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  • UM ESTUDO SOBRE AS MEDIDAS PROVISRIAS NO BRASIL-

    Carmem Arias Mestranda em Cincias Sociais

    na Universidade Estadual de Londrina

    Resumo

    Neste artigo pretendemos ana lisar o significado polftico assumido pelas medidas provisrias no Brasil. Os amplos poderes legis lativos do presidente demonstram a fragilidade da democracia brasileira, e o grande nmero de medidas provisrias cons titui-se uma evidncia da invaso, por parte do Executivo, das atribnies do pock r Legislativo.

    PII/m'raS-c!UII'e: democracia brasileira; medidas provisrias; Executivo e Legislativo.

    Na idia de democracia que surgiu no Brasil no perodo ps-regime militar est implcita uma ntima relao com os conceitos da democracia liberal, a qual resulta da fuso que se deu no sculo XIX entre as idias de democracia e de liberalismo, e que, em linhas gerais, defende como valores universais a liberdade individual, a igualdade legal e a representao poltica dos cidados, Vale dizer que a teoria poltica liberal constitui-se um modelo que se reflete tanto na ideologia dominante no mundo contemporneo como tambm na forma de representatividade poltica instituda na maioria dos Estados modernos, incIundo o Brasil.

    Como notrio, so vrias as dificuldades encontradas pelos Estados contemporneos para fazer com que estas duas exigncias

    "'0 texto uma adaptao da monografia O autoritarismo /lO t/,{{/lsio democrtica !J/'{/si/('im: 1/11/ estudo sobre os meclie/as provisrias, apresentada como trabalho de concluso do curso de Cincias Sociais - habilitao Bacharelado, da UEL, em dezembro de 2000, sob orientao da professora Maria Jos de Rezende.

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    lintar e distribuir o poder - sejam cumpridas. Num pas que apenas recentemente conseguiu sair de um regime autoritrio, como o caso do Brasil, tais dificuldades so ainda maiores . nesse contexto que tentaremos analisar a questo das medidas provislias, a qual, em nossa opinio, reflete a dificuldade do Estado brasileiro de liotar e distribuir poder. A especificidade da nossa arena institucional, a que se caracteriza por uma tnue diviso entre os poderes Legislativo e Executi vo e por uma relao tipicamente desigual entre estes doi s poderes, contribui para que o Executivo continue mantendo a sua supremacia sobre o Legislativo no Brasil.

    Assim, para que possamos extrair algumas das especific idades da poltica brasileira contempornea, pretendemos trabalhar com alguns dados empricos, principalmente no que se refere s medidas provisrias editadas ou reeditadas pelos diferentes governos institudos desde a Constituio de 1988.

    O estudo do conceito mais usual de democracia, o qual se fundamenta numa idia de institucionalizao do regime representati vo e, por extenso, do espao eleitoral, constitui-se um impOltante instrumento para a compreenso da organizao da moderna poltica nacional e para a anlise da natureza do Estado que se firmou no Brasil na fase posterior "transio democrtica" brasileira.

    Visto que as medidas provisrias constituem-se um dos principais instrumentos institucionais garantidos pela Constituio ao chefe do Executivo, gostruiamos de deixar claro, desde j, que, para compreender as reformas institucionais que permearam a fa se que se convencionou chamru de "transio democrtica", teremos, necessariamente, de seguir pelo vis institucional de anlise.

    Aspectos gerais quanto ao

    processo de transio no Brasil

    Mruia Jos de Rezende pmte do pressuposto de que num determinado momento foi necessrio "inventar" a transio como forma de solucionar as diversas dificuldades polticas oriundas do modelo pol ti co-econmico posto em prtica no ps-1964.

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  • A autora tambm deixa claro que a relao poltica estabelecida no interior do bloco de poder que sustentou a ditadura era muito mais complexa do que aparentava; o atendimento dos interesses econmicos no t:xtinguia automaticamente a possibilidade de desenvolvimento de impasses polticos. (REZENDE, 1996, p.8)

    No transcorrer do trabalho, a autora procura demonstrar a especificidade da natureza poltica desse pacto de donruo que, mesmo no sendo hegemnico, era absolutamente eficiente no que diz respeito s garantias dos interesses dos componentes do bloco de poder.

    As propostas de Constituinte, Parlamentarismo, negociao, consenso, etc., esclareciam, de acordo com Rezende, as dificuldades polticas no interior do bloco de poder que advinham de um determinado tipo de relao com setores dominados, sobre os quais recaam, mesmo no perodo da transio, os pesados nus da represso. A luta pela fabricao do consenso estava cunhada na ideologia de transio. No ltimo governo militar, momento de crise econmica e poltica acirrada, os setores dominantes batiam-se para estabelecer alguma forma de consenso para validar o processo poltico que se desencadeava. A insistncia em se definir um candidato ungido pelo apoi o popular, por exe mplo, tinha por objetivo recuperar a idia de representao poltica e de que todos eram responsveis pela soluo dos problemas econmicos e polticos brasileiros. (REZENDE, 1996, p.12-13)

    Atransformao do regime militar para o regime civil: as reformas institucionais

    De acordo com Bolvar Lamounier (1996, p.7), uma interpretao consistente da transio do regime nlitar ao civil condio sine qua non para uma adequada avaliao das subseqentes tentativas de reforma institucional e das dificuldades polticas que o pas viveu desde meados da dcada de J980.

    Segundo ele, h uma distncia histrica enOlme entre a instaurao, gradual ou abrupta, de um regime democrtico e sua posterior consolidao: "Em pases recm-sados de experincias ditatoriais, a ins-

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    taurao um processo conceitualmente simples (o que no quer di ze r politicamente fcil)". (LAMOUNIER, 1996, p.7)

    O problema, segundo ele, que as mudanas institucionais (re)instauram, mas no asseguram a continuidade da democracia - e muito menos a qualidade de seu funcionamento . Alis, como mostra a experincia brasileira de 1985 a 1993, as dificuldades podem ser gigantescas. (LAMOUNIER, 1996, p.8)

    Lamounier (1996, p.16-17) discorda da idia de que tivemos "um alTanjo pelo alto, oligarquicamente concertado". De acordo com a sua interpretao, o processo da redemocratizao brasileira - iniciado em 1974 e s concludo formalmente em maro de 1985, com a posse de um presidente civil-, foi algo complexo e multiforme.

