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Uvas fecundas do conceito fisiopatologicoda molestia; o conceito allatomico, permi­tindo a verificação da lesã,o constituida e,quiçá, ÍlTemediavel; o conceito fisiopato~

logico, deixando antevêr na manifestaçãoda doença, a possibilidade de restauração in~

tegral ou parcial da saude e da vida; porum caminho chegava~se ao conhecimentoda morte do tecido, pelo outro &urpreendia­se o estado periclitante da saude.

Hoje compreendo porque eu avancei tan·to no conhecimento da patologia clinica,seguindo as vossas aulas, que eram dispu­tadas com assiduidade pelos vossos disci·pulos, sinceros admiradores do talento eda cultura do Mestre.

Encontrando-me hoje, ao vosso lado, nainvestidura da Catedra, eu reverencio, navossa personalidade, o espirito de sabedo­ria e de justiça do Magisterio médico destaFaculdade.

E que seja o meu primeiro pensamentouma homenagem comovida á memoria dosMestres de outrora, que a morte afastoudo nosso convivio, deixando-nos deles, imoperecivel e venerada, a efígie de suas es­piritualidades.

A vós, senhores Professores, as minhassaudações fraternas e a expressão do meurespeito e admiração.

ES'te acontecimento solene, que assinálaa etapa culminante e a mais significativade minha vida profissional, sugiere-me áconciencia motivos de graves meditações.

Comparecendo a este douto e egregio ce­naculo da Ciencia hipocrática, no lugar pro­eminente que me coube e de onde, pela vêzprimeira, se alteia e se difunde a vóz daminha palavra, tenho atingido o sagradopórtico do Magisterio, para assumir a in·vestidura de uma Catedra. de Cliniea Mé­dica.

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Estas palavras, cujos conceitos transpa­recem em toda sua expressão o sentido e amedida das responsabilidades contraídas,justifieam plenamente a conturbação e a per­plexidade que experimento no ato de as­sumir temerariocompromisso de empreen­dimento, por todos motivos, S'up~Tior ásminhas possibilidades.

Encanecido precocemente no outono an­tecipado de minha vida, empós quatro lus­tros de porfiadas lutas no exercicio da pro­fissão e no estudo ininterrupto da cienciamédica, sinto-me na plenitude daquele es­tado de espirito que se faz mister pa.racompreender, em seu justo sentido, a reali­dade dos acontecimentos, mesmo os que,por sua excepcional transcendencia e pelagrande projeção de suas finalidades, ofere­cem condições de mais difícil julgamento.

Analisando preliminarmente o estado con­temporaneo da formação intelectual e mo­ral do nosso meio médico, impressionou-me,desde a primeira hora, a circul1stancia dainexistencia de valores integrais, capazesde, em determinado momento, poderem pre·encher devidamente os hiatus abertos pelodeterminismo do destino nos lugares demaior responsabilidade elo ensino médico.

E a razão de ser dessa condição de noto­ria incapacidade para solução imediata ecabal de situações semelhantes, provem na­turalmente do estado incipiente e imaturoda nossa cultura médica, indice consequen­te das deficiencias materiais e intelectuaisque, até aqui, haviam entorpecido os an­seios ele progresso e de perfeição do estudoe do ensino da Medicina, em noss'o meio.

Na falencia de ponderaveis capacidadesde reserva, que nos grandes centros medi­cos constituem a corporação de professo­res substitutos, naturalmente indicados pe­la prevalencia de sua·s' mentalidades cienti­ficas á sucessão legitima e inconteste deseus antecessores na Catedra, predomina,ainda entre nós, como testemunho de nossoretardamento educacional, o criterio fala·cioso dos concursoS' de próvas, em que aseleção de valores, excepcionalmente orien·

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tada pelo espírito da justiça e da razão,não raro se desvirtua sob o arbitrio teme­rario da imparcialidade e da incompeten­cia, consorciadas no proposIto funesto dosacrificio da verdade.

Em ambientes de civilização ainda rudi­mentar, como o em que vivemos, não houvetempo, nem tão pouco serias cogitações dese plasmarem elites de solida cultura cien­tífica, para, na hora oportuna, se afirma­rem, por direito e por merecimento, os ver­dadeiros eleitos para os encargos supremosdo magisterio universitario; não houve si­quer o tempo necessario para s'e crear e seimpôr de modo definitivo uma mentalidadesuperior, çapaz de exercer influencias sa­lutares e decisivas na formação e na orien­tação da personalidade científica e cultu­ral das gerações porvindouras; não houve,mesmo, esforço honesto e vigoroso no sen­tido de derrocar-se, em toda linha, vetustospreconceitos de rotina, á sombra de cujasprerrogativas escolasticas subsistem e pre­ponderam tendencias e concepções em cho­cante antagonismo com as solicitações edirectrizes desta epoca de renovação tumul­tuaria e irresistivel da Medicina contem­poranea.

O que se verifica, por isso, corno naturalcorolario das nossas insuficienCÍaS' é o ar­bitrario determinismo de um criterio deabsoluta relatividade na capacidade de jul­gamento e na revelação das condições decultura científica e de personalidade pro­fessoral dos competidores.

Em face, portanto, deS'se estado deficita­rio, em nosso meio medico, de elementosautorizados e de condições essenciais paraefectivação de concurso destinado ao su­primento de uma disciplina de ensino queenvolve em seu programa talvez a maiorsorna de condições de cultura e de perso­nalidade, não surpreende que sua realiza­ção se consumasse em circunstancias queatestam de modo evidente o grau ainda ele­mentar da nossa evoluçã,o no dominio dadencia e da civilização.

Enquanto prevalecer o sistema vigente de

concursos para preenchimentos de Catedrase até que tenhamos atingido maior nivel deeducação e de sabedoria, meditem profun­damente sobre esses aspectos da evoluçãopsicologica da historia humana todos aque­les que têm a zelar a responsabilidade deum passado e de um nome, forjados com osrecursos honestos da integridade moral econquistados com sacrificio e com tenaci­dade nos domínios' elevados da verdadeiracultura cientifica.

Senhor,es Professol'es da Il'aculdade deMedicina de Porto Alegre!

Candidatei-me ao concurso de Clínica Mé­dica porque a isso me julguei com direitopelo meu passado, decorrido nos bancos aca­demicos e no tirocinio da atividade da pro­fissão em lapso de t!3mpo que já orça pelolimiar de um quarto de s-eculo. A minhapasS'agem pelos bancos da Academia nadateve de invulgar ou de notorio, mas lá fir­mei minha reputação de estudioso e de in­tegridade, que me valeram, do que muitome ufano ainda hoje, o conceito e o esti­mulo dos Mestres de então, muitos delessentados entre vós, outros afastados nestemomento e outros partidos para sempre,mas redivivos na nossa saudade e venera­ção.

