9_O Papel Do Outro Na Escrita Dos Sujeitos Surdos_Guarinello

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    D a do s I nt er na ci on a is d e C a ta lo q ac ao n a P u bl ic ac ao ( CI P)(C ama r a B r a si le ir a do L i v ro , SP , B r a si l)ANA CR IS TIN A G UARIN EL LO

    Gua ri n el lo , A na C r is ti n ao p ap el d o o ut ra na e sc ri ta d e s uj ei to s s ur do s I Ana C r is ti n aG ua ri ne ll o. - S ao P au lo : P le xu s, 2 00 7.

    Bibliografia .ISBN 1085-85689-80-3I SBN 13 978 -85 - 85689 -80 - 3

    1.C om un ic a~ ao e sc ri ta 2 . L i ng u ag e m - A q ui si ca o 3 . S u rd ez4 . S urd os - E du ca ~a o - L in gu ag em 5 . S urd os - E du cac ao -P or tu gu es 6 . S ur do s - M ei os d e cornunicacao 1. Titulo.06-8864 CDD-371.912

    I nd ic e p a ra c a ta Logo s is t em a ti c o:1. S ur do s : L in gu ag em e sc ri ta : A q ui si ca o :

    P ap el d o o utro : E du ca ca o 3 71 .9 12 o PAPEL DO OUTRO NA ESCR ITAD E S UJE ITO S S UR DO S

    Comp re em Lugar d e f o to c opi a r.C ad a r ea l q ue v oc e d a p or u m l iv ro r ec om pe ns a s eu s a ut or es

    e a s co nv id a a p ro du zir m ais so br e a te ma ;i nc en ti va s eu s e di to re s a e n com en d ar , t ra d uz ir e p u bl ic ar

    o ut ra s o br as s ab re a a ss un to ;e p ag a a os l iv re ir os p ar e st oc ar e l ev ar a te v oc e l iv ro s

    p ar a a s ua i nf or ma ca o e a s eu e nt re te ni me nt o.C ad a r ea l q ue v oc e d a p ela fo to c6 pia n ao au to riza da d e u m liv ra

    financia 0 crimee a ju da a m ata r a p ro du cao in te lec tu al d e s eu p ais.

    l;plexus,.. . .".,

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    E S T U D O S S O b r e a s u r d e z :C O N C E P ( / ) E S E P R A T IC A S

    U rn b re v e o lh a r h is t6 ri c o s o b re a e d u c a c a o d e s u r d o s 1A educacao dos surdos e urn tema atual e muito impor-

    tanter ja que existem inumeros professores que vivenciamsituacoes em sala de aula com esses alunos. Para dar infcio aessa discussao, farei uma breve revisao hist6rica sobre a edu-cacao dos surdos, destacando 0 lugar relevante que 0 desen-volvimento da fala sempre ocupou e 0papel secundario quefoi ocupado pelo ensino da linguagem escrita. Cabe ressaltarque 0objetivo nao e analisar fatos e conceitos hist6ricos, masresgatar a trajet6ria de iniciativas e tendencias no ensino dosurdo ate a atualidade.Ate 0 seculo xv, as ideias vigentes sobre os surdos e a sur-

    dez tinham conotacoes bastante negativas. Na Antigiiidade,os surdos eram considerados seres castigados pelos deuses.

    I Optou-se por usar neste livro 0 termo "surdo" para se referir as pessoasque nao usam a audicao de forma funcional, independentemente da perdaauditiva.

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    Para Aristoreles (384-322 a.C.), as pessoas que nasciam surdaseram tambem mudas e, consequentemente, nao podiam falarnenhuma palavra. Segundo Aristoteles, para atingir a conscien-cia humana, tudo deveria penetrar por urn dos orgaos do sen-tido, e ele considerava a audicao 0canal mais importante deaprendizado. 0 veredicto de Arist6teles de que os surdos naoeram treinaveis permaneceu por seculos sem ser questionado.Jios romanos diziam que os surdos que nao falavam naotinham direito legal. Os surdos romanos nao podiam fazertestamento e precisavam de urn curador para todos os seusnegocios. Ate mesmo a Igreja Catolica afirmava que suaalma nao era imortal, porque eles eram incapazes de dizeros sacramentos.Ainda em Roma, no seculo VI, durante 0 reinado do im-perador Justiniano, foi formulado 0Codigo Justiniano, que

    forneceu a base para a maioria dos sistemas legais na Europamoderna. Esse codigo fazia distincao entre a surdez e a mu-dez e ordenava que as pessoas que nascessem surdas e mudasnao poderiam fazer testamento nem receber heranca. Mas,se a pessoa nascesse ouvindo e, por doenca ou acidente, per-desse a voz ou a audicao, e j a tivesse recebido uma educacao,tinha a perrnissao de realizar tudo que era proibido ao surdo-mudo de nascenca (Vieira, 2000).A primeira alusao a possibilidade de instruir os surdos

    por meio da lingua de sinais e da linguagem oral foi feita porBartolo della Marca d'Ancona, escritor do seculo XIV Seriaesse 0 impulso inicial para que 0 surdo pudesse ser notadocomo uma pessoa capaz de fazer discernimentos, ou seja,tomar suas proprias decis6es.Outro avanco seria dado somente em mead os do secu-