    O conjunto da histria poltica brasileira, e especialmente a experincia de 29 anos sob regimes autoritrios (o Estado Novo e o regime militar ps-1964) , demonstra, de acordo com Lamounier ( 1996. p.23), a hipertrofia do Executivo, uma vez que este esteve tradi cionalmente munido de decretos-leis e ainda hoje detentor de amplssima iniciativa legislativa, na qual se inclui a prelTogativa de editar medidas provisrias, um instrumento de duvidoso teor democrtico.

    Amaury de Souza e Bolvar Larnounier, especulando sobre a tessitura constitucional e sobre a emergente forma de governo moldada por ela, em contraposio realidade de uma sociedade secularmente caracterizada pela desigualdade e pela despolitizao. mostram-se otimistas: "a nova Constituio do Brasil pode ser vista I .. .! como um esforo coletivo para passar a limpo o pas, desafiando atitudes profundamente alTaigadas de hostilidade ou de ceticismo com relao ao regime democrtico". (SOUZA; LAMOUNlER, 1.990, p.1 I)

    No entanto, eles consideram matria de preocupao determinar at onde o texto constitucional congruente com a cultura poltica do pas. E, nesse sentido, fazem a seguinte pergunta:

    "Ser a populao, ou mesmo impoltantes segmentos da elite, to tolerante, democrtica e pluralista quanto a Constituio pressupe? Ou, tomando o assunto por outro lado, estar o cidado suficientemente politizado para beneficiar-se, e ao mesmo tempo oferecer apoio, a esse novo sistema democrtico e pruticipativo estabelecido pela Constituio?" (SOUZA; LAMOUNIER, 1990, p.102)

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  • As medidas provisrias revelando

    a fraqueza da democracia no Brasil

    o autoritarismo ainda presente na esfera poltica brasileira se reflete 11a prtica poltica propriamente dita, o que fica evidenciado pelo uso excessivo de medidas provisrias por parte do poder Executivo. A Constituio Federal brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, no Ttulo IV - "Da Organizao dos Poderes", Captulo I - "Do Poder Legislativo", Seo VIII - "Do Processo Legislativo", Subseo III "Das Leis" , no artigo 62, considera que a prtica das medidas provisrias eleve ser disciplinada nos seguintes telmos:

    "Em caso de relevncia e urgncia, o Presidente da Repblica poder adotar medidas provisrias, com fora de lei, devendo submet-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, ser convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. Pargrafo nico. As medidas provislias perdero eficcia, desde a edio, se no forem conveltidas em lei no prazo de tlinta dias, a partir de sua publicao, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relaes jurdicas delas decorrentes." (BRASIL, 1988)

    Como podemos perceber, o texto bastante genrico e vago, deixando margem para interpretaes diversas quanto ao significado de palavras to amplas e relativas tais como "relevncia" e "urgncia", por exemplo. Tambm fica explcito que h uma lacuna no pargrafo nico: As medidas provisrias perdero eficcia / .. ./ se no forem convertidas em lei 110 prazo de trinta dias ... , pois , como notrio, algumas medidas provisrias tm sido reeditadas "n" vezes, J sem que o Congresso chegue sequer a se manifestar a respeito 2.

    Diante dos amplos poderes legislativos do presidente, os quais se evidenciam pelo uso/abuso das medidas provisrias, tudo leva a crer

    I De acordo com um artigo de Gilse Guedes e Roberta Sampaio, publicado 110 jornal O Est{/do d(' S. Pou/o. a medida provisria que estabelece a participao dos tmbalhadores nos lucros das empresas j tinha sido reeditada 70 vezes (isto em 29/05/2000. quando o artigo foi publicado). e ainda no havia sido aprovada. (GUEDES: SAMPA IO. 2000)

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    que h elementos que indicam uma continuidade da atual democracia com o regime militar. Nesse sentido, podemos afirmar que a prtica das medidas provisrias pouco se diferencia dos decretos-leis' do perodo militar. Entretanto, uma ressalva deve ser feita: no foram poucas as mudanas institucionais pelas quais o Estado brasileiro passou. principalmente nas duas ltimas dcadas.

    osistema de comisses no legislativo brasileiro

    Carlos Pereira e Bernardo Mueller pretendem contribuir para a clao de uma teoria que seja capaz de explicar as especificidades do caso brasileiro. Tal teoria, segundo eles, dever ter como um de seus pressupostos centrais o fato de o Executivo brasileiro deter significativo poder de influenciar o processo legislativo, assegurando assim resultados consistentes com suas preferncias. (PEREIRA; MUELLER, 2000,p.46)

    Os referidos autores apresentam, logo na plimeira seo do artigo, os poderes legislativos do Executivo brasileiro, ressaltando a sua extrema supremacia . Observam que o Executivo brasileiro tem diversos meios e instmmentos para contornar e controlar as comisses do Congresso, for-las a cooperar ou punir seus desvios e, levando-se em conta que as comisses esto prestando algum papel no processo legislativo e cumplndo uma tarefa que do interesse do Executivo, concluem que as comisses so teis ao Executivo e, conseqentemente, no podem ser contrtias aos interesses do mesmo.

    Nesse sentido, eles descrevem o poder de legislar do Executivo brasileiro e enfocam a sua habilidade em impor, mediante di spositivos institucionais, as suas preferncias legislao que esteja sendo decidida no Congresso. Assim, de acordo com os autores, dois aspectos do

    2 O artigo foi entregue antes da reg ulamentao das Medida s Provi srias pelo Congresso Nacional (N. da C.E.)

    3 O decreto-lei. como o prprio nome diz. um decreto com fOl"a de le i. baixado pelo poder Executivo quando este acumula funes do poder Legislativo. Como notrio. o uso deste instrumento in stitucional foi uma prtica freqUente durante o regime militar brasileiro.

