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    O - Este ensaio discute o modo como as contradies ine-

    rentes a uma literatura marcada pelo empenho na for-mao da nao se configuram narrativamente em Ossertes,de Euclides da Cunha.Palavras-chave: Os sertes; Euclides da Cunha; em-penho; nacionalismo.

    O - Tis essay discusses how the contradictions inherent ina literature marked by a commitment to nation-build-ing configure the narrative in Os sertes,by Euclidesda Cunha.Keywords: Os sertes; Euclides da Cunha; commit-ment; nationalism.

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    Gustavo ArntMestrando em literatura brasileira pela Universidade de Braslia, Braslia - [email protected]

    Literatura como misso

    Para caracterizar com exatido o carter empenhado da literatura de Euclides da Cunha, inevitvelo uso da expresso consagrada por Nicolau Sevcenko (2003) em seu estudo sobre a vida culturaldurante a primeira Repblica no Brasil. Isso porque o autor de Os sertesrealmente via sua atividadeintelectual, principalmente a de escritor, como uma verdadeira misso, cujo objetivo principal erafazer uma profunda interpretao do Brasil, descobri-lo aos olhos dos brasileiros, no desejo de, assim,contribuir para a formao da nascente nao brasileira.

    O carter empenhado dessa literatura, no entanto, no se limita apenas ao desejo manifesto do

    homem Euclides da Cunha, meramente enquanto trao biogrfico. Conforme demonstramos ao lon-go deste ensaio, o empenho deixa marcas profundas na prpria fatura da obra, pois formal e discur-sivamente que ele se manifesta concretamente.

    Sendo assim, apresentamos inicialmente um estudo acerca do conceito de empenho, tal como de-senvolvido por Antonio Candido, e seus principais desdobramentos no que diz respeito cultura e literatura brasileiras. Em seguida, analisamos a organizao narrativa de Os sertes, a fim de verificarde que modo nele esto configuradas as contradies do empenho literrio, principalmente no quediz respeito interpretao do Brasil e formao da nao.

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    Contradies de uma literatura empenhada

    No que diz respeito cultura, o principal lastro da ideologia civilizatria encontra-se no conceito de

    esclarecimento, que, no Brasil, foi amplamente impulsionado pela atividade dos literatos.Antonio Candido argumenta que um dos principais traos da literatura brasileira em seu processo

    de formao foi seu carter empenhado. Segundo o crtico, o projeto de construir uma literatura inde-pendente da de Portugal tambm foi o de construir uma nao. O crtico explica que com empenhono quer dizer que a literatura seja social ou deseje tomar partido ideologicamente; na verdade, comesse conceito ele pretende apenas mostrar que a literatura

    toda voltada, no intuito dos escritores ou na opinio dos crticos, para a construo duma cultura vlidano pas. Quem escreve, contribui e se inscreve num processo histrico de elaborao nacional (CANDIDO,

    2006a, p. 20).

    Nesse sentido, vale a pena observar dois episdios dentro dos momentos que o crtico chamoude decisivos para a formao da literatura brasileira. No primeiro deles, o Arcadismo, interessantenotar, por exemplo, como a trade mineira Cludio Manoel da Costa, oms Antnio Gonzaga eAlvarenga Peixoto esteve ligada Inconfidncia Mineira. No segundo momento, o Romantismo,encontraremos aquilo que Candido chamou de Nacionalismo literrio, ou seja, a literatura, impul-sionada pelos ideais da Revoluo Francesa e pelo momento da Independncia, vai desenvolver maisainda os ideais nacionais. Esse empenho, esteticamente, ser manifestado, por um lado, por meiodo descritivismo extico, do ufanismo e da caracterizao estereotipada dos personagens; por outrolado, o empenho possibilitar a captao das fraturas da sociedade brasileira.

    A essa dialtica de possibilidades configurada basicamente pelo carter empenhado e pela dial-tica local-universal, Antonio Candido deu o nome de literatura de dois gumes (CANDIDO, 2006c),

    observando justamente o fato de a literatura ter estado, para o bem e para o mal, profundamenteligada aos projetos polticos de construo nacional desenvolvidos ao longo dos anos, o que resultouem muitas obras esteticamente fracas, laudatrias ou puramente hegemnicas, mas por outro ladopossibilitou tambm uma considervel produo cuja eficcia esttica de alto nvel, que configuraliterariamente as contradies da realidade com profundidade.

    No Brasil, o que se poderia chamar mais estritamente de nossa poca das Luzes isto , operodo em que, entre ns, o saberpaulatinamente arrogou a si o carter de discurso de maior vali-

    dade e prestgio configura-se tardiamente no sculo XIX, impulsionada pela difuso do pensamentoiluminista a partir da instalao da corte portuguesa no Rio de Janeiro, apesar de j se encontrar emestgio de formao desde o sculo XVIII.

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    Perante os olhos dos intelectuais brasileiros, o reinado de D. Joo VI abria para o pas a era doprogresso (CANDIDO, 2006a, p. 239). Dentre os benefcios advindos da presena da corte portu-

    guesa no Brasil, podem-se citar a diminuio da censura, a fundao de cursos tcnicos e superiores,um paulatino movimento de divulgao do saber por meio de conferncias pblicas e da imprensaperidica, a fundao de bibliotecas pblicas, a abertura de livrarias etc (OS1, p. 242).

    Nesse sentido, verifica-se finalmente a configurao de uma vida intelectual propriamente dita noBrasil. Os intelectuais, apesar da distncia em relao grande massa da populao, acabavam porinterferir diretamente na vida pblica, como que munidos de uma espcie de senso de servio (OS,p. 247), assumindo, dentre outras, a responsabilidade de difundir a instruo e as ideias liberais. O

    iderio iluminista/positivista de uma inteligncia socialmente participante, que regulasse e ordenassea vida social, fazia-se cada vez mais presente enquanto fora poltica.Esse movimento ganharia ainda mais fora com o processo de Independncia do Brasil. Segundo

    Antonio Candido, no Brasil, a Independncia foi o objetivo mximo do movimento ilustradoe a suaexpresso principal (idem, p. 249). Nessa poca, os intelectuais de modo geral, mesmo os menosprogressistas, partilham de uma concepo pragmtica em relao inteligncia e da confiana narazo e na cincia para instaurar a era de progresso no Brasil (idem, p. 250). As diretrizes da Ilust-rao eram vistas como o caminho a ser seguido a fim de integrar o Brasil no mundo intemporal darazo e da cincia, onde se reuniam os povos quando orientados pelos seus princpios (idem, p. 250).