    . 10XVI, quando 0 medico italiano Girolano Cardano propos(20))))

    o PAPEL DO OUTRO NA ESCRITA DE SUJEITOSSURDOS

    que os surdos poderiam ser ensinados. Cardano interessou-se por eles e pelo estudo do ouvido, do nariz e do cerebro ,pois seu primeiro filho era surdo. Elaborou tambem urn tipode c6digo de ensino para surdos, porern nunca colocou suasideias em pratica.N esse mesmo seculo, Pedro Ponce de Leon, monge be-

    neditino espanhol, seria considerado 0primeiro professor desurdos da hist6ria. Ele foi chamado para educar criancas sur-das, em geral filhas de nobres. Seus alunos eram ensinadosa falar, escrever, ler, fazer contas, orar e confessar-se pelaspalavras, a fim de ser reconhecidos como pessoas nos termosda lei e herdar os titulos e as propriedades da familia, ja queos mudos nao tinham esse direito.Nao se tern muita informacao a respeito do metodo uti-lizado por Ponce de Leon; sabe-se, porern, que ele utilizava

    uma forma de alfabeto manual- no qual cada letra correspon-dia a uma configuracao de mao. 0 objetivo de Ponce de Leonera ensinar seus alunos a falar e, para isso, utilizava os outrossentidos, como 0 tato e a visao, alem da leitura e da escr ita.No seculo Xvfl, descobertas e curiosidades cientificas mar-

    caram a historia 'da surdez. N a Espanha, os sucessores de Pon-ce de Leon passaram a se interessar pelas diferentes formas decomunicac;ao usadas pelos surdos.Em 1620, 0 espanhol Juan Pablo Bonet publicou 0 livro

    R e du cc i6 n d e l as l et ra s y a rte s pa ra e ns eii ar a h ab la r a lo s m u do s, quetrata da invencao do alfabeto digital, ja utilizado por Ponce

    20 alfabeto digital, manual ou datilologico e formado por sinais que represen-tam as letras do alfabeto das Iinguas orais. Segundo Felipe (1998), e utilizadopara expressar nomes de pessoas , de localidades e outras palavras que naopossuem urn sinal . Na transcricao, ~ representado pela palavra separada, le-tra por letra, por hffen (p. ex.:]-O-A-O).

    ( ( ( c 21 )l))

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    de Leon. Interessado na educacao de surdos, ele os ensinavaa falar por meio da leitura, do alfabeto manual e da gramatica.Para ensinar a fala, tambem manipulava os orgaos fonoarti-culatorios e utilizava uma lingua de couro para demonstrar asvarias posi~6es da lingua durante a articulacao dos fonemas.Bonet acreditava que primeiramente os surdos deveriam do-minar a leitura, a escrita e 0 alfabeto digital e, depois disso,estariam prontos para falar. Ele e considerado um dos pre-cursores do oralismo.Em outros paises da Europa, a educacao dos surdos tam-

    bern recebia atencao - principalmente em familias bem abas-tadas, que pagavam um preceptor para ensinar seus filhossurdos.Em 1644, John Bulwer publicou 0 primeiro livro em in-

    gles sobre a lingua de sinais, chamado Chirologia . Quatro anosdepois, publicaria 0livro Phi locopus , obra em que afirmava quea lingua de sinais era capaz de expressar os mesmos conceitosque a lingua processada pelo canal oraVauditivo. Bulwer enten-dia que os surdos deveriam primeiro aprender a ler e escrevere depois a falar, pois esse procedimento tornaria mais facil 0aprendizado da leitura labial.Ainda na Inglaterra, por volta de 1650, teorias sobre aaprendizagem da fala e da linguagem fizeram que dois ho-

    mens se interessassem pelos surdos: 0 reverendo WilliamHolder, que concentrou seu trabalho no ensino da fala, e 0reverendo John Wallis, que fazia uso do alfabeto manual parapronunciar as palavras em ingles e ensinar a escrita e a falaaos surdos. Wallis, que utilizava a palavra escrita como meiode instrucao, ensinou dois surdos a escrever, com 0 objetivode desenvolve-los intelectualmente. Wallis e considerado 0pai do metodo escrito de educacao de surdos. Algumas vezes

    (( 22 l l )

    o PAPEL DO OUTRO NA ESCRITADE SUJEITOS SURDOSusava 0 alfabeto digital para economizar tempo, alem da falae da leitura orofacial (LO).Na segunda metade do seculo XVII, 0 escoces Geor-

    ge Dalgarno (1626-1687) dec1arou que os surdos tinham 0mesmo potencial que os ouvintes para aprender e poderiamalcan~ar iguais niveis de desenvolvimento se recebessemeduca~ao adequada. Esse educador, em 1680, descreveu umsistema primitivo do alfabeto manual - que denominou sis-tema de datilologia -, no qual as letras eram representadaspelo apontar de uma mao a partes da outra. Para Dalgarno,as criancas surdas deveriam ser expostas a datilologia desdecedo, na esperan~a de que desenvolvessem a linguagem demaneira similar a das criancas ouvintes. 0 sistema propostopor Dalgarno nao e 0 mesmo alfabeto manual usado ate osdias de hoje na Gra-Bretanha.No seculo XVIII, houve urn aumento do interesse pela

    educacao dos surdos, e diferentes metodos de ensino foramdivulgados. Por volta de 1704, 0 alemao Wilhelm Keger de-fendeu a educacao obrigatoria para os surdos. Durante suasaulas, usava a escrita, a fala e os gestos para que seus alunosaprendessem.Por outro lado, 0 espanhol Jacob Rodrigues Pereire, se-

    guindo as ideias de Bonet, priorizava a fala e proibia 0uso degestos. Utilizava-se do alfabeto digital e costumava manipu-lar os orgaos fonoarticulatorios de seus alunos. Era fluenteno uso da lingua de sinais, mas usava-os para instrucoes, ex-plica~6es lexicais e conversacoes com os alunos. Seu objeti-vo, porem, era que os surdos se comunicassem oralmente epela escrita.Em 1750, na Franca, 0abade Charles Michel de LEpee (?-

    1789) comecou a ensinar duas irmas surdas a falar e escrever.