Os primeiros anos do curso médico consa­grei-os ao estudo metodico e perseverantedas disciplinas basicas, sob a sábia orien­tação de Mestres insignes, cujos exemplose ensinamentos guardo-os ainda hoje cris­talizados no substrato fundamental da mi­nha educação médica, e de onde reflectemsobre mim s'empre renovadas as cintilaçõesluminosas da sua espiritualidade, que, nes­te momento, se concretiza, para minha for­tuna, no milagre da vossa personificaçãoreal.

Como interno da 5." Enfermaria, do V8­

nerantlo Professor Sarmento Leite, inicieia minha vida hospitalar. Devo ser grato áProvidencia por ter me colocado, nos pri-

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mordios da minha iniciação na prática daclinica, sob a guarida e ao influxo deS'seplecaro Mestre, cuja vida professoral foiuma religião de estoicismo e de renuncias,para melhor difundir ,entre os discipulos asluzes da sua sabedoria e o exemplo da suapersonalidade. Um só detalhe €u desejo re­cordar, nesta hora: no S€rviço de Cirurgiado Professor Sarmento aprendia-se clinica.

Depois seguiu-se o meu internato na 9.a

Enfermaria do Professor Octavio; 'essa en~

fermaria era e sempre foi, em vida do pre­claro Chefe, uma verdadeira Escola de Clí­nica; ser interno da 9.a Enfermaria erauma aspiração disputada; ter sido internodo Professor Octavio era uma honrosa cre­dencial para o futuro; e eu tive essa ven·tura, com a honra maior de ter merecido,como interno dilecto, a sua confiança inte­gral.

Octavio de Souza era a argucia clinicainspirada em prodigiosa intuição da ver­dade; professando tinha a concisão dida­tica da claresa e a percepção objectiva darealidade clínica; ensinava convencendo e,convencendo, creava, á sua imagem, a per­sonalidade de seus discipulos que, em ge­rações sucessivas, prolongam e perpetuam,no tempo e no espaço, o cerebro e o cora­ção do saudoso Mestre.

E:m 1914, quando terminei o curso acade­mico, o Professor Octavio, então Directorda Faculdade, distinguiu-me com um votode sua confiança, que conservo como umdos maiores titulos da minha vida profis­sional: interessado pelo destino que 'eu iriatomar, ingressando na vida prática, acon­selhou-me, nes'Sa epoca, a um estagio deaperfeiçoamento que me permitisse tentarconcurso na Faculdade; não ousei seguir­lhe o conselho, mas guardei a emoção dosentido; e hoje, 21 anos depois, venho che·gando da longa jornada, mas, não quiz Deusque eu tivesse a ventura e o orgulho de en­contrá-lo presente, embóra eu sinta nesteinstante de comoção e de jubilo a vóz es­piritual da sua memoria e o calor generosoda sua imortalidade.

RemenlOralldo nominalmente tão só aque­les que de forma mais directa ou, por maistempo, exerceram influencias decisivas naminha educação clínica, apraz-me sobremo­do encarecer e reverenciar a egregia perso­nalidade do Professor Olinto de Oliveira, osabio Mestre, de quem nunca se fala de­mais, porque jamais se terá dito tudo quan­to deveria ser conhecido da sua nobre vidade homem superior.

o nome de Olinto de Oliveira marca umaepoca na historia da Medicina sulriogran­dense, que ele, creando-a, fê-la tão grandee prestigiosa, que do Brasil repercutiu pe­los centros médicos ,europeus e americanos'.

Tendo emprestado á pediatria contempo­ranea todo o vigor de sua fecunda colabo­ração, no estudo e na solução dos seus maisempolgantes problemas de diagnose de as­sistencia médico-social, o Professor Olintofoi, posteriormente, solicitado pela clinicamédica de adultos em cujo terreno atuoucomo o vulto maior e o mais acatado dasuaepoca. Senhor de uma invulgar culturamédica e científica, cabe ao Prof. Olínto,em sua verdadeira acepção, o epiteto desábio. A sua sabedoria 'era tão grande comoos proprios confins vastissimos da Medici­na, que ele conhecia a fundo em todas assuas disciplinas: além da pediatria e da clí­nica, de que era Mestre, não o era menosem fisiologia, em microbiologia, em anato­mia patologica; foi ele o precursor, em nos­so meio, do Laboratorio como metodo dediagnostico e de pesquisas; ele foi o funda­dor e o grande animador do Instituto Os­waldo Cruz de Porto Alegre, que, sob suadireção venceu uma epoca de prodigiosaatividade, de que resultou a formação de umapleiade brilhante de discípulos amados seus'.

A mesma influencia salutar ele exerceuna direção da Sociedade de Medicina e, porexcelencia, na Catedra e no Serviço de Pe­diatria da Santa Casa, por onde se sucede­ram gerações de médicos, no afall religiosode aprender a experiencia e de penetrar a

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sabedoria do Mestre. Sem receio de errar,pode-se afirmar que com Olint,o de Oliveirasurgiu o advento da Medicina científica eexperimental no Rio Grande; ele se fez,naquele periodo aureo de sua atividade cli­llica um repos'Ítorio permanente e renovadode todas as atualidades da Medicina. Osseus discipulos encontravam na pessoa doMestre o melhor e o mais perfeito exemploa seguir; todos os atributos e faculdadespeculiares ao clinico renomado ele os poc·suia aprimorados: espirito de obs~rvação,

meticulosidade, perquirição, sagacidade, eru­dição, humanidade.

Realmente, ele foi um erudito; profundoconhecedor do vernaculoe dos principaisidiomas estrangeiros; estilista escorreU;), te­ve lampejos memoraveis nas pugnas, jorna­listicas, com vultos da eminencia de Casti­lhos; longo tempo atuou no "Correio do Po­vo" como seu critico teatral; cultor fervo­roso do classicismo artístico, foi o fundadore director do nosso Instituto de Belas Artes.

Si grandes foram os talentos do seu (~e­

rebro, menor não foi a inteireza do seu ca­racter e o primor da sua educação.

Olinto de Oliveira aparece como o Escula·pio enciclopédico que Marafíon descreve ecomenta na personalidade cientifica de Nó­voa Santos: "E' inata a tendencia, nos ho­mens inteligentes que vivem sujeitos' ao exer­cicio de uma profissão, a compensar a suamonotonia com a prática ostensiva ou o se­creto cultivo de outras atividades; essa coin­cidencia de duas atividades diversas obser­va-s'C nos homens de ciencia, com respeitoá literatura e á arte em geral; as novelas eos contos de Cajal são desenhos de Pasteur,fermatas de violino em Einstein; o instintoda imortalidade, que alenta o fundo de todoo ser humano de superior categoria, volta-secom ansia de naufrago para a creação artis­tica que, sendo excelsa, perdura para s'emprena memoria dos homens".

