o Federativo. Ao primeiro encarrega-se a função de aplicar as leis formuladas pelo

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legislativo, isto é, garantir o cumprimento dessas. Já ao Federativo, é incumbido o cargo de

lidar com as relações com povos estrangeiros, isto é, atuar nas guerras, tratados e alianças.

Estes são, portanto, para Locke, os fundamentos de um Estado Civil, baseados na garantia ao

direito de propriedade, o qual não deve ser violado.

Contudo, caso o poder Executivo ou o Legislativo violem o acordo estabelecido e

atentem contra o direito de propriedade dos homens, o governo passa a ser considerado nulo,

tirânico - o poder é utilizado para interesse próprio e não coletivo - e, por conseguinte, deve

dissolver-se.

Dessa forma, a sociedade volta a constituir um estado de natureza. Uma vez que “o

uso contínuo da força sem o amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a

sociedade” (MELLO, 2011 p. 88).

Porém, a corrente contratualista também tem como um de seus seguidores outro

grande nome da Filosofia: Jean-Jacques Rousseau. Tal filósofo francês inicia seus

pensamentos pelos seus escritos em “Discurso sobre a origem e fundamento da desigualdade

entre os homens”, no qual ele descreve como se daria o estado de natureza e a transição deste

para a sociedade civil.

Para Rousseau, a espécie humana concebe dois tipos diferentes de desigualdades: a

natural – que consiste na diferença de idades, da estrutura física e das faculdades de espírito –

e a moral ou política, a qual incide sobre uma convenção estabelecida pelos próprios homens,

em que uns gozam de privilégios em detrimento dos demais. Isto é: “como serem mais ricos,

mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por ele”

(ROUSSEAU, 1991, p. 235).

Por essa razão, devido ao primeiro tipo de desigualdade, no Estado de Natureza os

indivíduos são diferentes. No entanto, como em tal momento o indivíduo é solitário – apenas

caçava e se esquivava do contato social – sua razão é pouco desenvolvida, portanto, as

desigualdades naturais são mínimas.

Destarte, os homens possuem em si unicamente a preocupação de conservarem-se, ou

seja, preservar a própria vida. Não há, assim, nesse momento, os conceitos de maldade, justiça

ou injustiça. Os homens são, então, livres. Tal liberdade, associada à cautela em relação à

sobrevivência, gera no homem um sentimento de piedade natural em relação ao seu

semelhante, pois, entrar em conflito com os outros é expor-se demasiadamente, fato que

prejudicaria a luta pela sobrevivência. Dessa forma, para Rousseau, o Estado de Natureza é

propício à paz.

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Sendo assim, oriunda dessa compaixão e da batalha para superar os obstáculos

impostos pela natureza, surge no ser humano a necessidade de viver em conjunto. Tais

relações foram primeiramente passageiras, desfeitas após cumprido o objetivo da união. Essa

socialização passa a ser mais intensa e duradoura com o surgimento do primeiro laço social

efetivo: a família.

Uma vez construídas essas relações sociais diuturnas, a reflexão toma seu lugar no

desenvolvimento racional, ou seja, no processo de construção e aprimoramento da razão, por

meio do qual o ser humano passa a agrupar-se e construir seus instrumentos de trabalho, a

cultivar terras – surge a prática agrícola – e a desejar um maior conforto, bem como honrar

uns aos outros. Surge, também, dessas relações, a noção da propriedade privada e

conseqüentemente, a de poder, com a qual é fundado o segundo tipo de desigualdade descrito

por Rousseau – a desigualdade moral ou política.

Nesse diapasão, o Estado de Natureza passa a ser corrompido, bem como os direitos

naturais como a liberdade e a vida. Adentra, pois, o homem ao chamado Estado Civil, com o

qual surge a noção do belo, da bondade, justiça ou injustiça. Não é possível, então, retroceder

ao Estado de Natureza, devido ao aperfeiçoamento da razão.

Porém, o desrespeito aos princípios naturais de liberdade, os quais são trocados pela

servidão, ocasiona o surgimento dos conflitos entre os homens. Como descreveu Rousseau

(1991, p. 22): “O homem nasce livre, e por toda parte encontra-se a ferros. O que se crê

senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles”.

Então, nesse momento Rousseau propõe – em seu conjunto de três livros do “Contrato

Social” – a formulação de um pacto entre todos os homens, a partir do qual possa ser

garantida a liberdade civil – ela corrigirá também as desigualdades naturais, nascendo um

novo conceito de justiça. Com esse pacto, a sociedade deixaria de ser governada pela honra e

glória. Os indivíduos associaram-se, formando um corpo político, em que ninguém se

encontra submisso. Como firmou Nascimento (2011, p. 196): “Agora, ninguém sai

prejudicado, porque o corpo soberano que surge após o contrato é o único a determinar o

modo de funcionamento da maquina política”.

Dessa forma, o contrato forma um corpo político que visa o bem comum, pois cada

indivíduo doa-se completamente. Como condição igual de todos, portanto, ninguém se

interessa em tornar onerosa a parte dos demais. Uma vez que surge o conceito de vontade

geral, da qual todos os indivíduos fazem parte, todos formulam as leis visando ao bem

comum.

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O soberano é também súdito e vice-versa. Assim, todos são súditos livres, pois

obedecem a uma vontade que é a sua – todos fazem parte do processo legislativo bem como

obedecem às mesmas leis: há a conjugação perfeita entre liberdade e obediência. A vontade

geral, portanto, representa a conservação da liberdade.

Destarte, podemos perceber que Hobbes, Locke e Rousseau convergem seus

pensamentos mediante alguns princípios, como por exemplo, a existência de um Estado de

Natureza, e divergem em relação a outros, como é o caso da própria caracterização do estado

de natural.

3 O RAMO UTILITARISTA E O JOGO DOS PRAZERES E DAS DORES

As teses até então explanadas expõem as visões de filósofos defensores da Teoria do

Direito Natural. Outra escola filosófica, a utilitarista, no entanto não parte de um Estado de

Natureza para a compreensão do indivíduo em sociedade, e sim de uma ontologia natural

humana: a busca pelo prazer e a fuga da dor. Como representantes de tal corrente, temos

Jeremy Bentham (1748 – 1832) e John Stuart Mill (1806 – 1873).

Essa análise da vertente utilitarista iniciará pela apreciação da obra “Uma introdução

aos princípios da moral e da legislação” de Bentham. Esse pensador percebe o corpo social

como a soma dos indivíduos, por essa razão, para entender o funcionamento da sociedade –

bem como a formação da moral e da legislação – ele parte da compreensão da natureza

humana.

Para tal autor, a natureza dos instintos humanos é regida pelo trono de dois senhores

soberanos: o prazer e a dor. Em que é espontânea a busca pelo prazer e a fuga da dor.

Segundo Bentham (1974, p.9)

A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a

dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como

determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está

vinculada, por uma parte, a norma que o distingue o que é reto do que é errado e, por

outra, a cadeia das causas e efeitos.

Pode-se concluir, então, que o indivíduo é auto-interessado, isto é, nenhuma ação

voluntária é feita sem que haja a efetivação de algum cálculo de prazeres e dores, pois cada

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ação é acompanhada por um interesse a ser alcançado. Sendo assim, Bentham cria o princípio

da utilidade – baseado na tese hedonista – o qual perfilha o objetivo das ações: a busca da

felicidade, que é vinculada diretamente ao prazer.

Como bem mencionou a doutora em Filosofia, Maria Cristina Dias, em sua tese “A

ampliação do espaço moral no utilitarismo de John Stuart Mill: uma comparação com a moral

do utilitarismo de Bentham”: “O autor descreve o princípio da utilidade como aquele que

reconhece a sujeição do indivíduo a estes sentimentos e tem o objetivo de colocá-los como

fundamento para a construção da melhor sociedade possível.” (2011, p. 21).