    Considerando-se os dois gumes desse processo, a perverso desse ideal ilustrado, que fazia daeducao, da cultura e da arte uma promessa de felicidade, profundamente discutida por Candido,ao afirmar que

    de ideal ilustrado, teoricamente universal e altrusta, ele se tornou em boa parte um saber de classe e degrupo, um instrumento de dominao que serviu por sua vez para segregar o povo e mant-lo em condio

    inferior pela privao do saber (CANDIDO, 2001, p. 321).

    Aps a proclamao da Repblica, no mbito mais especificamente literrio, tratava-se, conformea concepo de Nicolau Sevcenko, de encarar a literatura como misso, ou seja, contribuir, por meiodas Letras, para a melhoria do pas e inseri-lo no contexto internacional de desenvolvimento e pro-gresso: e acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com os padres e oritmo de desdobramento da economia europeia (SEVCENKO, 2003, p. 41).

    1 Usar-se- neste artigo a sigla OS, acompanhada do nmero de pgina, sempre que se fizer referncia obra Os sertes, deEuclides da Cunha.

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    Essas concepes seriam amplamente difundidas ao longo de todo o sculo XX, principalmenteno perodo que se segue proclamao da Repblica, fato que mobilizou sobremaneira os intelectuais

    brasileiros, incluindo Euclides da Cunha, e que est intimamente ligado Guerra de Canudos. Emrelao situao de Euclides nesse contexto, parece-nos acertada a reflexo de Clvis Moura quandoafirma que

    o processo de tomada de conscincia de nossa realidade social reflete-se na obra de Euclides da Cunhaantinomicamente; forma uma contradio. De um lado h o reconhecimento da necessidade de serem a

    literatura e a cincia formas de conhecimento, fatores instrumentais no processo do desenvolvimento social,

    integrados no quadro da sociedade em transformao. Sua inteno de voltar-se para os nossos problemas,apontando solues para eles, mostra como Euclides da Cunha encontrava no seu trabalho de escritor uma

    dimenso participante. Este foi o lado de abordagem que o conduziu a procurar uma tomada de posiosocial e poltica. Do outro lado, porm, apoiava-se em teorias, hipteses, mtodos e mestres, em um cabedal

    de conhecimentos que no o ajudava a desvendar os vus que cobriam as solues dos problemas brasileiros(MOURA, 1964, p. 9-10).

    Assim, podemos visualizar claramente o problema que enfrentamos. Euclides da Cunha, munidoda f na cincia e vendo nela a principal, se no nica, possibilidade de fazer o Brasil entrar nos trilhosdo progresso, busca em sua atividade como escritor um meio de contribuir para o desenvolvimentodo pas e a construo da nao.

    Contraditoriamente a esse propsito, em Os sertestambm so representadas as ameaas do pro-gresso, levado a pranchadas ao serto no dizer de Euclides, e que revela sua face de atraso e barbrie.Ao representar a luta dos sertanejos, compreendida no interior dos problemas relacionados questonacional, contra a ordem estabelecida e o consequente massacre dos conselheiristas, a narrao ganha

    a fora da rememorao benjaminiana, legando s geraes subsequentes a tarefa de dar continuidade luta contra a explorao e a barbrie, buscando alcanar a redeno.

    O grande ganho, portanto, da interpretao de Os sertes luz da filosofia da histria de WalterBenjamin a possibilidade de compreender a radicalidade da obra, principalmente no que diz res-peito sua articulao com a histria. Adaptando a proposio de Benjamin, poderamos dizer que aobra de Euclides lega uma srie de reflexes que iluminam o massacre dos sertanejos pelos militaresna guerra de Canudos, permitindo aos leitores contemporneos, por meio da rememorao, a com-

    preenso desse processo e transmitindo-lhe a tarefa de dar continuidade sua luta pela superao dosistema em que vivemos, regido pela violncia da explorao entre os homens.

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    O empenho e as antinomias narrativas de Os sertesQuase todos os crticos que escreveram sobre Os sertesopinaram acerca de seu gnero. No sendo

    esse o foco do nosso trabalho, remetemos o leitor ao ensaio A ontologia discursiva de Os sertes, deLeopoldo Bernucci (1998), no qual o autor defende a tese do hibridismo harmonioso de gneros dis-cursivos no livro de Euclides, e ao ensaio Os sertes: cincia ou literatura, de Luiz Costa Lima (2002),no qual o autor argumenta contra a tese da dupla inscrio de Os sertescomo obra de cincia e deliteratura. O crtico demonstra, por meio de sua anlise, que em Os serteso discurso literrio apa-rece subordinado (como ornato) ao cientfico. De nosso lado, basicamente partilhamos do posicio-namento de Luiz Costa Lima, conjugando-o interpretao de Walnice Nogueira Galvo, para quem

    [Os sertes] um epos submetido secundariamente ao gnero dramtico: desde o comeo coloca-se como

    narrativa, mas narrativa de um conflito, de uma guerra portanto, entremeada de recursos do gnerodramtico. Euclides, por sua vez, est fazendo o papel de tribuno da plebe, tomando partido numa guerra

    (GALVO, 2002, p. 386-7).

    Assim, tendo as concluses de Costa Lima como pressuposto, tomaremos o argumento de Galvocomo ponto de partida para nossa anlise da organizao narrativa da obra. Antes, contudo, cabe umaligeira ressalva a um aspecto do argumento de Walnice.

    Os sertes de fato constitui um epos, uma narrativa. Contudo, a narrativa de uma guerra noconstitui, por excelncia, matria do gnero dramtico, seja ele antigo ou moderno. No , portanto,natural a presena dos recursos do gnero dramtico, sendo preciso analisar e compreender seufuncionamento e suas implicaes semntico-ideolgicas dentro da obra. Em relao ao papel detribuno da plebe, a anlise revela que sim, Euclides assume esse papel, mas que, por outro lado, no algo livre de contradies.