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    Sua grande preocupacao, porern, era dar atendimento priori-tariamente aos surdos que viviam nas ruas. Perambulando porParis, aprendeu com os surdos a lingua de sinais e criou os Si-nais Met6dicos, uma cornbinacao da lingua de sinais - que eleconsiderava incompleta - com a gramatica da lingua oral fran-cesa e com 0 alfabeto digital. Ele foi 0 primeiro a considerarque os surdos tinham uma lingua. Devido ao grande sucessode seu metodo, pela prime ira vez na hist6ria, os surdos foramcapazes de ler e escrever, adquirindo, assim, uma instrucao.Em 1760, 0abade fundou a primeira escola publica para sur-dos no mundo, 0 Instituto Nacional para Surdos-Mudos deParis, ja que acreditava que todos os surdos, independente-mente do nivel social, tinham direito a educacao.Nessa mesma epoca, naAlemanha, Samuel Heinicke propos

    uma filosofia de ensino para os surdos que, mais tarde, passou aser considerada 0inicio do que ficaria conhecido como metodooral. Essa metodologia utilizava-se somente da linguagem oralna educacao dos surdos, uma vez que, segundo seus defense-res, essa seria a situacao ideal para que eles se integrassem nasociedade ouvinte. Heinicke fundou a prime ira escola publicaalema para surdos baseada no metodo oral. Quando usava essemetodo, Heinicke recorria aos sinais gestuais algumas vezes,porern seu objetivo principal era fazer seus alunos se expressa-rem oralmente.No fim do seculo XVIII, surgiu uma celebre controversia

    entre Heinicke e 0abade de LEpee. Uma das grandes diferen-cas entre os dois educadores e que LEpee difundiu seu meto-do, apresentando-o inclusive em pracsas publicas, pois achavaque assim a populacao poderia ver seu exito. Durante essas de-monstracoes, seus alunos deveriam responder, em frances, emlatim e em italiano, a duzentas perguntas sobre religiao e fazer

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    F A F IC H / U .F M G - B I B L I O T E C Ao PAPEL DO OUTRO NA ESCRITA DE SUJEITOSSURDOSos sinais de duzentos verbos. Ja Heinicke nao costumava mos-trar seu metodo. Os doischegaram a trocar algumas correspon-dencias defendendo suas ideias. Em uma das cartas dirigidas arEpee, em 1872, Heinicke afirmou: "Nenhum outro metodopode ser comparado ao que eu inventei e pratico, porque essese baseia totalmente na articulacao da linguagem oral" (Skliar,1997b, p. 30). A divergencia entre Heinicke e LEpee marcou 0inicio da polernica entre a Ifngua de sinais e a tendencia oralista,que permanece ate hoje.Durante 0seculo XVIII, considerado 0periodo mais fertil

    da educacao dos surdos, alern do aumento de escolas, a lin-gua de sinais passou a ser empregada por professores surdos.Se esse fato pode ser entendido como uma grande conquista,o mesmo nao se pode dizer da concepcao oralista, pois comela cornecaria a hist6ria de submissao coletiva dos surdos alingua majoritaria dos ouvintes, bern como a desaprovacaosistematica da lingua de sinais nas escolas.No seculo XIX, os rnetodos de aprendizagem para surdos

    nao se restringiram apenas aos educadores. Em 1821, 0medi-co frances Jean Marc Gaspard Itard, considerado urn dos paisda otorrinolaringologia moderna, publicou 0 trabalho Tiaiu:d e s m a l ad ie s d e l 'o r ei ll e e t d e l 'a u di ti on afirmando que 0 surdosomente poderia ser educado pela fala e pela restauracao daaudicao, tal como acreditava Heinicke. Itard praticou variesprocedimentos medicos com os surdos, como aplicar eletri-cidade no ouvido de alguns alunos do Instituto de Surdos deParis, colocar sanguessugas no pescocso dos surdos, esperan-do que 0 sangramento ajudasse de alguma forma, e fazer cor-tes na tuba auditiva de outras criancas. Como ressalta Lane(1984), nenhum dos experimentos de Itard teve resultadossatisfat6rios. Para 0mesmo autor, ap6s varias tentativas frus-