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  • processo de tomada de deciso no Congresso brasileiro so fundamentais para o entendimento de como o Executivo controla o Legislativo: "o poder de legislar garantido ao presidente pela Constituio; e I .. .! a centralizao do poder decisrio nas mos dos lderes dos pm1idos no Congresso". (PEREIRA; MUELLER, 2000, p.46)

    De acordo com Mainwaring e Shugart (apud PEREIRA; MUELLER, :2000, p.46-47) , existem trs categorias amplas de poderes constitucionais do presidente:

    1) poderes legislativos pr-ativos, ou seja, aqueles que permitem ao presidente legislar e estabelecer um novo status quo o mais comum a medida provisria;

    2) poderes legislativos reativos, ou seja, aqueles que permitem ao presidente bloquear a legislao e, como conseqncia, defender o status quo contra a maioria legislativa que queira mud-lo - sobretudo vetos totais ou parciais; e

    3) a capacidade do presidente para moldar ou at mesmo definir a agenda do Congresso, dado seu poder exclusivo de iniciar certos tipos de legislao.

    A capacidade do presidente para legislar atravs de medidas provisrias o principal poder pr-ativo do Executivo brasileiro. Este dispositivo institucional o autoriza a promulgar prontamente uma nova legislao, sem a necessidade de aprov-la no Congresso, pois, para que uma medida provisria permanea em vigor no necesslio que a maioria do Congresso a aprove, mas apenas que a maioria no a rejeite. As medidas provisrias conferem ao presidente no s o poder de legislar, como tambm grande influncia sobre a agendado Congresso, assim, se o Congresso no bloquear uma medida provisria no prazo de trinta dias, ela vai automaticamente para o topo da agenda do Congresso, deslocando questes que vinham sendo discutidas prioritariamente. (PEREIRA; MUELLER, 2000, p.47)

    De acordo com a Constituio, a medida provislia s deve ser usada em situaes especficas , mas o que tem sido verificado na prtica que o Executivo brasileiro tem feito uso indiscriminado deste disposi tivo. Por essa razo, no s o nmero total de medidas provislias tem

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  • crescido muito a cada uma das ltimas legislaturas, mas tambm muitas medidas vm sendo reeditadas, um grande nmero de vezes, j que o Congresso raramente as desafia. Os dados apresentados na tabela que segue so bastante ilustrativos a esse respeito: desde que este instituto foi criado no Brasil, o nmero de medidas provisrias editadas e reeditadas vem crescendo vertiginosamente.

    Total de MPs novas e

    Governo

    . Jos Sarney Fernando Collor Itamar Franoo FHG (19 mandato) FHC" (20 mahdat) Dois mandatos de FHC'" Todos os goverrios'

    reeditadas

    Total

    147. . 16.0 505

    :D:l9 1.003 3.612

    ' 4.424

    MPsnovas

    125 87

    141 160 42 202 555

    Mdiamensal de MPs novas

    7,1 2,8 5,2 3,3 3,8 3,4 4,1

    Reedies

    22 73

    364 2.449 961

    3.410 3.869

    Desde a Constituio de 1988. a qual instituiu as MPs.

    At o dia 02/ 12/1999.

    Fonte: Presidncia da Repblica (apud MADUENO: ULH6A.1999).

    No que tange ao poder reativo, vale enfati zar que o rresiclente pode rejeitar parcialmente propostas enviadas pelo Congresso bem como vetar propostas inteiras. O mais usual, no entanto, tem sido o veto total. Cabe notar que, embora a Constituio de 1988 tenha tornado relativamente fcil para o Legislativo reverter um veto presidencial , dado que isso requer somente maiOlia absoluta, durante toda a ltima legislatura (1995-98) o Congresso brasileiro no fez uso deste di spos itivo institucional nem uma nica vez. (PEREIRA; MUELLER, 2000, p.47)

    Os dados analisados por eles confinnam que a rea de atuao do Congresso, ao longo da legislatura 1995-98, foi restlingida pela agenda

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  • do presidente: foram 648 propostas iniciadas pelo Executivo, aproximadamente 75% delas foram sobre temas ligados diretamente economia, quase Ir/o propostas administrativas, e apenas 8% estavam relacionadas a temas polticos ou sociais. Por outro lado, das 141 propostas iniciadas pelos parlamentares, 56% eram das reas poltica e social, cerca de 30% eram administrativas e 14% eram sobre a rea econmica. POItanto, estes percentuais so bem ilustrativos quanto diviso de tarefas no Congt'esso e, tambm, quanto aos mandatlios de cada assunto.

    Entretanto, h um outro fator determinante: o tempo mdio para que uma proposta seja sancionada pelo Congresso, que, no caso das propostas iniciadas pelo Executivo foi de 183 dias ; e no caso das propostas do Legislativo e do Judicirio, este prazo estendeu-se para 1194 e 550 dias, respectivamente. A taxa de aprovao de legislao com origem no Executivo est altamente associada com o pedido de urgncia, um outro impOltante instrumento que o Executivo pode utilizar para interferir na tramitao de uma proposta no Congresso. Quando um pedido de urgncia feito , a comisso tem apenas duas sesses para examinar a proposta e vot-la antes de encaminh-la para o plenrio, o que, na prtica, um prazo muito curto e as comisses raramente conseguem examinar e se posicionar em relao a uma proposta que tenha recebido pedido de urgncia.

    Pedidos de urgncia foram feitos sobretudo para propostas ligadas a temas econmicos e administrativos, que, como j ressaltamos anteriormente, tm sido os campos de maior interesse por pmte do Executivo brasileiro. Quanto ao Legislativo, por sua vez, pode-se dizer, de acordo com Pereira e Mueller (2000, p.48), que quando ele pediu urgncia para uma proposta, isso foi feito ele acordo com os interesses do Executivo.

    Pelo exposto at aqui , fica evidenciado que o Executivo brasileiro tem se servido de um poderoso conjunto de instrumentos para controlar a agenda do Congresso, bloqueando - atravs da combinao de di sposi ti vos institucionai s tais como medidas provisrias, vetos e pedidos de urgncia - toda e qualquer legislao que no lhe seja conveniente, e promovendo aquelas que considera prioritlias.