    Portanto, para alm da discusso acerca do estatuto literrio ou cientfico da obra, interessa-meaqui analisar e interpretar a configurao narrativa de Os sertes e suas implicaes ideolgicas2.O interesse por esse aspecto narrativo no mbito deste trabalho justifica-se, dentre outros motivos,pela importncia histrica desempenhada pelas narrativas fundadoras de boa parte das comunidadesnacionais3. No Brasil, essa misso foi amplamente incorporada pelos romnticos e tambm, como j

    2 Para uma viso geral acerca da relao entre estruturas narrativas e ideologia, consulte-se O narrador ensimesmado, deMaria Lcia Dal Farra (1978).3

    A importncia das narrativas escritas para a constituio das naes modernas analisada por Benedict Anderson noscaptulos Razes culturais e As origens da conscincia nacional, do seu Comunidades imaginadas(2008).

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    o demonstramos no captulo I, pela intelectualidade da Belle poque no Brasil, da qual Euclides omaior expoente. Em termos gerais, compreendemos que Os sertes, enquanto ensaio de interpretao

    do Brasil a partir da anlise do episdio da Guerra de Canudos, constitui uma narrativa da (de)for-mao do Brasil enquanto nao.

    A Nota Preliminar e o enquadramento do narrador sincero

    A obra, como se sabe, nasce a partir do intuito de Euclides da Cunha de contar a histria da Cam-panha de Canudos (OS, p. 9), ressalva feita pelo prprio autor na Nota Preliminar. Aqui, algunselementos fundamentais j se evidenciam: o carter narrativode sua empreitada e o propsito histri-

    coda narrativa. O autor, porm, ainda no primeiro pargrafo da nota informa que, decorrido certotempo entre a campanha e a publicao, a narrativa dessa histria teria perdido sua atualidade, o queo leva a tomar o episdio como variante de assunto geral e tentar esboar, ante o olhar de futuroshistoriadores, os traos atuais mais expressivos das sub-raas sertanejas do Brasil (OS, p. 9).

    Aps justificar esse objetivo, o autor esboa uma brevssima explanao acerca dessas sub-raas,concluindo que retardrios hoje, amanh se extinguiro de todo (OS, p. 9), afirmao seguida depargrafo em que o autor recorre a Gumplowicz para consolidar ainda mais o argumento de que, emnome da civilizao, seria inevitvel o esmagamento das raas fracas pelas fortes, haja vista a luta deraas ser a fora motriz da histria (OS, p. 10).

    Como esse processo seria inevitvel, a campanha de Canudos adquire a significao inegvel deum primeiro assalto, em luta talvez longa (OS, p. 10). Logo em seguida, ele justifica inclusive o fatode terem sido filhos do mesmo solo, em virtude das vrias diferenas entre uns e outros, os respon-sveis por levar a cabo essa tarefa:

    a campanha de Canudos tem por isto a significao inegvel de um primeiro assalto, em luta talvez longa.

    Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado ns, filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente in-definidos, sem tradies nacionais uniformes, vivendo parasitariamente beira do Atlntico, dos princpios

    civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indstria alem tivemos na ao um papel singularde mercenrios inconscientes. Alm disto, mal unidos queles extraordinrios patrcios pelo solo em partedesconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histrica o tempo (OS, p. 10).

    Nesse pargrafo percebem-se j vrios elementos de um ponto central da anlise aqui empreen-

    dida: a questo nacional. Primeiramente, o autor reconhece o fato de sertanejos e habitantes da cidadeserem filhos do mesmo solo, aspecto importante na caracterizao das naes; em seguida, contudo,

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    traz tona elementos que marcam a desigualdade entre os habitantes do litoral, entre os quais elese inclui, e os sertanejos: a indefinio tnica, a falta de tradies nacionais uniformes, a distncia

    espacial (litoral versusserto) e a disparidade tecnolgica. Outros elementos que no podem passardespercebidos so a (auto)crtica que o autor faz em relao ao assalto e a disparidade de temposhistricos entre interior e litoral.

    A (auto)crtica um aspecto fundamental do discurso narrativo em Os sertes. Como o prprioEuclides explica em nota segunda edio, o livro no era um livro de defesa (dos sertanejos), mas deataque (ao exrcito, em particular, e Republica, por ele representada). Como veremos adiante, no sem contradies que o discurso autocrtico se configura na obra. Em muitos momentos, o autor,

    contrariando seu declarado propsito de atacar o assalto, acaba por defend-lo, o que nos levar a,dentre outras coisas, pensar nos limites e nas antinomias do engajamento intelectual.Em relao ao valor de separao do tempo enquanto coordenada histrica, Euclides sustenta a

    ideia de que os sertanejos estariam ainda em um tempo historicamente atrasado em relao marchada civilizao. Conforme aponta Glucia Villas Bas,

    Os Sertesparecem mostrar a existncia de dois tempos que fundam duas sociedades, dois estilos de vida,

    duas culturas: interiorana e pastoril, litornea e urbana. O primeiro deles um tempo longnquo, afastado

    por trs sculos do litoral, onde uma singela populao mestia mais indgena e branca do que negra ,de vaqueiros fiis aos seus padres, vive melancolicamente seu dia-a-dia de labuta, suas festas e crendices.O segundo tempo o da guerra, embate violento da civilizao de emprstimo que representa a culturaurbana e moderna com a cultura sertaneja e mestia de Canudos (VILLAS BAS, 1998, p. 5).

    Na narrativa, essa dualidade entre os elementos acima citados configura, na verdade, uma tensodialtica, em que eles se mostram como polos de contradies no resolvidas na prpria sociedade4.

    Vemos, portanto, que essas contradies se colocam na obra como problemas formais. No toa setem chamado Os sertesde livro antittico ou de oxmoro, tamanha a complexidade da relao esta-belecida entre texto e sociedade.

    Encaminhando-se para o fim, a nota repentinamente quebra o fluxo da argumentao apresentadaat ento. O autor declara, de forma antittica ao que afirmara anteriormente, que a campanha fora,na significao integral da palavra, um crime e conclama: denunciemo-lo (OS, p. 10).

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    Em sua Teoria esttica, afirma Adorno que os antagonismos no resolvidos da realidade retornam s obras de arte comoproblemas imanentes da sua forma (OS,p. 16).

