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A AMBIGÜIDADE DO MAL EM KARL BARTH E PAUL TILLICH.

Sílvio Murilo Melo de Azevedo, FASB (Brasil)Doutor em Ciências da Religião

RESUMO

O presente artigo pretende retornar aos clássicos da TeologiaEvangélica, mais especificamente a assim chamada Teologia Dialética,resultante da reflexão de Karl Barth e Paul Tillich. Nosso interesse,desta feita, é sua crítica teológica e profética às pretensões da vaidadehumana, que aparecem, por exemplo, nas soluções definitivas para oproblema do Mal, tenham eles cunho político ou religioso, como, porexemplo, as ideologias de esquerda ou direita e as abordagensmaniqueístas da religião, bem como qualquer outra forma de pensa-mento que pretenda prover-se de um critério decisório desta nature-za. Este texto analisa sucintamente os fundamentos ontológicos e ônticosdo Mal nesses autores, bem como os conceitos de autonomia edemonismo, e sua aplicabilidade hermenêutica aos tempos de corro-são moral e ética como aqueles em que vivemos.

ABSTRACT

This article intends to return to the Evangelical Theology,specifically the so called Dialectical Theology, as it appears in K. Barthand P. Tillich’s theories. Our regard lays upon the author’s theologicaland prophetic critiques to the humam vanity, suach as final solution forthe evil problem, in either religious or political, left or right ideologiesas well as Manichean approach to religious or any other from of thinkingtha tintends to provide itself with this kind of decision criteria. This textanalizes the ontological and ontical foudations of Evil, and the conceptsof autonomy and demonism and its hermenetical applicability ofcontemporary times of moral and ethical corrision in which we live.

INTRODUÇÃO

O problema do Mal é um tema recorrente na Teologia cristã.Nada mais natural, dado que, no transcurso dos tempos, a questãoaparece ligada a praticamente todos os grandes problemas teológicos

Hermenêutica, Volume 7, 1-182007 Centro de Pesquisa de Literatura Bíblica

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por causa da difícil síntese entre o espírito judaico e o espírito gregode que é formada a Teologia Cristã. Primeiro, o problema ocorre ba-sicamente porque, com a aparição das idéias religiosas judaico-cris-tãs num contexto filosófico grego dominado pelo Platonismo e peloAristotelismo, também surge um concurso conflituoso do conceito gregoda matéria e da noção de Ser, cuja incompatibilidade alimentará osdebates cristológicos dos primeiros séculos quando o Cristianismo ten-tou refletir sobre a ligação do divino com o humano na pessoa deJesus Cristo.

O conceito de Ser enquanto princípio originador e coordenadorda realidade (desde os pré-socráticos até os estóicos) foi integradoao conceito do divino pela Filosofia Clássica (Platão e Aristóteles),1 aqual desde logo rejeitou as deidades homéricas por sua péssima re-presentação do divino. Mais tarde, sob o efeito das forçassintetizadoras do Helenismo, as concepções de Platão e Aristótelesirão se unir na teoria das emanações, em que o divino cria o mundoinvoluntariamente porque dele emanam os seres, como que proveni-entes de um excesso espontâneo e incontrolável do divino. Com osurgimento do Cristianismo este princípio originador e ordenadormetafísico é naturalmente incorporado à Teologia, que o inclui entreos atributos divinos ao lado daquelas qualidades nitidamente hebraicas,tais como a personalidade, a interatividade e a santidade. Aconteceque, no contexto da filosofia grega, há uma rejeição natural à atribui-ção dessas qualidades bíblicas do divino, porque o divino não podeser condicionado nem pela matéria nem pela história. Há um impedi-mento ontológico, em virtude da exigência de que a divindade devaser autônoma, sendo esta sua principal qualidade como matriz do Beme do Belo.2

1 A transcendência divina é reforçada e absolutizada em ambos pensadores: emPlatão Deus habita no mundo das formas puras e é o sol que ilumina e dá sentido àsidéias, restando a um deus operário a criação do mundo material; em Aristóteles,Deus é o “primeiro motor imóvel” que movimenta causalmente o universo à distância,por que é sua causa final.2 A escola platônica valia-se de uma terminologia própria para explorar todos osângulos desta incompatibilidade: me on para a oposição dialética da matéria emrelação às essências, e ouk on para a oposição ontológica, sendo esta última ameaçaconstante de subversão do kosmos.

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Mais tarde, no tempo dos debates antropológicos eeclesiológicos, como o de Sto. Agostinho com Pelágio e quanto à na-tureza da Eucaristia entre católicos e protestantes, a mesma questãode fundo permanece: respectivamente, como é possível a existênciado Mal face a um Deus bondoso, santo e onipotente e, admitida aconcessão da liberdade para explicar sua existência, como é possívelque Deus se relacione com seres humanos contaminados por este Mal?As respostas possíveis fornecidas pela Teologia Sistemática são pelomenos três: (a) a negação do Mal, (b) a negação da onipotência divinae (c) a negação da liberdade.

O problema atravessou os séculos com a solução ora pendendopara o Ser (Deus, Providência) ora para a matéria (materialismo, fata-lismo, libertarianismo). Isto é o que percebe quem acompanha a evo-lução histórica de uma disciplina da Teologia Sistemática, a Teodicéia,que justamente procura responder estas perguntas. Nos momentos decrise, a humanidade tem se inclinado para a liberdade. Por exemplo,na época do terremoto de Lisboa (1755), surgiu na Europa e Américado Norte o assim chamado Deísmo, sustentado por ataques iluministasà bondade divina (Pope, Voltaire, Goethe e Kant). No século XX,após a eclosão da primeira grande guerra o pessimismo varre a Euro-pa causando a derrocada de sistemas filosóficos que haviam sobrevi-vido ao ocaso do século XIX (neokantismo e hegelianismo) que, dealgum tempo, já vinham sob cerrada crítica (Schopenhauer, Nietzche,Kierkegaard e Karl Marx). É deste manancial entre escombros quesurge o existencialismo proclamando uma liberdade radical, cujo sen-tido não mais depende de uma intuição ontológica, mas de uma cons-trução na história; sem esquecer aqueles que negam à existência qual-quer sentido, como é o caso do existencialismo ateu de Albert Camus:“a existência é um absurdo.”

Essa breve apresentação dos desenvolvimentos dessa parte daTeologia Cristã nada mais pretende do que sugerir precariamente aexistência de uma multiplicidade de injunções quanto a estas conside-rações sobre o Mal, e que muito propriamente poderia ser chamadade “o campo minado da Teologia Sistemática.” Com efeito, até hoje,poucos se arriscaram a apresentar uma exposição teológica completa,que dê conta de toda a complexidade resultante da tentativa de conci-liação entre esses elementos filosóficos e teológicos. O transcurso da

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história da Teologia está juncada com as escolhas heréticas dos quenaufragaram por não terem conseguido se desviar das soluções fáceise ao mesmo tempo perigosas.

Nos anos mais recentes, depois de longo recesso em que a pre-ocupação maior tinha sido histórico-dogmático e cristológico, a Teo-logia volta a se interessar pela questão, movida, talvez, pelos recentesacontecimentos que horrorizaram o mundo: duas guerras totais, omorticínio de milhões de pessoas e o absurdo que deu origem a tudoisto: as heresias materialistas das quase-religiões, o Nazismo e oStalinismo. Neste contexto faz-se necessário repensar o Mal, na con-sideração do ser humano, de suas relações com seus semelhantes ecom Deus. Quanto a estas questões avulta a importância da assimchamada Teologia Dialética, bem como de duas de suas figuras maisexponenciais, Karl Barth e Paul Tillich, que já de algum tempo se tor-naram autores obrigatórios para todos aqueles que querem compre-ender o que aconteceu no século XX e o que pode vir a ocorrer noséculo que dá os primeiros passos. O encontro desses pensadoresreligiosos com sua época produziu reflexões importantes sobre as di-ficuldades na identificação do Mal em virtude de tantas bifurcaçõesque geraram perigosas polarizações àquelas soluções fáceis mencio-nadas mais acima.

E aqui reside a principal qualidade da Teologia Dialética: elamantém as tensões dos elementos imbricados (Santidade e Onipotên-cia divinas e Liberdade humana) e faz com que da distensão dessesnasça um critério para a compreensão do Mal mais dinâmico e efici-ente para identificar um Mal, cuja principal qualidade é uma naturezadissimulada, que procurar se ocultar por trás desses elementos na pre-tensão de fazer-se passar por eles.

Concluindo esta introdução, a meu juízo, a relevância dos teó-logos dialéticos vai além de mero auxílio para a compreensão do queaconteceu no século que desaparece no horizonte. Sua leitura é im-portante também para uma profunda compreensão de um dos ele-mentos que compõem esta problemática: o ser humano, o hospedeiropreferencial do Mal. A Teologia Dialética revela a falibilidade das pre-tensões do racionalismo, e, isto fazendo, acaba se tornando útil tam-bém para os pós-modernos e para incomodar a comodidade deles emnegar a existência do Mal e de qualquer valor de natureza universal.

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Em suma, numa época de aporias insolúveis, desde que mergulhadasnum ambiente relativista, é interessante aprender a caminhar na ausên-cia de caminhos, ou antes, na ausência de critérios para a escolha decaminhos.

TEOLOGIA DIALÉTICA

Os dois teólogos em questão têm uma base filosófica comum:Barth nega a validade de uma resposta estritamente sistemática para oproblema: “a existência implica a inconsistência” (Church Dogmatics -CD III / 1, p. 295), de modo que, a reposta tem que ser existencial enão por meio da abstração de um sistema. Tillich opta por um caminhomédio, ele crê que se pode sistematizar a existência, por que a exis-tência não tem sentido sem uma essência, ou seja, esta garante àquelaa possibilidade de tornar-se compreensível.3 Embora a divergênciametodológica vá ser motivo de antagonismo entre os dois autores, nãose pode deixar de perceber a influência que a filosofia existencialistaexerce sobre ambos: em Barth, especialmente, via Kierkegaard e emTillich via Schelling.

Apesar dos protestos de Tillich de que a hermenêutica de Barthcomeça com a reposta da revelação, enquanto a dele começa com apergunta existencial do homem moderno, na verdade, o que tanto umcomo outro pretendem é dar esta resposta existencial para que a vidahumana não mergulhe no absurdo camusiano. O que os diferencia éuma questão de ênfase quanto às fontes: Barth baseia-se principal-mente nas fontes histórico-dogmáticas da Tradição cristã (chanceladaspelo ministério do Espírito Santo), enquanto Tillich fundamenta-se nasfontes místico-filosóficas da Tradição religiosa Ocidental. Fica evi-dente em seus textos que o problema de fundo que eles querem resol-ver é o da relação entre Liberdade / Mal e a Onipotência / Bondade /Santidade de Deus.

Achei por bem dividir a seguinte exposição em duas partes: (a)o Mal e a criação e (b) o Mal e a história. Esta divisão não é gratuita,ela se apresenta na obra dos autores citados. Em Karl Barth, sua fun-damentação ontológica do mal aparece na doutrina da criação

3 Paul Tillich. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX (SãoPaulo, Aste, 1990), p. 226.

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(Dogmática Cristã); quanto à fundamentação ôntica ele a discute naética individual (tema que aparece disperso na obra imediatamentecitada, e em seus trabalhos de Teologia Política) (Against the Stream,Community, State and Church).4 Em Paul Tillich a primeira discus-são aparece em sua Teologia Sistemática (Systematic Theology – ST):a doutrina de Deus (ST I); a segunda, também subdividida em duas: omal e o indivíduo (estrangement) (ST II), e o mal e a coletividade(demonism) (ST III ).

O MAL E A CRIAÇÃO

Antes de tudo é preciso esclarecer que criação aqui não tem omesmo sentido das sistemáticas mais tradicionais, pois nem Barth etampouco Tillich aceitam pensar em criação como ação pontual deDeus no ato de trazer as coisas à existência. Segundo Barth, acompa-nhando a crítica textual liberal, as protologias do livro de Gênesis sãoexpressões mitológicas e, além disso, são textos confusos, cheios delacunas e repetições.5 Para Tillich a historicidade dos relatos não ésequer cogitada, pois, segundo ele, o próprio texto não tem a preten-são de ser relato temporal (ST II , p. 29). Ressalve-se, porém, quequando ambos falam de “relatos mitológicos,” o sentido que queremimprimir ao termo mito não se dá a partir de uma perspectiva exegética,mas hermenêutica, conforme a noção bultmaniana.6 Ou seja, isto nãodeve significar seu descarte, sua superação, mas a necessidade deserem mantidos e reinterpretados para que o homem moderno os possacompreender. A ênfase de Barth e Tillich recai, portanto, sobre a ne-cessidade de se recriar a proclamação do evangelho para um mundosecularizado, de modo que o projeto deles é responder à pergunta:“qual o significado do relato da criação hoje?” Deixando as conten-ções que naturalmente receberiam na perspectiva exegética (se aquifosse o caso discuti-la), passemos a analisar suas idéias no campohermenêutico.

4 Esses textos foram reunidos em uma coletânea e publicados sob o título de Dádivae Louvor pela editora Sinodal / IEPG.5 P. COURTHIAL. O conceito bartiano das escrituras (São Paulo, Casa EditoraPresbiteriana, s. d. ), p. 27.6 É muito difícil expor adequadamente o pensamento de Bultmann, porque sua obraabarca níveis epistemologicamente diversos e caracterizados, cada um, por

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metodologias específicas. Poderíamos dizer que há em Bultmann três etapas noestudo: exegese (crer), história (conhecer), hermenêutica (compreender). O primeironível (exegese) trata-se de um estudo crítico dos documentos do NT, que buscaprecisar sua índole própria para determinar o valor que podem ter como fontes parase conhecer estas origens. O segundo nível (histórico) trata-se de reconstituir, apartir de resultados da exegese crítica de tais documentos, o processo de nascimentodo cristianismo e sua evolução até começos do segundo século. O terceiro nível(hermenêutico), refere-se a determinar que significado podem ter estes documentos,hoje em dia, tanto os documentos do NT como a fé que caracteriza o cristianismoprimitivo como nos dá a conhecer a história. (BULTMANN, p. 25).7 G. C. BERKOUWER , por exemplo.8 Na versão inglesa consultada aparece traduzida pela palavra nothingness, que,assim como o termo alemão, é igualmente intraduzível para o português.

A TEODICÉIA DE KARL BARTH

Muitos intérpretes têm dúvida de que Barth suponha em suasistemática a existência objetiva do Mal, personificada ou não na figu-ra odiosa de Satanás.7 Há alguns motivos para isto:

(A) A dor, a morte, a tristeza, as doenças, são aspectos da cri-ação que não devem ser percebidos em sentido negativo. Tudo istofaz parte do “lado escuro da criação.” Sua exegese vê “no dia que seopõe à noite, a terra à água, um indicativo inconfundível deste carátere aspecto dúplice da existência criatural” (CD III / 3, p. 295). Porém,o maior motivo para o cristão crer na perfeição do mundo que servede morada, tanto no seu aspecto positivo como no negativo, é aautorevelação encarnacional de Deus em Jesus Cristo (CD III / 1, p.370).

(B) Barth não nega que um aspecto desta “criação” é inimiga deDeus e é hostil à sua obra (CD III / 3 , p. 290, 302 – 304). Barth querevitar qualquer limitação da onipotência divina, porém também nãoquer correr o risco de ser tornar priscilianista ou maniqueísta, por de-fender a causalitas mali in Deo. A solução encontrada será o concei-to da negatividade (das Nichtige), palavra que conjuga as idéias denegatividade e nulidade.8 Em certo sentido semelhante a ouk on daescola platônica, com a diferença de que o das Nichtige tem origemno próprio Deus.

(C) Das Nichtige ou não – criação é aquilo que Deus despre-zou e ignorou, como quando um construtor humano escolhe um traba-

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lho específico e rejeita ou ignora um outro e até muitos outros, deixan-do-os inexecutados (CD III / 3, p. 108); e não é só aquilo que Deusrejeita, mas é também o que se opõe a Deus e a seu propósito. O fatoé que o ato de rejeição de Deus pontencializa a existência das coisasrejeitadas: “porque não só o que Deus quer, como o que Ele não quer,é potente, e deve ter uma real correspondência” (CD III / 3 , p. 352).Portanto a não – vontade de Deus tem tanto poder criador quanto suavontade; Deus, assim, seria um rei Midas cósmico, que criainvoluntariamente, tal como na teologia emanacionista gnóstica: as ema-nações defluem espontaneamente de Deus, sem que ele as queira.

(D) Em Barth a realidade deste Mal é extremamente ambígua:“opõe-se a Ele, resiste a ele, nega-o e é negado por Ele” (CD III / 3,p. 305), mas é também uma realidade sui generis (CD III / 3, p.352). Esta realidade “tem o ser do não – ser, e a existência daquiloque não existe” (CD III / 3, p. 77).

(E) O mesmo paradoxo aplica-se ao pecado e à sua existência.“É ontologicamente impossível” (CD III / 2, p. 176); “não pode serdeduzido do mundo que Deus criou, nem da liberdade que ele conce-deu ao homem” (CD IV / 1, p. 456). O pecado, porém, apesar dosvários imperativos que o impossibilitam (a liberdade para o bem, agraça de Deus, sua incompatibilidade em relação a uma criação per-feita), existe, é real, e é total responsabilidade do homem pecar ounão (CD III / 3, p. 306).

A conclusão mais espontânea a quem quer que tenha lido aslinhas acima é a de que Barth é inconsistente, não que ele se importecom esse juízo, já que, kierkegaadianamente, para ele a própria exis-tência é inconsistente. Se atentarmos para suas idéias, perceberemosque todo seu esforço teórico consiste em justamente acentuar estainconsistência através do constante recurso ao paradoxo, que é umatentativa de manter as coisas em constante tensão dialética, profunda-mente incômoda para mentes treinadas no racionalismo. Por isso emBarth a relação liberdade / mal – onipotência / bondade / santidade deDeus é precária e ambígua.

A TEODICÉIA DE PAUL TILLICH

Antes de tudo é bom esclarecer que o subtítulo, “a Teodicéia de

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Paul Tillich,” não deve ser entendido como usualmente, porque o pro-jeto de Tillich não é harmonizar a liberdade / mal do homem com aonipotência / bondade / santidade de Deus como se tratassem de doispólos antagônicos. O ponto de partida de Tillich não é dualista, pelocontrário é um princípio monista que ele aprendeu do misticismogermânico e de Hegel, o qual o faz ver a realidade como uma e una. Jáfoi dito mais de uma vez que o conceito de Deus em Tillich aproxima-se mais de um panenteísmo, em que Deus é o fundamento da realida-de, portanto os tradicionais atributos divinos (santidade / bondade)não são mais do que símbolos.