Referindo-se ao conceito letamendiano deque o medico que só sabe Medicina, não sabenem siquer Medicina, declara Marafion:"Mas uma ultima razão, entre as que me

ocorrem como abonatorias do caracter artis­tico dos homens de ciencia, é a vantagem douso literario do idioma para lograr uma exa­ta expressão cientifica; é evidente que umbom eS'critor, que é alem disso tambem umsábio, possue o instrumento de expressãode sua sabedoria em maior medida que aque­le que escreve obscuramente; pois, em cien­cia, a forma com que se reveste a verdade,forma parte da propria verdade; não é poisqualidade accessoria, mas sim ,eS'sencial, dobom cientista; a verdade é clara, por defini·ção; a arte da clareza é elemento cientificode primeira categoria; descrição alguma dasmolestias feita pelos medicas mais insignespóde-se comparar, em tema tão banal comoa peste dos cobaios, com a de Virgílio nosversos insuperaveis das Georgicas."

:F'ui obscuro mas fervoroso discipulo deOlinto de Oliveira; nos primeiros anos daminha juventude médica eu o admirava eprocurava seguir-lhe a sombra dos seus pas­sos, vendo nele aexcelencia da perfectibili­dade humana e o paradigma da sabedoria;hoje, no planalto da minha vida profissionalcontinuo com a mesma veneração pela suapersonalidade, que para mim avulta aindamais nos tempos presentes de frivolidadese deliquescencias, de audacia e (le presunção.

Senhores Professores da Faculdade de M,e­dicina!

Nesta hora de magna solenidade e de con­turbadora emoção em que sou investido dasinsignias titulares do Professorado, em quetransponho este sagrado Templ,o de tra­dições milenarias, cujas luzes de sabe­doria me conferem o halo incorruptivel eeterno da Ciencia e da Verdade, sinto queum mistico sopro de espiritualidade opél'aestranha transmutação em minha personalí­dade, conferindo-me a conciencia de llóvasprerrogátivas e responsabilidades, que mecumprirá manter integras e sobranceiras atodas as vicis'situdes.

Ser empossado em uma Catedra de Clínicaneste secuIa de intensa agitação renovadora

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da Medicina, constitue sem duvida o passomais grave que se possa cometer na vida pro­fissional.

Estar, porem, escalado para assumir a di­reção precisamente da In Cadeira de Clíni­ca Médica desta Faculdade, subentend,e mo­tivos ponderaveis de maiores responsabili­dades.

Designado o Professor Annes Dias paraocupar na Universidade do Rio d'e Janeirosituação mais condigna de seu excepcionalvalor, a Catedra que lhe pertencera nestaFaculdade permanecerá insubstituida,embo­ra preenchida em sua direção, porque insub­stituivel será por tempo indefinido quem tãoalto se elevou no pr'estigio da Medicina.

A IH Catedra de Clínica Médica, creadae regida pela cerebração genial de AnnesDias, fez-se, á sua imagem 'e semelhança, aviva expressão do esplendor da Medicina con­temporanea.

Na extenção e magnitude da obra cientí­fica de Annes Dias surpreende o quanto pó­de a força creadora do talento humano, emseu mais alto gráu de perfeição.

Analizar a produção cientifica de AnnesDias é estudar a sua personalidade profes­soral; ambas se confundem e se integram,para melhor reflectirem os destinos e asgrandezas da Medicina coetanea.

A contribuição de estudo e de observaçõesdo ProL Annes Dias no terreno escabrosoda hematologia clinica é deveras valiosa;em quatro lições magistrais, esgota exaus­tivamente o estudo clinico e discussão dou­trinaria da anemia perniciosa; no estudo dahemofilia propugna, desde 1921, pelo conceitoendocrino da suaetiopatogenia, no que, maistarde, é acompanhado por diversos pesqui­zadores; a sindrome de Bantie a trombofle­bite esplenica mereceram-lhe acuradas inves­tigações, quer no diagnostico diferencial dasesplenomegalias, quer nas indicações tera­peuticas da esplenectomia; a proposito d'eum interessante caso de angina necrotica, fo­caliza os problemas doutrinarios, hematolo­gicos e clinicos das leucemias agudas, da an­gina monocitica, das monocitos'es; ao capi-

tulo sugestivo das eritremias, Annes Diasfornece importante contingente de observa­ção clinica e sobretudo de erudição cientifi­ca, pondo em dia as varias correntes! patoge­nicas chefiadas por Vaquez, por Pappenheime Ferrata, por Mariano Castex que sugere apatogenia diencefalica da policitemia d·eGeisbock; refere o papel importante do ba­ço no metabolismo eritrocitíco e a interven­ção fisiopatologica do sistema reticuloendo­telial atravez da interferencia de um factorde localização diencefalica, conferindo ássindromes eritrocitemicas uma concepção deinsuficiencia reticulo-endotelial; em tornodas sindromes hemodigestivas, das sindro­mes entero-anemicas, do sprue, chama aten­ção para o misterioso parentesco entre ane­mia perniciosa, sprue e pelagra, embora to­dos de etiopatogenia obscura e discutivel.

Em notavel observação clinica sobre umcaso de hemocromatose, põe em relevo a par­ticipação da suprarenal na cirrose pigmentarou diabete bronzeado, hoje mais propriamen­te designado por hemocromatose; faz um es­tudo aprofundado da siderose visceral, in­vestiga as origens dos pigmentos normais epatologicos, indaga sobre a hipotese de sera hemocromatose uma reticuloendoteliose,pondo em paralelo a similitude da doençade Gaucher; lembra o conceito de Brugschsobre disturbios de m€tabolismo marcial.

Em duas memoraveis lições sobre amiloi­dose, a proposito de um caso clinico ilustra­do com completissima documentação de la­boratorio, de anatomia patologica e de ne­cropsia, Aunes Dias tem magnificos ,ensejosde revelar variados aspectos de sua imensacultura médica; põz em pratica, para elu­cidação diagnostica, a prova de Bennhold ouprova de vermelho Congo e faz completo 'es­tudo da sindrome humoral; considera a ami­loidose como um estado catabolico das al­buminas organicas por um disturbio do sis~

tema reticulo-endotelial. No decurso de suaslições originais, oferece Aunes Dias a pri­meira contrilmiçào em nosso meio sobre oproblema empolgante das hipoglicemias eg­pontaneas e da infancia, chamando atenção,

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Com o amparo de copiosa estatística, paraas sindromes nervosas, psiquicas, vago-sim­paticas, motoras, digestivas, respíratorías,GanHo-vascular, 611cefalícas, extrapiramidais,comatosa, e na criança para as' convulsõese vomitos ciclicos; "toda vez que convulsõessobrevêm no descurso de um estado de des­nutrição, ter em vista a possibilidade de umahipoglicemia;" na etiopatogenia das hipo­glicemias espontaneas a insuficiencia supra­renal e os centros diencefalicos têm papeldestacado.