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    Luiz Costa Lima chama a ateno para o flagrante aspecto contraditrio da acusao de crime im-putada ao exrcito, haja vista que o autor at ento justificava a campanha baseado na inexorabilidade

    histrica da vitria da raa superior contra a inferior:

    se a comunidade, dizimada at ao ltimo sobrevivente, estava fadada a desaparecer por uma lei inexorvelda Histria, ento o crime cometido pelos militares teria sido, no mximo, o de apressar uma morte anun-

    ciada. Convert-la ao invs em representante da rocha viva da nacionalidade significava exacerbar aomximo a gravidade do crime. O massacre teria equivalido a ferir de morte a ptria nascente (LIMA, 1997,

    p. 160).

    Em outras palavras, se a luta era inevitvel, o que a tornava um crime? O crime fora acelerar oprocesso de extino dos sertanejos, apontados como o cerne de uma nacionalidade que se poderiainstituir.

    A anlise do descompasso entre o desejo manifesto e a soluo narrativo-discursiva dada squestes nos impe a reflexo acerca de algo at agora pouco explorado por ns: o desajuste entreo aparato terico do autor e a matria por ele analisada. sabido por todos que Euclides, antes departir como adido ao exrcito para Canudos, manifestara-se publicamente acerca do conflito, defen-dendo a ao militar5. Igualmente notrio o fato de ele ter mudado de opinio aps presenciar omassacre dos sertanejos pelos soldados. O at ento defensor da Repblica, proclamador dos ideaispositivistas, toma um choque, que o impele a escrever seu livro vingador. endo escrito aps a guerrae aps a proclamada mudana de opinio, causa espanto o tratamento dado pelo autor ao sertanejoao longo da obra. preciso assinalar que, no fazendo sentido para Euclides simplesmente relataros combates ocorridos durante a guerra, ele sentiu a necessidade de explicar e interpretar as origensdaquele conflito. Para tanto, o autor recorreu a estudos dos mais variados tipos, com destaque princi-

    pal para as teorias racialistas que, poca, ganhavam enorme fora no cenrio poltico-intelectual. Atentativa de aplicar os conceitos e concepes advindos dessas teorias muitas vezes impede Euclidesde demonstrar em sua obra uma compreenso correta dos processos histricos que levaram Guerrade Canudos. Euclides, em suma, estava mirando o alvo certo com as lentes erradas (GALVO, 2001).

    Fechando a nota, Euclides cita um trecho de Hippolyte aine, a fim de caracterizar a si prpriocomo um narrador sincero que encara a histria como ela o merece. Esse pretenso narrador sin-cero no apenas se prope a narrar os fatos como realmente aconteceram, mas tambm a transmitir a

    5 Cf. os dois artigos intitulados Nossa Vendia, publicados no jornal O Estado de So Pauloem 1897.

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    alma e o esprito do conflito. Em nota segunda edio do livro, Euclides esclarece esse seu propsitoinicial de contar estritamente a verdade, recorrendo a ucdides. Ele afirma que, tal qual o historiador

    grego teria feito, escreveu respeitando os fatos e, sobretudo, a verdade. Diz ele:

    escrevi sem dar crdito s primeiras testemunhas que encontrei, nem s minhas prprias impresses, masnarrando apenas os acontecimentos de que fui espectador ou sobre os quais tive informaes seguras (OS,

    p. 596).

    Na Nota Preliminar, a recorrncia a aine e a ucdides tem o objetivo de garantir o carter

    fidedigno da narrao que vem a seguir. O autor estabelece, portanto, um pacto de veracidade com oleitor, caracterstico dos discursos histrico e cientfico6, garantindo a validade das informaes quelhe sero passadas.

    Viso geral

    Os sertes, a rigor, se divide em sete longos captulos, cada um contendo um nmero variado desubcaptulos. Eis a diviso: 1 A erra (5 subcaptulos); 2 O Homem (5 subcaptulos); 3 A Luta (4subcaptulos); 4Expedio Moreira Csar (6 subcaptulos); 5Quarta Expedio (8 subcaptulos);

    6 Nova fase da luta (3 subcaptulos); 7 ltimos dias (7 subcaptulos). Historicamente, no entanto,a crtica tem substitudo essa diviso pelo famoso esquema tripartite que considera os trs grandesgrupos temticos da obra, a saber, A erra, O Homem e A Luta, associando a macro-organizaoda narrativa ao modelo concebido por aine em Histoire de la littrature anglaise.

    Em A erra, o narrador discorre sobre a constituio natural do pas, com nfase no serto daBahia, local onde ocorreu o conflito entre conselheiristas e soldados. O Homem apresenta a inter-pretao do narrador acerca da composio etnolgica da populao brasileira. Por fim, nos cinco

    captulos seguintes, dos quais tratarei simplesmente sob o signo de A Luta, narrado o conflito ar-mado: o leitor acompanha as motivaes imediatas da batalha, os (in)sucessos das quatro expediesenviadas a Canudos e o desfecho da guerra.

    Disposta teleologicamente nos trs grandes conjuntos temticos acima referidos A erra, OHomem e A Luta , a estrutura narrativa de Os sertes por alguns vista como um modelo dial-tico, com os trs elementos sendo entendidos como tese, anttese e sntese. Contudo, uma anlise

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    Consulte-se, a esse respeito, o captulo A historiografia nascente. In: Histria. Fico. Literatura, de Luiz Costa Lima(2006).

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    mais acurada mostra a impreciso de tal entendimento. Na verdade, a estrutura da obra associa-se,isto sim, ao modelo silogstico da lgica formal (duas proposies, que levam a uma concluso). Isso

    porque o elemento bsico da lgica dialtica, a negao, est ausente dessa organizao narrativa: OHomem no nega A erra, assim como A Luta no nega O Homem. O que ocorre, pelo contrrio, uma progresso positiva, em que as duas primeiras partes funcionam como justificativa lgica paraa terceira. Em outras palavras, essa composio narrativa traduz em forma discursiva a tese do nar-rador: dadas as premissas (a composio natural da regio e a formao etnolgica da populao), shavia uma concluso possvel (o conflito armado).

    Porm, isso no significa que contradies (no sentido dialtico) estejam ausentes da narrativa.

    Elas, pelo contrrio, se fazem muito presentes no interior de cada um dos conjuntos temticos e, aofim do livro, so responsveis por muito da sensao de desconforto causada pela leitura. No sendoo princpio estruturante da macroestrutura, as contradies, no entanto, avultam frequentemente dodiscurso do narrador.