    Todavia, vale lembrar que as normas e instrumentos constitucionais no so os nicos fatores que colocam o Executivo numa posio privilegiada em relao ao Congresso; a centralizao do

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    processo de tomada de deciso dentro do Congresso tambm serve a este fim. As regras internas da Cmara garantem aos lderes dos partidos um papel central na conduo do processo legislativo e na definio do sistema de comisses. Assim, o Executivo, atravs dos lderes do prutido ou coalizo governista, manipula as nomeaes de celtas comisses, colocando nelas um nmero estratgico de membros fiis aos seus interesses e/ou substituindo membros que lhe so menos leais.

    A maneira pela qual os projetos so distribudos s comisses e o fato de que, na prtica, as posies de presidente, vice-presidente, secretrio e relator so detenninadas pelos lderes dos pattidos (embora, oficialmente, estas posies sejam escolhidas por voto secreto e maioria absoluta dos votos dos membros da comisso a cada binio), tambm so indicadores desta centrnlizao do processo ele tomada de deciso no Congresso brasileiro e, alm disso, de acordo com os autores, demonstram um outro aspecto negativo: o fato de que o poder das comisses do Congresso brasileiro tem uma base institucional muito fraca.

    Os autores afirmam que o emprego, por patte do Executivo, de alguns tipos de favores , tais como crdito, execuo de emendas individuais dos parlamentares, concesses de rdio e televiso, licitaes etc., um outro instmmento amplamente utilizado como meio de obter apoio e votos para seus projetos e para fazer prevalecer suas preferncias no Congresso. Isso ocorre, segundo os referidos autores, porque o Executivo no Brasil controla uma grande variedade de recursos e tambm porque diversos cargos importantes no so eletivos, se ndo a nomeao de seus titulares fOltemente influenciada pelo Executivo. (PEREIRA; MUElLER, 2(0), p.50)

    Com base em dados empricos referentes legislatura ) 995-) 998, Pereira e Mueller (2000) constataram que a composio da maioria das comisses constitudas neste perodo apresentava um alto ndice de lealdade posio do Executivo, o que, segundo eles, sugere que este tenha usado seus poderes legislativos pru'a levar a composio das comisses a lhe ser favorvel. Surge, poltanto, a seguinte questo: o que as comisses podem fazer pelo Executivo que justifique que este despenda esforos para controlar sua composio? E, alguns pargrafos depois, eles mesmos respondem a ela com o seguinte ru'gumento: "h, de fato, algo que as conusses podem fazer pelo Executivo quando as suas preferncias so pr:

  • mas. A comisso I.. .! capaz de impedir que legislao contrIia aos interesses do Executivo chegue ao plenIio". (PEREIRA; MUELLER, 2000, p.52)

    Sintetizando o que foi retratado at aqui, nesta seo dedicada anlise do sistema de comisses no Legislativo brasileiro, podemos afirmar, juntamente com os autores, que o fato mais marcante do Congresso brasileiro so os extensos poderes legislativos do Executivo. Em outros termos, vale dizer que a fragilidade de nossas comisses parlamentares uma conseqncia direta da extrema preponderncia do Executivo, j que, como foi demonstrado, no Brasil, o Executivo, em vittude de seus amplos poderes no processo legislativo, consegue fazer que seus interesses prevaleam no Congresso.

    A relao entre o legislativo e o executivo como base esclarecedora das edies das medidas provisrias

    Renato Lessa apresenta uma resenha do livro Executivo e Legislati vo na nova ordem constitucional (de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi) e afuma que a obra encerra um poderoso exerccio de demolio de supersties.

    Dadas as condies institucionais vigentes no pas, no necessrio que a disciplina pmtidria seja gerada fora do Congresso. De acordo com Lessa (2000), Argelina Figueiredo e Fernando Limongi chegaram concluso de que no OCOlTe um predomnio de estratgias individualistas na arena parlamentar, visto que o controle centralizado, exercido pelos lderes pmtidI'ios e, sobretudo, pelo Executivo, sobre a agenda e os trabalhos parlamentares, reduz as chances de sucesso de iniciativas puramente individuais dos deputados. A eficcia do trabalho do parlamentar individual est, portanto, associada a padres fortes de disciplina partidria no interior do Legislativo.

    Argelina Figueiredo e Fernando Limongi (apud LESSA, 2000) realizaram um estudo sistemtico sobre o compOltamento pmtidrio parlamentar no perodo 1989-1994, com base em votaes nominais. Por intermdio da anlise de 221 votaes nominais, eles detectaram que em 89% destas votaes os resultados eram previsveis tomando por base a posio dos lderes de bancadas.

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    Segundo Lessa (2000), os autores demonstram, com base na anlise das votaes nominais na Cmara (atualizada at 1999, e i ncluindo votaes de emendas constitucionais), que, no caso brasi leiro , o controle da agenda legislativa por pmte do Executivo aproxima o nosso tipo de presidencialismo da forma parlamentarista:

    "O Executivo organiza o apoio a sua agenda em moldes semelhantes aos encontrados em pases parlamentaristas. A distribuio de ministrios, por exemplo, entre as legendas que do apoio ao governo faz com que 9 em cada 10 votos de parlamentares desses prutidos sejam fiis. O Legislativo, assim, no se apresenta como bice ao do Executivo, como faria supor uma avaliao fOlmal do arranjo institucional brasileiro."

    Quanto ao entendimento do que poderamos designar como a Repblica de 1988, Lessa esclarece que, segundo os autores, a Constituio de 1988 no significou um retorno aos quadros da Repblica de 1946; para eles, possvel falar at mesmo de uma "continuidade legal" entre o experimento de 1964 e a Repblica de 1988, ao menos no que diz respeito s nOlmas que regulam as relaes entre o Executivo e o Legislativo no Brasil. Tal descendncia sustenta a preponderncia legislativa do Executivo, em forte contraste com a experincia da Repblica de 1946, pois, sob a Constituio de 1988, o Executi vo tornou-se o principal legislador no Brasil.