Para Tillich, “a Teodicéia não é uma questão de mal físico, dor,morte, etc.; e nem uma questão de Mal moral, pecado, autodestruição,”etc. Mal físico é a natural implicação da finitude das criaturas; Malmoral é a trágica implicação da liberdade das criaturas” (ST I, p. 269).

a) Desdobrando esta primeira parte da afirmação de Tillich, per-cebemos que, para ele, criação e queda são as duas faces da mesmamoeda, a segunda está implicada na primeira, na medida em que acriação é transição da essência para a existência. Porém, isto não im-plica ser a criação má, ela é apenas autocontraditória (ST I, p. 81), ouseja, ela é essencialmente boa até que venha a se concretizar: “a rea-lização da criação e o alheamento existencial são idênticos” (ST I, p.81). A partir daí ela mergulha na ambigüidade natural da existência.

Como indicado no primeiro parágrafo, a existência no tempo eespaço implica finitude. E “a finitude está misturada ao não – ser eestá limitada por ele” (ST I, p. 189). Em outro lugar Tillich diz que a“transição da essência para a existência é uma qualidade universal doser finito” (ST II p. 36). A exposição de Tillich faria pensar em umaconcatenação lógica entre a criação e o mal; ele, porém, rejeita estaidéia. A coincidência entre uma e outra coisa é uma questão de ontologiae não de lógica.

Nestas poucas linhas sobre o pensamento de Tillich já fica evi-dente sua dependência de Platão. Ou seja, embora interprete o Gênesis,o pano de fundo da exposição é a relação do Ser (on) com o não –Ser (me on) platônicos. A própria figura de Deus do livro de Gênesisnão cabe na complexa doutrina de Deus tillichiana, que também é pla-tônica e kantiana: Deus é o Bem. Deus não é um ser pessoal transcen-dente, antes o fundamento de tudo o que existe e, por isso,

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transcendental; de modo que a existência, a finitude, por se localizarexatamente nesta fronteira entre o Ser e o não – Ser tem esta naturezaambígua. Nesse ponto de sua doutrina Tillich aproxima-se mais deAristóteles e do platonismo médio gnóstico do que de Platão mesmo.

Como um éon do sistema gnóstico, a finitude funciona como oselos de uma corrente que começa com o Incorruptível e termina nacorrupção, cada sucessivo elo perde algo da perfeição que pertenciaao elo superior e também produz uma imperfeição adicional no eloabaixo (HAMILTON, 152).

b) Considerando agora a segunda parte da citação que abreeste título, vejamos como Tillich vê o Mal moral, pecado eautodestruição.

O mal moral é a trágica implicação da liberdade criatural. A ‘criação’é a criação da liberdade finita; é a criação da vida com sua grandezae seu perigo. Deus vive, e sua vida é criativa. Se Deus é criativo emsi mesmo, ele não pode criar o que se opõe a ele; ele não podecriar os mortos, o objeto que é meramente objeto. Ele deve criar oque une objetividade e subjetividade – vida que inclui liberdade ecom ela os perigos da liberdade (ST I, p. 269).

Os perigos da liberdade envolvem, na história humana, um ele-mento trágico que contradiz a natureza essencial do ser humano, natu-ralmente potencializada para a bem. Mas, o que seria este elementotrágico? Um acontecimento que em um dado momento instila nele algoestranho à sua natureza? Um ato pecaminoso isolado, como no relatode Gn 3 ? Não. A criatividade naturalmente implica a liberdade e aliberdade, o erro. A existência, portanto, reúne em si forças de cria-ção e destruição, e nisto está sua autocontraditoriedade, porque oalheamento decorre da capacidade humana de crescer, desde que essecrescimento não pode ocorrer de modo harmonioso, como se o ho-mem fosse a cada momento recriado ab novo; pelo contrário, ele aocrescer entra em contradição consigo mesmo. Segundo uma explica-ção psicanalítica, esta condição ambígua de seres livres implica “aautoperda, é a desintegração do eu (self) por forças disruptivas quenão podem ser trazidas à unidade” (TAYLOR, p. 35), a condição doser livre é naturalmente conflituosa, ainda mais se aliada à sua condi-

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ção finita e criatural, da feita que Deus sendo livre, ainda assim nãopossui esta natureza ambígua.

Com isto Tillich dá a impressão de que há uma ordem de causae efeito nas relações entre o mal e a realidade: finitude é conseqüênciada realização da criação, alheamento é conseqüência da finitude e opecado e o Mal conseqüência deste alheamento; por outro lado, oparadoxo está presente impedindo uma concatenação lógica para ex-plicar estas relações. É a isto que ele chama de “elemento trágico”,aquilo que contradiz a natureza essencial do homem, potencialmenteboa. Em outro lugar ele dirá que “o pecado não se deriva. Se o peca-do procedesse de alguma coisa, não seria pecado, mas necessidade”(TILLICH, 1992, p. 162). De modo que a conclusão fica dialeticamentesuspensa no ar. A essência luta com a existência num combate infindávele insolúvel, as explicações racionalistas não fecham a questão; a exis-tência do Mal moral compõe-se de um elemento trágico porque amesma liberdade que possibilita o aparecimento do mal, paradoxal-mente, também torna seu fautor responsável e em estado de rebeliãocontra o Criador.

O MAL NA HISTÓRIA

Os dois teólogos em questão usam conceitos comuns para ex-planar o Mal na história: trata-se do demônico ou demoníaco. É pre-ferível a utilização do primeiro termo em lugar do segundo porqueesse já adquiriu um sentido muito marcado que o liga a poderes so-brenaturais inimigos de Deus. No caso dos autores em questão, odemônico está ligado a poderes bem humanos de origem política, re-ligiosa ou ambos, como é o caso das quase-religiões, ou seja, os tota-litarismos, conforme os denomina Tillich.

O DEMÔNICO EM KARL BARTH

Barth diverge de Lutero e Calvino por não aderir à Teologia dosdois reinos, segundo a qual Deus tem dois servos a seu serviço, aIgreja e o Estado. À Igreja concedeu como instrumento a graça e aoEstado, a espada. De acordo com BARTH, o senhorio de Cristo so-bre o mundo é total (1959, pp. 32 e 33). Baseando-se no Novo Tes-tamento (Fl. 2: 9 e 10 e Ef 1: 20 e 21) ele conclui que Jesus domina

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sobre os dois âmbitos. Para Barth as idéias de Lutero são escapistasquanto aos problemas éticos da política, porque faz com que os cris-tãos se comportem acriticamente em relação aos desmandos perpe-trados por líderes políticos, uma vez que, conforme a doutrina deLutero, eles são investidos por Deus com o poder que exercem(WEST, p. 305). Barth chama a atenção para o fato de que o mesmopoder secular (Roma Imperial) é retratado no Novo Testamento deforma muito ambígua: em Romanos 13 é um governo instituído porDeus e em Apocalipse 13 é a Besta que se opõe à vontade de Deus.

Para Barth o demônico é justamente isto, um poder político quese opõe ao senhorio de Cristo, mas ao mesmo tempo tenta substituí-lo. De acordo com sua exegese, o termo grego antichristos,ambivalentemente significa o que se opõe ou se coloca no lugar deCristo (BARTH, 1959, p. 16). A aplicação desta categoria político-teológica ocorreu historicamente pela oposição de Barth ao Nazismo,especialmente em sua luta contra o Cristianismo alemão, uma espéciede heresia nacionalista que pretendia que o reino de Deus e o Reichfossem completamente coincidentes. Para ele o governo nazista erademônico, dada a pretensão humana ao divino, constituindo-se porisso um poder idolátrico.

Daí decorre, contudo, o ponto falho, apontado por muitos, nateologia política de Barth, a saber, a falta de um princípio claro quetornasse suas idéias aplicáveis de maneira mais objetiva. Esta falhaevidenciara-se com o triunfo do Stalinismo depois do fim da II Gran-de Guerra. O mesmo Barth que, por oposição ao Nazismo, fez ouvir asua voz na Alemanha e posteriormente (depois da deportação) naSuíça, calou-se inexplicavelmete diante das atrocidades bolchevistas,merecendo por isso a reprovação de filósofos e teólogos (E. Brunnere Richard Niebuhr, por exemplo). A pergunta pertinente, porém, é:seria coerente com o resto do pensamento de Barth uma representa-ção inambígua do demônico? Segundo Barth a ambigüidade dodemônico não nos permite identificá-lo sem problemas. O cuidado emsua abordagem reflete-se na maneira como ele enfrentou o Nazismo:primeiro fazendo oposição ao braço religioso do Nazismo, os cristãosalemães (DEK), depois, opondo-se ao próprio Nazismo político. Comrelação à União Soviética, o problema para ele era o fato de o gover-no comunista ser abertamente ateu e profano e, portanto, sem aquelaambigüidade que caracteriza o demônico.

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Com efeito, historicamente não se pode deixar de dar razão aKarl Barth. Todas essas cobranças que o teólogo suíço sofreu ocor-reram quando o pior já havia passado na União Soviética, quando osexpurgos já haviam cessado e o que o Ocidente deplorava era a faltade liberdade e de democracia nos países da cortina de ferro. Ou seja,a questão parecia ser colocar completamente no campo ideológico eo que se exigia de Barth é que tomasse uma posição político-ideológi-ca e não teológica. O que Barth por diversas vezes afirmaria era queainda não era hora de se posicionar teologicamente.

O DEMÔNICO EM PAUL TILLICH

Tillich começa a expor o seu conceito de demônico valendo-sede uma análise de sua origem etimológica: daimonioi, na cultura gregapagã, são seres divinos e antidivinos:

Eles não são simplesmente a negação do divino, mas participam deum modo distorcido do poder e da sacralidade do divino. [...] Odemônico não resiste à autotranscendência como faz o profano,mas ele distorce a autotranscendência por identificar um particularportador de sacralidade com o santo mesmo (ST III, p. 109).

O demônico pode se manifestar nas religiões politeístas, nas igre-jas cristãs ou nos governos. Onde quer que o condicionado se apre-sente como incondicionado, onde quer que seja negada atranscendência divina, aí estará o demônico, de sorte que, tal comopara Barth, o demônico e o idolátrico são conceitos afins.

O demônico também pode ser identificado dentro da Teologiada História de Tillich com a “heteronomia,” que segundo sua definiçãoimpõe uma lei alheia, religiosa ou secular à mente humana (TILLICH,1992, p. 48). Alguém pode ser levado a concluir, apressadamente queTillich teria pensando no Catolicismo Romano da Baixa Idade Médiacomo o único poder religioso demônico, dada a manifestaçãoheteronômica que pretendia submeter todos outros poderes e mesmotoda a cultura da época à sua discrição e cuja culminação foram “ostribunais do santo ofício.” Mas, o Protestantismo também apresentauma feição demônica por causa de sua “autonomia,” ou seja, a pre-tensão a uma independência absoluta, cujo desenvolvimento final semanifesta no secularismo e o ateísmo contemporâneos. Cada um des-

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ses poderes religiosos “pode tornar-se demônico sem o outro; e am-bos são necessários para constituir o princípio do verdadeiro Cristia-nismo teonômico” (W. HORTON et alia, p. 43). Ou seja, o idealteonômico que Tillich acreditava ter ocorrido no tempo da ReformaProtestante do século XVI, em que o espírito religioso não se esgota-va em si mesmo, mas, humildemente, apontava para além de si, para atranscendência de que o sagrado é apenas símbolo.

CONCLUSÃO

Na apresentação das idéias anteriores foram apontados muitosproblemas quanto a noções sobre a natureza de Deus e sua relaçãocom o mundo. Não quero polemizar sobre isto (até porque fazê-lorequereria um outro artigo), mas, como disse em minha introdução,quero apenas apontar as vantagens do método dialético no exame daquestão proposta: o ser humano e o mal. Com efeito, apesar das di-vergências quanto ao mal, tanto Barth como Tillich apresentam con-clusões que refletem um princípio comum: a existência não dá respos-tas fáceis à questão.

Lutero dizia: “Deus usa máscaras para se revelar, ao passo quenós seres humanos usamo-las para esconder-nos.” Não é fácil tirar asnossas máscaras e aceitar as de Deus, mormente queremos fazer oinverso. As teologias de Barth e Tillich são justamente uma tentativade tirar nossas máscaras, por isso elas tentam dizer-nos que o mal éambíguo, fundado num dinamismo que o faz sempre estar mudando delugar, portanto, não cabem rotulações e simplificações, sejam elas,religiosas, filosóficas ou políticas. Por outro lado, essas teologias sãotambém tentativas de manter as máscaras de Deus, ou seja, ser um“não” à pretensão humana de conhecer a Deus e à sua obra de modopleno e consistente, como se fosse possível definir a existência huma-na em face a Deus e ao que se opõe a Ele.

Tillich rejeitava qualquer tipo de absolutização do finito: “o reinode Deus não pode ter a sua realização nos eventos históricos”(TILLICH, 1960, p. 179); no entanto, pode ser apontado por ela (okairós). A análise ontológica de Tillich exige que todas as coisas se-jam escrutinadas levando em conta o princípio da ambigüidade queperpassa o Mal e o Bem, princípio que, por sua natureza dialética,assemelha-se muito ao yin e o yang do Tao.

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Barth, por sua vez, levado por preocupações pragmáticas quantoao ministério da Igreja, por causa desta ambigüidade do Mal, reco-mendava uma atitude prudente por parte dos líderes eclesiásticos,conforme testifica sua copiosa correspondência com os líderes queviviam para lá da cortina de ferro. Por este motivo foi exortado R.Niebuhr a tomar uma menos equívoca com respeito ao Stalinismo:

Barth construiu uma teologia das catacumbas, que só podia lutarcom o demônico se ele se apresentasse com dois chifres e dois pésfendidos, mas não podia fazer nada se se apresentasse só com umchifre e um pé fendido (NIEBUHR apud HUNSINGER, p. 182).A resposta de Barth foi de que ele tinha que esperar para ver se

nascia o outro chifre. Foi sua resposta irônica face à clara satanizaçãodo Socialismo pelo Ocidente capitalista. Barth jamais aceitou que al-gum “ismo” tomasse o lugar da reflexão teológica, justamente porqueaceitar um “ismo” seria negar o “não” de Deus a todas as tentativas doser humano de perquirir os limites entre o Bem e o Mal, desde que,qualquer critério a priori apresentado para tanto, é demônico, sendoisto mesmo o maior de todos os pecados, visto ser a própria essênciada rebelião do homem contra seu Criador.

Numa glosa sobre “o conhecimento do Bem e do Mal”, diz aBíblia de Jerusalém em nota de rodapé:

Este conhecimento é um privilégio que Deus se reserva e que ohomem usurpara pelo pecado. Não se trata, pois, nem deonisciência, que o homem decaído não possui, nem de discernimentomoral, que o homem inocente já tinha e que Deus não pode recusara uma criatura racional. É a faculdade de decidir por si mesmo oque é o bem e o que é o mal e de agir conseqüentemente: areivindicação de uma autonomia moral, pela qual o homem negaseu estado de criatura (Is. 5: 20). O primeiro pecado foi um atentadoa soberania de Deus, um pecado de orgulho. (nota de rodapé deGn. 2: 17).A correção da interpretação dos glosadores da Bíblia de Jeru-

salém é confirmada pelo texto e pelo contexto. O conhecimento dobem e do mal, embora o verbo hebraico não possa ser entendido comoconhecimento intelectual, mas experimental (conforme indica o uso doverbo yadá - conhecer - e do substantivo da’ath - conhecimento),

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isto não significa que a experiência do Mal não implicava a mera atra-ção ou desejo de passar ao lado escuro da existência, pois desejarexperimentar o Mal só é possível para aqueles que possuem algumaexperiência dele e não àqueles que totalmente o ignoram e, portanto,para os quais nenhum tipo de propensão existe. Sto. Agostinho deixaisto claro quando, em suas Confissões, relata como se sentia atraídopelas pêras do pomar do vizinho e que não as desejava não por seremespecialmente apetitosas, mas porque seu coração era movido ao malpela perversidade (“excesso de maldade”), que, conforme diz o pró-prio Sto. Agostinho, é uma conseqüência do pecado original, mas nãosua origem (AGOSTINHO, p. 68 – II, iv, 9).

Para a boa compreensão do que está envolvido nestaprotomanifestação da hubris humana é preciso contrapor duas situa-ções antagônicas. De um lado o conhecimento de Deus, disponívelpela disposição de Deus em vir entreter comunhão com os seres hu-manos (Gn 2); e de outro lado, a autonomia, a promessa do tentadorde ser como Deus, conhecendo o bem e o mal por si mesmos, pormeio da ingestão de uma fruta ordinária. Tratava-se, por conseguinte,de um desejo demônico de ser igual a Deus, de dominar todas asincertezas e inconsistências da realidade, de fundear a vida em algoque não fosse a fé confiada na palavra de Deus. Daí Tillich ter afirma-do que a autonomia e o demônico serem conceitos irmãos. A origemda autonomia é ser independente de Deus; a do demônico é o desejode se ser igual a Deus. Ambas, portanto, dizem respeito à rebeliãohumana contra os limites da contingência criatural, pela tentativa dedominar a realidade conceitualmente, por meio de um discernimentoperfeito, infalível. Acontece que a realidade é inconsistente e por isso,ela é apenas compreensível; às vezes.

Caminhando para o encerramento destas linhas, não posso dei-xar de cumprir minha última promessa, quando disse que a reflexãodos teólogos dialéticos era de muita valia para o enfrentamento dosdesafios de nosso tempo. Com efeito, embora a era das bifurcaçõestenha ficado para trás, as nossas disposições demônicas não termina-ram, permanecem como prova de nossa rebelião contra Deus. Agoraque vivemos na era das aporias, cada um de nós dá-se o direito decriar seus próprios caminhos. Atualmente, em vez de da pretensão àcapacidade de distinguir o Bem do Mal, negamo-los, dizendo a nósmesmos que estas coisas não existem. Depois de assistirmos o fracas-

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so de nossas projeções demônicas (já que aquilo que reputávamospor Bem na verdade era um monstruoso Mal) não negamos nossaautonomia espúria, apenas as provas de nosso fracasso. Assim, hoje,demonicamente, queremos dizer que manufaturaremos o nosso pró-prio bem e o nosso próprio mal, a que outros de nós, inversamente,poderão chamar de mal e bem, a seu talante. Portanto, consoantenosso demonismo e autonomia atuais, para nós o grande “não” deDeus encontra-se em Isaías 5:20: “ai dos que ao mal chamam bem eao bem mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas,dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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UNDERSTANDING RELIGIOUS SYNCRETISM IN BRAZIL: CASES IN DUALALLEGIANCE WITH IMPLICATIONS FOR ADVENTIST MISSION

Wagner Kuhn, Andrews University (EUA)Ph. D. em Missiologia

ABSTRACT

The author seeks to describe the religious syncretism that existsin Brazil today, mostly within the context of popular Catholicism,charismatic Pentecostalism, and the Afro-Brazilian religions. The articleshows the relations between syncretism and dual allegiance within thecontext of these Afro-Brazilian and Christian religions, and from thatperspective it helps to set the context in regard to implications forAdventist mission. Through several case studies, it also seeks todemonstrate the challenges the Seventh-day Adventist Church facesas it encounters and deals with these realities.