    Evidencia-se em alguns momentos uma disputa interna entre a estruturao narrativa (positivista)e o discurso do narrador, o qual, embora esteja mergulhado nas ideologias de seu tempo, permite aoleitor enxergar, a contrapelo e muito em funo das contradies advindas da sua mudana de pontode vista em relao a Canudos, o negativo de uma guerra que se pretendia justificada em nome da

    Repblica e do progresso, em nome dos quais o crime seria perdoado.

    ***

    Concentrando-me neste momento nos trs conjuntos temticos que estruturam a composionarrativa da obra, passo a analisar seus fundamentos, sua organizao e suas implicaes.

    Conforme apontamos anteriormente, definir o gnero discursivo de Os sertes tarefa rdua, haja

    vista seu carter discursivo multifacetado. Abdicando da tarefa de enquadr-lo em um gnero nico,cabe apontar, no entanto, algumas caractersticas bsicas. A obra um relato de viagem que tem apretenso tanto de informar o leitor acerca da Guerra de Canudos quanto de fazer uma interpretaodo conflito a partir de dados geogrficos, histricos e etnolgicos, conforme a preveno feita pelonarrador j na Nota Preliminar.

    O narrador caracteriza-se como um narrador-testemunha: ele conta a partir do que supostamenteviu e das informaes que pde obter por meio de outras testemunhas ou documentos. A narrao quase toda feita em terceira pessoa, mas a primeira pessoa tambm se faz notar bastante ao longodo texto.

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    A Terra

    A narrao de A erra feita por meio de grandes quadros descritivo-interpretativos. O narrador,

    maneira dos famosos panoramas da pica clssica, enfoca boa parte do territrio brasileiro, a fimde descrever e analisar sua composio geogrfica (relevo, hidrografia, geologia, clima, vegetao).Observemos este trecho, que apresenta os dois primeiros pargrafos da narrativa:

    o Planalto Central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteirias, altas e abruptas. Assoberbaos mares; e desatase em chapades nivelados pelos visos das cordilheiras martimas, distendidas do Rio

    Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo

    tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitivagrandeza afastandoo consideravelmente para o interior (OS, p. 12).

    O intuito inicial do narrador dar a ver a conformao do relevo brasileiro, de Norte a Sul. Nessesentido, o procedimento narrativo empregado o de uma visada panormica sobre os ambientes,com possibilidades de aproximao como na posterior descrio da Serra da Mantiqueira, Serra daCanastra, Serra do Gro-Mongol etc. (OS, p. 14-6).

    Ao longo de todo o captulo, a descrio o recurso discursivo mais empregado a fim de carac-

    terizar os ambientes: a abundante adjetivao e o emprego de metforas e outras figuras de linguagem,como a prosopopeia que abre o livro, tornam a narrativa bastante figurativa, o que chegou inclusivea ser alvo de crticas de escritores como Mrio de Andrade (BERNUCCI, p. 21). Esse panorama, noentanto, no se projeta a esmo, pelo contrrio: a narrao tem em seu horizonte a chegada entradado serto, que permitir ao narrador concentrar o foco na erra ignota, percorrendo (descrevendo)algumas cidades do serto, enfatizando a regio que contorna a Serra do Monte Santo e o Morro daFavela, espaos centrais do conflito armado entre o exrcito e os canudenses. Esses espaos, descritos

    como lugares em degradao, marcados pelas runas, frutos da luta secular da terra, aparecem na nar-rativa j como pr-figurao do combate entre sertanejos e soldados ali ocorrido e que ser narradomais adiante.

    A descrio da geografia sertaneja abre espao para a anlise do clima daquele lugar. O narradoradianta logo que o regime desrtico ali se firmou e que a regio incipiente ainda est preparando-separa a vida (OS, p. 31).

    A anlise mais detida do clima sugere uma alternncia entre temperaturas mximas e mnimas,com dias esbraseados e noites frigidssimas, agravando todas as angstias dos martirizados sertane-

    jos (OS, p. 38). J aqui se pode perceber uma dominante na narrativa, que a interpretao dos

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    efeitos das componentes geogrficas nesse caso o clima sobre os habitantes do serto. Vemostambm, mais uma vez, o recurso a antteses a fim de explicar os fenmenos.

    A anlise do clima conduz anlise de um outro elemento fundamental da composio geogrficado serto: as secas, o terror mximo dos rudes patrcios que por ali se agitam, tambm chamadasde fatalidade inexorvel (OS, p. 41). O narrador passa, ento, a historiar o problema das secas, en-contrando facilmente uma regularidade entre sua ocorrncia no sculo XVIII e no sculo XIX.O problema, no entanto, est longe de ser resolvido: apesar desta simplicidade extrema dosresultados imediatos, o problema, que se pode traduzir na frmula aritmtica mais simples, per-manece insolvel (OS, p. 42). Assim, no contente com os resultados alcanados, o narrador no

    desiste de sua investigao e passa a desenvolver uma argumentao de antemo apresentadacom hiptese sobre a gnese das secas. O argumento central que um dos motivos da secarepousa (...) na disposio topogrfica do serto (OS, p. 44). Porm, ainda assim chega con-cluso de que

    este desfiar de conjeturas tem o valor nico de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questoque duplamente nos interessa, pelo seu trao superior na cincia, e pelo seu significado mais ntimo no

    envolver o destino de extenso trato do nosso pas. Remove, por isto, a segundo plano o influxo at hoje

    inutilmente agitado dos alsios, e de alguma sorte fortalecido pela intuio do prprio sertanejo para quema persistncia do nordeste o vento da seca, como o batiza expressivamente equivale permanncia deuma situao irremedivel e crudelssima (OS, p. 45).