    Prosseguindo em suas anlises, Lessa (2000) comenta que os sinais desta preponderncia esto presentes na dilatada capacidade do Executivo para controlar a agenda dos trabalhos legislativos - tanto em termos de timing como de contedo -, atravs de mecanismos diversos, tais como a extenso da exclusividade de iniciativas do Executivo, o poder de editar medidas provisrias e a faculdade de solicitar urgncia para os seus projetos. O efeito necessrio a presena de um padro altamente centralizado de organizao do Congresso, que acaba sendo estmturado pelos partidos polticos.

    Uma das singulmidades da Repblica de 1988 o alm'gamento das funes legislativas do Executivo. Quanto a esse aspecto, ele aeOl'elo com os comentJios de Lessa, impossvel desconsiderar o papel elas medidas provisrias, o "mais poderoso instmmento legislativo" de que dis-

    Revista Mediaes, Londrina, v.6, n.2, p.2953.julldez.2001

  • pe o presidente. O diagnstico claro: "O Executivo garante sua preponderncia legislativa e inibe o desenvolvimento institucional do Legislativo, sobretudo porque pode reconer edio e postelior reedio de medidas provislias." (FIGUEIREDO; LIMONGI apud LESSA, 2000) Mas, o fato de que as medidas provisrias so uma cliao dos parIamenl
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    De acordo com Lamounier (1996, p.55), convm ressaltar que esta exacerbao do arbtrio legislativo na Amlica Latina se deve ao presidencialismo e, tambm, em grande pmte, necessidade que tm os governos de realizar reformas econmicas estruturais ao mesmo tempo que procuram controlar a inflao, ou se encontram em ambientes ainda contaminados pela memria de supellnflaes crnicas.

    Os impactos decolTentes da interdependncia inerente ao processo de globalizao econmica so relevantes para o debate latinoamericano. Os programas de estabilizao e de reforma do setor pblico vinculam-se diretamente globalizao da economia. No contexto ps-Guena Fria vem ocon-endo um estreitamento do leque de alternativas ideolgicas, ou de poltica econmica, em escala mundial. Este pano de fundo, caractelizado pela crescente descrena em economias centralmente planejadas ou que contam com alta participao empresarial do Estado, explica, segundo Lamounier (1996), o substancial aumento do apoio a polticas de estabilizao, ajuste do setor pblico e abertura comercial.

    Esse estreitamento ideolgico tem transformado as propostas governamentais de reforma estrutural em verdadeiros "pacotes" a serem "engolidos" pela populao em geral, e parece ter dois efeitos potencialmente malficos para a democracia representativa: o reforo exagerado do Executivo; e a exacerbao da legislao porfiar ao Executivo. isto , do faa-se conforme decreta o Executivo.

    Quanto exacerbao do "governo por decreto", Lamouni er (1996, p.55) afirma que esta tendncia tambm uma constante na histria poltica latino-americana que "ocorre apesar do propalado 'aprofundamento da democracia' e do aparente vigor da 'sociedade civil' I .. ./".

    De acordo com Lamounier (1996, p.55), a uti lizao ele i nstnlmentos extremamente unilaterais ele iniciativa legislativa, concebidos para situaes excepcionais (os antigos decretos-leis e as atuais medidas provisrias), vem sendo banalizada, transformada em rotina. Segundo ele, esta exacerbao do "governo por decreto" ocorre, dentre outras razes, devido relativa inegociabilidade das propostas de reforma.

    A regulamentao do uso de medidas provisrias um assunto polrnico e que, de alguns anos para c, tem feito parte do debate pol-

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  • tico no Brasil. Com base em um levantamento que realizamos em alguns jornais, na seqncia, tentaremos apresentar algumas das propostas que foram formuladas pelos parlamentares brasileiros nesse sentido.

    odebate poltico acerca da regulamentao do uso das Medidas Provisrias

    o Congresso vem tentando, desde 1990, limitar o poder do presidente para editar medidas provisrias. No dia 06/03/1991 , por exemplo, a Cmara dos Deputados aprovou uma lei complementar, de autoria do ento deputado Nelson Jobim,5 regulamentando e restringindo o uso de medidas provisrias pelo presidente da Repblica. Os lderes do bloco governista se posicionaram a favor do projeto, mas, claro, com um "apoio relativo", ou seja, pretendiam manter ilimitado o poder do presidente pm'a editm' medidas provisrias e concordariam com o projeto Jobim desde que o governo mantivesse o poder de reeditm' quantas vezes quisesse as medidas provisl1as que no fossem votadas pelos pm'lamentares no prazo de uinta dias, e, alm disso, o governo no ablilia mo de baixar medidas provisl1as sobre matria tributIia. (CMARA ... 1991)

    Entretanto, j na poca, ficava evidente que a aprovao na Cmara significava apenas a "vitria" parcial desses parlamentares que defendiam a regulamentao das medidas provisrias. A verdadeira batalha entre o governo e a oposio viria na fase de votao das emendas destacadas para exame em separado.

    Portanto, vale ressaltar que o projeto parou quando chegou ao Senado: a proposta foi considerada inconstitucional pelo senador Jos Bisol, Segundo este, o tema s podelia ser tratado por emenda constitucional. (BISOL apud TREVISAN, 1995, p.6)

    Na reviso constitucional, por sua vez, o tema voltou a ser tratado por Jobim, que deu parecer favorvel a um projeto de emenda que

    5 Neste ponto. queremos chamar a meno do leitor para um fato que nos parece um rnnto quanto s uges tivo: Nelson Jobim, autor de um projeto de lei que f

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    impunha limite ao poder de legislar do Executivo. A proposta. no entanto, nem chegou a ser votada. (TREVISAN, 1995)

    De acordo com Ulysses Guimares (o qual fora o presidente da Assemblia Constituinte), a medida provisria um elemento que s pode ser usado "excepcionalissimamente", ou, em suas prprias palavras: "Medida provisria decreto-lei , e ns temos de acabar com essa maldio que h sobre o Pas, de que tudo provisrio, desde a economia, poltica salariaL" (GUIMARES apud CMARA .. 1991 , p.5)

    No incio de 1995, a questo da restrio ao uso de medidas provisrias pelo Executivo voltava tona e dizia-se que este seria um dos principais temas a ser discutido pelos parlamentares que iriam tomar posse no dia 10 de fevereiro: "Se as restries propostas forem aprovadas, o presidente Fernando Henrique Cardoso no ter a seu dispor o que chamou de 'ditadura benigna' das medidas provisrias." (TREVISAN, 1995)