RESUMO

O autor procura descrever o sincretismo religioso que existehoje no Brasil, principalmente no contexto do Catolicismo popular, doPentecostalismo carismático, e das religiões Afro-brasileiras. O artigomostra as relações entre o sincretismo e dupla fidelidade no contextodestas religiões afro-brasileiras e cristãs e a partir desta perspectiva,ajuda a estabelecer o contexto em relação às implicações para a mis-são adventista. Através de vários estudos de casos, o artigo tambémprocura demonstrar os desafíos que a Igreja Adventista do Sétimo diaencontra ao se deparar e lidar com estas realidades.

INTRODUCTION

The African people who were sold to colonial Brazil broughtwith them their religious beliefs and traditions. In order to survive theinquisitorial atmosphere of the Portuguese colonizers, many of theAfrican slaves needed to mask their deities and saints or ancestorswith Roman Catholic names (Araujo 1988:297). This process gavebirth to the Afro-Brazilian religions—a form of dual allegiance that

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1 In this paper the words spiritualism or spiritualistic will be used instead of otheraccepted forms of the word like spiritism or spiritistic.2 I have used the term syncretism in association with the term dual allegiance; andalthough I have not provided a definition for both terms (see Bruce Bauer’s paper),I have attempted, however, to provide an explanation for syncretism. André Droogerssays that syncretism is often and incompletely characterized with the observationthat it brings or blends together elements from different religious sources. He arguesthat some scholars consider non-religious elements to be part of the process ofblending, while others note that the mixing of elements happens in varying degrees.In this way they have distinguished different types of syncretism, with symbiosis atone end of the spectrum and complete fusion at the other. These two or morereligious sources that provide elements for syncretization do not necessarily occupyan equal position. One source maybe dominant, coloring the elements taken fromthe other religion. Much syncretism seems to occur in an unreflective manner, as anatural—cultural process. As a consequence, people who mix varied religiouselements may not do so intentionally and would not necessarily defend or propagatetheir blended religious practices. Thus, seen in this perspective, syncretism servesand is often used as a practical means of solving existential problems. If one religiondisappoints as a problem-solver, the other religion and its representatives may offercompensation. And difficult situations may, therefore, stimulate people to appeal todifferent forms of syncretization (2005:465). Also, for a broader view, descriptionand definitions of syncretism consult the article entitled: Syncretism, by Erich W.Baumgartner. 2006. In Adventist Responses to Cross-Cultural Mission, Vol. I, BruceL. Bauer, ed., 205-218. Berrien Springs, MI: Department of World Mission, AndrewsUniversity.

blends together various elements of Roman Catholicism, AfricanReligions, and Kardecist spiritualism.1

Roman Catholicism and the animistic system of African religionsbrought to Brazil were the major forces to produce the uniquesyncretism2 that is seen in popular Catholicism, charismaticPentecostalism, and in the Afro-Brazilian religions today. Sincespiritualism is an ideology followed by most practitioners of Catholicismin Brazil (Van Rheenen 1991:11), the Afro-Brazilian spiritualisticreligions have been developed in order to accommodate the demandsof such a popular religion. Afro-Brazilian religions are very practicalindeed, and many appreciate that kind of religion because, “if onemedium does not help, another is tried; if one spirit does not help,another is sought” (Van Rheenen 1991:160).

This unique religious syncretism permeates most aspects ofeveryday life, practices, traditions and beliefs, of a very large proportion

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of the Brazilian population. Although it is difficult to assert numbers,today Afro-Brazilian religions, along with popular Catholicism andcharismatic Pentecostalism, have become increasingly more popular inBrazil (Prandi 2000:642).

This paper seeks to describe the syncretism that exists in popu-lar religions in Brazil. It shows the relations between syncretism anddual allegiance as seen in the cases of Afro-Brazilian and Christianreligions, and from that perspective helps to set the context in regardto implications for Adventist mission. It also seeks to demonstrate thechallenges the Seventh-day Adventist Church faces as it encountersand deals with these realities. No doubt that further studies will beneeded, as these cases are not limited to Brazil.3

HISTORICAL BACKGROUND

Portuguese colonialism in Brazil lasted almost three centuries.The first settlers that arrived in Brazil built warehouses on the coast totrade with the Indians. There was a need for agricultural products inEurope, and for that the colonizers introduced sugar cane plantations.When these plantations were initiated, the Portuguese colonizers triedto turn the Brazilian Indians into slaves, but the Indians who wereaccustomed to a nomadic life style did not show any aptitude to work,especially for enslaved agricultural labor. When the natives did not fulfillthe work expectations, the Portuguese gradually replaced them by thecheapest manual labor ever: the African slaves (Bastide 1978:31-33).

The big plantations had their own chapel as well as their ownpriest who was a representative of the church, an official of the Sundaymass, and a schoolmaster who would teach the sons of the Portuguese.The chaplains soon became responsible for the regression of Catholicismfrom a communal religion to a religion of family clans. It meant that theowners of the plantations were the owners of the religion as well as theowners of the priests. This caused Catholicism to suffer a serious

3 Although this paper describes mostly a Brazilian reality (past and present), itsimplications are also for the territory of the South American Division, as syncretismand dual allegiance is quite common there. Forms vary though, as these othercountries inherited the syncretism of Amerindian practices, Spanish Catholicism,and various other mystical elements as well.

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transformation: the invasion of the patriarchate into the church, and itsrepercussions reached far into the domain of symbols and values forminga Catholicism centered on the worship of the patriarch’s guardian saintsand of the family’s dead. Worship service was highly animistic (thebeliefs in personal spiritual beings) and had little doctrinal content(Bastide 1978: 40-46). Roman Catholicism gradually adapted itself tothe interests and concerns of the Brazilian patriarchate, and certainlythe Catholic faith lost its primary objectives when the owners of theland became the owners of the church too.

The slave trade that started about 1550 continued until around1850. The grand total of Africans imported to Brazil was around3,500,000. Portuguese South America received four mainrepresentations from the African continent: the Sudanese civilizations,represented especially by the Yoruba, by the Dahomans, by the Fanti-Ashanti, and by the smaller groups of Krumano, Ani, Zema, andTimini; the Islamized civilizations, represented by the Peul, Mandingo,Hausa, Tape, Bornu, and Gurunsi; the Bantu civilizations of the An-gola-Congo group, represented by the Abunda of Angola, by theCongo or Cabinda from Zaire, and by the Benguela; and the Bantucivilizations of the east coast of Africa, represented by the Mozambique(Macua and Angico) (Bastide 1978:35, 46). Those imported to Brazilbrought a variety of skills, customs, and traditions as well as religiousand cultural backgrounds. Bastide commented that:

Africa sent to Brazil cattle raisers and farmers, forest people andsavannah people, representatives of round-house and square-housecivilizations, totemic civilizations, matrilineal and patrilinealcivilizations, blacks familiar with vast kingships and others who knewonly tribal organization, Islamized Negroes and ‘animists,’ Africanshaving polytheist religious systems and others who worshiped chieflytheir lineal ancestors (Bastide 1978:46).African religions were introduced to Brazil in this unique way.

From different communities and religious backgrounds, the slaves weremixed aboard the ships and then, at the final trade centers they werebought and also sent to different places of Brazil. This created a bigimpact upon the new environment in which they were placed. Ittransformed their reality. For they were lost, they were weak, and theywanted to survive, so they found a way to maintain their religious

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tradition: they masked their deities with Christian names—RomanCatholic ones.

Religious life in the slave communities was very difficult. TheAfrican slaves could not have their own religious services in a normalway. They were baptized into the Catholic faith without any regard oftheir will. There “they were obliged to camouflage their cults and saintswith Christian names” (Araujo 1988:297), and so they gradually learnedto adapt themselves to the new system. Van Rheenen commented that“although the slaves were forced to outwardly embrace Catholicism,the gods that they brought from Africa were intertwined with this newreligion” (1991:255).

The slaves were used to a life of secrecy. In many places theslaveholders would not allow them to participate in religious activities.In some communities they were granted permission to attend church(Raboteau 1978:219), but it was a church especially designed for them.In a very precise way Bastide stated that “by permitting the blacks tounite in brotherhoods, the church promoted the syncretism ofCatholicism with African religion rather than Catholicization of theblacks” (1978:56).

This scenario described changed drastically during the twentiethcentury in Brazil, with the emergence of many more forms of spiritualityand religious life. In practical terms, religion has been more effective inthe transformation of the Brazilian society than science (Sahr 2001:66).Moreover, many elements of Roman Catholicism, Evangelical andcharismatic Pentecostalism, spiritualism, and African religions haveblended together; and science, mysticism, parapsychology, and newage occultism have been added to these syncretistic neo-religions in anunprecedented way. The result is a dual allegiance within the contextof a religious pluralism where the believer can seek for both God andthe world of spirits at the same time.

AFRO-BRAZILIAN RELIGIONS AND DUAL ALLEGIANCE

Most of the literature on religious syncretism in Brazil focuses onthe interplay between Catholicism and African belief systems. Wellknown examples of such syncretism are Candomblé, Macumba,Umbanda, and Quimbanda (Nugent 1992:907). These and several

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other Afro-Brazilian religions like Batuque, Paguelança, Xangô cult,Catimbó, Tambor de Mina, etc., are part of a vast array of religionswhere the issue of dual allegiance is part of life’s reality. In this paper,only the three most relevant of them will be briefly presented: Macum-ba, Candomblé, and Umbanda.4

MACUMBA

Macumba is acknowledged as the oldest Afro-Brazilian religion,and it was probably the first Brazilian religious syncretism of two differentsystems: the Animistic system and the Catholic system. Macumba isdefined as a syncretism between Amerindian, African religions,spiritualistic cults, and Catholicism (Bastide 1978:295). Macumba wasthe popular term for any Afro-Brazilian religion anywhere in Brazil;originally, the Afro-Brazilian sect was founded in Rio de Janeiro(Leacock 1972:378). Later on, the Afro-Brazilian syncretism knownfor centuries as Macumba or baixo espiritismo (lower-levelspiritualism) was called Candomblé (Ortiz 1989:91).

Macumba is also associated with white magic (good spirits);however, Quimbanda, which is an extension of Macumba, is associatedwith black magic (bad spirits or spirits of the devil). The Macumbasyncretistic religion can be good or bad, depending on the practitioner’sown point of view or intentions. Some observers of Macumba ritualssay that it depends how one sees the symbolism that is applied to theritual. Moreover, Macumba can lead to social parasitism, to theshameless exploitation of the lower classes, or to the unleashing ofimmoral tendencies that may range from rape to murder (Bastide1978:300). Macumba has become a more individualized rather thancollective religion, although it still remains a religion of the group. Itcontinues to grow and to provide a syncretistic religion to people of aculture that counts on its magical and mystical elements for survival.

4 Along with these Afro-Brazilian religions there are several others referred to as‘nations.’ Examples are Nagô nation, Efan nation, Angola nation, Ketu nation, Jeje-Mahin nation, and Mina-Jeje nation. See Prandi, Reginaldo. 2000. African Gods inContemporary Brazil. International Sociology, Vol. 15 (4):645.

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CANDOMBLÉ

Candomblé is one of the most popular Afro-Brazilian practices,and it was “diffused from [the] Yoruba area of West Africa to Bahia,Brazil, via the slave trade” (Voeks 1990:118). Candomblé emerged inBrazil probably at the end of the seventeenth century as a syncretismbetween Macumba, African religions, and Roman Catholicism. Slaveswere forced to adopt Catholicism, but they were not converted; theysimply pretended to worship the most similar Catholic saints whileworshiping their orixas, the generic name for Yoruba deities (Cole1986:93). The special features of Candomblé are African music, dan-ce, herbs, and the worship of the Yoruba-inspired religion.

Certainly, one of the best definitions of the Candomblé of Brazilis that of Renato Ortiz: “Candomblé is a celebration of the collectiveAfrican memory on Brazilian soil” (1989:91). The functions of Can-domblé as the religion of a cultural group are:

to promote the security of individual members through close solidarityin a mutual assistance group and through identification with the gods,to help satisfy personal desire for prestige and improved social statusby linking the latter with religious status, and lastly to satisfy massesthetic or recreational needs through music, singing, and dancing(Bastide 1978:221).

The religious services of Candomblé are carried out at holyhouses, and the main focus of “worship is the maintenance of aharmonious relationship between religious followers and the Africangods” (Volks 1990:118). It is interesting to note that in this type ofreligion of dual allegiance, the gods and goddesses, the Yoruba orishas,are syncretized with Catholic saints, Jesus Christ and the Virgin. It isvery common for the ritual practices of Candomblé to be accompaniedby Catholic rites. For example, if on a particular night there is aceremony to honour a certain orisha, in the morning the followers attendmass at the church of the saint that is syncretized with that orisha.Also, after the initiation ceremonies, it is common for the newly initiatedperson to undertake a pilgrimage to seven Catholic churches (Prandi2000:647).

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UMBANDA

This singular name is a combination of three differentrepresentations of religious structure: the priest, white magic, and anAfrican form of spiritualism (Bastide 1978:480). Umbanda has beenconsidered the biggest animistic religion in Brazil. In 1988 it wasestimated to have a membership of twenty million adherents and wasconsidered the leading religious group in Brazil if one measures beliefsin terms of actual behavior and practice (Van Rheenen 1991:255).Reginaldo Prandi has estimated that in São Paulo there areapproximately 50,000 Afro-Brazilian worship centers among close totwenty million inhabitants (greater metropolitan area), of which 4,000are Candomblé and the remaining are Umbanda (2000:644).

The roots of Umbanda are many, nevertheless this nationalreligion is a syncretism of indigenous Indian elements, Catholic beliefs,Candomblé, various forms of spiritualism, Macumba, and Kardecistspiritualism (Pressel 1978:23, 27). Umbanda is called the mostimportant popular religion in Brazil (Prandi 2000:642). Its two basicideologies are: “a belief in the active intervention of spiritual entities inthe lives of humankind, and the practice of spirit possession as thecentral means by which these entities communicate with and help orhinder humans” (Brown 1986:2).

In the pantheon of Umbanda there are two categories of spirits:the spirits of light and the spirits of darkness. The spirits of light are theCaboclos who are spirits of Brasil’s Indian ancestors, the Pretos-Ve-lhos who are spirits of old slaves, and the Crianças who are spirits ofdeceased children and represent the idea of purity and innocence. Thespirits of darkness are the Exus, and they are entities that work withthe dangerous dimensions of night-time (Ortiz 1989: 95-98). TheUmbandista universe of spirits and orixas is extensive, blendingtogether more cultural traditions and religious background than anyother religious movement in Brazil in the twentieth century.

According to Umbandistas there is an arrangement of sevensacred lines of saints, and there is a clear syncretism (similar to Can-domblé) of various backgrounds between these lines: the line of Oxa-lá is associated with Jesus Christ, Iemanja with the Virgin Mary, Orientwith Saint John the Baptist, Oxoce with Saint Sebastian, Xango with

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saint Jeronime, Ogum with Saint George, and the African line withSaint Ciprian (Pressel 1978:67).

Umbanda has been one of the fastest growing religions in Brazil(mostly during the last part of the twentieth century) and the reason is“because it overtly provides a context for the latent animistic beliefslong held by the majority of Catholics” (Van Rheenen 1991:74) as wellas by adepts of other religious groups.

SYNCRETISM AND AFRO-CATHOLICISM IN BRAZIL

Afro-Catholicism is a syncretism of African religions, animism,and Roman Catholicism. It is a form of traditional Catholicism mixedwith African religions that blends religious material and mysterious magic(Raboteau 1978:25). Afro-Catholicism is also referred to as Folk-Catholicism. It is divided into two main branches: Black Catholicismand Popular Catholicism.

BLACK CATHOLICISM

Black Catholicism was a lower class of Catholicism and existedside by side with the Catholicism of the white. It was the official religionof the slaves or black people who were free at the time of colonialBrazil. Black Catholicism was Roman Catholic with exterior forms andmaterials, but was African in its soul and beliefs. Black Catholicismwas also greatly influenced by Portuguese Catholicism, which alreadyhad the custom of including masked dances and profane singing inreligious activities (Bastide 1978:124).

Although Black Catholicism is different in many ways fromRoman Catholicism, it resulted from a mixing of Christian beliefs andtraditions with African animistic beliefs in a world of magic, mysticism,and spiritualistic rituals. In this context, African ceremonies wereincorporated into Catholic ones. In doing so the Catholic Churchpermitted a form of dual allegiance or mystic religious syncretism.Bastide noted that “Black Catholicism was the precious reliquary,unwittingly presented to the Negroes by the church, in which they mightpreserve some of the highest values of their native religions, not asrelics but as living realities” (1978:125).

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POPULAR CATHOLICISM

Popular Catholicism also contains syncretism of various religiousstructures: Afro-Brazilian religions, folk religions, Animism, Catholicism,charismatic Pentecostalism, etc. Popular Catholicism in Brazil ischaracterized by the believer’s act of exercising faith in the mysticalelement. Like Umbanda, popular Catholicism emphasizes the roles ofspirits as patrons and of all humans as their clients (Brown 1986:193).

The adherents of popular Catholicism are allowed to do everythingin the practice of their religion. Many of them go to the Catholic mass,but as soon as it is finished they engage in spiritualistic rituals that aresimilar to the Afro-Brazilian and charismatic cults. Their allegiance isnot to only one particular denomination or deity, but to both a Christianchurch with its set of doctrines and beliefs and also to mysticalspiritualism or the animism of Afro-Brazilian religions.