    Nesse trecho, o narrador demonstra lucidez quanto dimenso do problema das secas; elas real-mente so um agente determinante na vida de milhes de brasileiros. No entanto, ao contrrio doque ele afirma, no se pode admitir que seja uma situao irremedivel. O prprio narrador, pginas

    adiante, apresenta um projeto de extino do deserto, baseado em modelos europeus, que consistiriabasicamente na criao de uma rede de barragens (OS, p. 66-70).Voltando anlise das descries do serto feitas pelo narrador, observemos ainda a relao por

    ele apresentada entre o martrio secular da terra e o martrio do homem (OS, p. 70). Desdobrandoa questo das secas, o narrador traz tona a travessia das caatingas, que, segundo ele, afogam, agrideme estonteiam o viajante. A sobrevivncia ali, tanto do homem quanto da natureza, passa irremediavel-mente pela capacidade de resistncia. Ali, o Sol o inimigo que foroso evitar, iludir ou combaterna luta pela vida (OS, p. 47). A imagem da luta pela vida mantida na narrativa at o fim do captulo.Nesse trecho, a narrao toda permeada pela grande anttese entre vida e morte: a vida, representada

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    pelos curtos perodos de tempo em que a natureza, graas chuva, floresce, quando o serto umparaso; a morte, por outro lado, representada pelos outros meses em que a seca retorna:

    passamse um, dois, seis meses venturosos, derivados da exuberncia da terra, at que surdamente, imper-ceptivelmente, num ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca sedesenhe outra veznas ramagens mortas das rvores decduas.... (OS, p. 58).

    Vse, do fato, que trs formaes geognsticas dspares, de idades mal determinadas, a se substituem, ou se

    entrelaam, em estratificaes discordantes, formando o predomnio exclusivo de umas, ou a combinao

    de todas, os traos variveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegranticas,que a partir do extremo sul se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admirveis que

    tanto encantam e iludem as vistas inexpertas dos forasteiros (OS, p. 11-2, grifo meu).

    Ainda dentro desse trecho, cabe observar o uso da voz passiva como recurso empregado a fim degerar um efeito de distanciamento do narrador em relao matria narrada. Outro recurso usadopelo narrador para gerar esse efeito o recorrente emprego do plural acadmico. A primeira vez emque isso acontece na pgina 17:

    a paragem formosssima dos campos gerais, expandida em chapades ondulantes grandes tablados ondecampeia a sociedade rude dos vaqueiros...Atravessmo-la(OS, p. 17, grifo meu).

    A narrativa toda permeada por uma espcie de leitmotiv, que chamo de questo da veracidade.rata-se das recorrentes pausas do narrador a fim de justificar e/ou assegurar de alguma forma as

    informaes que transmite. Observe-se, por exemplo, o seguinte trecho:

    o que se segue so vagas conjeturas. Atravessamolo no preldio de um estio ardente e, vendoo apenasnessa quadra, vimolo sob o pior aspecto. O que escrevemos tem o trao defeituoso dessa impressoisolada, desfavorecida, ademais, por um meio contraposto serenidade do pensamento, tolhido pelas

    emoes da guerra. Alm disto os dados de um termmetro nico e de um aneroide suspeito, misr-rimo arsenal cientfico com que ali lidamos, nem mesmo vagos lineamentos daro de climas que diver-

    gem segundo as menores disposies topogrficas, criando aspectos dspares entre lugares limtrofes(OS, p. 36).

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    Observe-se que o narrador, nesse ponto, afirma que a exposio que segue no passa de vagasconjeturas, o que lhe permite trabalhar com mais desenvoltura e comprometer menos o carter de

    verdade que busca imprimir sua narrativa. Em outros momentos, o narrador busca assegurar essecarter verdico citando a fonte de suas informaes: ora fala apenas que soube de algo por meio detestemunhas, documentos ou cartas:

    ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas (OS, p. 172).

    Diz uma testemunha [Baro de Jeremoabo]: Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, eat do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvio de famlias que subiam para os Canudos, lugarescolhido por Antnio Conselheiro para o centro de suas operaes. Causava d veremse expostos ven-

    da, nas feiras, extraordinria quantidade de gado cavalar, vacum, caprino etc., alm de outros objetos, porpreos de nonada, como terrenos, casas etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir repar-

    tilo com o Santo Conselheiro (OS, p. 186).

    Note-se a variedade de recursos empregados pelo narrador: reproduz diretamente o texto da fon-te, vale-se do emprego do discurso indireto e at mesmo do discurso indireto livre (cf., p. ex., p. 212).

    Vale ressaltar que o narrador s nomeia sua fonte de informaes, seja em nota, seja no corpo dotexto, quando ele um oficial do exrcito ou uma personalidade poltica importante. O emprego dodiscurso dos sertanejos sempre cercado de desconfiana e descrdito.

    O Homem

    A progresso narrativa de O Homem se faz como uma espcie de zoom: parte da Complexi-dade do problema etnolgico no Brasil, subcaptulo que pretende delinear a gnese das raas mes-

    tias do Brasil a partir das influncias que mutuam, em graus variveis, trs elementos tnicos, onegro, o ndio e o branco (OS, p. 72). V-se, claramente, que se trata nesse momento da narrativa deuma matria bastante ampla.

    A narrativa passa, ento, pela anlise da mestiagem no Brasil, a partir de elementos como Vari-abilidade do meio fsico e sua reflexo na Histria. Em seguida, o narrador passa a focalizar, entreoutros, Os primeiros povoadores, A gnese do mulato, A gnese do jaguno, O vaqueiro, o ser-tanejo, o gacho. Aps a descrio do modo de vida dos vaqueiros, o narrador passa relao entreo fazendeiro e os sertanejos e alguns aspectos da vida destes, como A vaquejada, A arribada, Oestouro da boiada, radies e Danas. Em todos esses subcaptulos, a narrao predominant-

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    emente permeada por descries, com exceo de O estouro da boiada, que analisaremos mais adi-ante. Por ora, examinemos a famosa comparao entre O vaqueiro e O gacho.

    O gacho

    O gacho, opealadorvalente, , certo, inimitvel, numa carga guerreira; precipitandose, ao ressoar estrdulodos clarins vibrantes, pelos pampas, com o conto da lana enristada, firme no estribo; atufandose louca-

    mente nos entreveros; desaparecendo, com um grito triunfal, na voragem do combate, onde espadanam cin-tilaes de espadas; transmudando o cavalo em projtil e varanda quadrados e levando de rojo o adversrio

    no rompo das ferraduras, ou tombando, prestes, na luta, em que entra com despreocupao soberana pelavida.

    O jaguno

    O jaguno menos teatralmente heroico; mais tenaz; mais resistente; mais perigoso; mais forte;

    mais duro.Raro assume esta feio romanesca e gloriosa. Procura o adversrio com o propsito firme de o destruir,seja como for.