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    tradas de curar a surdez, Itard concluiu que 0 ouvido dossurdos estava morto e que nao havia nada que a medicinapudesse fazer a esse respeito.Em contrapartida, 0 frances Auguste Bebian, urn ouvinte

    que resolveu conhecer os surdos e aprender a lingua de sinaisno Instituto de Surdos de Paris, escreveu Mimograph i e , em1822. Esse livro e considerado a prime ira tentativa de trans-cricao da lingua de sinais. Bebian acreditava que a lfngua desinais deveria ser usada em sala de aula e que os professoresdas escolas de surdos deveriam ser surdos.Nos Estados Unidos, ate 0seculo XVIII, nao havia escolas

    para surdos. As famflias americanas abastadas costumavammandar seus filhos surdos para ser educados na Europa. 0primeiro americano a se interessar pela educacao de surdosfoi Thomas Hopkins Gallaudet, que, percebendo a surdezde uma vizinha, iniciou seu trabalho como tutor da menina,usando 0 livro de Sicard, sucessor de ~ Epee, no Instituto deSurdos de Paris. Em 1815, foi contratado pelo pai da crian-

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    maioria ouvinte, obrigava-os a falar. Bell tinha como objetivoprincipal eliminar as Imguas de sinais, acabar com os casa-mentos entre surdos e ensinar a lingua rnajoritaria na mod a-lidade oral para os surdos. Por esses motivos foi consideradopelo primeiro presidente da Associacao Nacional de Surdosda America 0 inimigo mais temido dos surdos americanos(Lane, 1984).Em 1876, 0 imperador do Brasil, D. Pedro II, em visita aos

    Estados Unidos, foi convidado a conhecer 0Gallaudet Collegee se interessou pelo trabalho la realizado. Nesse mesmo perto-do, D. Pedro encontrou-se com Bell e testou a mais novainvencao deste, 0telefone.Enquanto isso acontecia nos Estados Unidos, naEuropa a

    abordagem oral ia ganhando mais forca. Em 1880, no Con-gresso Internacional de Milao, Bell aproveitou-se de todo 0seu prestigio em defesa do oralismo e ajudou na votacao sobrequal metodo deveria ser utilizado na educacao dos surdos. 0oralismo venceu, sendo 0uso da lingua de sinais oficialmenteproibido. Nesse congresso, os professores surdos foram ex-clufdos da votacao. Ap6s 0evento, a metodologia oral passoua ser util izada em todas as escolas para surdos, destacando-sea pratica terapeutica da fala. E importante salientar que osaspectos referentes a escolarizacao do surdo eram colocadosem segundo plano, ji que a enfase recaia sobre a reabilitacaoda surdez, com 0 objetivo de curar 0 surdo.Depois do Congresso de Milao, ate os fins de 1970, 0oralis-

    mo tomou conta de toda aEuropa. Cabe ressaltar que as praticasvigentes nesse modelo descaracterizaram 0 surdo, subordinan-do sua educacao a conquista da expressao oral, e excluindo osadultos surdos, que antes participavam do processo educativodos surdos - das escolas para surdos.

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    o PAPEL DO OUTRO NA ESCRITA DE SUJEITOSSURDOS

    De acordo com Sanchez, pesquisador venezuelano daarea da surdez, "a educacao dos surdos, sempre nas maosdos ouvintes, manteve quase que invariavelmente urn sen-tido de 'reabilitacao', de oferecer aos educandos a possi-bilidade de superar sua limitacao auditiva, para agir comoouvintes e com ouvintes, e, dessa forma, 'integrar-se' comose fossem ouvintes, na sociedade dos ouvintes" (Sanchez,1999, p. 35).Segundo Lane (1984, p. 111),

    a tradicao aralista e uma historia de inveja, plagio e se-gredos, mas nao de educacao. Seu objetivo sempre foi afala. Essa meta iniciou-se no seculo XVI com a ideia deurn homem, Ponce de Leon, de que a fala poderia serensinada aos surdos, e em seguida foi plagiada par Bo-net, copiada por Pereire, Wallis, Heinicke e Braidwood.A mesma ideia plagiada, publicada, traduzida, citada,mas sempre a mesma ideia, ou seja, a (mica pratica pos-sivel para "corrigir a anormalidade" e evitar a manifesta-~ao das diferencas, consistia em obrigar os surdos a falarcomo os ouvintes e, consequenternente, impedir-lhes 0uso da lingua de sinais. [Traducao da autora.]

    Essa posicao caracteriza uma concepcao clinico-terapeu-tica de surdez. Para Skliar (1997a), medicalizar a surdez sig-nifica tentar curar 0 problema auditivo, corrigir os defeitosda fala e treinar certas habilidades, como a leitura labial e aarticulacao, sem fazer uso significativo da lingua de sinais,argumentando que ela pode impedir 0 desenvolvimento dalinguagem oral. Assim, a concepcao clinico-terapeutica desurdez supoe que e possivel ensinar a linguagem, sustentan-

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    do a ideia de dependencia entre a eficacia oral e 0 desenvol-vimento cognitivo.Essa concepcao produziu verdadeiras privacoes sociais,

    emocionais e psicol6gicas na vida das pessoas surdas, umavez que propunha que somente por meio da fala e que ascriancas surdas poderiam se tornar cidadas em uma socie-dade ouvinte. &raticas da educacao dos surdos passaram aser voltadas apenas para aspectos terapeuticos, eo objetivo docurrfculo escolar era dar ao surdo exatamente 0 que lhe fal-tava, ou seja, a audicao e a fala. Desse modo, as escolas eramclinic as e os alunos, pacientes.o oralismo dominou em todo 0mundo ate adecada de 1960.Em 1960, William Stokoe, linguista americano da Universida-de Gallaudet, publicou 0 artigo "Sign language structure: anoutline of the visual communication system of the Americandeaf" (''A estrutura da lingua de sinais: 0perfil de urn sistemade comunicacao visual dos surdos americanos"), demonstran-do que a Lingua de Sinais Americana era uma lingua com todasas caracteristicas das linguas orais. Com base nessa publicacaosurgiram varies estudos e pesquisas sobre as Iinguas de sinais esua aplicacao na educacao de criancas surdas.Na mesma epoca, principalmente nos Estados Unidos, e