SYNCRETISM AND CASES IN DUAL ALLEGIANCE: IMPLICATIONS FORADVENTIST MISSION

Interestingly, during the past three to four decades, Afro-Brazilianreligions, popular Catholicism, and charismatic Pentecostalism,5 have

5 Philip Jenkins in his book The Next Christendom (see pages 63-66) provides theexample of the Brazilian-based Universal Church of the Kingdom of God (IgrejaUniversal do Reino de Deus). The Universal Church has grown phenomenally inthe last two decades and some have estimated a membership in the millions (three tosix). Even with a short existence, this Pentecostal Church controls one of the largesttelevision station in Brazil, has its own political party, and owns a Rio de Janeirofootball team (an asset that is valuable in terms of social and political influence[football in Brazil is considered by many as a religion of the masses, and as suchcompetes with the allegiance that any believer might want to have with Jesus Christ,in fact it creates another kind of dual allegiance]). The Universal Church has alsoexpanded its activities to more than 40 countries. It has been criticized for mysticaland superstitious practices that exploit its largely uneducated members. The Churchsells special anointing oil for healing, and television viewers are encouraged toplace glasses of water near the television screen so they can be blessed by remotecontrol and healed from diseases and curses. Change of angels ceremonies offer theoption for believers to have another angel to solve their problems as their currentone is too weak to help. Also, for a detailed description of charismatic and Pentecostalevangelicals in Brazil and their practices and beliefs, and how they have incorporatedmystical elements into their religious activities, please see the chapter entitled: OCulto Pentecostal e Carismático (Pentecostal and Charismatic Worship], pages

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been able to adapt to modernity by their rejection of the notions of sinand guilt and also by being the religions of the oppressed (Motta1999:77) and the poor—which, not surprisingly, comprise the majorityof the Brazilian population. Moreover, these religions are no longerethnic religions exclusive to the black population or the poor, but uni-versal religions, without racial, ethnic or geographical barriers. Theyare religions that congregate followers of all racial and social groups(Prandi 2000:641). This religious context provides both opportunitiesand challenges for the Seventh-day Adventist Church in Brazil.Opportunities because “the process of de-catholicization in Brazil hasbeen visibly growing faster (Motta 1999:77) during the last five decades,and that has allowed for more religious freedom for Adventist believersto preach the Three Angels’ messages of Revelation 14:6-12. But atthe same time there are also many challenges due to the amount ofsyncretistic elements that have become part of these popular religionsin Brazil. And unless there is true conversion (at the worldview6 level)to Christ, a clear understanding of biblical truths, and a process ofdiscipleship within the context of the remnant church and the sooncoming of Christ, the new believer will continue to maintain allegianceto his former ways of life and syncretistic religion. Note the followingreal cases that are examples of the reality within our Adventist context:

SERVING TWO MASTERS

T. Medeiro lived in Belém de Maria (Pernambuco) and had beena member of the Adventist Church for a couple of years. Although heprofessed to believe in the Adventist truths as found in the Bible, hestill maintained some amulets and continue to practice some ritualsassociated with his previous Afro-Brazilian spiritualist religion. Duringa worship service in his local Adventist Church, he was suddenly andmysteriously pushed up high and forward into the air, “flying” somethree to four meters before he landed on the floor. He spoke in a lone

73-141, in Vanderlei Dorneles, Cristãos em Busca de Êxtase [Christians in Search ofEcstasy], 2nd edition, São Paulo, Brazil: UNASPRESS. 2002.6 For a more comprehensive and in-depth study of worldview and implications forthe Seventh-day Adventist, see Paulo Candido de Oliveira, “Developing anInterdisciplinary Analysis and Application of Worldview Concepts for ChristianMission.” DMin Dissertation, June 2006. Berrien Springs, MI: Andrews University.

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tow and distorted voice—it was someone else’s voice. The devil’spublic manifestation indicated that there was a struggle—that allegianceto Christ and the Church or to the former religious practices and itsspirits had to be defined and decided. Sadly, Medeiro had been servingand maintaining allegiance to two masters.

DO NOT CONSULT THE SPIRITS

H. Santos Barbosa became an Adventist in Teófilo Otoni (Mi-nas Gerais). Her husband was already an Adventist at the time of herbaptism. Few years after her baptism her brother became seriouslysick (cancer) and was expected do die soon. While her husband wentto visit her sick brother in another city, Barbosa stayed home with herchildren. Because she really wanted to know if her brother had diedyet or not, and because she still continued to believe in the world ofspirits and the rituals of her former religion, she decided to go to herroom and wait for “an answer” about her brother’s condition. At night,a being (spirit) come to her while she was in bed and stayed at her sidefor a little while and then left. Barbosa was afraid as there was an eerieand spooky atmosphere in her room, but at the same time she wantedto understand the message this being/spirit was bringing her from herbrother. After the spirit left, she stood up and went out of her room,called her children and told them that her brother had died. She toldthem that the being that came to her room was the spirit of her brother,who wanted to communicate to her that he had departed—died. In theearly morning hours of that night her husband arrived, bringing the newsthat Barbosa’s brother had died.

DELIVER US FROM EVIL

F. Santos, the husband of H. Santos Barbosa, had been involvedin Macumba before he became Adventist. He believed that Jesus Christwas more powerful than the spirits of Macumba. One day, after manynights without been able to sleep properly, he complained to the policeabout the noise caused by the Matuqueiros [those who beat the drums]of the Macumba center. Later, his former “brothers” from that centerfound out that he had complained and decided to do a despacho (spellor curse) against him and his family. They got a frog, stuffed its insidewith some magical materials, sewed its mouth and placed the frog in

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the doorsteps of Santos’ house. Although Santos tried to be a faithfulChristian, his wife still believed in the spirit’s direct interference in one’slife. Interestingly, that same week brother Santos had a terrible caraccident. Fortunately though, he did not die, because God deliveredhim from evil.

LEAD US NOT INTO TEMPTATION

Teenager R. Costa was very sick of his stomach having feverand other serious complications. He lived in a favela (slam) in Rio deJaneiro, a place quite distant from a decent hospital. His neighborsadvised his father and mother to get a couple of fresh eggs from acertain “store” and rub them over his stomach and legs, moving themup and down. They believed that the eggs would attract and catch theevil spirits as well as any unclean element that was causing the sickness.If his parents would do that the boy would be healed, was the promise.Costa’s Adventist parents, former members of an Afro-Brazilian sect,fell into temptation and decided to follow up with the recommendation,clinging to their former beliefs and practices.

RISKY BUSINESS BUT IMMEDIATE RESULTS

After receiving Bible studies, Elaine Reis become a member of alocal Adventist church in São Paulo city. A couple of years later, whilestill in university she met the son of an Adventist minister, they dated,and latter on they married. Things went well for a while, but as Elainewould go on vacations to her relatives, she reacquainted herself withher grandmother’s Macumba. At first it was just a curiosity ofreminiscing her past with grandmother. But as she returned more oftenfor visits and shared some of her marital problems and life’s struggleswith grandmother, she believed that some of the “recipes” of Macum-ba could help her. She then started taking active part in the rituals andworks of Macumba, not only interested in getting some help for hermarriage and other problems, but also as a participant. Back homeshe would carry on with her responsibilities as usual, working, attendingschool, and going to church on Sabbaths with her husband.Unfortunately, as Elaine decided that Macumba was more appealingand provided immediate answers and help for her problems, theAdventist Church was no longer seen as necessary. Consequently and

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sadly, she abandoned the church and the couple ended up divorcing.I believe that the incidence of such cases in the Adventist Church

in Brazil is still low, as compared to other protestant churches, but it isa reality. These cases do exist and for that matter the church mustrealize that this is a challenge that must be considered seriously.

Ministerial colleagues have told me that some of their Adventistrelatives have resorted to various syncretistic practices in order to “help”someone get healed, to be able to find a job, to be protected, to find aspouse, to achieve success or material possessions, etc. The sad partis that these Adventists also bring their prayer requests to the church,while at the same time they try different simpatias (the use of certainrituals, songs, combination of words, amulets, etc.) in order to get whatthey are requesting or in need of.

Horoscopes and diviners are sought by church members andtheir advices followed in a disguised way so that other Adventists wouldnot know what they are doing. Other times these members just placeand keep a horseshoe or thorns (in its branch) by the door of theirhouses and such or other amulets have been used to ward off the evilspirits, to protect from calamities and diseases, or to help avoid badthings from happening. I have also heard from church members theexpression “lets do a saravá or simpatia (magical spell) so that won’thappen to me/us,” or even worse, “I will do a saravá so my neighborwill get sick, or he/she will have a car accident, or that my boss willloose his job.”

The reason this happens so often in Brazil is because many peopleare experiencing Christian conversions without worldview change (VanRheenen 1991:89). As such, these kinds of conversions withoutworldview change remain a major challenge for the mission of theSeventh-day Adventist Church in Brazil. When new believers experiencegenuine conversion in Christ, they leave the old religious practices withits dual allegiances behind and embrace the Adventist movementwholeheartedly as new persons in Christ. Their allegiances now andonwards are to Jesus Christ who through his death on the cross hastriumphed over the forces of evil.

Allegiance to one God and his Church happens only when aperson knows from where she comes from and who she is (history/identity), where she is right now (saved and in God’s church), and

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where she is going to (purpose/prophetic perspective). Furthermore,new church members have to continually learn the biblical truthscognitively, but they must also be discipled at the worldview level—where decisions are made, and questions of allegiance decided.7 Thismust be based on a clear understanding of the spiritual realities of life,in order for believers to fully grow in Christ and become mature andcommitted Adventist Christians.

CONCLUSION

Brazil is the world’s largest Roman Catholic country. Close to80% of the population, or some 155 million Brazilians “identifythemselves as Catholics, though many, perhaps even a majority, alsoprofess or practice Candomble and its variants” (Rohter 2000:A.3).Additionally, about 15% of the population claim to be evangelicalChristians. This means that a large percentage of people who are beingbaptized into the Seventh-day Adventist Church today have had asyncretistic religious background. Consequently, popular Catholicism,

7 The Seventh-day Adventist church in Brasil has not been much affected by somany forms of syncretism and a life of dual allegiance in the past. This was duemainly because Adventists were the people of the book—the Bible, they were moreisolated from community life and society in general, and were a relatively smallprotestant church, maintaining its American (and European) heritage. Also, pre-baptismal Bible studies were solid and preparation for church membership was aserious matter. The fact that our traditional theology was essentially anti-Catholicand anti-spiritualist somehow served as a wall against such syncretistic influences.Sadly though, the situation has changed. With the popularization of existentialismand less emphasis on serious doctrinal and Bible studies, suggesting that the persononly needs to accept Jesus Christ to be baptized or to become a church member, thechurch has opened its doors for semi-converted Christians that are infiltratingsyncretistic beliefs and practices in its midst (adapted from an e-mail letter fromAlberto R. Timm to the author, March 29, 2007). Also, for further considerations,please see Alberto R. Timm, “Podemos ainda ser considerados o ‘povo da Bíblia’?”[Can we still be considered the people of the Bible?], Revista Adventista (Brasil)Junho de 2001:14-16; “Preparo para o batismo: assunto sério” [Preparation forbaptism: serious matter], Revista Adventista (Brasil) Junho de 1997:8-10; see also,Paulo C. da Silva, Série de estudos bíblicos da Igreja Adventista do Sétimo Dia noBrasil: breve história e análise comparativa do Seu conteúdo (Bible Studies Seriesof the Seventh-day Adventist Church in Brazil: Brief History and ComparativeAnalysis of Its Content], Engenheiro Coelho, SP, Brazil: Imprensa UniversitariaAdventista, 2002.

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charismatic Pentecostalism, and Afro-Brazilian religions with their manysyncretistic religious practices and beliefs that promote dual allegiancedo pose a major challenge to Adventist work in Brazil, for many churchworkers are not aware of these realities, have not had the training todeal with such syncretistic practices, or have ignored altogether thereality of dual allegiance within the Brazilian religious identity.8

Moreover, the challenges of post-modernist existentialism,secularism, materialism, and globalization—constant realities of theBrazilian society—confirm that in today’s world, “religion encompassesculture, the social encompasses the political, the invisible is in the visible,the profane contains the sacred” (Soares 2002:56), and vice-versa.Could that, combined with the appealing incentives and powers ofmystical and syncretistic religions with its immediate rewards andbenefits threaten even the identity of the Seventh-day Adventist Churchin Brazil? I hope not. However, we need to be cognizant of the factthat “while the church is evangelizing the world, the world is secularizingthe church” (Froom 1949:131).

Given the content of this paper and its implications, I believe it isimperative for the Seventh-day Adventist Church to urgently takeadvantage of the message contained in Fundamental Belief # 11(Growing in Christ).9 This biblical message must be unpacked, studied,preached, and explained so that all church members, laity and clergyalike, can understand that the victory of Jesus Christ and allegianceonly to Him give us victory over all evil forces. Indeed, “our struggle isnot against flesh and blood, but against the rulers, against the authorities,against the powers of this dark world and against the spiritual forces ofevil in the heavenly realm” (Ephesians 6:12).

8 As an anthropologist, E. Abumanssur states that the Brazilian religious identityhas developed to the contrary of the purification of religious beliefs, instead it hasbeen produced precisely by the syncretism of different religions and cosmovisions.For many, syncretism is seen as something suspect, impure, and incorrect, but it is,however, precisely within this melting pot of cultures and religions that Brazilianswere produced (2002:79).9 This fundamental belief is known by many as fundamental belief number 28; it isentitled Growing in Christ and in reality is fundamental belief number 11. It states:By His death on the cross Jesus triumphed over the forces of evil. He who subjugatedthe demonic spirits during His earthly ministry has broken their power and made

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certain their ultimate doom. Jesus’ victory gives us victory over the evil forces thatstill seek to control us, as we walk with Him in peace, joy, and assurance of His love.Now the Holy Spirit dwells within us and empowers us. Continually committed toJesus as our Saviour and Lord, we are set free from the burden of our past deeds. Nolonger do we live in the darkness, fear of evil powers, ignorance, and meaninglessnessof our former way of life. In this new freedom in Jesus, we are called to grow into thelikeness of His character, communing with Him daily in prayer, feeding on His Word,meditating on it and on His providence, singing His praises, gathering together forworship, and participating in the mission of the Church. As we give ourselves inloving service to those around us and in witnessing to His salvation, His constantpresence with us through the Spirit transforms every moment and every task into aspiritual experience. (Ps 1:1, 2; 23:4; 77:11, 12; Col 1:13, 14; 2:6, 14, 15; Luke 10:17-20;Eph 5:19, 20; 6:12-18; 1 Thess 5:23; 2 Peter 2:9; 3:18; 2 Cor. 3:17, 18; Phil 3:7-14; 1Thess 5:16-18; Matt 20:25-28; John 20:21; Gal 5:22-25; Rom 8:38, 39; 1 John 4:4; Heb10:25.)

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O BATISMO EM NOME DE JESUS

Demóstenes Neves da Silva, SALT/IAENE (Brasil)Mestre em Teologia

RESUMO

Este artigo aborda alguns questionamentos acerca da autentici-dade e confiabilidade da passagem de Mateus 28:19. Trata-se de umaapresentação resumida de questões levantadas sobre o uso da fórmu-la batismal trinitária, como se encontra em Mateus 28:19 e o batismoem nome de Jesus, como utilizado nos registros do livro Atos dosApóstolos.

ABSTRACT

This article focus on some questions about the authenticity andconfidence of Matthew 28:19. It makes a summary presentation aboutquestions on the use of the trinital formula, as it is found in Matthew28:19 and the baptism in the name of Jesus, as used in the records ofActs.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é uma apresentação resumida de questõeslevantadas sobre o uso da fórmula batismal trinitária, como se encon-tra em Mateus 28:19, e o batismo somente em nome de Jesus, comoutilizado nos registros do livro Atos dos Apóstolos (Atos). Este estu-do será apresentado em três etapas: a primeira tratará da refutação defontes questionáveis para desacreditar o texto de Mateus; a segundaabordará a autenticidade e a confiabilidade da passagem do ponto devista bíblico e inspirado, bem como seu respaldo histórico; na terceiraetapa serão apresentadas algumas interpretações para a ênfase nonome de Jesus como aparece no livro de Atos.

A passagem trinitária de Mateus 28:19, 20 encontra-se na Bí-blia Almeida Revista e Atualizada como segue:

“Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-osa guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou

Hermenêutica, Volume 7, 39-552007 Centro de Pesquisa de Literatura Bíblica

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convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28:19).Com o objetivo de negar a expressão trinitária, em destaque no textoacima, foram feitas tentativas, mas sem sucesso, como veremos a se-guir.

FONTES QUESTIONÁVEIS

As discussões sobre o texto de Mateus 28:19 são antigas, econstam de grande número de comentários especializados, visandoidentificar sua autenticidade e confiabilidade. Entretanto, as resistên-cias atuais ao texto de Mateus 28:19, divulgadas através de váriossites na internet, deixam claro que o objetivo da abordagem visa negara doutrina da trindade.

Nessa tarefa, alguns têm se utilizado de posições e análises su-peradas e refutadas, como se fossem novidades. Às vezes, desconhe-cendo os resultados das pesquisas em torno dos manuscritos origi-nais, ou distorcendo suas conclusões, tais “pesquisadores” têm recor-rido a enciclopédias genéricas, em vez de obras técnicas e a autores“escolhidos” como seu recurso para “provar” que estão certos. Entreos autores selecionados a dedo encontra-se a obra de Eusébio deCesaréia (263-340 d. C.) bem como utilizam outros autores que, paranegarem a porção trinitária de Mateus, se basearam em fontes islâmicase idéias tiradas de comentários da passagem feitos no século XIV.1

EUSÉBIO DE CESARÉIA

Uma das tentativas, para desfazer do texto original em questão,tem sido a utilização do testemunho de Eusébio de Cesaréia comopalavra final sobre a fórmula de batismo, conforme registrada porMateus. Algumas razões podem ser apontadas para não aceitarEusébio como autoridade nesta questão:

1) A primeira delas vem do próprio Eusébio que apresenta emsuas obras, como testemunhos da verdadeira fé, fontes e autores comoIrineu, Tertuliano e Justino, os quais, como veremos, apontam a fór-

1 DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C. A Critical and Exegetical Commentary on theGospel According to Saint Mathew. vol. 3. Edinburgh: T & T Clark, 1961, p. 684-685(nota 41).

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2 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História eclesiástica: os primeiros quatro séculos daigreja cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 1997.3 DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C. , p. 684.

mula trinitária de Mateus 28:19 como autêntica.2) Aliás, o próprio Eusébio menciona as três pessoas da trinda-

de como crença da igreja em seu livro História Eclesiástica2 (p. 252).3) Por outro lado, é preciso lembrar o costume de Eusébio,

apontado por pesquisadores, de citar o Novo Testamento de formaimprecisa. Isso pode explicar a razão de ele citar incorretamenteMateus 28:19.3

4) Tomar Eusébio como autoridade única da crença original daigreja apostólica parece um recurso frágil. As pessoas que assim acre-ditam desconsideram que aceitar tudo o que ele diz em sua obra impli-ca em acreditar também que a igreja estava fundada sobre Pedro,segundo a doutrina da igreja católica romana, pois era essa a crençade Eusébio (História Eclesiástica, p. 226).

5) Curiosamente, os que citam Eusébio pretendem resgatar otexto “original” de Mateus, acusando que os manuscritos utilizadospara o texto trinitário da passagem em 28:19 foi um acréscimo do IIIe IV séculos. No entanto, além de Eusébio ser impreciso na citaçãodo NT ele encontra-se exatamente no final do III até quase metadedo IV século, período questionado pelos que rejeitam a passagemtrinitária de Mateus.

6) Finalmente, ao usar Eusébio para “provar” que o texto deMateus 28:19 é incorreto, parece proposital o “esquecimento” de ou-tros documentos e “pais da igreja” mais confiáveis e de até cem anosantes de Eusébio, os quais já registravam Mateus 28:19 com a parteque diz “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo,” confirman-do-a como autêntica.