Além do mais, esse princípio passa a ser, também, o padrão de julgamento da

sociedade – daquilo que é certo ou errado, justo ou injusto. Sendo, conquanto, certo e justo a

busca pelo prazer – isto é, quando em um ato os prazeres somados são maiores que as dores –

e, concomitantemente, errada a busca pelo dor – um ato cujas dores sobressaem-se em relação

aos prazeres é considerado injusto.

Destarte, é formulado o conceito de razão para Bentham: o cálculo dos prazeres e das

dores. Somado todos os prazeres de um lado, e, do outro, somada todas as dores, caso esse

balanço seja favorável ao prazer a ação é considerada justa ou boa, caso seja percebida a

predominância das dores o ato é dito injusto ou mau, pois designa a tendência maligna da

ação conjunta. No entanto, ainda para efetivar esse cálculo, deve-se levar em consideração a

existência de certas circunstâncias: a certeza, a intensidade, a duração, a fecundidade dos atos,

e a impureza. Isto é, a confiança na hora de realizar a ação, o quão intenso será aquele prazer

ou dor, a duração dessas felicidades e infelicidades, bem como se tal prazer é seguido de outro

prazer, ou se é sucedido por uma dor.

Existem, por essa razão, três tipos de ações humanas: de um indivíduo para consigo

mesmo – a qual pode avocar de prudência – quando um indivíduo age beneficamente para

com os outros – denominada de beneficência – além de quando um indivíduo age

negativamente em relação aos demais, ação denominada de proibidade.

Seguindo este prisma, Bentham afirma que o Estado deve basear-se no princípio da

utilidade para formulação de suas decisões, as quais devem almejar a felicidade – prazer – da

sociedade em geral. Enquanto o Legislador deve interferir prioritariamente nas ações de

proibidade, a formulação da legislação deve levar em consideração o princípio da utilidade e

fazer o balanço dos prazeres e das dores a fim de analisar se há mesmo a necessidade de

custear um aparelho estatal para coibir tal ação, uma vez que a criação de um aparato, como

esse, acarreta um gasto social.

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Dessa forma, as ações prudentes estão condicionadas ao escopo da moral. Isto é, cabe

exclusivamente ao indivíduo discernir seus prazeres das suas dores. Pode haver, por

conseguinte, uma sanção de ordem moral, e não legislativa, caso as conseqüências dessa ação

sejam de caráter negativo. As ações beneficentes são destinadas ao campo ético uma vez que

são atos de caráter voluntário e espontâneo.

Em outras palavras, o princípio da utilidade é a base para a formulação da moral e da

legislação, assim como da justiça e da razão para Bentham, não existindo, assim, outro bem

que não seja o prazer nem outro mau que não seja a dor. Os motivos para realização das ações

são os elementos instigadores dos seres humanos como, por exemplo, o amor à reputação -

fazer o bem objetivando manter a própria glória -, o desgosto, o qual é descrito pela vontade

de gerar dor aos outros, e, por fim, a benevolência, que incide em querer gerar bem aos outros

consistindo a maximização do princípio da utilidade: sentir prazer e gerar prazer no outro.

Além de Bentham, outro representante da escola utilitarista é John Stuart Mill. Em sua

obra “A Liberdade e o Utilitarismo”, descreve a natureza humana de uma maneira mais

profunda e complexa do que Bentham, refutando alguns conceitos e aprofundando outros.

Mill à priori aceita a tese hedonista e o princípio da utilidade de Bentham, isto é,

acredita que a natureza humana é guiada pela busca pelo prazer e pela fuga da dor. Sendo,

assim, o valor de todas as coisas resume-se à felicidade ou infelicidade. No entanto, a grande

divergência entre esses dois autores utilitaristas é que o indivíduo para Bentham não passa de

um calculador, enquanto para Mill a natureza humana detém outros elementos mais

complexos a serem explorados. Isto é, Mill propôs sub-teses à tese hedonista de Bentham.

Mill sustenta que os seres humanos possuem faculdades de espírito mais elevadas do

que a dos demais animais: “Os seres humanos possuem faculdades mais elevadas do que os

apetites animais, e uma vez que tomam consciência delas não consideram como felicidade

algo que não as satisfaça” (MILL, 2000, p. 188). Ou seja, buscam prazeres de qualidade

superior, na medida em que tais faculdades são ativadas. Tais prazeres superiores são

descritos como intelectuais – apreciar uma sinfonia, por exemplo – distinguindo-se dos

prazeres mundanos que não passam de meras sensações – como o prazer em alimentar-se.

Segundo Mill, é possível distinguir qualitativamente os prazeres – diferentemente de

Bentham que se detinha ao cálculo puramente quantitativo. Uma vez ativadas as capacidades

superiores – ativação, esta, decorrente do processo educacional – o homem anseia almejar os

prazeres intelectuais em detrimento dos demais. Além do fato de a felicidade – prazeres –

para Mill vincula-se ao prazer coletivo, como já afirmou Maria Cristina Dias: “A felicidade

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que forma o padrão utilitarista daquilo que constitui a conduta correta não é apenas a

felicidade do próprio agente, mas a felicidade de todos os envolvidos.” (2010, p. 261).

Outra sub-tese também descrita por Mill consiste na capacidade de transformação

cultural dinâmica do indivíduo, isto é, ao longo do tempo as intenções das ações do indivíduo

podem modificar-se tanto para pior quanto para melhor, gerando um benefício – utilidade –

para o sujeito. Por fim, a terceira sub-tese proposta consiste na capacidade de agir por hábito.

Para Bentham, o homem efetuava o cálculo dos prazeres e das dores sempre que fosse realizar

uma ação, contudo, Mill acredita existirem ações que devido serem praticadas por muito

tempo, passam a tornarem-se hábitos. Ou seja, os homens não necessitam calcular sempre a

todo o momento. Sendo assim, devido à capacidade de agir por hábito o homem se lança na

moral da vida prática.

Destarte, é de se concluir que o princípio da utilidade é o formulador da moral e da

legislação, isto é, todas essas sub-teses levam à formação da moralidade, bem como um

princípio que determina o alcance dessas leis. Analisando essa situação, Mill expõe – para

melhor desenvolver a tese que propõe a influencia do principio da utilidade como base para as

leis e a moral – as denominadas “máximas da liberdade”, as quais definirão as funções

cabíveis tanto ao legislador como aquelas destinadas ao escopo moral.

Sendo assim, a função primeira do Estado é fornecer felicidade aos indivíduos, ou

seja, proporcionar aos cidadãos prazeres em detrimento das dores – principalmente prazeres

de qualidades mais elevadas. Dessa maneira, a primeira máxima consiste na definição de

quando um ato de um sujeito tem conseqüências apenas para ele mesmo, a punição deverá

ocorrer a cargo da moral, isto é, não deverá haver interferência do legislador, nesse caso.

Afinal, se um indivíduo não interfere na vida do outro, o legislador não pode interferir. No

entanto, poderá haver uma sanção moral por meio da sociedade, bem como havia para o

indivíduo do Bentham nas ações prudentes. Surgindo, pois, o primeiro grupo de regras

morais.

Outra máxima da liberdade consiste na aplicação de uma sanção legislativa por

intermédio do legislador quando as ações de um sujeito agirem negativamente sobre o

interesse dos demais. Deverá haver uma lei que proíba determinadas ações individuais que

interferem de maneira a gerar dor no restante da sociedade, como a criação de leis como não

matar e não roubar. Uma punição, então, deve ser aplicada para evitar o mal.