    H muitas medidas provisrias em vigor e que ainda no foram sequer analisadas pelos parlamentares, o que, segundo Espericlio Amin, uma situao cmoda para o Congresso. Na sua opinio. o grande nmero de medidas provisrias se deve inao do Legis lativo e voracidade do Executivo; uma coisa no existiria sem a outra. (AMIN apud TREVISAN, 1995)

    De acordo com Jos Genoino, na quebra dessa relao "promscua" que se estabeleceu entre os dois poderes nessa rea, que se encontra o caminho para o Congresso resgatar suas funes constitucionais. (GENOINO apud TREVISAN, 1995)

    A ttulo de ilustrao, vale lembrar que no perodo compreendido entre 5 de outubro de 1988 (quando foi promulgada a Constituio, a qual criou a medida provis11a) e 10 de janeiro de 1995, foram aprovadas 1.035 leis pelos 503 deputados federais e 81 senadores que compunham o Congresso Nacional e detinham o poder constitucional de legi slar. No mesmo perodo, os presidentes Jos Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e FHC editaram 831 medidas provisrias (incluindo as reedies), as quais tm fora de lei desde a data de sua publicao.

    A diferena entre o nmero de leis e o de medidas provisrias demonstra o abismo que vem se estabelecendo entre a atividade legislativa do Congresso e a do Executivo no BrasiL O Plano Real, por exemplo, foi institudo em 29/06/1994, por meio da edio de uma medida

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  • provisria. Todavia, cabe destacar que esta no foi a primeira mas sim a quinta vez que uma mudana to drstica na economia brasileira foi feita atravs de medidas provisrias. Em todas as situaes, os parlamentares se depararam com fatos consumados (como a troca da moeda do pas, por exemplo), diante dos quais no lhes restava outra alternativa seno aprovar as decises do Executivo.

    De acordo com Celso Bastos, temos no Brasil uma medida que a mais forte de todas as que so usadas em pases democrticos. Em sua opinio, o uso da medida provisria no Brasil abusivo e chega a ser pior do que o uso dos decretos-leis durante o regime militar, porquanto, para que o presidente faa uso do instlUmento das medidas provisrias no h limitao constitucional de temas, enquanto que para os decretos-leis havia limitao de temas; eles s podiam tratar de finanas pblicas, segurana nacional e cliao de cargos pblicos e vencimentos. (BASTOS apud TREVISAN, 1995)

    Como a deciso do presidente, h medidas provisrias sobre quase tudo - alm da mudana de moeda, o Executivo tem tratado de questes tributrias, mensalidades escolares e diretrizes de ensino, venda de carros populares e regras oramentrias -, para citar apenas alguns temas. O impacto delas na vida do cidado brasileiro tem sido bem maior do que o das leis aprovadas por iniciativa do Congresso, j que as leis propostas pelos parlamentares raramente tm a abrangncia das medidas provislias. (TREVISAN, 1995)

    O levantamento de dados que realizamos em alguns jornais de circulao nacional refora esta idia de que os temas abrangidos pelas medidas provisIias so realmente muitos. So alguns exemplos: o pacote para abrir o mercado, as medidas para a desburocratizao, as medidas provisrias tratando dos salrios e, sobretudo, do sallio mnimo, tratando de locaes de imveis residenciais e comerciais em regies urbanas, desregulamentando a rea cambial, atingindo a poltica fiscal, o crdito rural , a sade e o ensino, para citarmos algumas das reas contempladas pelas medidas provislias durante o governo Fernando Collor. O ex-presidente Itamar Franco, por sua vez, lanou mo de medidas provisrias para compor o Plano Real.

    O contedo das medidas provisrias perde-se em meio s brigas e interesses de aliados. O critrio de "relevncia e urgncia" exigido

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    para sua edio nem sempre considerado, o que tem originado casos curiosos e medidas provisrias sobre assuntos os mais fortuitos assuntos, da compra de um carro para seu vice (como aconteceu com o ento presidente Fernando Collor) proibio de importar coco (como ocorreu no primeiro mandato de Fernando Hemique Cardoso). (GUEDES : SAMPAIO, 2000, pA)

    Citando apenas os sete primeiros meses de governo, Fernando Henrique Cardoso emitiu quase o dobro do que Itamar Franco assinou em 27 meses; quatro vezes mais do que Sarney em 17 meses e meio: e seis vezes mais do que Collor em 30 meses e meio. Ou seja, com a mdia mensal de 34,4 medidas provisrias, Fernando Henrique Cardoso tem emitido mais de uma medida provisria por dia - e ainda mais se considerarmos apenas os dias teis. (FREITAS, 1995, p.5)

    Cabe lembrar que Fernando Henrique Cardoso foi crtico do que tambm ele considerava abuso de medidas provisrias por parte de Sarney e, quando candidato, assegurou numerosas vezes que as restlingilia ao papel que a Constituio lhe prescreve.

    Para Celso Antnio Bandeira de Mello , enquanto existirem medidas provislias, o governo brasileiro lanar mo delas abusivamente, sem nenhuma considerao pelo direito e sem temer contestao signi ficativa por pmte dos demais poderes, dos meios de comunicao ou da sociedade em geral. De acordo com ele, isso ocorre porque, no Brasil. o chefe do Executivo desfruta, psicologicamente, de status de soberano, de imperador. inconscientemente considerado como tal porque, entre ns, vive-se com uma entranhada mentalidade de "sdito", no de cidado. Em suma, para ele, no Brasil o que h sentimento espontneo, genuno de vassalagem. (BANDEIRA DE MELLO, 1996, p.3)

    De acordo com Ney Suassuna, no s o volume de medidas provisrias, mas tambm a evoluo da sua utilizao nos governos aps a Constituio de 1988 acusam um crescimento vertiginoso. Para ele, o fato de o governo ter "herdado" medidas provisrias dos seus antecessores no justifica a reedio das mesmas. Logo, no prospera o argumento dado pelo governo de que existem muitas MPs herdadas dos antecessores: a cada trinta dias o governo toma, livremente, a deciso de enviar esta ou aquela medida provisria, devendo assumir a responsabilidade da iniciativa da sua reedio. (SUASSUN A, 1996, p.3)

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  • A rigor, inexiste a reedio. O Congresso Nacional recepciona cada MP, original ou reeditada, como se nova fora, uma vez que o processo legislativo iniciado em seus plimrdios: publicada no Dirio Oficial da Unio, encaminhada por meio de mensagem ao Congresso Nacional , feita a leitura em plenrio, indicados os membros, instalada a comisso e fixados os prazos de tramitao, exatamente nos mesmos moldes de medida que chega pela primeira vez ao Congresso.