Talvez aqueles que tentam desfazer da Bíblia para apoiar seuspontos de vista devessem levar em conta que, se consultarem os paisda igreja indiscriminadamente, comentários “selecionados” com análi-ses incompletas ou enciclopédias genéricas para definirem doutrina,poderiam chegar a conclusões divergentes da Bíblia sobre qualquer

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tema. Como exemplo de assuntos que, nessas fontes, aparecem cominterpretações diferentes das Escrituras, estão o “dia do Senhor,” a“imortalidade da alma,” o “inferno” e “a besta do Apocalipse.”

A TEORIA DA “EXPANSÃO LITÚRGICA” DO EVANGELISTA

A teoria da expansão litúrgica considera que, embora Jesus nãotenha dito as palavras exatas como se encontram na fórmula trinitarianade Mateus 28:19, essas palavras foram escritas, realmente, pelo pró-prio evangelista Mateus.4 Essa teoria, embora pareça negar a fórmulabatismal, na realidade ela está apenas admitindo que foi realmenteMateus quem escreveu a fórmula em seu evangelho, e ou que a igrejapraticava o batismo trinitário desde o princípio como tradição apostó-lica evidenciada inclusive no Didaquê5 pertencente ao século I ou iní-cio do II, e, assim, a fórmula teria sido adicionada com base numaprática real recebida do Salvador.

Para Albright e Mann (1971) “O erro de muitos escritores so-bre o Novo Testamento encontra-se em tratar esta declaração comouma fórmula litúrgica (no que se tornou mais tarde), e não como umadescrição do que o batismo realizava.”6

Para aqueles que crêem que o Espírito Santo inspirou oevangelista, a opinião desses autores que negaram a autenticidade deMateus 28:19 não passaria de mero erro interpretativo ou uma acusa-ção de que Mateus “inventou” a doutrina. Certamente, se alguém po-deria registrar, mesmo anos depois, o que realmente Jesus falou, esteseria Mateus. E isto se torna mais compreensível porque Marcos nãoera apóstolo, não estava lá no dia da comissão, e como secretário dePedro é justificável que tenha omitido muitos detalhes como demons-tra a natureza mais resumida do seu evangelho; Lucas também não eraapóstolo, não foi testemunha ocular, como ele mesmo admite (Lc 1:1-3) e deixou de registrar este detalhe; João estava lá, mas não

4 HAGNER, D. A. Word Biblical Commentary. Matthew 14-28, vol. 33a. Dallas,Texas: Word Books, Publisher, 1995, p. 887.5 HAGNER, D. A.. Vol. 33B: Word Biblical Commentary : Matthew 14-28. WordBiblical Commentary. Dallas: Word, Incorporated, 2002. p. 8876 ALBRIGHT, W. F.; MANN C. S, Matthew, The Anchor Bible. Garden City, NY:Doubleday, 1971, p. 363.

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se ocupou deste aspecto em seu evangelho; somente Mateus estevenaquele dia, ouviu aquelas palavras e achou por bem, ao escrever seuevangelho, de registrar a fórmula batismal trinitária.

Portanto, o Espírito Santo, que inspirou os autores dos evange-lhos, usou cada autor de acordo com o conhecimento e a experiênciavivida com Jesus. Parece que Mateus, judeu e apóstolo, foi o escolhi-do e o mais indicado para fazer o registro da fórmula trinitária na Bí-blia, registro esse que aqueles que crêem ser a Bíblia inspirada peloEspírito Santo não precisam dele duvidar.

Quanto à sugestão de adição da fórmula trinitária no IV séculopela Igreja Católica e outras idéias semelhantes, estas devem ser re-jeitadas, por causa da presença da passagem nos manuscritos maisantigos e confiáveis, pela citação feita por líderes da igreja antes doIII e IV séculos e, finalmente, pela confirmação dada por inúmerosespecialistas e por Ellen G. White em seus escritos como veremos aseguir.

Assim, deixando de lado as fontes questionáveis utilizadas pelosque querem negar a fórmula batismal trinitária, resumiremos algumasrazões para sua validade em Mateus 28:19.

AUTENTICIDADE E CONFIABILIDADE DE MATEUS 28:19

A FÓRMULA TRINITARIANA DE MATEUS 28:19 ENCONTRA-SE NOS MELHORESE MAIS COMPLETOS MANUSCRITOS DO NT

Mateus 28:19 aparece em vários manuscritos do século IV masa análise da origem e comparação do conteúdo desses manuscritoscom outros mais antigos mostrou que se tratava de documentos com-pletos e dos mais confiáveis disponíveis para a recuperação do textodo Novo Testamento. Assim, a autenticidade e confiabilidade de ummanuscrito, do ponto de vista técnico, depende do texto de onde foicopiado. Isto pode ser identificado, por exemplo, pelo estilo literárioutilizado e pelas palavras e frases, próprias da época em que foi pro-duzido, diferentes daquela em que foi copiado.

As pessoas, geralmente, desconhecem que há exemplos de do-cumento “antigos” que eram adulterados, enquanto cópias “novas”foram autenticadas como textos verdadeiros por descobertas posteri-

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ores. Por exemplo, um manuscrito pode ser antigo e conterinterpolações e outro pode ser recente, mas ter sido cuidadosamentecopiado de outro antigo e correto. Este “novo” manuscrito copiadocorretamente torna-se mais confiável do que um “antigo,” mas que foimodificado.

No caso de Mateus 28:19 o texto consta dos melhores manus-critos do NT tanto nos chamados “maiúsculos” (unciais) como nos“minúsculos.”7 Eis alguns deles: a (Álefe), A, B, D, E, F, K, H, M, S,U, V, W, 0148vid, D (Selta), Q (Teta), M, f1 (família de quatro minús-culos) e f13 (família de 13 minúsculos). A única alegação que se pode-ria fazer em relação à integridade do seu texto seria uma variação emsua composição, mencionada a seguir, que não altera em nada a idéiada passagem.

Listamos abaixo alguns dos manuscritos considerados como osmais confiáveis onde se encontra a variante junto à expressão “emnome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” de Mateus 28:19:

1) Os manuscritos B, W, D (Delta), Q (Teta), f1 contêm a fórmu-la trinitária do batismo e trazem a palavra “portanto” (ou=n - oun).

2) O manuscrito do NT denominado manuscrito D (tambémchamado Códice de Beza ou Cambridge), entre outros, traz a frasetrinitária de Mateus 28:19. Neste manuscrito, em lugar de “portanto,”o advérbio nu/n (nun) é traduzido como “agora.”

3) Mateus 28:19 com a ordem “em nome do Pai, e do Filho, edo Espírito Santo” encontra-se também nos manuscritos a (álefe),0148vid, f13 e M, e nestes não aparece nenhuma das duas alternativas(nem “portanto” e nem “agora”).8

Muitos destes manuscritos foram produzidos em épocas dife-rentes, por pessoas e em locais diferentes e sem contato entre si. Aprodução desses manuscritos nada teve a ver com autorização, co-nhecimento ou interferência da Igreja Católica Romana. Seu conteúdoé repetido nas citações de outras fontes e nas citações dos primeiros

7 ALAND, K. et all., The Text of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1994.p. xi-liii.8 Cf. introdução ao texto grego e aparato crítico de Mateus 28:19 de ALAND, K. etall., The Text of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1994.

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9 GEISLER, M.; NIX, W. Introdução bíblica: como a Bíblia chegou até nós. SP: Vida,2003, p. 142.10 LUZ, U.; KOESTER, H. Matthew 21-28: A Commentary. Tradução de: DasEvangelium nach Matthaus. vol. 3, trand. James E. Crouch, ed. Helmut Koester.Minneapolis: Fortress Press, Augsburg, 2005, p. 616.11 Ibidem.

líderes da igreja cristã confirmando a fórmula batismal de Mateus 28:19.Resumindo:a) A passagem trinitária de Mateus 28:19 encontra-se nos me-

lhores e mais confiáveis manuscritos do NT.b) A fórmula trinitária também encontra-se no manuscrito mais

importante produzido no Egito, o a ou 01 (Códice Sinaítico), o quedesqualifica qualquer suposição de que tenha sido fruto de adultera-ção do texto.

O Códice sinaítico (a Álefe) é o manuscrito grego do século IVconsiderado em geral a testemunha mais importante do texto, porcausa de sua antiguidade, exatidão e inexistência de omissões.9

Ainda, a idéia de que Mateus 28:19 seria uma interpolaçãolitúrgica posterior e que o apóstolo não teria escrito o texto, encontradificuldade de se sustentar diante das descobertas dos manuscritos doNT. Além disso, existem as antigas traduções da Bíblia, citações dospais da igreja e o testemunho de documentos da igreja siríaca ondeMateus teria sido escrito. Por essas razões, a idéia de Mateus 28:19ser uma interpolação tem sido abandonada progressivamente, e não émais aceita pela maioria dos pesquisadores. Assim, a posição assumi-da por muitos no passado, de que uma forma curta de Mateus 28:19(“em meu nome,” no lugar da trinitária) seria a redação original é,hoje, metodologicamente impossível de ser sustentada.10 Com algumacerteza é possível afirmar que a fórmula trinitária já era conhecida naSíria, ambiente onde se teria originado o evangelho de Mateus, antesdo ano 100.11

Assim, qualquer fonte secundária e genérica pode ser conside-rada ultrapassada ou desqualificada uma vez que discordem do teste-munho dos próprios manuscritos que deram origem ao NT.

Passaremos, a seguir, para documentos que confirmam a fór-

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mula trinitária encontrada nos manuscritos acima mencionados, a par-tir de líderes da igreja cristã primitiva, que viveram próximo ao tempodos apóstolos e muito antes de Eusébio de Cesaréia (263-340 dC).

A FÓRMULA TRINITARIANA DE MATEUS 28:19 ENCONTRA-SE NOTESTEMUNHO DA IGREJA ANTES DO IV SÉCULO

Algumas fontes históricas que demonstram a existência e uso dafórmula trinitária muito antes do século IV:

1) Didaquê (70-150 d. C.). A fórmula batismal, conforme pres-crita em Mateus 28:19, aparece em escritos cristãos primitivos como,por exemplo, no Didaquê. Esta obra, conhecida também como Oensino dos doze apóstolos, foi escrita na forma de uma carta circularàs igrejas cristãs na província romana da Síria perto da virada do pri-meiro século de nossa era.12 “Alguns estudiosos sugerem uma datamais antiga que faria da obra o primeiro escrito cristão até hoje exis-tente além do Novo Testamento.”13

Quanto ao batismo, batizareis na forma seguinte: tendoantecipadamente disposto todas as coisas, batizai em nome doPai e do Filho e do Espírito Santo, em água viva, se não houverágua viva batizai em outra água; se não puderdes em água fria,batizai em água quente. Se não tiverdes nem uma nem outra, derramaiágua na cabeça três vezes em o nome do Pai e do Filho e do EspíritoSanto.14

É importante ressaltar que os elementos utilizados tanto porMateus quanto pelo Didaquê são idênticos e despertam três possibili-dades: (1) O Didaquê copiou de Mateus, (2) Mateus copiou doDidaquê ou (3) a prática do batismo segundo a fórmula trinitária orde-nada por Jesus foi registrada por ambos a partir da prática batismal dacomunidade. A fonte comum, tanto para o Didaquê quanto para Mateus28:19, se percebe pela comparação das redações originais conforme

12 OLSON, R. E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. SãoPaulo: Editora Vida, 2001, p. 43.13 Ibidem.14 Didaquê, 7. In: BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. São Paulo: ASTE,s/d. p. 101 (Grifo nosso).

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15 NIEDERWIMMER, K.; ATTRIDGE, H. W. The Didache: A Commentary. Facsim.on lining papers. Hermeneia—a critical and historical commentary on the Bible.Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 126.16 PELIKAN, J.; HOTCHKISS, V. Creeds and Confession of Faith in the ChristianTradition, Yale University Press, New Haven and London, vol. 1, 2003, p. 43.

em negrito abaixo,15 evidenciando que o batismo trinitário aconteciano primeiro século d. C.:

Mateus: bapti,zontej auvtou.j eivj to. o;noma eivj to. o;noma eivj to. o;noma eivj to. o;noma eivj to. o;noma (em nome);Didaquê: bapti,sate eivj to. o;noma eivj to. o;noma eivj to. o;noma eivj to. o;noma eivj to. o;noma (em nome);Mateus: tou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,on

pneu,matojpneu,matojpneu,matojpneu,matojpneu,matoj (do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo);Didaquê: tou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,ontou/ patro.j kai. tou/ ui`ou/ kai. tou/ a`gi,on

pneu,matojpneu,matojpneu,matojpneu,matojpneu,matoj (do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo).Portanto, a idéia de que o batismo em “nome de Jesus” seria a

redação mais antiga , em Mateus 28:19, não passa de especulação. Omesmo pode ser dito da insustentável crença de que a fórmula “emnome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” teria sido criada no IIIou IV século d. C. Aliás, Mateus 28:19, cuja prática e fórmula trinitáriapode ser documentada desde antes do ano 100, não possui relaçãodireta com o conceito elaborado de Trindade que aparece posterior-mente no IV século. Por outro lado, a presença do Pai, do Filho e doEspírito Santo no batismo do próprio Jesus favorece a associação eparalelo com Mateus 28:19, evidenciando que a tríplice presença estávinculada ao batismo, não sendo um elemento novo no evangelho enem nas epístolas Paulinas e em Pedro (2 Cor 13:13; 1 Cor 12:4–6;cf. 1 Cor 6:11; Gal 4:6; 1 Ped 1:2).

2) Clemente de Alexandria (Egito, 150-215 d. C.) tambémutilizava a fórmula trinitária. O Didaquê desfrutava de tal prestígio naigreja cristã primitiva que Clemente o considerava uma autoridade apos-tólica e o citava como “Escritura.”16

3) Justino, o Mártir (100-162 d. C.), por exemplo, foi mortopor defender o monoteísmo triúno cristão - “um só Deus, o Pai, oFilho e o Espírito Santo” - em oposição ao politeísmo pagão, e por

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isso foi martirizado exatamente em Roma que ainda era pagã.17 Justino,contemporâneo de Policarpo, discípulo do apóstolo João, tambémescreveu vários livros apologéticos dos quais somente três subsisti-ram. Em sua Primeira Apologia provavelmente escrita em 155 d.Cna ocasião do martírio de Policarpo,18 ele se dirige ao imperador An-tonio Pio, conclamando-o a um tratamento mais justo dos cristãos.”19

No Capítulo LXI, intitulado Batismo Cristão Justino diz:Então eles são trazidos por nós onde há água, e são regeneradosda mesma maneira na qual nós fomos regenerados. No nome deDeus, o Pai e Senhor do universo, e de nosso Senhor JesusCristo, e do Espírito Santo, eles o recebem lavando com águaentão.20

No capítulo LXV da mesma obra, é dito:Depois de termos lavado desta maneira (batizado) aquele que seconverteu e deu o consentimento seu, o conduzimos aos irmãosreunidos para em comum oferecer orações por nós mesmos [...]Ao terminar as orações, mutuamente nos saudamos com o ósculode paz e, logo, traz-se ao presidente o pão e um cálice de vinhocom água. Ele os recebe, oferecendo-os ao Pai de todas as coisasnum tributo de louvores e glorificações, em nome do Filho e doEspírito Santo, dando graças por sermos considerados dignos detamanhos favores de sua clemência. 21

4. Irineu (França, 125-202 d. C.), bispo de Lião, foi instruídoem sua juventude por Policarpo de Esmirna, discípulo do apóstolo17 Ibidem, p. 41.18 OLSON, R. E, p. 58.19 Ibidem.20 JUSTINO MÁRTIR, Apologia I LXI (grifo nosso). Cf. Justino Apol. 1, 61.3: evpVovno,matoj gar tou/ patro,j tw/n o[lwn kai. despo,tou qeou/ kai. tou/ swth/rojh`mw/n VIhsou/ Cristou/ kai. pneu,matoj a`gi,on to. evn tw/| u[dati to,te loutro.npoiou/ntai (“they then perform the bath in the water, in the name of the Father ofthe universe and of our Savior Jesus Christ and of the Holy Spirit”); e a seguir em61.10 and 13. Citado em: NIEDERWIMMER, K.; ATTRIDGE, H. W. The Didache: ACommentary. Facsim. on lining papers. Hermeneia—a critical and historicalcommentary on the Bible. Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 126.21 JUSTINO MÁRTIR, Apologia I, LXV. In: BETTENSON, H. Documentos da igrejacristã. São Paulo: ASTE, s/d. p. 103 (Grifo nosso).

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22 OLSON, R. E, p. 67-69.23 IRINEU, Proof of the Apostolic Preaching, p. 3 (grifo nosso)24 DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C. p. 685 (nota 46).25 OLSON, R. E, p. 91-99.

João. Escreveu um pequeno manual de doutrinas cristãs denominadoDemonstração da Pregação Apostólica, conhecido também comoEpideixis, um resumo de sua obra mais complexa Contra Heresias.Irineu morreu em Lião durante um massacre de cristãos em 202 dC.22

Em seu pequeno manual, no artigo 3, ele escreveu:Agora a fé ocasiona isto para nós; até mesmo como os Anciões, osdiscípulos dos Apóstolos, nos passaram. Em primeiro lugar nos élícito ter em mente que nós recebemos o batismo para a remissãode pecados, no nome de Deus o Pai, e no nome de Jesus Cristo,o Filho de Deus que era encarnado e morreu e subiunovamente, e no Espírito Santo de Deus.23

5. Tertuliano (África, c.150-212 d. C.) também indica a tríplicefórmula batismal como utilizada para o exame dos candidatos ao ba-tismo em seus dias.24 Ele jamais foi ordenado sacerdote e nem cano-nizado pela igreja. Parece que morreu fora da igreja católica por nãoaceitar sua decadência moral e teológica. Em seus escritos combateue desmascarou a heresia de Práxeas que dizia que o Espírito Santonão era uma pessoa dentro da divindade, mas apenas outro nome oumanifestação para o Pai e o Filho. Nesse debate antecipou formula-ções doutrinárias da trindade que os líderes cristãos do oriente e doocidente praticamente repetiram mais de um século depois. Poderiaser considerado, em termos modernos, um teólogo conservador, poisacreditava que os argumentos doutrinários deveriam estar firmementealinhados com as Escrituras.25 Assim, Tertuliano, como os outros líde-res cristãos, mantinha o pensamento sobre a trindade bem antes do IVséculo e independentemente de controle da igreja romana.

Este fato também mostra um uso da fórmula batismal, com astrês pessoas da trindade, bem próxima à época dos apóstolos, con-forme a ordem dada por Cristo em Mateus 28:19, o que dificulta aafirmação de que seria uma tradição posterior, originada no III ou IVséculo.

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Dessa forma, fica evidente por esses, dentre outros exemplosque poderiam ser citados, que o uso da fórmula batismal com o nomedo Pai, do Filho e do Espírito Santo era comumente empregado des-de o início da Igreja Cristã.