Deve-se deixar clara a distinção entre legislação e justiça, uma vez que existem

formulações legislativas injustas. Para Mill, algo é justo quando a liberdade de ninguém é

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privada, bem como a noção de que: merece o bem quem pratica o bem, merecendo, pois, o

mal quem pratica o mal. Dessa maneira, uma punição deve ser apenas aplicada quando seu

objetivo for punir o mal – ou seja, gerar menos dor – mesmo que tal punição demarque a

liberdade do sujeito praticante. Pode definir-se como justiça a igualdade para todos, uma vez

que para Mill todos os seres humanos estão sujeitos a sentirem prazer e dor. Devemos,

portanto, compreender que tal distinção entre lei e justiça dá-se porque a justiça provém da

área da moral e não da legislação.

Dessa forma, pudemos perceber que há diversas semelhanças entre as teses de

Bentham e Mill, no entanto este último procura tornar mais minuciosa a tese do primeiro,

alegando que Bentham não possuía um conhecimento mais aprofundado sobre a natureza

humana. Diferentemente tanto de Bentham como de Mill, Karl Marx, intelectual alemão do

século XIX, fundador da doutrina comunista disserta de maneira completamente distinta sobre

o surgimento da moral e da legislação na sociedade.

4 MARX: UM PENSADOR SOCIAL

Diferentemente dos utilitaristas, que propunham uma teoria para explicar a natureza

humana, Marx não é um planejador do futuro, tampouco utópico, ele se denomina um

estudioso do fato social. Sua obra consiste em uma análise da sociedade burguesa, da qual o

homem não pode dissociar-se. Para Marx, o indivíduo é concebido dentro das relações

sociais, isto é, não pode ser entendido fora desse contexto: “O modo de produção da vida

material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a

consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário é o seu ser que determina

sua consciência.” (MARX, 1991, p. 30)

O indivíduo deve ser, então, compreendido no curso do contexto histórico – tese do

materialismo histórico – na prática, denominada por ele de práxis. Sendo assim, o homem não

pode desprender-se dessa realidade verificada, da qual se consegue extrair as verdades

objetivas da formulação moral e legislativa. Destarte, o autor refutava as teses dos filósofos

que procuravam entender as relações do homem em sociedade por meio de uma natureza

humana abstrata, e de hipóteses utópicas. Ou seja, a teoria marxista é um guia prático para a

ação, uma vez que até então pensadores, como os utilitaristas e os contratualistas, apenas

interpretaram o mundo por meio de teorias, sendo, então, agora o tempo de transformá-lo. A

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teoria marxista tem o ser humano não como um ente teórico, mas como um sujeito histórico

capaz de modificar a realidade a si circundante.

Com tal pensamento revolucionário, Marx descreve em sua obra “O Capital” (1988, p.

829) as desigualdades geradas pelo sistema capitalista:

Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia ficou finalmente

sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí o pecado original da

economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem

para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de

poucos, embora tenham esses poucos parado de trabalhar há muito tempo.

Dessa forma, Marx cria os conceitos de forças produtivas – referindo-se aos

instrumentos e à força de trabalho – bem como o de relações de trabalho. Consolidando tais

conceitos, é explicada a acumulação primitiva do capital por meio do aumento da circulação

de mercadorias na Europa na época de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. Da

intensidade das relações comerciais surge uma nova classe social: a burguesia, a qual se fez

detentora dos meios de produção, cognominados por Marx de “infra-estrutura”, e os poderes

político e jurídico, chamados de “superestrutura”. Ou seja, a burguesia ganha ao longo da

Idade Moderna a capacidade de organizar-se politicamente e economicamente

Marx percebeu, no entanto, que tais transformações ocorridas nesse determinado

período não alteraram a estruturação social dos homens, uma vez que ainda havia a

sobreposição de uma classe à outra. Sendo, agora, a classe burguesa a dominante e a

proletária, a subordinada. Nesta relação ainda predominava a mesma relação entre infra-

estrutura e superestrutura, na qual a primeira condiciona a segunda. Em outras palavras, Marx

diz que é a base material que gera as idéias. Tanto as relações jurídicas como a formulação

legislativa do Estado (a superestrutura) têm raízes nas relações materiais da existência – na

infra-estrutura. Portanto, são os homens que produzem os conceitos e as idéias.

Assim, Marx – por meio das suas análises e pesquisas dos diversos meios de produção

que se guiaram ao longo da história – denota que a luta de classes é a única maneira de se

modificar a estrutura social de subjugação de uma classe a outra, afinal, as classes sociais são

uma categoria historicamente construída. Uma vez que, ao criticar-se a base material,

criticam-se as idéias dominantes, tornando, conquanto, a luta de classes uma batalha de um

modo de produção contra outro, do proletariado contra a burguesia. Ou seja, é tanto um

combate material quanto intelectual.

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Tal luta de classes foi explicitada com a simplificação da estratificação social feita

com a transição da Idade Média para a moderna, cujos grupos antagonistas reduziram-se ao

proletariado e a burguesia. Dessa forma, essas lutas gerariam, então, a solidificação de uma

nova forma de governo proposta por Marx – o comunismo – o qual viria a substituir o

capitalismo.

Para que a revolução aconteça de fato faz-se fundamental a organização da classe

trabalhadora, uma vez que a coesão da luta de classes é um requisito para a ocorrência da

própria, bem como a materialização de um sistema capitalista suficientemente alentado, com a

capacidade adequada para a geração e acumulação de riquezas. Devem, pois, existir

primeiramente condições adequadas de igualdade para, enfim, estabelecer-se o sistema

socialista. Uma vez que “os direitos gerais assegurados pelo Estado burguês não definem uma

igualdade que se deva realizar na sociedade. Antes pelo contrário, pressupõem a desigualdade

na economia e na sociedade” (WEFFORT, 2011, p. 239-240).

Sendo assim, com essa corrente de pensamento, Karl Marx propõe que apenas com a

ascensão demasiada do capitalista os indivíduos se relacionam de forma que os meios de

produção condicionam formulação da moral e das leis. Sendo assim, em sua célebre obra “O

Manifesto Comunista” Marx e Engels (2007, p. 91) evocam os trabalhadores à luta de classes.

Finalmente os comunistas trabalham pela união e pelo entendimento entre os

partidos democráticos de todos os países. Os comunistas se recusam a dissimular

suas opiniões e seus projetos. Proclamam abertamente que seus objetivos não podem

ser alcançados senão pela derrubada violenta de toda ordem social passada. Que as

classes dominantes trema diante de uma revolução comunista! Os proletários nada

têm a perder a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos

os países, uni-vos!

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final dessa análise das obras de diversos autores que descreveram como se dá a

formação moral, legislativa e a noção de justiça para o homem, foi possível perceber como é

importante a leitura e releitura de diferentes visões de um mesmo assunto. Somente após essa

análise minuciosa deu-se a compreensão de que as relações humanas são complexas,

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admitindo diversos pontos de vista e diversas interpretações que se aperfeiçoam ao longo do

tempo. Tais interpretações são de suma importância para o amadurecimento acadêmico, afinal

são uma abordagem pincelada de cada análise, o que contribui para a melhor compreensão do

fenômeno social.

Dessa forma, é importante a percepção das diversas formas e naturezas do homem,

bem como a maneira como o ser humano pode ser estudado: seja pelo contexto histórico em

que ele vive – como estudou Marx –, pela busca antológica pelo prazer de Mill e Bentham, ou

até mesmo pela hipótese de um estado anterior à sociedade civil, como propuseram os

contratualistas. Tais compreensões permitem, portanto, o autoconhecimento social, em outras

palavras, na positivação dos direitos e deveres que cada um possui para com a sociedade.

