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Sobre Os afogados e os sobreviventes

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  • Sobre Os afogados e os sobreviventesabro slavutzkyPsicanalista e escritor

    WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.1 n.1 (jan-jun) 2009

    LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Srgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990 [1986].

    Um amigo contoU qUe no estava mais lendo sobre a Sho. em geral assim, h pocas em que se l e outras em que se deseja esquecer as histrias tristes e pesadas que o povo judeu passou durante o nazismo. Ora nos sentimos com o dever da memria, ora no queremos mais saber desse dever (SLAVUTZKY, 2003). difcil manter o in-teresse por uma das maiores tragdias da Histria, logo queremos saber e tambm no queremos. Como Primo Levi escreveu em Os afogados e os sobreviventes, se pudssemos sofrer os sofrimentos de todos, no poderamos viver (LEVI, 1990). Entretanto, nos ltimos anos aumentaram os museus sobre os campos de extermnio, bem como surgiram novos livros e filmes. A Sho segue desafiando o conhecimento, e sempre surgem novas informaes, novos ngulos sobre o enigma da crueldade.

    Ao reler o ltimo livro de Primo Levi, escrito em 1986, um ano antes de sua morte, descobri novas histrias que haviam passado despercebidas numa primeira leitura. A que chamou mais minha ateno foi a do presidente judeu do Gueto de Lodz, Chaim Rumkowski. A questo proposta pelo escritor para analis-lo a da ambiguidade humana, que define como um tema fundamental. O estudo desse lder uma das provas de como

    o autor consegue perceber o ser humano e suas contradies. Tudo comeou porque ele encontrou no cho de Auschwitz uma moeda com o escudo de David, datada de 1943; era uma moeda interna do Gueto de Lodz. Guardou-a e, em 1974, pde reconstruir uma intrigante histria.

    Lodz, cidade polonesa, tinha 750 mil habitantes quando comeou a Segunda Guerra Mundial e era uma cidade industrial, moderna e feia. Pouco tempo depois da ocupao alem, os nazistas e os poloneses trataram de construir um gueto judeu, o que ocorreu em fevereiro de 1940. Havia inicialmente 160 mil judeus, o segundo em tamanho, pois o primeiro foi o Gueto de Varsvia. Foi liderado por Chaim Rumkowski, um pequeno industrial falido, conhecido como homem enrgico, inculto e autoritrio, e diretor de obras filantrpicas. No se sabe como foi escolhido pelos alemes para ser o presidente,

    mas logo teve um reconhecimento social, estando acima dos judeus em geral, pois tinha direitos e privilgios e amava ter autoridade sobre os demais.

    Os quatro anos em que foi ditador do gueto viveu um sonho megalomanaco, mas tambm com uma real capacidade diplomtica e organizacional. Recebeu dos alemes a autorizao de cunhar moedas e dinheiro papel, que eram pagos aos operrios judeus para comprarem suas magras raes nos armazns. Rumkowski ambicionava no s obedincia, mas ser amado e para isso usava os artistas e artesos, que criaram selos com sua efgie, sua

  • barba e cabelos resplandecentes. Tambm percorria as ruas de seu pequeno reino, entupidas de mendi-gos, num cavalo esqueltico. Tinha at um manto real e uma corte de aduladores e sicrios; poetas e msicos, sob suas ordens, que compuseram hinos celebrando suas obras. As crianas nas escolas, j es-quelticas pela fome e desnutrio, eram obrigadas a louvar o amado e sagaz lder. Tinha uma polcia eficiente para manter a ordem, para proteg-lo e

    impor a disciplina. Adorava pronunciar discursos no estilo da tcnica oratria de Mussolini e Hitler, mostrando-se impotente diante os de cima e oni-potente diante os de baixo. Para Levi, ele se sentia um messias, um salvador de seu povo, um chefe que lutava para evitar o pior, semelhana de todos os outros lderes judeus dos guetos. Levou a srio sua autoridade e quando a Gestapo se apoderou de seus conselheiros ele correu em defesa destes sendo humilhado e motivo de zombarias.

    Lodz, como os outros guetos, tinha ncleos de resistncia poltica de raiz sionista, comunista, socia-lista e do Bund, que foram reprimidos pela polcia liderada por Chaim Rumkowski. Este ficava indig-nado com os judeus que eram rebeldes aos nazistas e a seu governo colaboracionista. Em setembro de 1944, os alemes comearam a liquidar o gueto, enviando o mximo de judeus a Auschwitz; ficaram

    algumas centenas desmontando o campo, antes da chegada dos russos, e foram esses sobreviventes que relataram a vida no gueto e que serviram de base para Primo Levi escrever. O destino final do

    presidente judeu desconhecido, mas tudo indica que morreu nos fornos crematrios como os seis milhes e cento e cinquenta mil judeus.

    O mais popular escritor sobre os campos de extermnio formula questes para se pensar. Em sua opinio, Rumkowski no um homem comum, nem um monstro; a questo como, ao obter uma pequena fatia de poder, mudou seu comporta-

    mento. Ele s um smbolo de milhares de judeus que colaboraram de diferentes formas com os nazistas. Levi escreve que o poder como a droga, uma vez iniciado desencadeia uma dependncia e necessidade de doses cada vez mais altas. Nasce a

    recusa da realidade e o retorno dos sonhos infantis de onipotncia, transformados em arrogncia e desprezo s leis.