Assume proporções extraordinarias a cola­boração de Annes Dias na patologia renal;no estudo do metabolismo clinico da creati­nina, suas ideias sobre o valor prognosticoda hipercreatininemia, paralela ou dissocia­da da hiperazotemia, sobre o papel da hiper­creatininemia na uremia convulsiva, são do­minantes no conceito da. clinica.

No estudo das nefropatias cronicas, segun­do a orientação das escolas alemã e francesa,detem-se profundamente nas pesquizas meta­bolicas dos protides, lipides e dos sais, e nasindrome aciclosica.

Na nefrite azotemica encarece a importan­cia da hiperazotemia, da hipercreatinine­mia, da calcipenia e da acidose.

A sindrome de acidose das nefrites croni­cas constitue materia debatida com profi­ciencia e até mesmo com oontribuiçõespessoais de Annes Dias, que considera ossapinhos, o soluço, a paresia vesical e aparalisia intestinal como manifestações daacidose. Com relação ao prognostioo dasnefrites cronicas, admite o conceito de doen­ça do organismo e não afecção do ,orgão,mostrando as dificuldades em fixar comsegurança o prognostico exato em cada caso.

E' das mais notaveis a contribuição origi­nal de Annes Dias no estudo clinico da aci­dose,em que foi o primeiro a chamar aten­ção do mundo médico para a significação dosapinho, do soluço, da sindrome peritonealna febre tifoid'e e na disenteria; faz a clas­sificação' das formas clinicas em digestivas,respiratorias, nervosas, siderantes" cardiacase peritoniais.

Sobre a controvertida questão da azote­mia cloropenica, Annes Dias faz a criticada teoria de Blum, que contesta, propondoa sua concepção, que condiciona a cloropeniaao catabolismo azotado: o organismo fazpassar aos tecidos o cloreto de sodio neces~

sario á proteção das albuminas, histicas;estuda as qualidades citofilaticas do cloretode sodioe considera a perturbação azotadacomo predominante na azotemia cloropenica.

Estudando as trocas c1oroazotadas napneumonia, afirma que a retenção salínatraduz um profundo desequilíbrio metabo.lico, como meio de defeza contra a desinte­gração azotada, propondo a injeção intra­venosa de soro hipertonico na terapeuticada pneumonia.

Annes Dias foi, em nosso meio, o pre­cursor e o vulgarizador do estudo clinicodas sindromes vago-simpaticas com parti­cular atenção ás perturbações cardio"vas~

culares de origem lleUro-Vegetativas, ás)

reações neuro-glandulares da infancia, aoestudo clinico da vagotonia e reações vago­simpaticas.

Aendocrinopatologia foi igualmente oh­jecto de numerosos estudos, como sejam,por exemplo, as desordens digestivas deorigemendocrinica, estudo da facies emendocrinologia, gigantismo acromegalico.

Avulta ainda mais a colaboração do Pro'­fe8'sor Annes Dias na patologia gastroduo­denal, de que ele deve ser considerado oseu inspirador, por vezes com notav,eis con­cepções originais. Ele esgotou o estudo cli­nico do duodeno, cujos trabalhos se con­tam pelos seguintes titulos: alguns aspec­tos da patologia duodenal, dilatação duo­denal cronica, estase duodenal e periduo­denite, auto-intoxicação de origem duode­nal, as manifestações dolorosas nas afec­ções duodenais, enxaqueca duodenal, sobrecertas repercussões renais e metabolicas daestase duodenal, colica duodenal.

Ninguem como Annes Dias estudou entrenós a patologia gastrica; são notaveis ossens trabalhos sobre patogenia da ulcerapeptica, papel do sistema nervoso na pato-

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genia e na evolução da ulcera gasüo-duo­donal, sobre gastl'ite peptica e sua relaçãoeom a uleerae o cancer, sobre cancer doestomago e ulcera-cancer.

Estas rapidas referencias, mais de titulasque de substancia, servem apenas para lemobrar o volume e a amplitude da materiaprincipal contida nas cinco series de Liçõesde Clinica Médica, de Annes Dias; servemapenas para permitir uma impressão geralsobre os grandes e variados dominios daMedicina penetrados, desbravados e ilumi·nados pelo genio vigoroso e fecundo doMestre incomparavel; servem tambem parademonstrar com evidencia o relevo cientificoque ele imprimiu ao destino da Catedraque tão alto dignificou, honrando os seuscompromissos e enaltecendo, com invulgarsignificação, o prestigio da Medicina patria.

Annes Dias, homem de ciencia, chefe deE'scola, Mestre da Clinica, é, dentro do Paiz,um nome nacional, e nos cultos centrosmédicos americanos e europeus seu vultose destaca como um dos simbolos proemi­nentes da Medicina contemporanea.

A Providencia, sendo absolutamente jus­ta, foi-lhe prodiga na equanime distribui­ção de talentos e de virtudes; fêz-Ihe tãogrande e magnanimo o coração quanto pro­digioso e fertil o cerebro privilegiado, dan­do-lhe o dom do equilíbrio de forças e degraças, que tornam o homem superior ásua condição terrena.

Em Annes Dias se ajustam com perfeiçãoos conceitos filosoficos de Pytagoras, ins­critos pelo genial precursor da Matematicaem seus memoraveis versos d'e ouro:

Que jamais o sono cerre tuas palpebras,Sem teres perguntado: o que omiti, o que

[fiz?Desde o teu despertar, examina com calmaO que te resta por fazer, o que ainda tens

[que cumprir:

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Si fôr para o mal, te abstem; si para o bem[persevera.

Poucos sabem ser felizes: joguetes das pai·[xões,

A mercê das ondas adversas,Sobre um mar sem praias se debatem ce·

[gamente,Sem poder resistir nem ceder á tempestade.Deus, tu os salvarás decerrando-Ihes os

[olhos,Mas não, eles são humanos, de divina raça,Que o erro discernem e vêm a verdad'e.A natureza os serve e tu que a tens pene·

[trado,Homem sábio, homem feliz, respira no por­

[to,Deixando que sobre o corllO reine a inteli­

[gencia,Afim de que, elevando-te pelo eter radiosoAo seio dos imortais, sejas um Deus tu

[mesmo.

Parafraseando o conceito de Maurice deFleury, que afirmou ter tido a Medicinatresepocas: a de Hipocrates, a de Pastem'e a de "Vidal, poderiamos dizer que a Medi·cina no Brasil marcará o aureo periodo desua evolução com a época de Annes Dias.

Estudar a vida e a obra cientifica deAnues Dias é elevar-se á culminancia daatualidade para penetrar profundamentenos problemas mais momentosos e trans­cendentes da Medicina hodierna; é passaraos olhos, em panorama calidoscopico, asucessão tumultuosa desse constante reno­var de conhecimentos e dessa incessanterevelação de id'eias e concepções originais,que realizam o progresso da ciencia e a

evolução da humanidade.