    Finalmente, deve-se ressaltar, de acordo com Suassuna (1996), a co-responsabilidade do Legislativo perante a situao atual. De um lado, o Executivo abusa do conceito de urgncia e relevncia para aban'otar o Congresso de medidas provisrias, usurpando a sua competncia de legislar; de outro, o Congresso no se empenha efetivamente em votar aquelas em tramitao nem em disciplinar o seu uso.

    Neste jogo de convenincia, perde o pas, que passa a ter um ordenamento jurdico provisrio. Alis, conforme assinala Suassuna ( 1996), to constrangedor o volume de MPs em tramitao no Congresso que o governo, recentemente, adotou um artifcio para esqlvarse do rtulo de usurpador: passou a fazer acompanhar o nmero da MP de um dgito indicativo da quantidade de reedies, buscando, dessa forma, atribuir pmte da responsabilidade pelo escndalo quantitativo do instrumento aoS seus antecessores.

    Quando senador, Fernando Heruique Cardoso atacou o excesso de medidas provisrias do governo Collor. Em 1990, na coluna semanal que publicava no jornal Folha de S.Paulo, o ento senador criticou a "enxurrada ele medidas provisrias" , dizendo que ela representava o "abuso ela pacincia e ela inteligncia do pas".

    No aItigo supracitado, Fernando Hemique Cardoso tambm criticou o ex-presidente Jos Sarney, afirmando que as medidas provisrias no governo Sarney passaram a ser editadas como se fossem os antigo s decretos-leis. Entretanto, h um aspecto importante a ser considerado: embora Sarney tenha editado um total de 138 medidas provisrias, ele conseguiu que elas fossem aprovadas no Congresso rapidamente, tanto que s reeditou 22 delas. (FRANA, 1998, p.4)

    O altigo de Fernando Hemique Cardoso foi escrito antes de ele se tornar ministro do governo Itamar Franco - o presidente que mais editou e reeditou MPs, se pensarmos o cm10 tempo de seu mandato.6 O

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    Plano Real, lanado emjulho de 1994, quando FHC era ministro da Fazenda de Itamar Franco, foi colocado em prtica por meio de medida provisria, ato criticado por ele em seu artigo, e tramitou (sendo reeditada) durante 14 meses no Congresso Nacional at ser aprovada e se tornar a lei 9.069/95. (FRANA, 1998)

    O chefe da assessoria parlamentar do governo, Eduardo Graeff, no v abusos na edio e reedio de MPs por FHC, e disse que, se o presidente Femando Hemique Cardoso edita as medidas provislias, " porque tem o que propor e precisa de leis para mudar". (GRAEFF apud FRANA, 1998)

    Segundo Graeff, o fato de que, at ento, havia 1.839 reedies de MPs no governo FHC, deve-se, sobretudo, a uma falha do Congresso: "Os deputados e senadores esto votando outras coisas. Basta olhar a pauta de votaes. No se consegue marcar sesses conjuntas para votar as MPs - elas so muito poucas." (GRAEFF apud FRANA. 1998)

    Para Graeff, o fato de essas votaes no estarem ocorrendo no significa falta de apoio do Congresso ao presidente: Ele tem sempre recebido apoio ao que prope. Essas MPs que esto sendo reeditadas I .. .! no preocupam, porque no h questionamentos. Se houvesse, estmiam sendo discutidas com prioridade.

    Em junho de 1990, em seu artigo, Fernando Hemique Cardoso afumava:

    "O Executivo abusa da pacincia e da inteligncia do pas quan

    do insiste em editar medidas provisrias sob o pretexto de que.

    sem sua vigncia imediata, o Plano Collor vai por gua abaixo e,

    com ele, o combate inflao.

    Com esse ou com pretextos semelhantes, o governo afoga o

    Congresso numa enxunada de 'medidas provisrias'. O resulta

    do lamentvel: Cmara e Senado nada mais fazem do que apl:eci

    las aos borbotes." (CARDOSO apud FRANA, 1998 )

    E, prosseguindo em seus comentrios sobre as medidas provisrias , o ento senador dizia que o Congresso poderia aprov-Ias, modific-las ou rejeit-Ias na ntegra. Todavia, perguntava: "O que OCOITe depois de eventual rejeio da medida provisria pelo Congresso?" E. Vale lembrar que em pouco mais de dois anos de m:\Ildato. o presidente Itamar

    Franco editou 14 1 MPs novas e. se includas as reedies. um total de 505 MP,.

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  • logo na seqncia, ele mesmo respondia: "A Constituio muda sobre a matria. Quando a elaboramos, o pressuposto era o de que tais medidas seriam remdio extremo, realmente urgente e relevante." (CARDOSO apud FRANA, 1998)

    Segundo ele, a responsabilidade pela enxurrada de medidas provisrias tem co-responsabilidade: Executivo e Legislativo. E, diante desta relao viciosa entre os poderes, alguns pargrafos depois, ele foi taxativo em seus argumentos:

    " celto, porm, que, seja qual for o mecanismo, ou o Congresso pe ponto final no reiterado desrespeito a si prplio e Constituio, ou ento melhor reconhecer que no pas s existe um 'poder de verdade', o do presidente. E da por diante esqueamo-nos tambm defalar em 'democracia'." (CARDOSO apud FRANA, 1998)

    o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhes (PFL-BA), criticou o presidente Fernando Henrique Cardoso por estar contra o projeto que restringe o uso de medidas provisrias, aprovado no dia 10 de dezembro de 1999: "O governo no quer trabalhar. A base do governo no quer trabalhar. Viver autOlitariamente, para quem pregava a democracia, intolervel." (MAGALHES apud MADUENO; ULHA, 1999, p.6)