    O escritor no livra Rumkowski de suas res-ponsabilidades, nem o absolve no plano moral, mas assegura que ele tem atenuantes. Tinha sido corrompido por uma ordem infernal, que foi o na-zismo, e nem todos dispunham de tanta envergadura moral para resistir presso. Essa histria, segue Levi, a histria desagradvel e inquietante dos kapos, dos funcionrios dos Lager, dos chefetes que serviram a um regime desptico e criminoso. Em geral justificam-se assim: Se eu no fizer, um outro

    pior que eu o far. O escritor conclui que todos se espelham no presidente do Gueto de Lodz, feitos de barro e esprito, que sua febre a da civilizao ocidental, que pactua com o poder.

    Uma forma de pensar bem mais crtica que a de Primo Levi sobre os lderes judeus dos guetos foi a do historiador do Gueto de Varsvia, Emmanuel Ringelblum (1964). Nessa mesma linha esteve Han-nah Arendt (1999) em seu livro Eichman em Jerusalm. Ambos criticam duramente o comportamento da maioria das lideranas judaicas dos guetos, policiais judeus, os kapos, por terem sido cmplices do na-zismo; por mais que se pense em suas boas inten-es, a verdade que favoreceram os nazistas. Em contraste com os funcionrios judeus dos guetos, houve muitos que se mantiveram dignos at o fim:

    uns se revoltaram com armas, outros mantiveram suas artes e seu humor na luta por manter a dig-nidade. E teve tambm os que rezaram sempre e assim mantiveram a f e a dignidade.

    Os afogados e os sobreviventes foi o ltimo livro

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    WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.1 n.1 (jan-jun) 2009

  • publicado em vida por Primo Levi, onde ele faz um balano final de sua passagem por Auschwitz.

    Entre os temas que desenvolve, destaco o captulo da violncia intil, no qual enfatiza o que a cruel-dade, feita de violncia, sem outro propsito a no ser fazer o mal ao outro. Esse tema, alis, um dos que segue sendo desafiante at hoje e o ser sempre,

    pois o que ocorreu na Segunda Guerra no pde ser imaginado pelos mais pessimistas pensadores. No foi por acaso que Theodor Adorno escreveu

    que no se pode mais escrever poemas depois de Auschwitz (HORKHEIMER; ADORNO, 2002).

    As ltimas quatro pginas do livro, denominadas Concluso, so para serem estudadas e no sim-plesmente lidas. So chaves para se pensar o que mesmo o homem, quem esta humanidade que tanto nos orgulha, por que a crueldade to pode-rosa. Primo Levi no analisa ponto por ponto todas estas questes, mas as destaca, chama a ateno dos leitores. Edgar Morin, em um de seus melhores livros, Meus demnios, no qual escreveu uma auto-biografia intelectual, reflete no captulo final sobre

    as origens da crueldade no mundo (MORIN, 1997).

    A mesma preocupao teve Jacques Derrida (2001)no fim de sua vida, uma de suas inquietudes que

    o levou a fazer hipteses sobre esse enigma ainda mal estudado. Aps tudo que ocorreu, perigoso manter a ingenuidade sobre a humanidade que, ao lado de sua poderosa criatividade, marcada tam-bm por poderosas foras destrutivas.

    As observaes de Primo Levi so instigantes e originais, o entusiasmo por sua obra segue sen-do justificado. Ele seduziu, com suas narrativas,

    escritores como Saul Bellow, Philip Roth, Italo Calvino, Jorge Semprn e hoje tem leitores por todo o mundo. A morte dele, ocorrida no dia 9 de abril de 1987, produziu um choque na Europa e foi decorrente de uma queda no vo da escada do edifcio onde morava. Durante muitos anos, a ideia

    de que tinha se suicidado foi dada como certa, mas ele no deixou nada escrito, nem havia uma prova de que desejasse se matar. A famlia discordou sempre dessa hiptese, afirmando que os medicamentos que

    ingeria o deixaram tonto e por isso caiu. Anos atrs, sua principal bigrafa, Myriam Anissimov, publicou a mais completa biografia dele, Primo Levi: tragedy of an optimist (Primo Levi: tragdia de um otimista), no qual conclui que pode ter ocorrido um acidente (ANISSIMOV, 1999). Fica a dvida sobre sua mor-te, mas vinte anos aps este triste episdio j no h dvidas que Primo Levi tem seu nome inscrito entre os escritores indispensveis do sculo XX.

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    WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.1 n.1 (jan-jun) 2009

    referncias

    ANISSIMOV, Myriam. Primo Levi: tragedy of an optimist. Woodstock/Nova York: Overlook Hardcover, 1999.

    ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalm: uma reportagem sobre a banalidade do mal. So Paulo: Companhia das Letras, 1999.

    DERRIDA, Jaques. Estados-da-alma da psicanlise: o impossvel para alm da soberana crueldade. So Paulo: Escuta, 2001

    HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialectic of enlightenment: philosophical fragments. Org. Gunzelin Schmid Noerr. Stanford: Stanford University Press, 2002.

    LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Srgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

    MORIN, Edgar. Meus demnios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

    RINGELBLUM, Emanuel. Crnica do Ghetto de Varsvia. Lisboa: Livraria Morais, 1964.

    SLAVUTZKY, Abro. Histria do levante do Gueto de

    Varsvia in ______. (coord.). O dever da memria: o levante do Gueto de Varsvia. Porto Alegre: AGE/Federao Israelita do Rio Grande do Sul, 2003, p. 17-57.