Fazer um juizo relativo do estado con­temporaneo da Medicina não é tarefa facilpara alguns d'Ccenios de estudo.

Vislumbrar as perspectivas empolgantesda Medicina porvindoura que se esboça edelinea no ambito esfumado das hipotes'esde trabalho, com revolucionarias consequen­eias para o progresso da Ciencia, já cons-

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titue objecto de exaustivas cogitações doespirito moderno da Medicina.

Ser Professor de Clinica Medica é ensinarMedicina.

Para ensinar Medicina, correspondendo:1S precipuas finalidades do magisterio, énecessario levantar os olhos do passado ·edetê-los no presente, com incidencias deseus raios penetrantes sobre os horizontesdo porvir.

Quem não proceder assim, quedará sub­merso na estagnação da inercia invencivel,soterrado pela avalanche do progresso quese avoluma sem cessar, em continuo movi­mento de renovação e de reintegrações.

René Leriche, que é incontestavelmenteuma das' figuras mais empolgantes e pres­tigiosas da ciencia médica de nossos dias,proferindo na Sociedade Real de Medicinade Gand notavel conferencia sobre "Asorientações proximas da Cirurgia", iniciouo exordio de sua magistral oração com aexposição de conceitos sobre as atuais ten­dencias da Medicina que sancionam comeloquencia e excepcional autoridade o nossopensamento com respeito á necessidade dese propugnar por uma n{)va mentalidadeno ensino da cienci?c médica.

Assim discorre o eminente cientista fran·cês:

"Pensei que a melhor· maneira de cele­brar um centenario como este fosse vol­tando nossos olhos para frente e não paratraz de nós; pareceu·me que o melhor meiode permanecer fiel á ideia dos fundado­res desta Sociedade fosse a de um esforçoem pensar no futuro. Cem anos de Medici­na! Que inaudita subversão na concepçãoda Medicina neste seculo; tão grandes têmsido as suas renovações' que mal compre­endemos que o destino da Medicina não sehaja fixado para sempre. Embora habitu­ados a vêr tudo mudar no mundo, nós, oshomens de 1934, supunhamos que só sepoderia marchar pelo sulco tão rectamentedelineado e tão longe conduzido pelo geniopaeteuriano. Entretanto, eu me pergunto sinão seria melhor ensaiar uma modificação

14 R, C,

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na concepção dos fatos e sugerir de outrafórma que a atual a solução de alguns pro­blemas. Crêde, em verdade, verosimeisemtodo o imenso dominio da patologia a leide PasteUl'e a disciplina morgagniana '? Alei pasteuriana nos ensina que o mundodos infinitamente pequenos domina o num­do doS' homens e rege os incidentes de suavida. Com ela admitimos que a maior par­te das molestias provêm do exterior. Nãoposso aceitar esta resignação apatica.

E' possivelque outras concepções sirvamcomo hipoteses de partida. Penso que asmolestias possam ter suas causas em espon­taneos desregramentos fisicos ou quimicosda nossa natureza".

Reportando-se ás tendencias modernas deMedicina no sentido do conceito electroni­co da vida, Nicolas Capizzanoescreveu hapouco tempo os seguintes conceitos: A me­dicina sofreu a metamorfose que lhe im­puzeram os descobrimentos da Quimica, dasMatematicas e da Fisica; a Medicina semodifica á medida que evoluciona o concei­to da materia.

O secuIo XX viu morrer a teoria atomica:os fisicos contemporaneos concebem a ma­teria como um conjunto electronico on co­mo uma manifestação da energia radiante.A Medicina não poderia escapar ao influ­xo des'sas ideias. A Medicina deste seculotem que ser essencialmente diversa da qnetemos praticado até hoje. Já não satisfaza explicação dos procesos vitais e patolo­gicos como alterações anatomicas ou qui­micas. A moderna mentalidade cientificaexige uma interpretação electronicae ene1'­getica dos processos biologicos.

Para seguir a Medicina moderna de acor­do com as novas ideias da Fisica é n8ces­sario que cada Medico adquira uma baga­gem de conhecimentos que as Escolas Me­dicas ainda não puzeram em circulação. Oorganismo é um microcosmo dentro do cos­mo universal; o equilibrio de forças e eleação entre ambos dá a sande; seu desequi·líbrio a doença; seu rompimento integrale definitivo é a morte.

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Vêde que a física contemporanea e acirurgia moderna acompanham pari pas8'Uo espirito reformador da Medicina clinica,consorciando-se em sinergico anseio de nó­vos horizontes, mais claros e mais pos-iti­vos, na solução da patologia humana.

Esta tem sido a orientação e o criteriode estudo e de ensino do Professor AnnesDias; esta foi a directriz brilhante da lUCadeira de Clinica Médica, sob a direçãodaquele Mestre.

Assim como Leriche apregoava ao centromedico de Gand que o melhor processo decomemorar, hoje em dia um centenario de·corrido na historia da Medicina, é o delevantar os olhos para o futuro e não parao passado, eu vos diria que as produçõescientificas sábias'e numerosas do Profes­sor Annes Dias são um caminho abertoe luminoso para os dominios vastissimosda Medicina coetanea.

Não se vislumbre, todavia, nesta orien­tação de encarar de preferencia o futuro,como proposito iconoclastico de faz'er tabuaraza da tradição de ensinamentos e de ver­dades, em grande parte indefectíveis' e pe·renes na sustentação do progresso que secontroe e se eleva sobre o seu fundamentoimlerrocavel. E' meditando sobre as luzesdo presente e sobre as perspectivas do fu­turo que melhor se compreende o es'piritode genial intuição da Escola hipocrática;á luz das nóvas concepções de tantos pro­blemas de atualidades médicas tem-se a5urpreza de reconhecer que essas verdadese interpretações já haviam sido vislumbra­das e descritas pelos genios da primeiraidade da historia da Medicina.

Ainda recentemente, ocerebro maravilho­so de Marafíon anunciava ao mundo, emnóta previa, a sua concepção hormo-sexualda patogenia da gota, demonstrando expe­rimentalmente e pelo argumento terapeu­tico a eficiencia da opoterapia ovariana nacura das crises agudas de hiperuricemia,que por assim dizer são apanagio quasi ex­clusivos do homem viril. Pois bem, essasideias, por certo surpreendentes e ineditas,

nada mais são, segundo Marafion, do quea significação experimental dos sabioa afo­rismas de Hipocrates.

Entretanto, é mister não se deixar ar­rastar para o outro extremo, quedando-seentorpecido e chumbado nas amarras darotina obstinada.

Mesmo em ciencia, ainda a melhor ati­tude é aquela que se deve guardar no ca­minho do dever: cabeça erecta, os olhospara cima e para frente; essa é, por certo,a unica posição compativel com a marchaascencional na vida, seja do espirito oudo corpo.