    em menor grau no resto do mundo, iniciou-se urn grandemovimento, pelo qual as diferentes minorias reivindicavamo direito a uma cultura propria, a ser diferente, e denuncia-yam a discriminacao a que eram submetidas. Esse movimen-to iniciou-se com as minorias etnicas, como os negros, indiose latinos, e se estendeu as pessoas com necessidades espe-ciais; assim, os surdos puderam encontrar urn caminho paraque suas vozes fossem ouvidas, ou seja, para que as pessoaspudessem "ouvir" os gestos.

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    a PAPEL DO OUTRO NA ESCRITA DE SUJEITOS SURDOSNos anos 1970, devido a grande insatisfacao com os resul-

    tados do oralismo e as pesquisas sobre pais surdos com filhossurdos, alguns estudiosos propuseram a adocao dos sinais naeducacao dos surdos. Assim, passou a ser adotada uma filo-sofia definida como "comunicacao total", a qual propoe 0 usode gestos naturais, da lingua de sinais, do alfabeto digital, daexpressao facial, da fala e dos aparelhos de amplificacao sono-ra para transmitir linguagem, vocabulario, conceitos e ideias.Apesar de essa filosofia usar alguns elementos da lingua desinais, seu objetivo principal continuava sendo a fala e a inte-gracao do surdo a sociedade ouvinte. Sua premissa basica eraa utilizacao de toda e qualquer forma de cornunicacao com acrianca surda.A comunicacao total comecou a se espalhar rapidamentepela grande maioria das escolas em varies paises do mun-

    do e teve mais repercussao que outros metodos americanos,como 0 Rochester (que utiliza 0 alfabeto manual e a fala naeducacao dos surdos) eo Cued Speech (que combina 0 usada audicao residual e da leitura orofacial a formatos de mao,correspondentes aos fonemas da linguagem oral) .Apesar de varias escolas em todo 0mundo terem comecado

    a utilizar a comunicacao total, surgiram algumas controversiascom relacao ao uso dessa "filosofia", que passou a ser utilizadacomo urn metodo no qual a fala e os sinais sao usados simul-taneamente. Por se tratar de uma s6 lingua produzida em duasmodalidades, Schlesinger e Namir (1978) propuseram que seusasse 0 termo "bimodalismo" para diferenciar de "bilinguis-mo", que se refere ao uso de duas lfnguas.A comunicacao total teve efeitos muito fracos, ja que 0 su-

    cesso acadernico dos surdos da America nao sofreu resultadossignificativos, pois e simplesmente impossivel utilizar simulta-

    @ 31 ))

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    neamente duas lfnguas. Por ser ouvinte, 0professor assujeita alingua de sinais a lingua majoritaria, omitindo a rica morfolo-gia da lingua de sinais e trocando a ordem dos sinais, tornando,consequentemente, a mensagem sinalizada quase impercepti-vel as criancas surdas e sem nenhuma ordem gramatical. Alerndisso, a lingua majoritaria tambem e alterada e 0 ritmo da falae diminuido em virtude do duplo desempenho.No final da decada de 1970, principalmente nos Estados

    Unidos, inicia-se urn movimento de reivindicacao pela lingua ecultura das minorias linguisticas, sendo os surdos consideradosmembros de uma comunidade minoritaria que usa urn idiomaproprio, ou seja, a lingua de sinais. A partir dai, eles passaram areivindicar 0 direito de usar a lingua de sinais como primeiralingua (L1) e de aprender a lingua majoritaria como segun-da lingua (L2). Surge, entao, a opcao de uma abordagem bilin-gue para os surd os, caracterizada pelo uso da lingua de sinaisda comunidade surda e pela lingua da comunidade majoritiriaem momentos diferentes. A partir dos anos 1980 e 1990, a pro-posta passou a angariar cada vez mais adeptos em alguns paisesdo mundo, principal mente na Escandinavia e em alguns paisesda Europa e da America Latina. Essa abordagem tern 0 pres-suposto basico de que 0 surdo deve adquirir como prime iralingua a lingua de sinais, considerada sua lingua natural, e comosegunda a lingua oficial de seu pais. A adocao do bilinguismoe compativel com a concepcao socioantropologica de sujeitosurdo e de surdez (Skliar, 1997a).A concepcao socioantropologica sustenta que os surdos

    formam uma comunidade linguistic a minoritaria, que utilizae compartilha uma lingua de sinais, valores, habitos culturaise modos de socializacao proprios, A comunidade surda, en-tao, e aquela que utiliza a lingua de sinais, possui identidade