    O porta-voz da Presidncia, Georges Lamaziere, disse, na poca, que a preocupao de Fernando Henrique Cardoso com esse projeto que visava restringir o uso de MPs "no era com a diminuio dos poderes do presidente". Segundo ele, o presidente temia que o Congresso viesse a ter dificuldade para trabalhar e temia o bloqueio de atividades legislativas. (LAMAZIERE apud MADUENO; ULHA, 1999)

    O lder do governo no Senado, Jos Robe110 Anuda, admite que, por causa da facilidade de reedio, o Planalto no costuma articular-se para aprovar MPs: "O governo envolve-se na negociao quando o caso polmico, como foi a fixao do saltio ITnimo." (ARRUDA apud GUEDES; SAMPAIO, 2(00)

    Fogaa responsabiliza os parlamentares pelas reedies de MPs: "O Congresso no se pronuncia sobre isso para no entrar em bola dividida com o Executivo e a sociedade, j que grande parte das MPs trata de assuntos impopulares." (FOGAA apud GUEDES & SAMPAIO, 2000)

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    j1ll1sta Celso Antnio Bandeira de Mello diz que esta prtica tornou-se to freqente que, hoje, o Congresso s pode cumprir uma agenda regular de apreciao de MPs se houver moderao do Executivo. Ele constatou que, do itcio do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso at agosto de 2000, foram editadas 3.239 MPs, uma mdia de quase 2,8 por dia til de governo, apenas 89 delas foram aprovadas. (BANDEIRA DE MELLO apud GUEDES; SAMPAIO, 2000)

    texto atual da proposta de emenda constitucional que restringe o uso de medidas provisrias no garante maior autonomia ao Legislativo. Para especialistas, as restries previstas no projeto do deputado Robelto Brant no tiram a fora das MPs, j que a emenda pelmite que elas vigorem por at quatro meses. (GUEDES; SAMPAIO, 2000)

    Vigncia de at quatro meses, de acordo com Fabiano Santos (cientista poltico do Iupelj), tempo suficiente para criar UIll fato na vida social, difcil de ser revertido pelo Congresso, pois este fica refm dos efeitos jurdicos que comeam a ser produzidos imediatamente e a reverso disso pode ser custosa. Segundo ele, isso OCOlTe principalmente na rea econmica, que costuma ser a campe na regulamentao de temas por MPs. (SANTOS apud GUEDES; SAMPAIO, 2000)

    As crticas do deputado Miro Teixeira, autor de emenda que probe a reedio e a prOlTogao de MPs, vm no mesmo sentido: "Matrias financeiras e cambiais produzem resultados no meslllo dia e no se pode rejeitar seus efeitos quando se tem um fato consumado." (TEIXEIRA apud GUEDES; SAMPAIO, 2000)

    Finalizando, vale lembrar que de acordo com a Constituio de 1988, as medidas provisl1as devem ser submetidas de imediato ao Congresso. Entretanto, na prtica, dificilmente so votadas pelos parlamentares: como entram em vigor de imediato, com fora de lei , acabaram se transformando em um instmmento do Executivo para legislar sem a ameaa de intelferncia do Congresso.

    Consideraes finais

    A organizao poltica dos Estados democrticos contemporneos tem passado por grandes transfOlmaes internas devido ao impacto

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  • provocado pela globalizao econmica. Pm'a as democracias recm-sadas de regimes autoritIios, como o caso do Brasil, as dificuldades tm sido ainda maiores. A democracia brasileira tem-se mostrado frgil diante da preponderncia de um Executivo vido em legislm.

    Procuramos apresentar alguns aspectos referentes democracia brasileira, tentando identificar algumas de suas especificidades. Conforme foi exposto, so vrias as dificuldades encontradas pelo Estado brasileiro para limitar e distribuir o poder. O uso de medidas provislias, emitidas para os mais diversos fins, mas destinadas. principalmente para a rea econmica e tributria, evidencia a necessidade que os ltimos governos vm tendo para alinhar o pas a uma economia transnacional.

    Diante dessa perspectiva, tentamos demonstrm' que a questo das medidas provisrias bastante complexa e se insere no contexto da diviso tnue entre os diferentes poderes do Estado. Constatamos a existncia de um Legislativo aparentemente omisso, um Judicilio que pouco atua e um Executivo que tem invadido os outros dois poderes, legislando por intermdio das constantes edies e reedies de medidas provisrias, o que caracteriza uma prtica poltica eminentemente autoritria e denota a fragilidade da democracia brasileira tambm no perodo posterior promulgao da nova Constituio.

    A preponderncia do Executivo brasileiro e os poderes legislativos do presidente so mais um indcio de que a nossa herana cultural autOlitria continua anaigada tanto na sociedade civil como na vida poltica brasileira. A diviso apm'entemente tnue entre os poderes, na rea lidade, oculta uma relao de foras bastante desigual entre os poderes Executivo, Legislativo e Judicirio no Brasil.

    As medidas provisrias tm interferido no cotidiano do cidado brasileiro, nos campos econmico e social, entretanto, embora este seja um tema polmico e considerado abusivo por muitos, ainda pouco foi feito ou mesmo di scutido no sentido de promover alguma mudana no tex to constitucional que criou o instituto da medida provisria no Brasil.

    Cabe observar, finalmente, que no tivemos a pretenso de fazer uma leitura nica ou esgotar o assunto e sim contribuir para o debate, mesmo porque a questo das medidas provisrias bastante complexa e abrangente e pode ser enfocada sob vrias perspectivas de anlise.

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    Referncias Bibliogrficas

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  • Abstract

    In Ihc prcselll nnic\e. we want to nnalyse the polilicnl meaning of " temporary Illeasures" in Brazil. The umple Jegislative powers of lhe president show lhe fragility of Brazilian democracy and the large number of "temporary mensures" represents nn e\'idellce of executive preponderance in Brazil.

    KeY-lrords: brazilinn democrncy; "temporary measures"; Executive and Legislative.

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