A FÓRMULA TRINITARIANA DE MATEUS 28:19 ENCONTRA-SE AUTENTICADA

NOS ESCRITOS DE ELLEN WHITE

Entre os Adventistas do Sétimo Dia, os escritos de Ellen G. Whitesão considerados como autoridade inspirada para ratificar e esclare-cer a Bíblia e como testemunha histórica das crenças doutrinárias nadenominação, por isso o seu testemunho será considerado neste arti-go.

Ao citar várias vezes a passagem de Mateus 28:19 consideran-do-a como válida, Ellen G. White mostra que a fórmula batismal eraaceita pacificamente pelos pioneiros adventistas e, por ela mesma, comoautêntica no contexto da igreja cristã primitiva. Ela chama a comissãoevangélica de “a Carta Magna do reino de Cristo,” e diz que os discí-pulos “deviam trabalhar fervorosamente pelas almas, dando a todas oconvite de misericórdia. [...] Deviam batizar no nome do Pai, doFilho e do Espírito Santo.”26 E diz expressamente que Jesus

revestido de autoridade ilimitada, deu a Seus discípulos sua comissão:‘Ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e doFilho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisasque Eu vos tenho mandado; e eis que Eu estou convosco todos osdias, até à consumação dos séculos.’ Mat. 28:19 e 20.27

Não foram somente os discípulos, mas também homens esco-lhidos pela igreja, aprovados por Deus e separados pela imposiçãode mãos, que receberam a comissão e “saíram batizando no nome doPai, do Filho e do Espírito Santo.”28

26 WHITE, E. G., Atos dos apóstolos.Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1994,p. 28 (Grifo nosso).27 Ibidem, p. 30. (Grifo nosso).28 WHITE, E. G. Primeiros escritos. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1998, p.100-101.

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29 Ibidem, Atos dos apóstolos, p. 282.30 Ibidem.31 Ibidem, p. 283.32 WHITE, E. G. Special Testimonies, Série B, Nº 7, págs. 62 e 63. In: Evangelismo.Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1995, p. 307.33 Ibidem, p. 615.

Ao falar de Paulo na cidade de Éfeso, quando encontrou dozecrentes que tinham sido discípulos de João Batista, mas não conheci-am o Espírito Santo, Ellen White diz que Paulo “expôs perante eles asgrandes verdades que são o fundamento da esperança do cristão”29 e“repetiu as palavras da comissão do Salvador aos discípulos: ‘É-medado todo o poder no Céu e na Terra. Portanto ide, e ensinai todas asnações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo’Mat. 28:18 e 19.”30 Ao os doze discípulos ouvirem as palavras doapóstolo “pela fé aprenderam a maravilhosa verdade do sacrifícioexpiatório de Cristo, e receberam-no como seu Redentor. Foram en-tão batizados em nome de Jesus.”31 Aqui o nome de Jesus aparececomo o destaque, por causa de seu sacrifício na cruz, embora a fór-mula bíblica tenha sido, de acordo com Ellen White, a trinitária encon-trada em Mateus 28:19.

Embora Ellen White não entre em detalhes sobre a declaraçãoacima, parece claro que a fórmula indicada por Jesus era a trinitária.Na próxima seção, trataremos com mais detalhe da relação entre aordem trinitária de Mateus e o batismo em nome de Jesus no livro deAtos.

O batismo trinitário é confirmado em outra citação da própriaEllen White, e serve, nas palavras dela, como “sinal de entrada para oSeu reino espiritual, [e que] Cristo o estabeleceu como condição po-sitiva à qual têm de atender os que desejam ser reconhecidos comoestando sob a jurisdição do Pai, do Filho e do Espírito Santo.”32

Há três pessoas vivas pertencentes à trindade [trio] celeste; emnome destes três grandes poderes - o Pai, o Filho e o EspíritoSanto - os que recebem a Cristo por fé viva são batizados, e essespoderes cooperarão com os súditos obedientes do Céu em seusesforços para viver a nova vida em Cristo.33

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Portanto, considerando o testemunho dos manuscritos antigos emais confiáveis do NT, o testemunho dos líderes cristãos da igrejaprimitiva do século I e II e o testemunho de Ellen G. White, a passa-gem trinitária de Mateus 28:19 é autêntica. Essa autenticidade é admi-tida pela Igreja Adventista do Sétimo Dia que a adotou em seu Manu-al da Igreja como a fórmula a ser utilizada nas cerimônias batismais emnível mundial.

Passamos, agora, para a segunda etapa deste estudo, que pro-cura entender as razões de os discípulos utilizarem o nome de Jesusao realizarem os batismos no livro de Atos.

EXPLICAÇÕES PARA A DIFERENÇA ENTRE A ORDEM DE JESUS EM MATEUS EO REGISTRO NO LIVRO DE ATOS

Uma vez que a hipótese de interpolação posterior na passagemtrinitária de Mateus foi descartada, os especialistas, em geral, apre-sentam várias explicações para a diferença entre a ordem do batismodada em Mateus e a cerimônia feita somente no nome de Jesus, regis-trada no livro de Atos. Vejamos algumas delas:

A primeira hipótese aponta para duas formas igualmente acei-tas – Jesus realmente mandou batizar em nome da Trindade, mas eletambém declarou várias vezes que recebê-lo era receber ao Pai, e queo Espírito era seu representante e substituto na Terra. Além disso,Jesus é o Mediador da Salvação, o Nome pelo qual todos devem sersalvos. Assim, batizar em nome de Jesus é estar em harmonia com aTrindade. Por isso, a manifestação do Espírito Santo era uma formade legitimar o batismo em nome de Jesus (Atos 19:1-5). Assim, deacordo com essa posição, podia-se batizar no nome de Jesus e emnome da Trindade, especialmente quando se tratava de “todas as na-ções, até os confins da Terra” (Mat. 28:18). Também se alega que oDidaquê menciona os batizados “em nome do Senhor” talvez indican-do, para alguns, que a igreja cristã usava o batismo em nome de Jesuscomo forma alternativa.

Em resposta à posição anterior pode-se dizer que: a) o Didaquêé enfático na fórmula trinitária; b) os exemplos em Atos são somentede judeus e gentios já convertidos ao judaísmo. Neste caso os gentiosconvertidos ao judaísmo como Cornélio e outros, bem como os gen-

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34 DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C. p. 685.

tios já batizados no batismo de João em Éfeso precisavam do rebatismono nome do Messias, Jesus. Daí o batismo em nome de Jesus estarsempre ligado a judeus ou seguidores do judaísmo aos quais somentefaltava crer em Jesus para daí receberem o Espírito Santo; c) tambémé preciso ter em mente que o livro de Atos não apresenta uma fór-mula batismal, pois possui variações que mostram o interesse ape-nas em destacar a pessoa de Jesus como elemento novo, que passavaa fazer parte do ritual milenar do batismo judaico. As diferenças sãoclaras mesmo considerando os casos do livro de Atos. Três exemplos:(1) Atos 2:38: “no nome de Jesus Cristo”; (2) Atos 8:16: “em nomedo Senhor”; e (3) “em nome do Senhor Jesus.” Finalmente, d) aprópria estrutura gramatical das frases estaria indicando um relacio-namento com Jesus ao aceitarem seu nome, na hora do batismo, e nãouma nova fórmula para batizar.34 Isso nos leva à segunda posição aseguir.

A segunda interpretação, já mencionada anteriormente, seriaa de um tipo de Rebatismo para indicar um novo relacionamentocom Jesus – com o objetivo de dar testemunho de que agora o aceita-vam como Messias, especialmente para os que já tinham sido batizadosno batismo dos judeus que batizavam no Nome (os judeus já pratica-vam o batismo usando a expressão hebraica LêShem para referir-seao nome impronunciável de YHWH).

A terceira proposta seria uma ênfase no relato de Lucas (au-tor de Atos) no nome de Jesus como diferencial de outros batismos –O batismo trinitário passou a possuir um elemento novo, até entãodesconhecido e que era alvo de ataques e resistência dos judeus emtodo lugar onde os apóstolos evangelizavam. Este elemento novo erao nome de Jesus de Nazaré como o Messias e membro da Divindade,a ponto de ser colocado junto o LêShem (o Nome impronunciável deDeus).

Assim, nesta proposta, a Trindade também estaria presente, poiso batismo era feito no nome (LêShem) do Pai, do Espírito (sempreligado com o batismo no nome de Jesus, precedendo-o ou suceden-do-o) e, finalmente, no nome de Jesus, sendo, o nome do Senhor, umanova invocação, complementar à forma antiga. A conti-

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35 FRIEDRICH, G.. Theological Dictionary of the New Testament. Vol 5. Grand Rapids,MI: Eerdmans Publishing Company, 1967, p. 275.36 Ibidem.

nuidade do batismo judaico adicionado de um elemento novo podeser percebido na expressão grega em Mateus “em nome de” (eis toonoma), que encontra paralelo no hebraico LêShem, indicando que amesma idéia, tanto no grego como no hebraico, estaria por trás dobatismo “no nome.” Desse modo, a fórmula em grego tem uma origemsemítica,35 mostrando a idéia do Deus único no batismo trinitário evi-denciando a mentalidade hebraica do evangelista ao registrar a fórmu-la batismal em grego. Com o nome de Jesus, o velho batismo erasubstituído pelo batismo cristão. Invocar o nome de Jesus não somen-te funcionava como complementação ao batismo pela aceitação deJesus como Messias, mas indicava, também, que, em Jesus, estavampresentes o Pai no envio do Filho e o derramamento do Espírito, sig-nificando, assim, a presença da Trindade.

Portanto, quando Lucas registrou os batismos em Atos, ele des-tacou que eram feitos no nome de Jesus, mas subtendendo o nome doPai e também do Espírito Santo. Como já eram conhecidos os batis-mos dos judeus e o de João, Lucas teria usado o nome de Jesus noseu registro apenas como uma forma para diferenciar o batismo cris-tão, no qual aparecia o nome de Jesus na fórmula, dos outros doisbatismos, embora o batismo tivesse sido feito em nome da Trinda-de.36

Se os apóstolos batizaram os judeus, e os convertidos ao juda-ísmo, somente no nome de Jesus considerando o ato como rebatismo,por causa da ausência de um conhecimento doutrinário e salvífico re-levante, como no caso de Atos 19:1-3, é compreensível, sem trazerchoque com a forma trinitária. No entanto, é mais provável que Lucastenha feito o destaque ao nome de Jesus a partir da fórmula batismaltrinitária. A possibilidade de que a fórmula de Mateus tenha sidointerpolação posterior é praticamente nula.

CONCLUSÃO

Os argumentos normalmente utilizados para negar a autentici-dade e confiabilidade da fórmula trinitária de Mateus 28:19 e a

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adoção do batismo em nome de Jesus têm sido apoiados em declara-ções de Eusébio de Cesaréia que é muito tardia (séc. III e IV) parasignificar uma recuperação do texto original. Além disso, entre outrasrazões, Eusébio é conhecido pelos estudiosos pela inexatidão em citartextos do NT. Argumentos procedentes de fontes islâmicas e outrasdo séculos XIV, bem como as declarações colhidas de fontes comoenciclopédias genéricas têm tido pouco valor para definir a questão.Assim, a hipótese que admite que Mateus 28:19 é resultado de umacréscimo do IV século d.C. não subsiste, especialmente se for con-siderado o testemunho dos manuscritos mais confiáveis do NT e otestemunho dos documentos mais antigos da igreja cristã primitiva pro-cedentes dos séculos I a III d. C.

Portanto, a posição que desfruta de mais amplo apoio a partirdos manuscritos do NT, dos documentos da igreja cristã e de Ellen G.White é a de que o batismo seguia a ordem trinitária. Porém, comodisse Ellen G. White, era feito “em nome de Jesus” evidentemente comodestaque para os que ainda não criam no Salvador, ou como batismocomplementar para judeus e aqueles já convertidos ao judaísmo. Apossibilidade de duas fórmulas de batismo, embora defendida por al-guns, parece pouco provável, visto que Atos não apresenta explicita-mente a estrutura de uma “fórmula” de batismo.

Uma vez que o texto trinitário de Mateus é autêntico e confiável,e documentos da igreja desde o primeiro século e Ellen G. White indi-cam a fórmula como correta, só resta à igreja continuar fazendo o queJesus ordenou: batizar “em nome do Pai, e do Filho, e do EspíritoSanto.” Amém.

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A PARÁBOLA DO SEMEADOR NO EVANGELHO DE MATEUS

Leonardo Godinho Nunes, SALT/IAENE (Brasil)Mestre em Teologia

RESUMO

A parábola do Semeador – desde a perspectiva da mensagemdo Reino de Deus conforme ensinada pelo Evangelho de Mateus, etendo como pano de fundo a narrativa a respeito da incompreensãodo Reino (Mt 11:2 a 12:50) – trata de dois assuntos principais: a com-preensão da palavra e dos mistérios do Reino como um requisito bá-sico para se fazer parte do mesmo, e o cumprimento da missão deespalhar a Palavra do Reino como necessário para a Sua efetivação.

ABSTRACT

The parable of the Sower – from the perspective of the messageof God’s kingdom as taught by the Gospel of Matthew, having as itsbackground the narrative about the Kingdom’s misunderstanding (Mat11:2-12:50). It deals with two main themes: the comprehension of theKingdom mysteries and word as a basic requirement to be part of it,and the mission accomplishment of spreading the Kingdom’s Word asnecessary for its fullfilment.

INTRODUÇÃO

O evangelho de Mateus tem suas peculiaridades. Seu objetivo emensagem influenciam diretamente na maneira de dispor as perícopesdo evangelho, bem como na forma de escrever os discursos e açõesde Jesus,1 como bem afirmou Westcott: “As peculiaridades da narra-tiva de Mateus são numerosas e uniformes em caráter ... nortearam aescolha dos pontos da narrativa [e] influenciaram o modo como foramtratados.”2 Por isso, para compreendermos de forma mais profunda oconteúdo da Parábola do Semeador, como visto por Mateus, aborda-1 Darrell L. Bock, Jesus Segundo as Escrituras, trad. Daniel de Oliveira, (São Paulo,SP: Shedd Publicações, 2006), 24.2 Brooke Foss Westcott, An Introduction to the Study of the Gospels (London:Macmillan, 1895), 328.

Hermenêutica, Volume 7, 57-842007 Centro de Pesquisa de Literatura Bíblica

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A PARÁBOLA DO SEMEADOR NO EVANGELHO DE MATEUS

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remos primeiramente o objetivo e a mensagem do evangelho de Mateus,em seguida veremos o contexto em que aparece a Parábola do Seme-ador com suas respectivas implicações. Por último, observaremos otexto da Parábola do Semeador e sua relação com o contexto, a men-sagem e o objetivo do evangelho.

OBJETIVO DO EVANGELHO DE MATEUS

O Evangelho de Mateus era o “evangelho favorito dos escrito-res cristãos do II século.”3 Para Wikenhausen “no tempo de Ireneu aIgreja e a literatura cristãs foram influenciadas mais pelo evangelho deMateus do que por qualquer outro livro do Novo Testamento.”4 Aigreja cristã do II século utilizou este evangelho para quatro propósi-tos práticos principais: (1) defender a igreja dos ataques doutrináriostanto de judeus quanto de gentios, (2) instruir o recém-converso emsua nova vida cristã, (3) auxiliar os membros no crescimento da fé eda vida comunitária e (4) como leitura no serviço litúrgico semanal.5Ou seja, o evangelho era utilizado para apologia, manual de instruçãoe conservação e lecionário do culto. Nenhum desses, porém, seria oobjetivo principal que o autor de Mateus teria em mente ao escrever oevangelho.

O objetivo principal do Evangelho de Mateus é mostrar queJesus é o Messias prometido pelo Antigo Testamento,6 “e dessa for-

3 R. V. G. Tasker, Mateus: Introdução e Comentário, trad. Odayr Olivetti, 20 vols.,Série Cultura Bíblica, vol. 1 (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Novae Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1980), 13; Leon Morris, Teologia doNovo Testamento, trans. Hans Udo Fuchs (São Paulo, SP: Sociedade ReligiosaEdições Vida Nova, 2003), 139.4 A. Wikenhausen, New Testament Introduction, trad. Joseph Cunningham (NewYork, NY: Herder and Herder, 1958), 158.5 C. F. D. Moule, As Origens do Novo Testamento, trad. Josué Xavier, 17 vols., NovaColeção Bíblica, vol. 9 (São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1979), 106, 108; Tasker, 13,14; Robert H. Gundry, Panorama do Novo Testamento, trad. João Marques Bentes,2ª ed. (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1981), 94; DonaldGuthrie, New Testament Introduction, 4th rev. ed., The Master Reference Collection(Downers Grove, Ill: Inter-Varsity Press, 1996, c1990), 32-37.6 William Barclay, Mateo I, trad. Marcelo Pérez Rivas, 2ª ed., 16 vols., El NuevoTestamento Comentado, vol. 1 (Buenos Aires: Associación Editorial La Aurora,1983), 12, 13; Tasker, 16; Gundry, 93; Broadus David Hale, Introdução ao Estudo do

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ma Israel deveria aceitá-lo.”7 Mateus cita mais de cem vezes os textosdo Antigo Testamento,8 podendo ser divididos em duas únicas cate-gorias9: citações da LXX e citações do hebraico. As citações prove-nientes da LXX são introduzidas por fórmulas diversas ou encontram-se no curso natural do texto, sem uma introdução especial. Já as cita-ções oriundas do hebraico vêm precedidas pela fórmula “para que secumprisse o que fora dito”10 (i[na plhrwqh/| to. r`hqe,n), aparecendodezesseis vezes ao longo do evangelho.11 Mateus 1:22 é a primeiravez em que o evangelista usa esta fórmula, e o faz com o intuito deconectar o nascimento de Jesus à predição do nascimento do Messiasfeita por Isaías (Is 7:14); e a última vez em que a expressão ocorre éem Mateus 27:9, mencionando o preço da traição do Messias, con-forme prenunciado pelo profeta Zacarias (Zc 11:12-13) e que se cum-priu na vida de Jesus. Em todo o livro pode-se notar o elo entre asprofecias do Antigo Testamento, concernentes ao Messias, cumprin-do-se na pessoa de Jesus Cristo, Ele “portanto deve ser o Messi-as.”12

A MENSAGEM DO EVANGELHO DE MATEUS

A fim de que o objetivo de apresentar Jesus como o Messiasfosse alcançado de forma plena, o evangelista utiliza o tema do Reinode Deus como a mensagem central do livro,13 pois “a impressão es-

Novo Testamento, trad. Cláudio Vital de Souza, 1ª ed. (São Paulo, SP: Editora Hagnos,2001), 85.7 David A. Fiensy, New Testament Introduction, The College Press NIV Commentary(Joplin, Mo: College Press Pub. Co., 1994), 140.8 Hale, 85.9 Guthrie, 28.10 Ibid.11 Barclay, 12.12 Ibid.13 Donald A. Hagner, Word Biblical Commentary: Matthew 1-13, 52 vols., WordBiblical Commentary, vol. 33A (Dallas, TX: Word, Incorporated, 2002), lx; Barclay,16; John R. W. Stott, Homens com Uma Mensagem: Introdução ao Novo Testamentoe Seus Escritores, trad. Rubens Castilho (Campinas, SP: Editora Cristã Unida, 1996),40; Tasker, 15.