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    o PAPEL DO OUTRO NA ESCRITA DE SUJEITOSSURDOSpropria e se reconhece como diferente. A surdez passa, as-sim, a ser vista como diferenca e nao deficiencia.Dois fatores sao relevantes para essa concepcao de surdez.o primeiro leva em conta que os surdos formam comunida-

    des que utilizam a lingua de sinais, e 0 segundo defende queos filhos surdos de pais surdos apresentam melhor desempe-nho academico e mais habilidade para aprender a linguagemoral e a escrita.Embora se reconheca a importancia da lingua de sinais,

    nao se pode desconsiderar 0papel relevante das relacoes quea crianca surda estabelece com seus interlocutores em seudesempenho, independentemente de os pais serem ouvintesou surdos.Skliar (1997a, p. 145) sustenta que "aexperiencia previa com

    uma lingua contribui para aquisicao da segunda lingua, dandoa crianca as ferramentas heuristicas necessarias para a busca ea organizacao dos dados lingufsticos e 0 conhecimento, tantogeral como especffico, da linguagem". Assim, para 0autor, paraque a crianca tenha essas experiencias e indispensavel a presen~ade adultos surdos e da lingua de sinais em seu cotidiano, princi-palmente na escola, para garantir uma educacao eficiente.De qualquer forma, toda crianca necessita de urn ambien-

    te linguistico adequado, no qual possa desenvolver sua linguanaturalmente. Essas condicoes ocorrem normalmente em fa-mflias ouvintes; porem, para os surdos, filhos de pais ouvintes,desenvolverem a lingua de sinais, eles precisam interagir compessoas que utilizem essa lingua.Quanto a educacao dos surdos no Brasil, em 1857, gracas

    aos esforcos de Ernest Huet, urn professor surdo frances, foiinaugurado no Rio de Janeiro 0primeiro Instituto Nacionalde Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Surdos (Ines).

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    Huet utilizava a lingua de sinais e of ere c ia aos surdos umprograma educacional.Em 1911, seguindo a tendencia mundial, 0 Ines estabe1e-

    ceu que 0metodo oral puro seria adotado em todas as disci-plinas da escola; porem, como varios alunos tiveram um bai-xo aproveitamento com a utilizacao desse rnetodo, ele passoua ser indicado as criancas que poderiam se beneficiar da fala.Em 1957, a entao diretora do instituto, Ana Rimola de FariaDoria, proibiu oficialmente a lingua de sinais em sala de aula.Apesar de todas as proibicoes, a lingua de sinais sempre foiutilizada pel os alunos as escondidas (Vieira, 2000).A educacao de surdos no Estado de Sao Paulo e em outros

    Estados brasileiros a principio seguiu uma tendencia oralistae tinha como objetivo integrar 0surdo a comunidade ouvin-teo A reabilitacao oral e auditiva era instrumento basico parao trabalho proposto.No final da decada de 1970 a cornunicacao total passou

    a ser utilizada no Brasil, e, na decada de 1980, com base naspesquisas da linguista Lucinda Ferreira Brito, come~aram osestudos sobre a Lingua Brasileira de Sinais (Libras). Atual-mente, 0oralismo (abordagem que trabalha somente coma linguagem oral, compreendendo que esta e essencial paraa integracao do surdo a sociedade ouvinte), a comunicacaototal (uso concomitante da fala e dos sinais) eo bilinguismo(abordagem que propoe que 0surdo seja exposto a lingua desinais e a lingua da comunidade ouvinte majoritaria, porernsem usar ambas as linguas concomitantemente) sao utiliza-dos tanto na educacao como nos atendimentos fonoaudiol6-gicos de individuos surdos.Por meio dessa breve revisao hist6rica, percebe-se que asconcepcoes de surdez e de pessoa surda passaram por algu-

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    mas mudancas, desde 0modelo clinico medico da surdez,que considera 0 surdo um ser incapaz e "doente", ate 0 mo-delo que 0considera um membro da comunidade lingufsticaminoritaria, que usa a lingua de sinais''. Esse "novo olhar",que considera 0 surdo como diferente e valoriza sua capaci-dade de desenvolvimento, amplia as possibilidades de adocaode novas alternativas pedag6gicas e praticas fonoaudiol6gicasvoltadas para 0 trabalho com os surdos.P r a n c e s c o m a l i n g u a g e m e 0 t r a b a lh o c o ms u j e i t o s s u r d o sTradicionalmente, as questoes da linguagem dos surdos

    tern sido tratadas de acordo com as habilidades de comunica-~ao expressiva e receptiva. A surdez e concebida como umaprivacao da audicao, sendo esse impedimento de aces so aossons da fala responsavel pelas dificuldades de aquisicao dalinguagem. Nessa concepcao, a linguagem fica limitada a fala,e 0 surdo tem problemas para adquiri-la apenas porque naoescuta. Dessa forma, todo 0 entendimento sobre 0 proces-so de aquisicao de linguagem e 0 papel do outro em relacaoao desenvolvimento linguistico da crianca ficam reduzidos aaquisicao sistematica da fala.Nos iiltimos cem anos, a educacao dos surdos baseou-sena aquisicao da fala, como primeiro requisito para integrar 0surdo a sociedade ouvinte. Quando os primeiros cursos de fo-noaudiologia surgiram no Brasil, por volta dos anos 1960, os

    _ 3 Em 24 de abri l de 2002, foi sancionada a Lei n- 10.436, pelo entao presiden-te da Republica Fernando Henr ique Cardoso. Essa lei reconhece a LinguaBrasileira de Sinais como meio legal de comunicacao e expressao uti lizadopelas pessoas surdas do Brasil.