    Est afeioado aos prlios obscuros e longos, sem expanses entusisticas. A sua vida uma conquista ar-

    duamente feita, em faina diuturna. Guardaa como capital precioso. No esperdia a mais ligeira contraomuscular, a mais leve vibrao nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao riscarda faca no d um golpe em falso. Ao apontar a lazarina longa ou o trabuco pesado, dorme na pontaria...Se, ineficaz o arremesso fulminante, contrrio enterreirado no baqueia, o gacho, vencido ou pulseado,

    fraglimo nas aperturas de uma situao inferior ou indecisa. O jaguno, no. Recua. Mas, no recuar maistemeroso ainda. um negacear demonaco. O adversrio tem, daquela hora em diante, visandoo pelo canoda espingarda, um dio inextinguvel, oculto no sombreado das tocaias... (OS, p. 124-5).

    Na composio dos dois tipos, O gacho e O jaguno, o procedimento empregado pelo narrador o mesmo: descrio de seu comportamento a partir da narrao de um episdio caracterstico de seucotidiano. Adiantemos que a descrio e a anlise de todos os tipos regionais fazem parte do projeto soci-olgico do narrador, que buscava historiar a composio tnica do Brasil. O trecho escolhido represen-tativo de uma de suas teses centrais: a oposio entre o mestio do litoral e o mestio do serto. No caso, ogacho seria o representante do litoral, e o vaqueiro o representante do serto.

    A anlise dos aspectos apontados anteriormente interrompida pela focalizao em uma variantetrgica: a seca e suas implicas implicaes na vida dos sertanejos:

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    e ao tornarem quando no se perdem para todo o sempre, sem tino, na travessia perigosa dos descam-pados uniformes reatam a mesma vida montona e primitiva...

    De repente, uma variante trgica. Aproxima-se a seca.O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graas ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.

    Entretanto no foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradiado Cear.Buckle, em pgina notvel, assinala a anomalia de se no afeioar nunca, o homem, s calamidades naturais

    que o rodeiam (...).Mas o nosso sertanejo faz exceo regra. A seca no o apavora. um complemento sua vida tormen-

    tosa, emoldurandoa em cenrios tremendos. Enfrentaa, estico. Apesar das dolorosas tradies que conheceatravs de um sem numero de terrveis episdios, alimenta a todo o transe esperanas de uma resistnciaimpossvel (OS, p. 136, grifo nosso).

    Observe-se primeiramente que o narrador prepara a passagem da narrativa das viagens do vaqueiropara a narrativa da seca por meio do emprego das reticncias, introduzindo o episdio de modo agerar tenso. O efeito ganha fora pela insero das duas frases curtas destacadas por um espao do

    corpo do texto: de repente uma variante trgica. Aproxima-se a seca. Est montado o quadro nar-rativo de mais um flagelo impingido aos sertanejos.

    Graas regularidade com que as secas ocorrem, o sertanejo capaz de adivinh-la de acordocom a observao do tempo e da paisagem. No entanto, no foge logo, busca resistir o maior tempopossvel, mas trata-se de uma resistncia impossvel. Os sinais da tormenta passam a se multiplicar:greta-se o cho, abaixa-se vagarosamente o nvel das cacimbas, percebem-se as primeiras aves emi-grantes, transvoando a outros climas (OS, p. 137-8). O narrador nos apresenta a situao desespera-

    dora: a alimentao precria, o perigo da suuarana traioeira e ladra, a hemeralopia (falsa cegueira)etc. O quadro de completa runa. Relembre-se a impressionante descrio dos bois cadavricos:

    [o sertanejo] contempla ali a runa da fazenda: bois espectrais, vivos no se sabe como, cados sob as r-

    vores mortas, mal soerguendo o arcabouo murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cam-baleantes; bois mortos h dias e intactos, que os prprios urubus rejeitam, porque no rompem a bicadas assuas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de cho entorroado onde foi a aguada predileta; e,

    o que mais Ihe di, os que ainda no de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em

    longo apelo triste que parece um choro (OS, p. 141).

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    ornando-se insustentvel a situao, no havendo mais a que recorrer, o sertanejo assoberbadode reveses, dobra-se afinal (sic) (OS, p. 142). Os primeiros retirantes comeam a passar frente sua

    porta, dia a dia vrios outros sertanejos fogem da seca, o serto que se esvazia ( OS, p. 142). Porfim, ele tambm se curva,

    amatulase num daqueles bandos, que l se vo caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e l se

    vai ele no xodo penosssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o no mateo elemento primordial da vida (OS, p. 142).

    O narrador aponta que, chegando a esses lugares, o sertanejo se salva e, passados alguns meses,acabado o flagelo, retorna feliz, revigorando, cantando (OS, p. 142), para voltar mesma vida detranses e provaes.

    O episdio das secas abre espao para a anlise de um aspecto fundamental da vida dos habitantesdo serto, que a religio. Nesse ponto, o narrador conduz a narrativa gradativamente do aspectogeral ao particular, isto , passa da anlise da religio mestia em geral do Monte Santo, at chegar aAntnio Conselheiro, figura central do arraial de Canudos.

    A exposio sobre Conselheiro passa por diversos aspectos, indo desde uma anlise psi-

    quitrica, passando pela anlise do meio em que ele se criou e por importantes momentos desua vida, como o episdio fundamental da fuga da esposa de Conselheiro com um policial,

    fato que o teria levado a, envergonhado, fugir de Ipu, partindo pelo o Cear. Segundo o nar-

    rador, dez anos depois, ele ressurge na Bahia, tendo j peregrinado tambm por Pernambuco

    e Sergipe. Nesse tempo, aumenta cada vez mais o nmero de fis que o seguem. Observe-

    mos uma das descries e consideraes que o narrador faz sobre ele:

    e surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos at aos ombros, barba inculta e longa; face escavei-rada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hbito azul de brim americano; abordoado ao clssico

    basto em que se apia o passo tardo dos peregrinos...(...)