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WEFFORT, Francisco. Marx: política e revolução. In:______. Os clássicos da política 2. 11.

ed. São Paulo: Editora Ática, 2011. p. 225-252.

THE ORIGIN OF THE STATE – FROM HOBBES TO MARX: A PHILOSOPHICAL

ISSUE

ABSTRACT

The origin of the State and Politics has always been an object of

studies since Antiquity until nowadays. That said, those approaches

have a huge importance for us to understand the human being’s

behavior upon a society. While researching it, we can find ways of

building a more harmonic world. Therefore, this is a study about the

main philosophers who debated those questions. Stressing the words

of Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke, John Stuart

Mill, Jeremy Bentham and, then, Karl Marx. This article shows the

evolution of some philosophy and politics’ schools along the History.

Keywords: State. Politics. Philosophers. Society

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Recebido 30 ago. 2012

Aceito 06 abr. 2013

RESPONSABILIDADE ESTATAL NOS CRIMES COMETIDOS CONTRA OS

DIREITOS HUMANOS DURANTE A VIGÊNCIA DA DITADURA MILITAR

BRASILEIRA

Andressa Câmara Grilo1

Fernanda Maria de Oliveira Ramalho2

RESUMO

Conquanto o dever-poder estatal de adimplir as obrigações assumidas

no seio social, subsiste no país um protótipo de sistema político

opressor, potencialmente capaz de cometer grandes atrocidades contra

a humanidade. Com efeito, desde tempos imemoriáveis, a sucessão de

regimes políticos e de concepções de justiça implicam em processos

de transições nos quais restam arestas. Nesse diapasão, o presente

artigo tem como escopo discutir a responsabilidade estatal nos crimes

cometidos contra os direitos humanos fundamentais, durante a

vigência da ditadura militar nacional, tecendo breves comentários

sobre precedentes jurisprudenciais que circundam o tema proposto.

Palavras-chave: Estado. Ditadura Militar. Responsabilidade. Direitos

Humanos Fundamentais.

“Você que inventou esse Estado Inventou de inventar

Toda escuridão Você que inventou o pecado

Esqueceu-se de inventar o perdão".

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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(Chico Buarque).

1 INTRÓITO

No período da ditadura militar, a população brasileira presenciou um cenário de

sistemáticas violações aos direitos humanos, as quais foram perpetradas pelos agentes

públicos e ensejaram, décadas após o ocorrido, a responsabilização civil do Estado.

Com ser assim, o presente trabalho visa aclarar a temática em vergaste, abordando as

controvérsias assentadas sobre a Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia), bem como a necessidade

de responsabilizar regressivamente os mencionados agentes.

O Supremo Tribunal Federal, ao ser provocado a se manifestar acerca do alcance

interpretativo da Lei de Anistia na ADPF nº 153, decidiu que tal diploma abarcaria não

somente os opositores do regime ditatorial, mas também os agentes públicos violadores dos

direitos humanos, contrariando os anseios dos mais diversos setores da sociedade que

clamavam pela apuração das responsabilidades históricas.

Espera-se que os tribunais brasileiros busquem a responsabilização do Estado e de

seus agentes pelas atrocidades cometidas na ditadura militar, a fim de que sejam efetivados o

ideal de redemocratização e os direitos fundamentais encartados na Constituição Federal de

1988. Embora tenha sido o Estado condenado a ressarcir as vítimas e seus familiares em

diversos processos judiciais, persiste a necessidade de responsabilizar os agentes públicos que

causaram danos a terceiros no período de 1964 a 1985.

2 PRECEDENTES HISTÓRICOS: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A DITADURA

MILITAR

Em 31 de março de 1964, presenciava o Brasil o Golpe de Estado perpetrado pelos

Militares, que, para o infortúnio do povo, se estendeu por longos 21 anos. Durante o período

em que vigorou a ditadura militar, entre 1964 a 1985, a nação esteve imersa em uma esfera

caracterizada por um sistema político opressor, potencialmente capaz de cometer grandes

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atrocidades contra os direitos humanos fundamentais, tais como torturas, homicídios,

estupros, prisões ilegais, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáveres.

Em uma análise perfunctória, no primeiro momento, o golpe militar prometia de

forma hipócrita a democracia e a defesa da segurança nacional contra a insurgente ideologia

comunista, e logo foi recrudescendo. A redução das garantias de liberdade ocasionou

paulatinamente a deposição de membros integrantes do Poder Executivo, o recesso e o

posterior fechamento do Congresso Nacional, deixando os militares transparecerem,

gradativamente, a que veio o golpe (SKIDMORE, 1988). Os direitos políticos e civis do

brasileiro foram reprimidos, retirando deles o direito de eleger os seus governantes,

extinguindo os partidos políticos, tornado ilegal o movimento estudantil, além de cercear as

vias institucionais de informação por meio da formalização da censura.

Os militares passaram a legislar por meios excepcionais, usufruindo de instrumentos

normativos que passavam longe do controle do constituinte pátrio, concebendo um marco

legal fundamentado em diversas normativas de exceção que asseguravam o exercício de um

sistema político repressivo e ditatorial. Os instrumentos normativos de maior notoriedade do

período ditatorial ficaram conhecidos como Atos Institucionais.

É na edição do Ato Institucional n° 5, em dezembro de 1968, que o país

experimentou a fase mais repressora de todo o governo de exceção (FAUSTO, 2008, p. 26).

Com efeito, com a publicação do AI-5, evidenciou-se que a ação opressora estatal não se

prendia a nenhuma amarras, sobretudo, as representadas pelos preceitos democráticos,

atingindo qualquer sujeito suspeito de ser “inimigo da nação”, ou “contra a ordem social”,

executando torturas descabidas, prisões ou extradições desprovidas de qualquer justificativa,

além da execução dos militantes políticos, que passou a ser prática vulgar desempenhada

pelos agentes públicos que compunham o aparato repressor estatal.

A exemplo dos outros poderes evidenciados anteriormente, o Poder Judiciário também

sofreu os efeitos da ação autoritária militar. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal foram

compulsoriamente aposentados quando apresentavam resistência em pautar as suas condutas

sob o crivo das pretensões militares (BICUDO, 1976, p. 149).

Em 1969, no estado de São Paulo, foi concebida a Operação Bandeirantes (Oban)

que tinha o escopo de robustecer as ações repressivas já em curso, através da integração dos

organismos específicos de repressão com as Forças Armadas e polícias federais e estaduais. A

atuação da Oban foi considerada tão satisfatória que contribuiu para a formação dos chamados

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Destacamentos de Operações e Informações-Centros de Operações de Defesa Interna- DOI-

CODI. Estes escancaram em suas instalações o período mais violento de toda a história

republicana brasileira (GASPARI, 2002a, p. 65).

Entre os anos de 1972 e 1975, as Forças Armadas realizaram campanhas para

exterminar os focos de resistência de militantes do Partido Comunista do Brasil na região do

Rio Araguaia. Em meados de 1974, setenta pessoas, entre camponeses e militantes que se

encontravam na região, haviam desaparecido.

Diante dessa situação assombrosa, foram feitas denúncias de violação aos direitos

humanos, ocasionando constrangimento aos governantes militares. Não obstante, tais

denúncias foram abafadas, não obtendo grandes repercussões no ambiente nacional, sem

culminarem na criação de qualquer óbice à continuidade das torturas e execuções sumárias.

Em 1974, com a instalação da crise econômica no país, em decorrência da

repercussão da Crise do Petróleo em 1973, o poderio militar começou a ruir, perdendo o

precioso apoio dos aliados nos setores médios (GASPARI, 2004, p. 32-45).