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pecial que Mateus incorpora é a de realeza. Jesus é o Messias”14 eRei.15

Já no primeiro verso do livro o evangelista explicita a idéia deque Jesus é o Messias, através da utilização do nome “Jesus Cris-to,”16 e Rei, ao vinculá-Lo com Davi, através da expressão “filho deDavi.”17 A fim de que não houvesse dúvidas acerca da realeza deJesus, o evangelista, no verso 6, afirma por duas vezes que Davi é reie, após o nome de Davi, há uma extensa menção dos reis de Israel atéo cativeiro babilônico (1:6-11), mas apenas Davi é chamado de rei esomente Jesus Cristo é chamado de “filho de Davi” (1:1).18 A partirdaí a expressão “filho de Davi” (ui`ou/ Daui,d) é usada ao longo detodo o livro,19 tanto pelo anjo do Senhor (1:20), quanto por cegos(9:27; 20:30-31), tanto pela multidão (12:23; 21:9), quanto por umamulher de fora de Israel (15:22) e até mesmo pela boca de meninos(21:15).

A idéia de realeza em Mateus também é encontrada nos eventosfinais de Sua vida na Terra.20 Quando o sumo sacerdote O desafia a14 A. H. McNeile, The Gospel According to St. Matthew (Grand Rapids: Baker, 1915;reprint, 1980), 17.15 Tasker, 16; Stott, 36, 40.16 A palavra “Cristo” é derivada do latim Chistus e do grego Christos, que na LXX eno NT é o equivalente grego do aramaico mešîHä, correspondente ao hebraicomäšîaH, e que por sua vez é transliterado para o português “Messias”. Porconseguinte as palavras “Cristo” e “Messias” são correspondentes. Colin Brown eLothar Coenen ed., Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,trand. Gordon Chown, 4 vols., vol. 2 (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa EdiçõesVida Nova, 1989), 488.17 John F. Walvoord e Roy B. Zuck, The Bible Knowledge Commentary: AnExposition of the Scriptures, vol. 2 (Wheaton, IL: Victor Books, 1983-c1985), 18;Douglas R. A. Hare, Matthew, Interpretation, a Bible Commentary for Teaching andPreaching (Louisville, KT: John Knox Press, 1993), 6.18 Larry Chouinard, Matthew, The College Press NIV Commentary (Joplin, Mo:College Press, 1997), Mt 1:1.19 Hagner, 9. Para uma compreensão mais ampla da expressão “Filho de Davi” ver:Craig Blomberg, Matthew, 38 vols., The New American Commentary, vol. 22(Nashville, TN: Broadman & Holman Publishers, 2001, c1992), 27, 28; Hagner, lxi, 9.20 Blomberg, 403; Ulrich Luz e Helmut Koester, Matthew 21-28: A Commentary, ed.Helmut Koester, trad. James E. Crouch, Hermeneia, vol. 3 (Minneapolis, MN:Augsburg Press, 2005), 428-430.

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dizer se é ou não “o Cristo, o filho de Deus” (26:63), Jesus quebra osilêncio com uma afirmação: “tu o disseste, eu vos declaro que, desdeagora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Pode-roso e vindo sobre as nuvens do céu” (26:64). “Estes dois títulos eleos reivindica para si e . . . a partir daquele momento seu real poder semostraria, e atingiria seu clímax quando ele próprio retornasse em gló-ria.”21 Depois da ressurreição, nas últimas palavras de Cristo relata-das pelo evangelho de Mateus, no momento em que os Seus discípu-los o adoram (28:17), Jesus demonstra que reconhece a Sua plenasoberania22 ao dizer: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra”(28:18). “De agora em diante todos os poderes angelicais estão sujei-tos a Ele, e sua autoridade [está posta] sobre todas as coisas criadas. . . é com esta nota de majestade que termina o ‘real’ Evangelho deMateus.”23 Ao longo de todo o livro, portanto, o evangelista tentaevidenciar que Jesus Cristo é Rei, e como veremos a seguir, é o Reido reino prometido pelo Antigo Testamento, o qual Ele mesmo veioinaugurar.

O REINO DE DEUS NO AT E NO AMBIENTE PALESTINO-JUDAICO

Para Leonardo Goppelt “em Mateus, e só nele, . . . amiúde éfalado do ‘reino dos céus.’”24 O termo reino de Deus, contudo, nãoera um conceito completamente novo, pois no ambiente palestino-ju-daico já havia considerações a respeito do tema,25 tanto no AntigoTestamento, quanto nos escritos não-canônicos.

21 Tasker, 19.22 Donald A. Hagner, Word Biblical Commentary: Matthew 14-28, 52 vols., WordBiblical Commentary, vol. 33B (Dallas, TX: Word, Incorporated, 2002), 886.23 Tasker, 20.24 Leonhard Goppelt, Teologia do Novo Testamento, trad. Martin Dreher e IlsonKayser, 3ª ed. (São Paulo, SP: Editora Teológica, 2002), 81. A expressão “Reino dosCéus” (basilei,a tw/n ouvranw/n) é usada no evangelho de Mateus (31 vezes aotodo), onde a palavra “Céus” (ouvrano,j) é utilizada para substituir a palavra “Deus”(qeo,j), seguindo o costume hebraico de evitar o uso direto do nome de Deus.“Reino dos Céus” e “Reino de Deus” são, portanto, expressões sinônimas. D. R. W.Wood I e Howard Marshall, New Bible Dictionary, 3 ed. (Downers Grove, IL:InterVarsity Press, 1996, c1982, c1962), 647; Gundry, 95.25 Goppelt, 81, 82.

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A PARÁBOLA DO SEMEADOR NO EVANGELHO DE MATEUS

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No Antigo Testamento não se encontra a fórmula “Reino dosCéus,” e apenas duas vezes aparece a expressão “Reino do Senhor”(1Crônicas 28:5; 2 Crônicas 13:8),26 mas a noção de Deus como Reié comum no Antigo Testamento,27 expressada através de quatro gru-pos textuais: (1) nos Salmos de ascensão ao trono (Sl. 47, 93, 96-99), que confessam que “Jeová tornou-se rei” pois escolheu Jerusa-lém como a Sua cidade e Davi como Rei28 (Sl 89); (2) nas doxologiasque exaltam o domínio de Jeová por Seus atos salvíficos na história(ex.: Êxodo 15; Salmos 44, 87, 89, 136) e/ou falam de Deus comocriador e mantenedor de suas criaturas (ex.: Salmos 74, 95, 103, 145,146);29 (3) nas profecias clássicas que anunciam o reino escatológicode Deus (ex.: Isaías 10, 33, 45, 52), Sua soberania não apenas comoobjeto de louvor, mas como uma realidade histórica final, que trarásalvação para o povo eleito até os confins da Terra;30 e (4) na profe-cia apocalíptica (ex. Isaías 24-26; Daniel 2, 7), onde o reino de Deusé outorgado ao remanescente fiel nos últimos dias31 através de acon-tecimentos cósmicos.32

Na literatura judaica não-canônica encontramos, também, alu-sões ao tema do reino de Deus. Na apocalíptica judaica o reino deDeus não é um assunto dominante, mas quando é apresentado tem umenfoque escatológico: Deus destruindo a Satanás, trazendo o castigosobre os gentios, extinguindo o mundo presente (o primeiro éon), e

26 David Noel Freedman, ed., The Anchor Bible Dictionary (New York, NY: Doubleday,1996, c1992), 52.27 Russel Norman Champlin e João Marques Bentes, Enciclopédia de Bíblia,Teologia e Filosofia, 6 vols., vol. 5 (São Paulo, SP: Editora e Distribuidora Candeia,1995), 623; Goppelt, 82.28 Freedman, ed., 52; Goppelt, 82; Champlin e Bentes, 618.29 Goppelt, 82, 83; Freedman, ed., 52; Champlin e Bentes, 623.30 Goppelt, 83; Freedman, ed., 52.31 Alan Richardson, Introdução à Teologia do Novo Testamento, trad. Jaci CorreiaMaraschin (São Paulo, SP: ASTE, 1961), 91.32 Goppelt, 84. Para uma visão mais ampla sobre o Reino de Deus no AntigoTestamento ver: Paul P. Enns, The Moody Handbook of Theology (Chicago, Ill:Moody Press, 1997, c1989), 27, 33-37; Eugene H. Merrill, Daniel as a Contributionto Kingdom Theology, ed. Stanley D. Toussaint e Charles H. Dyer (Chicago: Moody,1986), 211.

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33 Richardson, 87; Goppelt, 84; Fiensy, 71; George Eldon Ladd, Teologia do NovoTestamento, trad. Darci Dusilek e Jussara Marindir Pinto Simões (São Paulo, SP:Editora Hagnos, 2001), 59; Freedman, ed., 53; George Eldon Ladd, “The Kingdom ofGod in the Jewish Apocryphal Literature - Part 1” Bibliotheca Sacra 109, no. 433(1952; c2002): 55-63. Ver também a Parte 2 e 3 do artigo “The Kingdom of God in theJewish Apocryphal Literature” no Volume 109.34 Goppelt, 85; Fiensy, 73; Richardson, 88; Ladd, Teologia do Novo Testamento, 59,60; Freedman, ed., 54, 55.35 Goppelt, 85. Para uma melhor compreensão da liturgia judaica e da Kaddish ver:Jacob Neusner, Alan J. Avery-Peck e William Scott Green, ed., The Encyclopedia ofJudaism, 5 vols., vol. 2 (Brill, Leiden: Koninklijke Brill NV, 2000), 825-827.36 Freedman, ed., 54.37 Ladd, Teologia do Novo Testamento, 59; Goppelt, 85; David Noel Freedman ed.,54. A fim de conhecer mais acerca dos essênios ver: Don F. Neufeld, ed., TheSeventh-Day Adventist Bible Dictionary, 12 vols., The Seventh-Day AdventistBible Commentary, vol. 8 (Hagerstown, MD: Review and Herald PublishingAssociation, 1979, 2002); Norman L. Geisler, Baker Encyclopedia of ChristianApologetics (Grand Rapids, Mich: Baker Books, 1999), 187-189, 215, 216; Marshall,339-341; Paul Lagass, ed., The Columbia Encyclopedia, 6 ed. (New York; Detroit:Columbia University Press, 2000), Qumran.38 Richardson, 87; Ladd, Teologia do Novo Testamento, 60; Fiensy, 60. Uma maior

por fim, estabelecendo o Seu reino (o segundo éon) e trazendo a feli-cidade para Israel.33

Para o judaísmo farisaico-rabínico o reino de Deus estava asso-ciado primeiramente ao recebimento do jugo do reino do céu, ou seja,obediência à Tora, aceitação do monoteísmo e declaração do Shema.Em segundo lugar, estava relacionado à vinda do Messias-rei, quelibertaria Israel da escravidão dos povos do mundo, através de pode-rosos sinais cósmicos, instaurando afinal o Seu reino de Paz.34 Comoé dito na Kaddish, a última oração do culto sinagogal nos tempos deJesus:35 “possa Ele estabelecer o Seu reino durante a vossa vida e emvossos dias e durante a vida de toda a casa de Israel, rapidamente eem um tempo próximo.”36

Já os essênios, acreditavam que os anjos desceriam para ajudar“os filhos da Luz” (a comunidade de Qunram) na guerra contra “osfilhos das trevas” (judeus paganizados e gentios) estabelecendo, en-tão, o reino escatológico.37 O zelotes por sua vez, que também alme-javam o estabelecimento do reino, criam que ele viria apenas por meiode ação político-militar, e que lutar contra Roma era lutar a favor doReino de Deus.38

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visão a respeito dos zelotes pode ser obtida em: Gerhard Kittel, Gerhard Friedrich,and Geoffrey William Bromiley, ed., Theological Dictionary of the New Testament(Grand Rapids, Mich: W.B. Eerdmans, 1995, c1985), 297-299; Lagass, ed., Zealots;M.G. Easton, Easton’s Bible Dictionary (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems,Inc., 1996, c1897), Zealots; Freedman, ed., 1045-1054.39 Ladd, Teologia do Novo Testamento, 34.40 Marshall, 647.41 Joachim Jeremias, Teologia do Novo Testamento: A Pregação de Jesus, trad. JoãoRezende Costa (São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1977), 78, 79.42 Morris, 141.43 Goppelt, 76-79; Ladd, Teologia do Novo Testamento, 35-38.44 Jeremias, 81.

Foi nesse contexto ideológico e político que João Batista come-ça a proclamar39 que “está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3:2-11) eapontar para “Aquele que vem depois de mim” (Mt 3:11). A mensa-gem do Reino proclamada por João fala de um juízo iminente (Mt3:7),40 quando Deus agiria na história de forma categórica. A fim dedesviar-se da ira divina, os homens deveriam arrepender-se (metano,ia)e demonstrar tal arrependimento através do batismo e confissão depecados (Mt 3:6), bem como dos “frutos dignos de arrependimento”(Mt 3:8). Assim sendo, com João Batista inicia-se “o tempo interme-diário que forma o prelúdio de uma nova era . . . a irrupção do temposalvífico.”41

O Reino de Deus, porém, não é inaugurado por ele, pois o pró-prio João estava cônscio de que sua obra era apontar e preparar ocaminho para Aquele que viria depois dele (Mt 3:3),42 o qual lhe seriasuperior (Mt 3:14), bem como traria um batismo superior, não apenascom água, mas com o Espírito Santo e com fogo, possibilitando, as-sim, um arrependimento efetivo e uma renovação real, cumprindo ca-balmente a profecia de Ezequiel 36:25-28 de criar um novo coração,um novo homem e um novo povo de Deus.43 O Batista, portanto, pro-clama e espera; Jesus o Rei, contudo, é o portador do cumprimento.44

JESUS CRISTO E O REINO DE DEUS

Diferentemente das escrituras judaicas não-canônicas, com suaênfase apocalíptica, catastrófica, legalística, ritualística, terrestre, po-

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lítico-militar, exclusivista e final, Jesus Cristo apresenta o Reino deDeus em consonância com o que foi delineado no AT, um reino davídicoe histórico (Sl 89, 44 e Mt 1:1), mas também espiritual e interior (Lc17:21), um reino escatológico e final (Is 33 e Mt 24:29, 30), mastambém sem “visível aparência” (Lc 17:20)45 e presente agora (Mt12:28).

Ao Jesus iniciar o Seu ministério (Mt 4:17), a mensagem de Suaproclamação é sobre a proximidade46 do Reino e a conseqüente ne-cessidade de arrependimento47 por parte daqueles que querem entrarnele. No sermão do monte,48 em três ocasiões principais, Cristo falasobre essa proximidade. Nas bem-aventuranças Ele mostra a dispo-sição divina em outorgar o reino para aqueles que já agora são ne-cessitados (Mt 5:3-12);49 logo após a abertura da oração do Pai-nos-

45 Uma explicação ampla sobre Lucas 17:20-21 e a expressão evnto.j u`mw/n pode serencontrada em: Gerald F. Hawthorne, “The Essential Nature of the Kingdom ofGod,” Westminster Theological Seminary 25, no. 1 (1963, c2002): 35-47.46 A locução verbal “está próximo” em Mateus 4:17 é a tradução do vocábulo gregoh;ggiken (verbo no perfeito do indicativo ativo, 3ª pessoa do singular de evggi,zw),que pode ser traduzido como “aproximar” ou “estar à mão”, dando assim uma idéiade proximidade tanto de tempo quanto de espaço, além do que o uso do perfeitodenota a idéia de algo que já começou e ainda continua. As versões e traduções emPortuguês trazem tanto “é chegado” quanto “está próximo” (NVI, BJ, RA, DO, RC,TB); já a maioria das traduções e versões inglesas traduzem por “is at hand” (ASV,AV, KJ21, NKJV, RSV). A. T. Robertson faz uso da locução “está à mão”, ou seja,algo “tão próximo que alguém poderia provar e ver-lhe os sinais”. Archibald ThomasRobertson, The Gospel According to Matthew and Mark, 6 vols., Word Pictures inthe New Testament, vol. 1 (Nashiville, Tennessee: Broadman Press, 1930), 24, 35;Mário Veloso, Mateus, trans. Ranieri Sales, Comentário Bíblico Homilético (Tatuí,SP: Casa Publicadora Brasileira, 2006), 71. Michael S. Bushell, Michael D. Tan eGlenn L. Weaver, Bibleworks Ver. 7.0.012g (Norfolk, VA BibleWorks, LLC).47 Sobre a relação entre o arrependimento e o reino ver: S. Lewis Johnson Jr., “TheMassage of John the Baptist,” Bibliotheca Sacra 113, no. 449 (1956, 2002): 30-36.48 A revista Review and Expositor Volume 89 traz artigos esclarecedores à respeitodo Sermão da Montanha. “Review and Expositor,” Review and Expositor 89, no. 2(1992, 2004): 161-27849 Goppelt, 101-103; Ladd, Teologia do Novo Testamento, 69-70; Bock, 119-120;Matthew Henry, Matthew Henry’s Commentary on the Whole Bible: Complete andUnabridged in One Volume (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 1996, c1991),Mt 5:3.

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so (Mt 6:9-13) Ele exorta50 que é preciso pedir pela vinda do reinosobre nós agora, sendo este o pedido de bênção que antecede a to-dos os demais;51 Cristo ensina, também, que a busca pelo Reino deDeus deve ser a primeira e mais importante ocupação da vida e que,da mesma forma que no Pai-nosso, todas as outras bênçãos cotidia-nas vêm em sua esteira (Mt 6:33).52 Enquanto que para os escritosnão-canônicos a vinda do reino seria a consumação final de tudo, paraJesus a inauguração do Reino é o sinal que antecede a todas as coisas.