Parece-nos que um Professor de ClínicaMédica, mais que qualquer outro, tem odever de estar em dia com a evolução e oprogreso da Medicina.

Si ele não adquiriu os elementos de pre­paração e de cultura cientifica para se in­tegrar na plenitude dessa solicitação, cêdoou tarde terá que renunciar aos misteresdo ensino, por não corres'ponder ao desem­penho da sua missão de orientador de men­talidades.

A finalidade de um Professor de ClínicaMédica não se deve cingir á tarefa, porcerto basica, de educação do jovem estudan­te na arte de examinar o doente e na ciell­cia de interpretação do caso morbido. Com­pete ao titular da Catedra a obrigação for­mal de plasmar a mentalidade do educandonas directrizes supremas da ciencia atuali­zada, sempre nóva e plena de aquisiçõesrecentes e complexas.

Meditando sobre os mais recentes traba­lhos nos diversos capitulos da Medicina,observa-se que ha uma tendencia ou mesmofranca afirmação no sentido de reformar oespirito até agora dominante na concepçãoda molestia e da propria vida. Urg,e derro­cal', por insubsistentes e nocivos, preconcei­tos e dogmas que já não satisfazem á anali·se e á perquirição dos fatos, examinadossob o prisma da ciencia atual. Fi uma ne­cessidade corrigIr i€ amplii~icar conceitosrestrictos e retrogrados que ainda prevale­cem em torno de questões elementares da

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Medicina. E' forçoso um movimento salu­tar e vigoroso de saneamento intelectual,por uma educaçfw científica mais seria emais honesta, capaz de formar personalida­des á altura do seculo de civilizaçftO quea humanidade atravessa. E' preciso, entre­tanto, não escurecer ou negar que paraexig"ir, necessario se faz propiciar os ele­mentos frutíficac1ores, do ~',azonamento (Ü1

bôa semente.

No meu estudo de preparação para o re­cente concurso ele Clinica Médica, tive sem­pre, cada dia e a proposito de qualquer as­sunto, a preocupação angustiosa de apro­fundar o conhecimento de cada questão emdebate, e, assim, passei a compreender e ajulgar de acordo com um criterio mais am­plo e mais exato a essencia dos fenomenosmorbidos.

A medida que avançava, cada dia, em ter­reno novo e mais transcendente, eu sentiaa necess-idade de alargar sempre mais oslimites da. investigação, procurando inter­pretar os sintomas e as molestias sob umponto de vista mais elevado, mais amplo.mais profundo e mais cientifico.

Desta sorte, fui sendo naturalmente con­duzido a s,ubstituir noções restritas ou ele­mentares por fenomenos gerais e mais pro­fundos; a não me satisfazer com o esqu8­matismo chamadtl didactico com que oscompendios de patologia interna descrevemem capitulos isolados e autonomos, comosi dentro de suaS' paginas se contivessemos limites do assunto, questão da mais ab­soluta complexidade eextenção.

Assim, abandonei por absurda e erroneaa preocupação de investigar na lesão oualteração funcional de um orgão a causa ouexplicação de um sintoma ou de uma mo­lestia; é inadmissivel que s'e procure di­1'ecta ou exclusivamente no rim a razãode ser de uma albuminuria, de um estadoedematoso, de um proceso de hiperazote­mia, de uma erise de eelampsia, de um

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quadro de uremia, de um desfecho de co­ma; quando se sabe que a albuminuriapode ser uma manifestação pura e exclu­siva de uma alteração do metabolismo lí­

poidico; que o edema, superficial ou pro­fundo, lacunar ou viseeral, circunscrito ou

, generalizado, pode ser um indice de cata­bolismo proteico ou expressão de uma 811n­

pies insuficiencia hepatica, ou ainda üeuma disfunção endocrina; que uma crise deeclampsia é, muitas vêzes, consequencia deestados angioespastieos por hipertonia vas­cular, que se deve investigar ou surpreen­der com oesfigmomanometro e não como albuminimetro; que as hiperazotemiasextrarrenais são frequentes e atestam antesuma disfunçào hepaticaü:u, aexistenciade um fóco de proteolise anormal do quemesmo um estado de insuficiencia de con·centração renal; que os quadros uremicos['; os estados comatosos podem decorrer deuma grave claudicação do figado, sem maiorresponsabilidade do rim.

Deve-se substituir o conceito de org·ã.opelo conceito de sistemas de orgãos ou deaparelhos.

O diabete sacarinico não é uma molestiado orgão pancreatico, mas de um imer180 ecomplexo sistema, de que o pancreas' in·

sular constitue uma parte importante; odiabete sacarinico é uma reticulo-enc1ote-

I líose.Assim como as glicosurias, si não se

acompanharem de catabolismo glucidio, na­da têm que vêr com o pancreas.

As glomerulonefrites agudas s,ão molos­tias gerais do sistema capilar com localiza­çãoelectiya sobre o parenquima renal.

Por isso mesmo, é um erro pretender-seexigir de uma prova funcional informaçã.oisolada da função de um orgão, quando ofuncionamento normal ou patologico desseorgão depende de causas gerais ou s'e fazem estado sinergico COlll outros muitos.

Assim se compreende que sempre sejamfalhas e discutiveis as claf?sificações, quese ensaiam das doenças de um orgão, comosejam, por exemplo, todos 08 ensaios de

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classificação de nefropatias, de icterícias',de purpuras, de estados anemicos, etc.

Já não satisfaz ao clinico moderno, quecogita de diagnostico precoce, o conceitoanatomopatologico da molestia; esta deveser surpreendida antes que a lesão se te­nha processado.

No estadio de maturidade em que se en­contra a inteligencia médica, pode-se semperigo admitir que ha casos em que a per­turbaçito funcional crea por si só a lesão,e que esta, em certas circunstancias, é ape­nas um testemunho contingente. A sinto­matologia clinica é mais de ordem fis,iolo­gica que anatomica. A lesão é muitas vezeso fruto da molestia e não a causa primeirados sintomas. Inicialmente, as molestiassão molestias de tecidos ou de sistemas enão molestias de orgãos. Antes de exis,tirclinicamente, no sentido habitual da pala­vra, uma molestia tem uma longa fase si­lenciosa, que corresponde ás primeiras eta­pas da molestia do tecido, que precede amolestia do orgão.

Na historia natural das molestias, a faseclínica é apenas a fase terminal.

Rematando esses conceitos da maior atua·lidade na concepção de molestia, Lericheafirma que "isso nos exorta a fazer umexame de conciencia a respeito do dogmamorgagniano" .

Outros conceitos revolucionarios amea­çam derruir as colunas mestras da doutrinaclassica.