Com o anúncio das novas eleições, é iniciado o processo de entrega do poder aos

civis. Os setores radicais das Forças Armadas, contrários à perda hegemonia militar,

maquinavam estratégias para boicotar tal sucessão e permanecerem inconteste no poder. É em

meio a essa esfera frenética, que o general João Figueiredo, em 1979, assume a Presidência da

República, detendo como principal meta a condução da nação ao final da ditadura militar,

através de uma “abertura, lenta, gradual e segura” (GASPARI, 2002b, p. 37) Assim, como

estratégia para amenizar as consequências nefastas decorrentes do regime militar, bem como

exterminar as evidências dos crimes cometidos por seus agentes e garantir-lhes o não

julgamento, foi promulgada em 28 de agosto de 1979, a Lei de Anistia- Lei n º 6.683/79, que

traria grandes repercussões ao seio democrático nacional.

3 A LEI DA ANISTIA SOB A ÓTICA DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE

PRECEITO FUNDAMENTAL: ADPF 153-DF.

A promulgação da Lei de Anistia ocasionou uma série de entraves à consolidação do

sistema democrático brasileiro. A Lei nº 6.683/79, além de obstar a persecução penal dos

agentes militares incumbidos da repressão política, por meio da instituição “função

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anistiante”, dotou de eficácia o silêncio e o conformismo acerca do angustiante passado

ditatorial (DIMOULIS, 2010, p. 93).

Não obstante o estado de letargia externado pelas autoridades brasileiras, foi

publicada em 04 de dezembro de 1995 a Lei nº 9.140. Tal lei proporcionou um significativo

avanço à apuração dos crimes cometidos durante o período ditatorial, ao determinar a

instituição da Comissão Especial, munida de poderes para deferir os pedidos de indenização

estatal e envidar esforços para a localização de corpos das pessoas desaparecidas.

Confeccionada pela Medida Provisória- MP n°2151-3, de 24/08/2001, a Comissão de

Anistia do Ministério da Justiça foi reeditada pela MP n° 65, de 28/08/2002, e convertida na

Lei n° 10.559, de 13 de novembro de 2002. Esta reza sobre o direito à reparação dos

perseguidos políticos, consoante, preleciona a Constituição Federal de 1988, especificamente

no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Tal contexto

instigou a criação da Justiça de Transição, que pretende, além da apuração das

responsabilidades dos que violaram a área de proteção dos direitos humanos, fortalecer as

instituições com valores democráticos, pois para um novo Estado lançar as bases para o seu

futuro, deve antes resolver feridas pretéritas que ficaram abertas (SWENSSON JR, 2007, p.

77-78).

Corroborando com a meta humanística levantada pela Justiça de Transição, o

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, em 2008, propôs Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (BITTENCOURT, 1968),objetivando a declaração

de não-recebimento, pela Constituição Federal de 1988, do disposto no parágrafo § 1º do

artigo 1º da Lei nº 6.683, de 19 de dezembro de 1979-Lei da Anistia3. Consoante à redação de

tal preceito4, a concessão da anistia a todos que, em determinado período, cometeram crimes

políticos estender-se-ia aos crimes conexos, ou seja, crimes de qualquer natureza relacionados

com os crimes políticos ou praticados por motivação política.

A Arguente asseverou que a conexão criminal exposta na redação do § 1º, artigo 1º, da

Lei nº 6.683/79, era inválida, posto, dentre outros argumentos aduzidos, que anistiaria vários 3 STF. ADPF 153. Pleno. Rel. Min. Eros Grau. j. 29.04.2010.

4 LEI N. 6.683, DE 19 DE DEZEMBRO DE 1979 -Art. 1º - É concedida anistia a todos quantos, no período

compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com

estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração

Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário,

aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e

Complementares.

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes

políticos ou praticados por motivação política.

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agentes públicos responsáveis, pela prática de homicídios, lesões corporais, desaparecimentos

forçados, abuso de autoridade, olvidando que artigo 5º, inciso XLIII, da CF/88, reputa o crime

de tortura como insusceptível de anistia ou graça. Ademais, a eventual declaração do STF, da

recepção do § 1º do artigo 1º da Lei nº 6.683/79 pelo sistema jurídico nacional, afrontaria

vários preceitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988.

O primeiro deles seria o princípio da isonomia em matéria de segurança, expresso no

artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988. A isonomia estaria sendo afrontada na

medida em que, segundo a redação da Lei da Anistia, nem todos seriam iguais perante a lei

em matéria de anistia criminal. Isso porque, consoante o posicionamento levantado pela OAB,

uns “praticaram crimes políticos, necessariamente definidos em lei, e foram processados e

condenados. Mas há, também, os que cometeram delitos, cuja classificação e reconhecimento

não foram feitos pelo legislador, e sim deixados à discrição do Poder Judiciário, conforme a

orientação política de cada magistrado”.

O segundo preceito fundamental malferido pela interpretação questionada do § 1º do

artigo 1º da Lei nº 6.683/79 estaria contido no artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição

Federal de 1988, que assegura a todos o direito de receber dos órgãos públicos informações de

seu interesse particular ou de interesse coletivo.

O terceiro mandamento constitucional afrontado pela pelo conteúdo do § 1º do artigo

1º da Lei nº 6.683/79 estaria contido nos ensinamentos exalados pelos princípios democrático

e republicano, que devem embasar toda a organização política nacional.

Por derradeiro, o quarto preceito fundamental afrontado pela interpretação

questionada do § 1º do artigo 1º da Lei nº 6.683/79 seria o princípio da dignidade da pessoa

humana, que visa proteger o ser humano contra tudo que lhe possa levar ao menoscabo. A

OAB aduziu que os atos de violação da dignidade humana não se legitimavam com a

reparação pecuniária (Lei nº 9.140 e Lei n° 10.559) concedida às vítimas ou aos seus

familiares, vez que os responsáveis por atos violentos, ou aqueles que comandaram esses atos,

restariam imunes a toda punição e até mesmo encobertos pelo anonimato.

O Ministro Eros Grau, relator da ADPF 153-DF, na fundamentação de seu voto,

preconizou que o Poder Judiciário não está autorizado a alterar ou dar redação diversa da

comtemplada em texto normativo, cabendo o exercício dessas funções exclusivamente ao

Poder Legislativo5:

5 STF. ADPF 153. Pleno. Rel. Min. Eros Grau. j. 29.04.2010.

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No Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não está autorizado a

alterar, a dar outra redação, diversa nele contemplada, a texto normativo. Pode, a

partir dele, produzir normas distintas. Mas nem mesmo Supremo Tribunal Federal

está autorizado a rescrever (sic) leis de anistia. [...] Dado que esse acordo resultou

em um texto de lei, quem poderia revê-lo seria exclusivamente o Poder Legislativo.

Ao STF não incumbe alterar textos normativos concessivos de anistias. A ele não

incumbe legislar ao apreciar ADPFs, senão apurar, em casos tais, a compatibilidade

entre textos normativos pré-constitucionais e a Constituição.