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    fonoaudi610gos rambem assumiram essa perspectiva da aqui-si

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    seja, irnitacao e reforco; e e nessa relacao que a linguagem eincorporada pela crianca. Assim, a crianca, segundo Arantes(1997), e percebida como uma t ab u la r as a, e 0outro - 0 tera-peuta - conduz 0processo de modelagem do comportamen-to lingufstico como urn adestrador, ou seja, urn estimulador-refor~ador.Profissionais que se orientam por essa visao de lingua traba-

    lham de maneira fragmentada, uma vez que seu enfoque prin-cipal volta-se para as producoes articulatorias, das mais simplesas mais complexas, em detrimento das situacoes dialogicas con-textualizadas, ou seja, das atividades discursivas. Como resul-tado dessa pratica, em geral, a crianca adquire urn vocabulariopequeno e uma compreensao atrelada ao sentido literal.Para Rosa (1998, p. 101), "a atuacao fonoaodiologica con-

    funde-se com a pedagogica, assentando-se em uma praticade ensino da lfngua. As praticas pedagogicas se sustentam naterapia fonoaudiologica pela pressuposicao de controle sobreo funcionamento Iinguistico".Urn segundo grupo de profissionais, que concebem a lin-

    gua como codigo, baseia-se no pressuposto de que a criancadeve ser exposta a lfngua, de acordo com uma hierarquia decomplexidade sintatica. Os mecanismos inatos de cada falan-te sao ativados pela exposi~ao a fala do outro. No caso dossurdos, considera-se que estes, como os ouvintes, tambemnascem com urn mecanismo para adquirir linguagem, des-de que expostos a urn input lingufstico. Alguns estudos comcriancas surdas partem do pressuposto de que 0acesso a lfnguase da diretamente, sem a mediacao do adulto.ja que a propriacrianca disp6e de recurs os internos para organizar as regrasda gramatica da lfngua a qual esta sendo exposta; a enfase edada a recepcao e producao de enunciados e nao a linguagem

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    como atividade discursiva (Trenche, 1995). A preocupacaodos estudiosos que perce bern a linguagem como inata volta-se para a sintaxe, ou seja, para a emergencia de constituintessintaticos e suas cornbinacoes.As propostas utilizadas com surdos nessa perspectiva ge-

    ralmente os exp6em a sequencias faladas que seguem hierar-quicamente a complexidade sintatica da lfngua. Uma delas ea abordagem unissensorial (abordagem que enfatiza 0desen-volvimento das habilidades auditivas como pre-requisite parao desenvolvimento da linguagem dos surdos) defendida porPollack (1970), bastante difundida na audiologia educacio-nal (area na qual os fonoaudiologos atuam na (rejhabilitacaoda surdez). Pollack prop6e a oralizacao dos deficientes au-ditivos" baseando-se no aproveitamento da audicao residual.Para a autora, a aquisicao da linguagem dos surdos ocorrenaturalmente, des de que lhes seja garantido 0acesso a linguamajoritaria falada durante os primeiros anos de vida. Assim,apresenta atividades vol tad as ao treino da audicao, partindoda atencao, da localizacao, do reconhecimento, da compre-ensao e da imitacao, evitando a utilizacao de pistas visuais.o trabalho baseia-se somente na aquisicao da fala, e 0 adultoouvinte e 0 responsavel pelo material lingufstico fornecido acrianca surda. Esse material e geralmente composto por listasde palavras e frases previamente elaboradas, tendo como ob-jetivo facilitar 0 acesso a linguagem oral.Uma terceira concepcao que percebe a lingua como co-

    digo subordinou 0desenvolvimento linguistico ao desen-volvimento cognitivo, baseada principalmente nos pres-

    4 Cabe esclarecer que 0 termo "deficiente auditivo" e usado por Pollack; poressa razao e que foi mantido nesta obra.

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    supostos de Piaget, que se dedicou a entender 0conheci-mento humano, sem se deter em uma teoria de linguagem.Piaget (1996) considera que 0 desenvolvimento cognitivo eprogressivo e e resultado da interacao do individuo com 0meio. Desse modo, a crianca participa ativamente da cons-trucao do seu conhecimento. Para esse autor, a linguagemso emerge apos certas operacoes do perfodo sensorio-mo-tor terem sido adquiridas. Esse periodo, segundo Piaget,caracteriza-se por construcoes que se efetuam apoiadas empercepcoes e movimentos, ou seja, a crianca realiza algu-mas condutas cognitivas que serao a base para adquirir outrascondutas posteriormente.Assim, a linguagem e urn dos aspectos de uma funcao mais

    amp la, ou seja, a funcao serniotica, que se manifesta quandoa crianca passa a utilizar nao apenas esquemas motores, mastambern esquemas representativos.Para Arantes (1997), nessa perspectiva, a linguagem esta

    a service das construcoes cognitivas da crianca e e , portan-to, .instrumento do pensamento. Na clfnica fonoaudiologica,o desenvolvimento cognitivo e questao central, alem de serdeterminante ao desenvolvimento Iinguistico. 0 papel do te-rapeuta e propiciar situacoes que permitam a acao e a desco-berta por parte da crianca.Apesar de Piaget nunca ter proposto metodos para 0 tra-

    balho clinico e nem para 0 trabalho com sujeitos surdos, suasreflex6es sobre a cognicao contribuem para a elaboracao depesquisas que enfatizam a importancia do desenvolvimentodo potencial cognitivo para a aquisicao da linguagem pelo su-jeito surdo. Trenche (1995) menciona estudos com criancassurdas que seguem os pressupostos de uma teoria cognitivista.Esses estudos se dividem em dois grupos: no primeiro, os au-