Longe a epoca do conceito anatomico damolestia; já passou tambem em desuso o dog­ma de que as molestias devam tem sempreuma causa estranha, microbiana ou ou­tra. Hoje prevalece o conceito humoral, emtorno de disfunções nas secreções endocri­nas. "Só os vicios humorais são capazes dedesregular assim á distancia a harmoniada vida dos, tecidos e dos orgãos."

Simples distonias neurovegetativas, deordem reflexa, sem intervenção de factorinfeccioso ou inflamatorio, e sem o minimosubstrato anatomico, são suficientes pararealizar sintomas ou sindromes funcionais.

São bem conhecidas as sindromes cole­docianas por hipertollia do esfíncter deOddi; processos morbidos por estase ve­sicular, em cOl1sequellcia ele distonias vago­simpaticas, dando as disquinesias angioco­lecistopaticas; recentemente, em interes­sante trabalho, o Professor Escudero descre­ve o segundo caso, verificado em sua clí­nica, de uma sindrome de ictericia que elecatalogou de ictericia funCÍonal, por não seenquadrar em nenhuma concepção de afec­ção organica.

A escola alemã, com Westphal, paz porterra o conceito classico da etiopatogeniadas hemorragias cerebrais; não é neces­saria a intervenção de uma ruptura arte­rial, nem siquer um estado de esclerosedo vaso sanguineo; basta que se instale nosistema capilar um process'o de angioespas­mo, para que posteriormente se realize umadiapedese €ritrocitica que culminará nascondições anatomicas determinantes dassindromes clinicas de hemorragia cerebral.

Um simples estado de hipersecreção demuco vesicular, sem causa infecciosa nemlesão organica, pode ocasionar o grandt~

quadro da colica hepatica, típica dos pro­cessos de colelitiase.

A fisiologia nos ensina a interrelação si­nergetica de orgãose sistemas na consu­mação dos fenomenos naturais da vida eno desencadeamento dos sintomas morbi­dos.

" Tal orgão, em sua função motora, sófunciona si lhe é favoravel seu clima hUmo­ral, o qual, por sua vêz, depende do orgãovizinho".

O complexo mecanismo de interdependen­cia funcional de orgãos reunidos em siste­mas póde ser perturbado pela intercorren·cia de reflexos condicionais, que ocasionamá distancia disturbios ou desregramentos.

"Porque haveremos de não reconhecerno campo da patologia este plano geral deorganização da vida?"

Este conceito de interrelação organicaautoriza a suspeitar que numerosas moles-

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tias têm suas origens de secreção de glall­tIulas, anatomicamente normais.

Como comprovações experimentais e cli·llicas dessa nova concepção da molestia,Leriche refere as taquicardias com palpita­ções, extrasistoles e até mesmo estado defibrilação, com ou sem crises anginüsas,que apenas traduzem estados frustosouatenuados de hipertireoidismo; as pertur­bações vasomotoras de origem simpaticareflexas de uma emoção, de uma sensaçãode frio; a hipertensão solitaria cedendo asuprarenalectomia de uma glandula histo­logicamente normal; os estados de calei­penia grave ocasionando hipertrofia adeno­matosa das paratireoides; um simples graude hipersecreção da prehipofise creando asindr.ome do adenomacortico-suprarrenal,com formação de adenoma desta glandula;Cusching injetando diariamente extrato dolobo anterior da hipofise em um cão creouum enorme especimen acromegalico; é pro­vavel que os adenomas e tumores benignosprovenham de desequilibrios humorais, ain­da desconhecidos; a simples excitação dociatico determinando crises de epileps'ia; aulcera gastrica não é uma molestia do es­tomago, pois pode ser a um tempo gastricae duodenal, primitivamente ela não é umal110lestia de orgão, mas de uma região compropriedades especiais e, provavelmente, deum tecido ou de glandulas de muco; a ci­rurgia do tecido conjuntivo permite hojea cura de atrofias cutaneas, de escleroder­nlias."

Em memoravel dis'Curso sobre as orienta­ções da Medicina, Widal já havia dito quea celula não é mais para nós essa unidadeatraz da qual deveria se deter para Virchowa analise dos atos patologicos. Ela temcomo um organismo verdadeiro funções deprodigiosa complexidade, que a fisiologianos revela e que a histologia mais fina éincapaz de desvendar. A anatomia patolo­gica resolve um problema de topografia e

de estatica, mas permanece muda em fa­ce do problema dillamico (Wida!).

Em 1930, Mariano Castex proclamava ni'toser mais possivel suS'tentar a especificidadee a fixidez das bacterias, achando-se fran­camente periclitante o conceito dogmaticoda especificidade microbiana.

Aliás, só em aparencia a doutrina micro­biana conseguiu derrocar 20 seculos da con­cepção de Hipocrates sobre o humorismoe constituição epidemica.

A par dos estados de avitamilloses, sur­ge hoje o conceito moderno das hipervita­minoses: a injeção em doses excess'ivas deVogan (vitamina A) produz deformaçõestoracicas, rarefação e fragilidade ossea, des­calcificação e hipercolesterinemia, sindro­me similar ás osteites fibrosas secundariasao adenoma das paratireoides.

MararlOll afirma ser provavel que a corti­cal suprarrenal tenha sobre o metabolismodo sodio e do potassio uma ação reguladorasemelhante á da tireoide sobre o metabo­lismo do iodo e á das' paratireoides sobreo metabolismo do calcio; de acordo comesse conceito Marafíon conclue que nos es­tados de insuficiencia suprarrenal se jus­tifica o tratamento pelo sal, pois o sodioé um poderoso fixador da opoterapia corti­cal. O desequilíbrio natrio-potassico é umfator de deshidratação na sindrome deAddison que terminará em acidose; graçasá injeção de sodio se restabelece o equili­brio e se suprime a acidose.

Tende-se hoje a modificar o conceito deinsuficiencia hepatica; nem todas as per·turbações desa glandula ou aquelas de or­dem metabolica que dela dependem signi­ficam estados cle insuficiencia, mas pelocontrario podem atestar situação antitetica,ou seja de hiperhepatia.

Impõe-se cada vêz na gellese de certasmolestias o conceito de disfunção, que nemé insuficiencia nem hiperfunção, mas tãosómente desvio ou perversão funcional.

Como uma reação libertadora do primi­tivo conceito da fisiologia classica, que as­sentava sobre uma orientação anatomica ou

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organiea, defende-se, hoje a autonomia doscomplexos endocl'inos com fundamento napluralidade de hormonios isorganicos. Estanotavel concepção da moderna fisiopatolo­gia vem fazer luz sobre o complexo meca­nismo de regulação das constantes fisioló­gicas, tais como glicemia, azotemia, clore­temia, equilíbrio tencional, equilibrio aci­do-basico, etc. que outrora se levavam á

conta da intervenção dos chamados limia­res organicos, que hoje não resistem aoconceito de sistemas ou complexos funcio­nais.