Outrossim, o relator buscou exprimir que a redação da Emenda Constitucional nº

26/85 constitucionalizou a concepção de anistia impressa nos dispositivos da Lei nº 6.683/79-

Lei da Anistia. Para clarear tal argumentação, se torna oportuno expor a seguinte passagem do

seu voto:

[...] a anistia da Lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder

Constituinte da Constituição de 1988. Não que a anistia que aproveita a todos já não

seja mais a da lei de 1979, porém a do artigo 4º, § 1º da EC 26/85. Mas estão todos

como que [re] anistiados pela emenda, que abrange inclusive os que foram

condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado

pessoal. Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei,

foi ou não recebida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a [re]

instaurou em seu ato originário. A norma prevalece, mas o texto - o mesmo texto -

foi substituído por outro. O texto da lei ordinária de 1979 resultou substituído pelo

texto da emenda constitucional. A emenda constitucional produzida pelo Poder

Constituinte originário constitucionaliza-a, a anistia. E de modo tal que --- estivesse

o § 1º desse artigo 4º sendo questionado nesta ADPF, o que não ocorre, já que a

inicial o ignora --- somente se a nova Constituição a tivesse afastado expressamente

poderíamos tê-la como incompatível com o que a Assembleia Nacional Constituinte

convocada por essa emenda constitucional produziu, a Constituição de 19886.

Em abril do corrente ano, o voto do relator da ADPF 153-DF foi sufragado

majoritariamente pelo plenário da Corte Suprema, vencidos os votos do Ministro Ricardo

Lewandowski, que dava parcial provimento a arguição, e do Ministro Ayres de Britto, que

julgava parcialmente procedente para excluir da anistia os crimes previstos no artigo 5º, inciso

XLIII, da Constituição7. Com efeito, o plenário do STF, por 7 (sete) votos a 2 (dois), indeferiu

6 STF. ADPF 153. Pleno. Rel. Min. Eros Grau. j. 29.04.2010.

7 STF. ADPF 153. Pleno. Rel. Min. Eros Grau. j. 29.04.2010.

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o pleito intentado pela OAB, mantendo a interpretação já dada a Lei da Anistia, o que

obstaculiza significativamente o julgamento dos torturadores ditatoriais.

A professora Deisy Ventura (2011, p. 213) explica que “a emergência tardia e até

então malfadada desse contencioso é reflexo do volátil despertar brasileiro para compromisso

internacional de julgar graves violadores de Direitos Humanos, e de sua indiferença ao

princípio de aut dedere aut iudicare, patente em numerosos episódios de nossa história”.

Em 18 de novembro de 2011, foi promulgada a Lei que instituiu a Comissão da

Verdade- Lei n° 12.528, confeccionada no afã de reacender o objetivo malferido e até então

esquecido da Comissão da Anistia- Lei n° 10.559/2002.

O que se sabe é que a consolidação da democracia brasileira tem se deparado com

uma série de entraves legados pela ditadura militar (1964-1985), entre os quais se sobreleva a

impunidade dos agentes públicos que praticaram atos violadores contra os direitos humanos

albergados por nossos dispositivos constitucionais, bem como pelos Tratados internacionais

de que somos signatários. O indeferimento da causa posta na ADPF 153-DF só nos leva a crer

que impunidade do país é fruto da persistência estatal em cultuar as ideias autoritárias

difundidas no passado obscuro.

Acontece que a população nacional, que há tempos anseia pela justiça e

responsabilização dos agressores, não pode mais esperar pela inércia das nossas autoridades

na tomada das providências cabíveis contra tais. Com efeito, devemos entender que os crimes

praticados durante os anos em que vigorou a ditadura militar configuram crimes contra a

humanidade e a sua prevenção e punição não suportam mais depender das vicissitudes

nacionais, na qual a atual conjuntura do sistema político-legislativo-judiciário tende a dar

guarida aos ideais propagados pelos poderosos da nação, em detrimento do povo que sofre

dia-dia para fazer valer os seus direitos ditos como fundamentais.

5 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO E DOS AGENTES PÚBLICOS PELOS

DANOS CAUSADOS DURANTE O REGIME MILITAR À LUZ DO

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, previu que as pessoas

jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão

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pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, sendo assegurado o

direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Observa-se, da análise do retromencionado dispositivo, que a Constituição Federal

de 1988 preconizou a responsabilidade objetiva do Estado, consoante a qual o dano

ocasionado ao indivíduo deve ser vislumbrado como consequência do funcionamento do

serviço público, independentemente de ter sido esse funcionamento bom ou mau (MORAIS,

2002, p. 898). Outrossim, sobreleve-se que o constituinte estabeleceu a possibilidade de ação

regressiva contra o responsável nas hipóteses que este tiver incorrido em dolo ou culpa.

Não restam dúvidas de que, em se tratando de condutas praticadas com graves

violações aos direitos humanos na época da ditadura militar, vislumbra-se a presença do dolo

ou culpa no comportamento adotado pelos agentes públicos. Portanto, é inegável a

necessidade de responsabilização de tais agentes pelos danos ocasionados às vítimas.

Ademais, com fulcro no princípio da indisponibilidade do interesse público, deve-se

buscar a responsabilização regressiva do agente público, devendo ser ela vista enquanto um

dever estatal, e não como uma mera faculdade (YANAGUI, 2011, p. 46).

Nesse sentido, cabe transladar os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello

(1996, p. 31) acerca do aludido princípio:

A indisponibilidade dos interesses públicos significa que sendo interesses

qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se

encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio

órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no

sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita

conformidade do que predispuser a intentio legis.

Consoante se depreende do trecho transcrito supra, não é permitido ao administrador

dispor do interesse público como bem lhe aprouver, devendo subordinar o agir administrativo

à vontade da lei. Isso posto, a interpretação que mais se coaduna com o interesse público e

com a mens legis é aquela segundo a qual se deve impor ao Estado a responsabilização dos

agentes públicos pelos danos causados a terceiros no período da ditadura militar.

Além disso, a responsabilização do Estado por grave violação aos direitos humanos

no aludido período se consubstancia como um instrumento idôneo a resguardar o princípio da

dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), o qual foi insculpido na Constituição Federal

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de 1988 como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Não se pode olvidar

que os princípios constituem, segundo a concepção de Robert Alexy (1993, p. 88-87),

mandamentos de otimização, os quais devem ser realizados na melhor medida possível, de

acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas.

Somando-se a isso, a noção de responsabilização estatal está intimamente

relacionada à preservação do direito fundamental segundo o qual é vedado submeter qualquer

indivíduo à tortura, a tratamento desumano ou degradante, conforme preceitua o artigo 5º,

inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Com ser assim, a responsabilização do Estado por violação de direitos humanos é

curial para reafirmar a juridicidade do conjunto de normas atinentes à proteção dos

indivíduos, bem como para a afirmação da dignidade humana (RAMOS, 2004, p. 19).

Entretanto, se faz necessária a perquirição da responsabilidade de todos os envolvidos, tendo

em vista que a sociedade não busca a reparação do dano por parte de um culpado, mas sim por

todos aqueles que praticaram condutas violadoras dos direitos humanos. Por conseguinte, a

negação da responsabilidade do Estado ou de seus agentes implicaria a negação do conteúdo

jurídico dos direitos fundamentais e do princípio da dignidade da pessoa humana.

Importa consignar que o ajuizamento de ação regressiva contra os agentes públicos

que causaram danos a terceiros no período ditatorial cumpre papel de prevenir a ocorrência de

semelhantes lesões aos bens jurídicos dos administrados (YANAGUI, 2011, p. 47), possuindo

o caráter punitivo-pedagógico.

Acerca da questão, aduz Fabiano Mendonça (2003, p. 132):

A repressão por meio da responsabilidade civil visa a, dessa forma, gerar uma

prevenção geral (exemplo para a sociedade), especial (reeducação do sujeito de

direito) e retributiva (a consequente diminuição patrimonial do responsável).

Conquanto a responsabilização dos agentes públicos décadas após as atrocidades

cometidas se configure provavelmente uma medida inidônea a reeducá-los, desempenha

relevante papel no que concerne à prevenção geral e à retribuição.

Tecidas tais considerações, passe-se à análise do art. 11 da lei nº 9.1408, de 04 de

dezembro de 1995.