    No seio de uma sociedade primitiva, que pelas qualidades tnicas e influxo das santas misses malvolascompreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeouo logo de novulgar prestgio, agravandolhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo o domnio que, sem

    clculo, derramava em torno, parece haver refludo sobre si mesmo. odas as conjeturas ou lendas que para

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    logo o circundaram fizeram o ambiente propcio ao germinar do prprio desvario. A sua insnia estava, ali,exteriorizada. Espelhavamna a admirao intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo

    rbitro incondicional de todas as divergncias ou brigas, conselheiro predileto em todas as decises (OS, p.165-6).

    A descrio, como sugere o prprio ttulo do subcaptulo Como se faz um monstro, fantas-magrica. Com frases curtas e contundentes, repletas de adjetivos, o narrador traa o perfil de An-tonio Conselheiro, criando uma imagem extremamente negativa do lder de Canudos. Esse procedi-mento abre espao para o desenvolvimento da tese central do narrador quanto a Conselheiro: ele seriaum insano, cujos distrbios, manifestados em termos religiosos, teriam encontrado solo propciono seio de uma sociedade primitiva para se desenvolver. Euclides, portanto, explica a emergnciade Conselheiro como lder religioso de um grupo que conseguiu corajosamente frente s investidasdo exrcito, a partir de concepes advindas da antropologia, da biologia e da psicologia das massas,conforme esclarece Luiz Costa Lima:

    o retardamento biolgico causado pela mestiagem torna a massa sertaneja vtima de crendices, superstiese formas inferiores de religiosidade. Mas o atraso termina em vantagem. Embora Conselheiro tambm seja

    um doente, e doente grave, (...) ao se pr ao nvel da massa que lidera converte-se em uma ditese e [...]uma sntese, funcionando como o equilibrador do contgio (LIMA, 1997, p. 87).

    Deixando a anlise da relao entre racialismo, cientificismo e nacionalidade para o captu-lo seguinte, interessa-nos ressaltar a recorrncia de uma soluo antinmica dada a uma questopor parte do narrador. Observe-se que a noo de que o sertanejo seria psiquiatricamente inferior,retrgrado, esbate na sua ao durante o conflito armado.

    Feitas as consideraes preliminares acerca de Conselheiro, o narrador passa a contar vrios epis-dios referentes s suas peregrinaes. Combatido pela igreja e pela polcia, o grupo ruma para o inte-rior do serto, chegando a Canudos em 1893. Nesse ponto, o narrador passa a analisar a construoe organizao do arraial: seu crescimento, sua arquitetura, sua populao, o regime da vida naquelelugar etc. A narrativa se dirige para o famoso episdio da misso dos capuchinhos, enviada pela igreja(e pelo estado) a fim de tentar convencer Conselheiro a dissolver o arraial. A misso um fracasso, eos missionrios saem de Canudos quase fugidos. O episdio funciona como transio narrativa. Abreas portas para a narrao da luta propriamente dita, isto , o extermnio dos canudenses por parte dasforas policiais.

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    A Luta

    O grande conjunto temtico chamado de A Luta ocupa quase dois teros da narrativa e compreende

    seis captulos: A Luta, ravessia do Cambaio, Expedio Moreira Csar, Quarta expedio,Nova fase da luta e ltimos dias. A narrao da luta feita em dois nveis basicamente: a) aspectosgerais do combate; b) episdios especficos. A narrao se desenrola cronologicamente, indo desdeos antecedentes da luta, passando por todas as quatro expedies enviadas pelo Estado, at chegar aoltimo dia (cinco de outubro de 1897), tendo sobrado quatro apenas: um velho, dous homens feitose uma criana, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados (OS, p. 585).

    Com relao narrao da luta, h alguns pontos importantes a serem destacados. Em primeirolugar, cumpre destacar o tom mais propriamente jornalstico desse conjunto. Durante toda a narraodessa parte, h um nmero bem maior de pormenores dos lugares e dos acontecimentos do que nosconjuntos temticos anteriores.

    Em A Luta, o narrador alterna (de forma no igualitria) o foco da narrao: na maior parte danarrao ele est no exrcito, mas existem alternncias para os canudenses. rata-se, basicamente, deindicar as principais manobras do exrcito e suas consequncias tanto para os soldados quanto paraos sertanejos.

    Com relao ao discurso do narrador, no se pode deixar de notar a clara empatia contraditria

    que o narrador demonstra pelo exrcito. E aqui no se trata simplesmente da anlise do tom dodiscurso, quase sempre ofensivo em relao aos sertanejos. O narrador, como j apontamos, coloca-setextualmente do lado dos soldados explicitamente desde o subcaptulo Por que no pregar contraa Repblica, ao dizer:

    eram, realmente, fraglimos aqueles pobres rebelados...Requeriam outra reao. Obrigavam-nosa outra luta.

    Entretanto enviamo-lheso legislador Comblaim; e esse argumento nico, incisivo, supremo e moralizador a bala (OS, p. 211-2).

    Esse trecho, no entanto, ainda no tipifica perfeitamente o modo como se manifesta discursiva-mente a empatia do narrador pelo exrcito, haja vista tratar-se justamente de uma reflexo (auto)crtica em relao campanha de Canudos. durante a narrao da luta propriamente dita que me-lhor podemos enxergar esse aspecto aqui levantado. A ttulo de exemplo, observemos os seguintestrechos:

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    de sorte que ainda quando no carecessem de valor, os nossos soldadosno tinham como se subtrair emergncia gravssima em que se equiparavam heris e pusilnimes (OS, p. 410, grifo nosso).

    Alm disto, encafurnados numa dobra de morro, atirando por elevao e sem alvo, as nossas descargassobre incuas implicavam estril malbaratar das munies escassas (OS, p. 414, grifo nosso).

    O uso do possessivo aqui no deixa dvidas quanto posio do narrador frente aos acontecimen-tos e posio a partir da qual narra: ele pertence ao grupo dos vencedores e sua narrativa, apesar dascontradies, no consegue escapar a essa contingncia.

    ***O intuito da anlise da estrutura de Os sertes foi mapear os fios condutores da narrativa, bus-

    cando apontar alguns de seus principais procedimentos discursivos e narrativos e suas implicaessemntico-ideolgicas no que diz respeito ao seu carter empenhado.

    As anlises at aqui comprovaram nossa sugesto inicial de que a caracterstica principal dessaobra, pensando-se na dialtica entre obra e sociedade, a antinomia entre meta discursiva e soluoformal apresentada.

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    Recebido em 20 de setembro de 2009Aprovado em 12 de outubro de 2009