Em notavel lição inaugural da Cadeirade Metabologia, na Universidade do Rio deJaneiro, o Professor Annes Dias traçou mo­numental panorama do conceito metabolicona patologiaclinica. Atravessamos' nestemomento - declara Allnes Dias o pe­riodo fisiologico da 1'1)1edicina e uma coisaimporta, sobretudo, 6 a analise funcional elodoente; essa verdade avulta nos dominiosdo metabolismo; novas' perspectivas se des­cortinam, todos os dias, atravez das revela­(;ões surpreendentes da físico-quimIca ,e dabioenergetica, dando impressão de que a lVle­dicina entrou numa fase altamente cientifi­ca. E' mister que o capitulo da patologiametabolica se alce á altura dos progressos dabioquimica e da energetica humanaBJe quetenham um fundamento humoral. A metabo­logia abrange o estudo do sistema vegeta­tivo, do aparelho reticulo-endotelial e todasas questões da fisico-quimica do organismo.O diabete é uma molestia metabolica, emque pancreas, diencefalo, figado, suprarre­nal, e talvez baço e sistema retículo-eudo­telial se acham em jogo. Os hormonics têmnotavel influencia metab,)1íea. O mixedemaé um disturbio metabolico; é o tipo clinico:mais acabado da nutríçào retardada. A pre­hipofíse segrega hormonio regulador dometabolismo dos lípides e dos' glucides.Mais adiante, Annes Dias se refere ás va­gas sensações primarias, expressivas rIo de­sequilíbrio funcional; aos reflexos visceraise ás correlações hormonicas como base docapitulo da patologia inter-organica, em que

se destacam as 8i11d1'o111es hepato-panc1'ea·ticas, entero-renais, gastro-colícas, d.uode­no-renais, espleno-hepaticas, hepato-lentlcu­lares, hipofíso-genítais, gastro-cardiacas, etc.Cita como disturbios metabolícos as 11ipo­glícemias, a colinemia e provavelmente asavitaminoses e hipervitaminoses.

No capitulo das reticuloendotelíoses An·nes Dias inclut; a nefrose lípoidica, as doen­(;as de Gaucher. de Niemann-Pick, deChristian-Schüller e a amiloidose.

Na contribuição brasileira ao estudo dasreticuloendotelioses sobreleva-se a notave1conferencia do jovem e brilhante cientistaHelion Povoa sobre a Linfogranulomatosemalígna ou morbus Hodgkin-Paltauf-Stern­berg, que ousamos recomendar aos estu­diosos como uma soberba sintese de atuali­zação desse dificil capitulo da Clínica Mé­dica.

Annes Dias avança mais esse notave1conceito de que a electrollica celular é hojecapitulo que avulta na fisiologia organica;a fisico-química está destinada a exercermarcada influencia no avanço da Medicina.Neste momento em que porfiadamente sebusca o diagnostico precoce das doenças, édessa analise dos processos metabolicos quepódem resultar novas e decisivas aquisi­ções. Estuda ainda ü grande Mestre a in~

tervenção da metabologia não só nas moles­tias cronicas da nutrição mas ainda nasmolestías infecciosas e parasitarias: febretifoide, malaria, pneumonia, deduzindo con·clusões importantes para o diagnostico epara a terapeutica. Encerra sua magistralconferencia com estas palavras: "Mil hipo­teses de trabalho encontrareis ao percorrer­des o terreno da metabologia".

A portentosa contribuição científica deAllnes Dias não seria completa si ele nãohouvesse, como fez, penetrado no misteriosomundo das forças cosmicas para de lá ex­trair interessantissimo capitulo de patolo­gia, com fundamento no conceito elec!roni­co da materia. E'm 1933, proferia AnnesDias curiosa conferencia sobre os ritmos nanatureza e no organismo, em que afirma

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que ondas electricas penetrantes sulcam emtodos os sentidos a terra, produzindo cons­tante vibração na grandiosidade do univer­so; que a carencia da luz solar, que é oestimulante maximo da vida, produz as do­enças da sombra; que a lei do ritmo do­mina o universo; que as doenças da som·bra, por carencia de luz, realizam o ritmodiario, correspondente á rotação da terra, eo ritmo anual, em que se evidencia a in­fluencia das quatro estações ; rememora asquestões palpitantes da meteriologia cli­nica, alude á patologia da madrugada, des­creve o ritmo nictemeral da electricidadeatmosferica, chama atenção para o caracterritmico das grandes' funções organicas, so­bretudo de ordem endocrina, destaca a in­fluencia das esbções em patologia, relataa influencia dos fatores mesologicos sobreo biotropismo, compara o vento norte doRio Grande ao siroco da Italia e ao ventodo Mydi na França; abre um interessantecapítulo para as relações cõsmo-organicas',em que estuda a curva de temperatura.

No recente livro de Du Bois sobre Fisio­logia e Fisio-patologia do Sistema Retículo­Endotelial, ha um capitulo sobre as provasfundonais baseadas na propriedade de fixa­ção vital em que Saxl, Donath, AdIeI' e Rei­mann investigam a fisiopatologia do siste­ma reticulo-elldotelial; destaca-se desse im­portante compendio de Du Bois o interes­sante capitulo sobre o sistema retículo-en­dotelial no metabolismo dos pigmentos fi­siologicos, em que a escola japonesa comSakaldbara apresenta a mais notavel con­tribuição cientifica, de caracter experimen­tal, sobre o controvertido problema do me­tabolismo da bilirrubina, comprovando de

maneira irretorquivel, á luz da experhnen­tação, que a degradação catabolica da he­moglobina se processa fundamentalmenteno territorio do sistema reticulo-endoteliaL

No decurso de outros capitulos é estuda­do o papel decisivo do sistema reticulo-en­dotelial no metabolismo dos lipides, dos M­drocarbonados, no metabolismo da agua edas albuminas.

Oonstituem assuntos de palpitante atuali­dade as relações' do sistema reticulo-endote·lial com os problemas da imunidade e aler­gia.

Longe seria ainda conduzido neste sim­ples ensaio de traçar as fronteiras amplís­simas dos novos dominios da Olínica Mé­dica, si, com censuravel menoscabo da to­lerancia por certo ultrapassada da vossacomplacencia, pretendesse eu invadir ou­tros departamentos e outras diretriZies,tambem de momentosa atualidade.

Tive tão s'ómente a superior cogitaçã,ode apresentar-vos, em linhas gerais e malconcertadas, um aspecto da monumentalcontribuição de estudo e de trabalhos cien­tificos que assinalou a passagem grandiosado Professor Annes Dias pela lU Oatedrade Olinica Médica.

Ao ser eu investido em sua posse, tomopor compromisso, perante a minha concien­cia e sob o vosso testemunho, que tudo fa­rei por ser digno da tradição deixada porAllnes Dias no ensino de Olinica Médicada lU Oadeira.