8 Art. 11. A indenização, a título reparatório, consistirá no pagamento de valor único igual a R$ 3.000,00 (três

mil reais) multiplicado pelo número de anos correspondentes à expectativa de sobrevivência do desaparecido,

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Conforme se infere da leitura do dispositivo em comento, não foi estabelecido pelo

legislador, de forma expressa, a quem cabe indenizar as famílias dos indivíduos que

desapareceram no período de 02 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 1988 e assim

permanecem. Cumpre proceder a uma interpretação conforme a Constituição do art. 11 da lei

nº 9.140/1995, de modo a compreender que ele abarca não apenas a responsabilidade do

Estado, mas também a responsabilidade regressiva dos agentes públicos que perpetraram

condutas violadoras dos direitos humanos.

Nessa tessitura, tendo sido as pessoas jurídicas de direito público e as de direito

privado prestadoras de serviços públicos condenadas a indenizar terceiros por ato lesivo e

sendo constatado que o agente haja atuado com dolo ou culpa (MELLO, 1996, p. 604)9, o

ajuizamento de ação regressiva pelo Estado é medida que se impõe.

Ademais, é mister aclarar que o constituinte elegeu meios para assegurar a devida

reparação àqueles que tiveram seus direitos lesados, quais sejam, a responsabilização do

próprio Estado e dos agentes públicos que praticaram o ato danoso, desde que comprovados,

neste caso, o dolo ou culpa, como instrumento de salvaguarda do princípio da

indisponibilidade do interesse público. Dessarte, ao supracitado art. 11 deve ser conferida

exegese que abarque os meios já escolhidos pelo constituinte.

Tal posicionamento se compatibiliza com aquele esposado por Carlos Maximiliano

(2011, p. 125):

[...] não basta determinar finalidade prática da norma, a fim de reconstituir o seu

verdadeiro conteúdo; cumpre verificar se o legislador, em outras disposições, já

revelou preferência por um meio, ao invés de outro, para atingir o objetivo

colimado; se isto não aconteceu, deve-se dar primazia ao meio mais adequado para

atingir aquele fim de modo pleno, completo, integral.

Sem embargo dos argumentos expendidos a respeito da possibilidade de ação

regressiva contra os agentes públicos, é possível também que as vítimas das violações de

levando-se em consideração a idade à época do desaparecimento e os critérios e valores traduzidos na tabela

constante do Anexo II desta Lei.

§ 1º Em nenhuma hipótese o valor da indenização será inferior a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

§ 2º A indenização será concedida mediante decreto do Presidente da República, após parecer favorável da

Comissão Especial criada por esta Lei. 9 Requisitos preconizados por Celso Antônio Bandeira de Mello para mover a ação regressiva contra o agente

público.

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direitos humanos ocorridas na ditadura militar ajuízem ação de indenização diretamente

contra o agente público, ou movam ação, conjuntamente, contra o Estado e seus agentes. Esta

possibilidade representa um benefício aos lesados, tendo em vista que faculta a eles propor

ação de indenização de três maneiras distintas: contra o agente, contra o Estado, ou contra

ambos. Por conseguinte, levando-se em conta a aplicação da premissa hermenêutica que

estabelece “Cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie

a favor, e não em prejuízo de quem ela visa proteger” (MAXIMILIANO, 2011, p. 128), tal

entendimento revela-se mais consentâneo com a proteção a ser dada àqueles que tiveram seus

direitos fundamentais violados.

Vale ressaltar que o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988 visa proteger o

administrado, porquanto lhe oferece um patrimônio solvente e a possibilidade da

responsabilidade objetiva em muitos casos (MELLO, 1996, p. 605). Dessa forma, ao aludido

dispositivo constitucional e ao art. 11 da lei nº 9.140/1995 devem conferidas exegeses

ampliativas, de modo que sejam assegurados diversos meios de tutelar os direitos daqueles

que sofreram danos em razão da conduta dos agentes públicos no período ditatorial.

6 ANÁLISE DA APELAÇÃO/ REEXAME NECESSÁRIO 2006.51.01.016173-9 RJ SOB

A PERSPECTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Na Apelação/ Reexame Necessário 2006.51.01.016173-9 RJ10

, o Juiz Federal

Convocado Flávio Oliveira Lucas – Relator - proferiu decisão no sentido de prover,

parcialmente, o recurso dos autores, de modo a fixar indenização no valor de R$ 20.000,00

(vinte mil reais) para o autor Maurício Dias David e no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais)

para a autora Maria Beatriz de Albuquerque David. Importa aclarar que os referidos autores

recorreram ao Judiciário para buscar a indenização por danos morais em razão de terem

sofrido perseguição política no período da ditadura militar até a década de 90, da qual

decorreu, consoante suas alegações, expulsões do curso universitário, necessidade de se

exilarem no exterior e dificuldade de ingressarem no serviço público.

10

TRIBUNAL REGIONAL DA SEGUNDA REGIÃO. Apelação/ Reexame Necessário 2006.51.01.016173-9

RJ. Sétima Turma Especializada. Juiz Federal Convocado Flavio de Oliveira Lucas. j. 02/09/2011. E-DJF2R.

22/02/2011. p. 197-198.

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Analisando os fundamentos presentes no voto do Juiz Federal Flávio Oliveira Lucas,

verifica-se que ele concedeu a indenização por danos morais para os autores com fulcro nas

prisões ilegais das quais eles foram vítimas no período de exceção. Nesse sentido, deve-se

inferir que o magistrado vislumbrou a presença dos requisitos ensejadores da responsabilidade

civil do Estado, quais sejam, a ocorrência do dano, a ação ou omissão administrativa,

existência do nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e a ausência de

causa excludente da responsabilidade estatal11

no atinente às referidas prisões.

Tais requisitos integram, consoante a doutrina de Alexandre de Morais, a Teoria do

Risco Administrativo, a qual foi adotada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37,

§ 6º, sendo vedada a possibilidade de previsão normativa de outras teorias, inclusive da

Teoria do Risco Integral. Segundo o doutrinador, esta teoria apregoa que o Estado é

responsável por qualquer dano ocasionado aos indivíduos, na gestão de seus serviços, ainda

que haja culpa da própria vítima, ou seja hipótese de caso fortuito ou força maior.

Reversamente, a Teoria do Risco Administrativo propugna pela responsabilidade objetiva do

Estado, requerendo, no entanto, que haja nexo de causalidade entre o dano e o ato do agente

(MORAES, 2002, p. 899).

No que concerne às alegações dos autores de que eles tiveram que se exilar em outro

país, o magistrado entendeu que esse exílio ocorreu, formalmente, de modo voluntário,

registrando que o autor Maurício Dias David foi aprovado em Programa de Associação

Universitária Interamericana para bolsa de estudo nos EUA. Portanto, inexistindo relação

causal entre o dano ocasionado aos autores e a conduta comissiva estatal, não há que se falar,

na visão do referido juiz, em responsabilidade do Estado.

A respeito de tal requisito ensejador da responsabilidade sub examine, aduz André de

Carvalho Ramos (2004, p. 205-206):

O nexo causal é uma relação de causa e efeito entre o ato ilícito e o dano. Assim,

constada a conduta do Estado, o curso natural dos eventos apontam para o dano. O

nexo causal é demonstrado na presença de uma relação ininterrupta de causa efeito,

não importando quão longa seja tal relação, desde que contínua.

11

Requisitos preconizados por Alexandre de Morais (2002, p. 899) como configuradores da responsabilidade

civil do Estado.