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    tores tern como objetivo a verificacao do desenvolvimento dehabilidades cognitivas por criancas surdas; no segundo, pres-sup6em que as criancas surdas apresentam desenvolvimentocognitivo semelhante ao das ouvintes e se detem na verificacaode relacoes sernanticas expressas por essas criancas.Os estudos baseados no modelo cognitivista geralmente

    privilegiam 0 conteudo no lugar da forma, e, como nos mo-delos anteriores, a enfase e dada a recepcao e producao deenunciados e nao a linguagem como atividade discursiva.Ja os estudos que privilegiam a linguagem como atividade

    discursiva nos levam a olhar de outra maneira para 0 trabalhopratico com criancas surdas. Nessa perspectiva, a linguageme percebida como constitutiva do pensamento; assim, a ati-vidade discursiva se define pela a~ao do sujeito sobre e coma lingua.Essa concepcao considera 0 social "lugar de insercao do

    organismo na ordem simbolica" e a linguagem "condicaonecessaria para 0pensamento e para a construcao do conhe-cimento" (Trenche, 1995, p. 62). A construcao da linguagemse da na interacao, entendida como "matriz de significacoes".E por meio da linguagem que a crianca age sobre 0 mun-do e sobre 0outro. A crianca e percebida como ativa nesseprocesso de construcao de conhecimento e 0adulto e vistocomo urn mediador entre a crianca e 0 mundo; e ele quematribui sentidos e significados a linguagem da crianca, agindocomo interprete. 0 dialogo, e nao as palavras e frases soltas,e considerado unidade minima de analise. A linguagem e 0conhecimento que se originam nas atividades entre sujeitospassam a embasar 0 processo terapeutico.o belga Bronckart (1999) baseia-se em uma concepcao delfngua como atividade discursiva e afirma que e por meio da

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    linguagem que a crianca, desde que nasce, age sobre 0mundoe sobre si mesma, ja que, a partir de entao, passa a ser expostaa atividade da linguagem no meio humano. "Em outros ter-mos, comeca a reproduzir as formas de correspondencia entreo domfnio sonoro e 0 dos outros objetos, tais como Ihe saopropostas por seu meio social; em suma, corneca a praticar ossignos de uma lingua natural" (Bronckart, 1999, p. 53).Bronckart, portanto, estuda a linguagem em sua dimen-

    sao discursiva ou textual, pois compreende que 0 texto e 0discurso sao as unicas manifestacoes empiricamente observa-veis das acoes da linguagem humana e das relacoes de inter-dependencia entre as producoes de linguagem e seu contextosocial. Apesar de nunca ter mencionado as criancas surdas,pode-se utilizar sua concepcao de lingua no trabalho com es-sas criancas.ja que os surdos tambern agem sobre 0mundo esobre si mesmos por meio da linguagem.Na perspectiva discurs iva, a constituicao da linguagem

    e um processo vivido ativamente por sujeitos engajados ematividades socioculturais, nas quais 0 adulto e 0mediador en-tre a crianca e 0 objeto lingtiistico. No processo terapeuticoe educacional de sujeitos surdos, os problemas de linguagemapresentados por essas criancas geralmente nao sao decor-rentes apenas da surdez, mas, sim, da maneira como elas saoinseridas na linguagem. Cabe ressaltar, portanto, que 0 tra-balho pratico que se baseia somente em uma concepcao delingua como c6digo precisa modificar as possibilidades do"ouvir" e do "olhar" para que 0 atendimento ao surdo seja

    uma pratica da linguagem em funcionamento, onde uni-dades, lugares e valores sao definidos dentro do sistemada lingua. Considera-lo como pratica discursiva aten-

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    o PAPEL DO OUTRO NA ESCRITA DE SUJEITOSSURDOSde a demanda de duas falas que se afetam mutuamente,sentidos que se constituem na interacao de uma sobrea outra. Escutar a fala do paciente ganha relevancia noprocesso terapeutico; escutar para significar; significarpara fazer circular (Rosa, 1998, p. 108).

    Com base nas reflex6es trazidas ate aqui, nota-se que, porurn longo periodo, 0 trabalho realizado com os surdos cen-trou-se principalmente na aquisicao da fala. Nessa concep-c;ao, a crianca surda deve aprender a ouvir e a falar, por meiode atividades mecanicas que partem de sons e palavras parafrases e enunciados mais longos. A lingua e percebida comourn c6digo a ser aprendido gradativamente. A lingua de si-nais e desconsiderada e excluida de seu desenvolvimento eeducacao; bern como a linguagem escrita, que ainda hoje edeixada para segundo plano em muitas instituicoes que tra-balham com surdos. Para alterar esse quadro, 0 trabalho comos surdos precisa estar fundamentado em uma concepcaodiscursiva de lingua, eo adulto que interage com esse sujei-to deve intervir em seu processo de aquisicao da linguagem,atribuindo sentido e significado a sua "fala", ou seja, agindocomo mediador (co-autor) e assurn indo a responsabilidadede estruturar 0discurso dessa crianca.

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