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Com esteio em tal conceituação doutrinária, a ausência do elemento em tela

configura causa excludente da responsabilidade do Estado, em decorrência de não haver,

consoante o entendimento do Relator, qualquer relação entre a atuação estatal e o dano

ocorrido. Caso tivesse o ordenamento jurídico brasileiro adotado a Teoria do Risco Integral, o

Estado responderia pelos danos ocasionados, ainda que estivessem presentes as excludentes

da obrigação de indenizar12

.

Reversamente, o Juiz Federal convocado José Eduardo Nobre Matta entendeu que

havia nexo de causalidade entre a dor sofrida pelos autores - em razão de terem permanecido

quase 10 anos privados do convívio de parentes e amigos – e a ação estatal, qual seja, a

perseguição política perpetrada durante o período da ditadura militar. Dessarte, em seu voto, o

magistrado convocado entendeu que a indenização fixada pelo juízo de primeiro grau para o

autor Maurício Dias David, no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), mostrava-se

insuficiente para atenuar a dor sofrida por ele, majorando para R$ 100.000,00 (cem mil reais)

tal valor. No que concerne ao pleito de Maria Beatriz de Albuquerque David, o juiz

compreendeu que a indenização, a qual havia sido julgada improcedente em primeira

instância, deveria ser fixada também no montante de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Insta

salientar que o voto do juiz José Eduardo Nobre Matta não foi seguido pela maioria dos

membros da Egrégia Sétima Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região,

restando ele vencido.

Outro tema suscitado na decisão diz respeito ao caráter imprescritível da indenização

por danos morais. O primeiro magistrado propugnou o entendimento de que não se operava a

prescrição no caso sub examine, sob o fundamento de que a proteção aos direitos

fundamentais possui primazia em face do princípio da segurança jurídica no qual se lastreia a

matéria prescricional. O segundo magistrado entendeu ser cabível falar abstratamente em

prescrição, visto que não se tratava de crime de tortura, mas sim de reflexos patrimoniais de

outros atos praticados no período da ditadura. Inobstante, compreendeu que, com o advento

da Lei nº 10.559/2002, a União renunciou tacitamente ao prazo prescricional ordinário.

Atinentemente a tal discussão, sobreleve-se que o posicionamento do primeiro

magistrado revela-se mais consentâneo com a proteção a ser conferida aos direitos

fundamentais, independentemente de estarem tais direitos relacionados ou não à tortura.

12

Nesse sentido cfr.: TRIBUNAL REGIONAL DA QUARTA REGIÃO. Apelação Cível nº 2000.04.01.087504-

9/PR. Des. federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz; j. 18/08/2006. D.J.U.

18/10/2006.

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Consoante José Afonso da Silva, os direitos fundamentais são históricos, inalienáveis,

imprescritíveis e irrenunciáveis. Acerca do caráter imprescritível de tais direitos, vale

mencionar o entendimento do citado autor (SILVA, 1999, p. 185):

O exercício de boa parte dos direitos fundamentais ocorre só no fato de existirem

reconhecidos na ordem jurídica. Em relação a eles não se verificam requisitos que

importem em sua prescrição. Vale dizer, nunca deixam de ser exigíveis. Pois

prescrição é um instituto jurídico que somente atinge, coarctando, a exigibilidade

dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos,

ainda que não individualistas, como é o caso. Se são sempre exercíveis e exercidos,

não há intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da

exigibilidade pela prescrição.

Pode-se inferir, do supracitado trecho, que os direitos personalíssimos, ao contrário

dos direitos de caráter patrimonial, são imprescritíveis. Inobstante, importa consignar que o

pleito indenitário fundado na violação aos direitos fundamentais não descaracteriza a natureza

personalíssima do direito, ainda que sobre ele incida consequências patrimoniais. Face ao

exposto, ainda que a parte autora busque a reparação em pecúnia por violação aos prefalados

direitos, não está o pedido sujeito à prescrição.

Corrobora tal argumento o fato de a Constituição Federal de 1988 ter assegurado

diversas garantias processuais no artigo 5º, o qual figura no Título II – Dos Direitos e

Garantias Individuais, dentre os quais se pode mencionar: o mandado de injunção, o habeas

data e a ação civil público. Outrossim, estatui o artigo 5º, inciso XXV, que a lei não excluirá

da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito. Observa-se, portanto, que o texto

constitucional assegurou diversos instrumentos de Direito Processual para tutelar os direitos

fundamentais.

Consoante assevera Carlos Rocha Guimarães (1984, p. 169), alguns direitos de ação

são imprescritíveis, porque constituem meios formais de atuação dos direitos constituídos

perpétuos. Os direitos fundamentais podem ser considerados perpétuos, visto que, como são

integrantes da estrutura básica do ordenamento jurídico, tem sua eficácia ilimitada.

Deveras, com o advento da Lei nº 10.559/2002, reitera-se a tese de inocorrência da

prescrição, levando-se em consideração que o referido diploma estabeleceu o direito à

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reparação econômica daqueles que tiveram seus direitos lesados no período ditatorial, em

razão de perseguições de natureza política.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a derrocada do regime ditatorial e o advento da redemocratização brasileira,

foram implementadas medidas que visaram à pacificação política e à reparação dos danos

causados aos indivíduos que sofreram perseguições políticas no período de 02 de setembro de

1961 a 05 de outubro de 1988.

Uma das principais medidas foi a promulgação da lei nº 6.683/1979 (Lei da Anistia),

sobre a qual pairam controvérsias a respeito de sua extensão interpretativa. Conquanto tenham

os familiares dos perseguidos políticos, e diversos setores da sociedade, defendido a aplicação

do referido diploma exclusivamente para aqueles que sofreram violações em seus direitos

fundamentais em decorrência do regime político, o Supremo Tribunal Federal decidiu,

mediante a ADPF 153, que a Lei da Anistia abarca também os agentes públicos que

perpetraram as citadas violações. Em virtude da interpretação conferida pelo Pretório Excelso,

permanecem impunes os agentes públicos que causaram danos a terceiros durante o período

ditatorial.

Inobstante, na seara da responsabilidade civil, deve ser buscada a reparação devida

não somente contra o Estado, mas também contra os agentes que praticaram torturas e

perseguições políticas no período em comento. Consoante o exposto, deve ser conferida

exegese ampliativa ao art. 11 da lei nº 9.140/1995, de modo a compreender que o referido

dispositivo possibilitou a responsabilização regressiva dos agentes de Estado, bem como a

possibilidade de se mover ação indenizatória contra ambos – o Estado e seus agentes.

Na análise da Apelação/ Reexame Necessário 2006.51.01.016173-9 RJ, discutiu-se a

imprescritibilidade da ação de indenização por danos morais decorrentes de violação aos

direitos fundamentais na época da ditadura. Concluiu-se que pleitos dessa natureza não se

sujeitam ao instituto da prescrição, o que possibilita que tais ações sejam ajuizadas a qualquer

momento, quer seja contra o Estado, quer seja, conjuntamente, contra o Estado e seus agentes.

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STATE’S RESPONSIBILITY IN THE CRIMES COMMITTED AGAINST THE

HUMAN RIGHTS DURING THE MILITARY DICTATORSHIP

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ABSTRACT

Despite the state's duty to fulfill the obligations within the society,

especially, tends to remain in the country a prototype of oppressive

political system, potentially able to commit great atrocities against

humanity. Indeed, since immemorial time, the succession of political

regimes and the conceptions of justice generate transitions that

demand improvements. In this sense, this article aims to discuss about

the state’s responsibility in the crimes committed against fundamental

human rights, under the military dictatorship, weaving brief comments

about the conventionality of the Amnesty Law and jurisprudential

precedents surrounding the proposed subject.

Keywords: State. Military Dictatorship. Responsibility. Fundamental

Human Rights.