A vinda presente do Reino de Deus pode ser percebida em pelomenos quatro afirmações. Logo após expulsar o demônio de um ho-mem cego e mudo, Jesus afirma que (1) “se, porém, eu expulso de-mônios pelo Espírito de Deus, certamente é chegado53 o reino de Deussobre vós” (Mt 12:28), mostrando que o fato de Satanás ter sido ex-pulso do seu reino (Mt 12:26) era a prova de que o Reino de Deushavia chegado,54 pois quando um governo é posto em derrocada éporque um domínio superior acabou de se estabelecer (Mt 12:29).50 Em Mateus 6:9 o verbo proseu,comai (orar) está no modo imperativo(proseu,cesqe), trazendo dessa forma a idéia de “devem orar”. Bíblia Online Ver. 3.0(Winterbourne, Ontário: Sociedade Bíblica do Brasil).51 E. E. Thornton afirma que “assim como ‘venha o teu reino’ flui espontaneamenteda identidade daquele que está em relacionamento com o ‘Pai nosso,’ da mesmaforma os temas ‘dá-nos’… ‘perdoa-nos’ e ‘livra-nos’ fluem necessariamente de ‘venhao teu reino.’” Edward E. Thornton, “‘Lord, Teach Us to Pray,’” Review and Expositor76, no. 2 (1979): 232.52 Uma explanação mais ampla sobre esse ponto pode ser obtida em: Hans DieterBetz, The Sermon on the Mount: A Commentary on the Sermon on the Mount,Including the Sermon on the Plain (Matthew 5:3-7:27 and Luke 6:20-49), ed.Adela Yarbro Collins, Hermeneia - a Critical and Historical Commentary on the Bible(Minneapolis, MN: Fortress Press, 1995), 481-484.53 A locução verbal “é chegado” é uma tradução de e;fqasen – verbo no aoristo doindicativo ativo, 3ª pessoa singular de fqa,nw – que possui o seguinte espectro designificado: vir antes de, preceder, antecipar, vir a, chegar, alcançar. Tendo em vistatanto o espectro de significado quanto o tempo aoristo (ação pontilear) na vozativa, fqa,nw poderia ser traduzido como “chegou”, “já chegou”. James Strong,Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong (Barueri, SP: Sociedade Bíblica doBrasil, 2002, 2005), G5348; Kittel, Friedrich, e Bromiley, ed., 1258-1259; James Swanson,Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Greek (Oak Harbor:Logos Research Systems, 1997), DBLG 5777.54 Dan G. McCartney, “Ecce Homo: The Coming of the Kingdom as the Restorationof Human Vicegerency,” Westminster Theological Journal 56, no. 2 (1994, 2002): 9-10; Bruce A. Baker, “Progressive Dispensationalism & Cessationism: Why They

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“Os exorcismos nos evangelhos, então, acontecem como demonstra-ções da inauguração do Reino de Deus.”55

As outras três declarações vêm em resposta à pergunta de João,“És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?” (Mt11:3); ao que Cristo responde, (2) “os cegos vêem, os coxos andam,os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressus-citados” (Mt 11:5a), citando Isaías 35, onde é abordado o tema doreino escatológico de Deus, ou seja, para Jesus a prova de que oMessias Rei havia chegado era que os milagres do Reino, prometidospelo AT, eram realizados por Ele;56 Cristo continua dizendo em Mateus11:5b que (3) “aos pobres está sendo pregado o evangelho”, citandoIsaías 61:1, que faz parte da porção que diz respeito a restauraçãofinal de Sião;57 portanto, para Jesus a pregação do Evangelho, queem Isaías 61 era uma das características do renascimento de Jerusa-lém e da chegada do rei,58 estava atestando não apenas a Sua

Are Incompatible,” Journal of Ministry and Theology 8, no. 1 (2004, 2005): 70-73;Bock, 17, 244-245; Gundry, 157-158; Tasker, 102; Robert L. Thomas, Os Evangelhose a Vida de Cristo em Tabelas e Gráficos, trad. Solano Portela, 1ª ed. (São Paulo, SP:Editora Vida, 2003), 102; Ladd, Teologia do Novo Testamento, 63; Hagner, WordBiblical Commentary: Matthew 1-13, 343-344; G.H. Twelftree, Jesus the Exorcist(Peabody, MT: Hendrickson Publishers, 1993), 173.55 Tim Meadowcroft, “Sovereign God or Paranoid Universe? The Lord of Hosts IsHis Name,” Evangelical Review of Theology 27, no. 2 (2003): kingdom.56 Para M. R. Saucy, porém, “a presença do reino nos milagres de Jesus era a presençado poder do reino escatológico, e não tecnicamente a presença do próprio reino”,Mark R. Saucy, “Miracles and Jesus’ Proclamation of the Kingdom of God,”Bibliotheca Sacra 153, no. 611 (1996, 2002): 304. Essa idéia, no entanto, é refutadapor Raymond Brown, The Gospel Miracles, ed. John L. McKenzie, The Bible inCurrent Catholic Thought (New York, NY: Herder and Herder, 1962), 187; Baker: 66-70; Rudolf Schnackenburg, God’s Rule and Kingdom (New York, NY: Herder andHerder, 1963), 127; H. Van Der Loos, The Miracles of Jesus (Leiden: E. J. Brill, 1965),250-251; G. R. Beasley-Murray, Jesus and the Kingdom of God (Grand Rapids, MI:Eerdmans Publishing Company, 1986), 80-83; O. Betz e Werner Grimm, Wesen undWirklichkeit der Wunder Jesu (Frankfurt: Peter Lang, 1977), 30-31.57 J. Ridderbos, Isaías: Introdução e Comentário, trad. Adiel Almeida de Oliveira, 28vols., Série Cultura Bíblica, vol. 17 (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições VidaNova and Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1986), 49.58 John D. W. Watts, Word Biblical Commentary: Isaiah 34-66, 52 vols., WordBiblical Commentary, vol. 25 (Dallas, TX: Word, Incorporated, 2002), 302, 305;Ridderbos, 487-489. Esta visão de Isaías 61:1 pode ser obtida devido à relação

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messianidade, mas também a inauguração do Reino de Deus.59

Mateus 11:6 diz que (4) “bem-aventurado é aquele que não acharem mim motivo de tropeço.” Jesus aqui está declarando que a provafinal da vinda do Messias Rei e, por conseguinte, do Reino de Deus,não reside apenas nos Seus atos (milagres) ou ensino (pregação doevangelho), mas em última instância, em Sua própria pessoa. Para Je-sus Ele era o Cristo e o Reino.60

Assim sendo, de acordo com o ensino do Evangelho de Mateus,o Reino de Deus é uma realidade presente, inaugurado por Jesus Cris-to, e outorgado àqueles que O pedem e O buscam, colocando assim,já agora, o homem em um novo relacionamento com Deus.61

Se por um lado Jesus articula sobre a vinda presente do Reinode Deus, por outro lado demonstra que a vinda futura, escatológica efinal do Reino também é um fato. Após responder a pergunta dosdiscípulos quanto ao tempo em que ocorreria a queda de Jerusalém, eaos sinais da 2ª vinda e da consumação dos séculos (Mt 24:1-31),Jesus Cristo se ocupa em alertá-los em relação à preparação pessoalpara esses eventos (Mt 24:32-25:46); e ao iniciar o relato da parábo-la das 10 virgens, diz: “Então, o reino dos céus será semelhante62 ...”

existente com o capítulo 60, conforme Francis D. Nichol, ed., The Seventh-DayAdventist Bible Commentary, 12 vols., vol. 4 (Hagerstown, MD: Review and HeraldPublishing Association, 1978, 2002), 316-317.59 Werner Grimm, Weil Ich Dich Liebe. Die Verkündigung Jesu und Deuterojesaja(Frankfurt: Peter Lang, 1976), 129; Hare, 121; Hagner, Word Biblical Commentary:Matthew 1-13, 300-301.60 Goppelt, 93; Marshall, 648; Gösta Lundström diz que “ele [o reino] é o reino deDeus, enquanto concentrado no Rei, que é um com o reino.” Gösta Lundström, TheKingdom of God in the Teaching of Jesus, trad. Joan Bulman (Richmond: John KnoxPress, 1963).61 Uma visão completa a respeito de Mateus 11:2-5 e o reino presente e futuro, podeser obtida em Ellen Gould White, The Desire of Ages (Boise, ID: Pacific PressPublishing Association, 1898, 2002), 213-235, de onde destacamos esta citação:“The works of Christ not only declared Him to be the Messiah, but showed in whatmanner His kingdom was to be established ... As the message of Christ’s first adventannounced the kingdom of His grace [reino presente], so the message of His secondadvent announces the kingdom of His glory [reino futuro]. And the second message,like the first, is based on the prophecies” (217, 234).62 A locução “será semelhante” é a tradução de o`moiwqh,setai (verbo no futuro do

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(Mt 25:1). Posto que em todos os outros relatos Cristo inicia a narra-tiva das parábolas com a expressão “O reino dos céus é semelhan-te...” (Mt 13:24, 31, 33, 44, 45, 47, 52; 18:23; 20:1; 22:2), pode-seinferir que Cristo está fazendo aqui (Mt 25:1) alusão a um reino futu-ro, estabelecido por ocasião da Segunda Vinda, bem como a umapreparação para a entrada futura nesse reino.63 É importante notar,também, que todo o relato dos capítulos 24 e 25 de Mateus é ladeadopor acontecimentos cósmicos, catastróficos, universais e escatológicos,terminando com a cena do juízo final, onde os salvos afinal tomamposse do reino (Mt 25:34), ligando-os assim com as narrativas do ATque dizem respeito ao Dia do Senhor e ao estabelecimento escatológicodo Reino de Deus (Is 2:12; 13:6, 9; Jr 25:31; 30:7; 46:10; Ez 13:5;30:2, 3; 48:35; Jl 1:15; 2:1, 11, 31; 3:14; Am 5:18, 20; Ob 1:15; Sf1:7, 14, 15; Ag 2:15; Zc 14:1; Ml 4:5).

Outra menção do Evangelho de Mateus ao Reino de Deus futu-ro, encontra-se no relato da Ceia do Senhor (Mt 26:26-20). Mateus26:29 versa: “E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei des-te fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo,convosco no reino de meu Pai.”64 Essa mesma narrativa quandocomparada com a sua correspondente em 1 Coríntios (1Co 11:24-26), traz no verso 26 o seguinte: “Porque, todas as vezes que comerdeseste pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até queele venha.” De acordo com o princípio tota scriptura a expressão“até aquele dia ... no reino de meu pai” seria, então, uma referência aomomento do retorno de Jesus a essa terra, quando os Seus discípulosiriam cear novamente com Ele no Reino de Deus.65 Pode-se notar,indicativo passivo 3ª pessoa do singular de o`moio,w), indicando que o cumprimentoda parábola estava no futuro.63 Hagner, Word Biblical Commentary: Matthew 14-28, 727-730; C. Blomberg,Interpreting the Parables (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1990), 194; JoachimJeremias, As Parábolas de Jesus, trad. João Rezende Costa, 17 vols., Nova ColeçãoBíblica, vol. 1 (São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1980), 49, 174-176; Chouinard, Mt25:1-13; William Barclay, Mateo II, trad. Maria Teresa La Valle, 16 vols., El NuevoTestamento Comentado, vol. 2 (Buenos Aires: Associación Editorial La Aurora,1983), 324-327.64 A expressão “reino de meu Pai” em Mateus (26:29) tem em Marcos (14:25) aexpressão correlata “reino de Deus”. As frases “Reino de meu Pai” e “reino deDeus” são, portanto, sinônimas.65 O SDABC comentando Mateus 26:29 diz: “O beber do cálice da comunhão era

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A PARÁBOLA DO SEMEADOR NO EVANGELHO DE MATEUS

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portanto, que para Jesus Cristo o Reino de Deus também é futuro,escatológico e final.

Assim sendo, é à luz da mensagem do Messias Rei e do SeuReino presente – onde hoje já podemos experimentar as bênçãossalvíficas da presença de Cristo, em Cristo – e futuro – onde afinalviveremos nas bênçãos preparadas por Cristo, com Cristo – que aParábola do Semeador deve ser analisada.

Como foi visto, o Reino de Deus é a mensagem que perpassatodo o livro, e como observaremos a seguir, também é o tema queauxilia na organização do material utilizado na composição do Evan-gelho de Mateus, bem como designa o contexto em que a Parábola doSemeador se encontra.

A ESTRUTURA DE MATEUS E O CONTEXTO DA PARÁBOLA DO SEMEADOR

O Evangelho de Mateus tem em sua estrutura cinco discursosde Jesus a respeito do Reino, e todos eles terminam com a fórmulaKai. evge,neto o[te evte,lesen o` VIhsou/j tou.j lo,gouj tou,touj(“quando Jesus acabou de proferir estas palavras” Mt 7:28; 11:1; 13:52;19:1; 26:1).66 Cada discurso vem precedido de uma narrativa, quedescreve vários atos de Jesus, e serve como pano de fundo para osdiscursos.67 Temos, portanto, uma organização de alternância narrati-va/discurso para a macroestrutura de Mateus, mas esta ordem tam-bém está presente nos detalhes do evangelho. Como exemplo disso,quando Jesus responde à pergunta de João a respeito de Suamessianidade (Mt 11:2-5), a explicação vem em forma de alternâncianarrativa/discurso, ou seja, no verso 4 Jesus diz “anunciai o que estaisouvindo e vendo” e no verso 5 há a ordem milagres/pregação.68

‘anunciar a morte do Senhor até que ele venha’ (1 Cor. 11:26) ... o serviço de comunhãofoi designado para manter a esperança da segunda vinda de Cristo vívida na mentedos discípulos” Francis D. Nichol ed., The Seventh-Day Adventist BibleCommentary, 12 vols., vol. 5 (Hagerstown, MD: Review and Herald PublishingAssociation, 1978, 2002), 523; White comenta que “o serviço de comunhão apontapara a segunda vinda de Cristo.” White, 659.66 Gundry, 93; Morris, 137; Stott, 31; Barclay, Mateo I, 15; Hale, 91; Fiensy, 140-141;Hare, 2.67 Guthrie, 39-41; Hagner, Word Biblical Commentary: Matthew 1-13, li68 Hare, 121; Hagner, Word Biblical Commentary: Matthew 1-13, 300-301.

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Logo, essa seria a forma que o evangelista estrutura o seu livro.Para B. D. Hale a macroestrutura de Mateus é composta por

cinco blocos, como se segue:69

I – O Reino: Sua Natureza e Características (4:12-7:28)1. Narrativa Introdutória (4:12-15)2. Discurso: O Sermão da Montanha (5:1-7:28)

II – A Apresentação e Propagação do Reino (8:1-11:1)1. Narrativa Introdutória (8:1-9:34)2. Discurso: Missões (9:35-11:1)

III – A Inauguração do Reino (11:2-13:53)1. Narrativa Introdutória (11:2-12:50)2. Discurso: As Parábolas Acerca do Reino (13:1-53)

IV – A Relação de Jesus Para com o Reino (13:54-19:1)1. Narrativa Introdutória (13:54-17:21)2. Discurso: O Espírito Interno do Reino (17:22-19:1)

V – A Última Apresentação Formal do Reino à Nação Judaica(19:2-26:1)

1. Narrativa Introdutória (19:2-23:39)2. Discurso: Escatologia (24:1-26:1)

A estrutura e a nomenclatura desses cinco grandes blocos e seusrespectivos discursos difere entre os eruditos.70 Por exemplo, para

69 Hale, 92. Nessa apresentação, porém, há uma minimização tanto da encarnação einfância, quanto do sofrimento, morte e ressurreição de Jesus.70 Existem pelo menos três hipóteses principais para o arranjo da macroestrutura deMateus: (1) Os cinco discursos como os únicos pilares para a organização doevangelho [B.W. Bacon, Studies in Matthew (New York, NY: Henry Holt, 1930), 80–82, via um elo entre os cinco discursos de Mateus e o Pentateuco, e dessa formaJesus seria, para ele, um novo Moisés]; (2) os dois momentos pivotais iniciadoscom a cláusula avpo. to,te h;rxato o` VIhsou/j (“Daí por diante, passou Jesus…” Mt4:17; 16:20), que dividem o evangelho em três partes: a pessoa, a proclamação e osofrimento, morte e ressurreição do Messias [D. R. Bauer, The Structure of Matthew’s

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Barclay seria (1) a Lei do Reino (Mt 5-7), (2) os deveres dos dirigen-tes do Reino (Mt 10), (3) as parábolas do Reino (Mt 13), (4) grande-za e perdão no Reino (Mt 18) e (5) a vinda do Rei (24, 25).71 Aestrutura organizada na forma de alternância entre a narrativa/discur-so, com cinco grandes discursos de Cristo sobre o reino, contudo,seria o arcabouço escolhido pelo evangelista para abordar o tema doReino de Deus e mostrar que Cristo é o Messias.

A Parábola do Semeador faz parte do terceiro discurso, que éprecedido pela narrativa que se inicia em Mateus 11:2 e vai até 12:50.Nessa narrativa há um tema recorrente, que pode ser percebido cla-ramente já em Mateus 11:2: a incompreensão a respeito de Jesus comoo Cristo, e do Seu Reino.72

João tem dúvidas quanto a ser Ele o Messias: “És tu aquele queestava para vir ou havemos de esperar outro?” (Mt. 11:3); os fariseusem várias ocasiões põem em xeque o Seu messiado, acusando-O atémesmo de ter pacto com “Belzebu, maioral dos demônios” (Mt 12:24);a multidão também não compreendia bem a natureza do Reino, por-que ao ver um milagre de exorcismo, ainda em dúvida e espanto, ex-clama: “É este, porventura, o Filho de Davi?” (Mt 12:23); e a própriafamília de Jesus O procurava para prendê-Lo e assim impedir Suamissão (Mt 12:46-50; cf. Mr 3:21). A resposta de Jesus vem (da mes-ma forma como está estruturado o evangelho) através de Seus atos ediscurso: atitudes imediatas às indagações e o discurso das pa-

Gospel (Sheffield: Almond, 1989)]; e (3) a estrutura quiástica de Mateus [C. H. Lohr,“Oral Techniques in the Gospel of Matthew,” Catholic Biblical Quarterly 23 (1961):403-435]. A alternância entre narrativa/discurso, todavia, está presente em quasetodas as hipóteses (Hagner, Word Biblical Commentary: Matthew 1-13, l-liii); parauma possível conciliação entre as hipóteses ver: Blomberg, Matthew, 22-25; umaextensa abordagem sobre a estrutura de Mateus pode ser encontrada em W. D.Davies e Dale C. Allison, Jr., A Critical and Exegetical Commentary on the GospelAccording to Saint Matthew, ed. J. A. Emerton, C.E.B. Cranfield, and G.N. Stanton,3 vols., The International Critical Commentary on the Holy Scriptures of the Old andNew Testaments, vol. 1 (Edimburg: T&T Clark Ltd, 1998), 58-72.71 Barclay, Mateo I, 15.72 Tasker, 87-90; Jeremias, As Parábolas de Jesus, 153; Mike Stallard, “Hermeneuticsand Matthew 13 Part I,” Conservative Theological Journal 5, no. 15 (2001, 2003):147-150.

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73 Na Bíblia, mistério é o conceito de que Deus revela Seus segredos ao homem queestá acessível a ouvi-lo (Dn 2:19, 27, 28, 30, 47). Para uma compreensão ampla sobreo tema “mistério,” ver: Marshall, 794-795; Kittel, Friedrich, e Bromiley, ed., 615-619;Gene R. Smillie, “Ephesians 6:19–20 a Mystery for the Sake of Which the Apostle Isan Ambassador in Chains,” Trinity Journal 18, no. 2 (1997): 199-222; Andreas J.Kostenberger, “The Mystery of Christ and the Church: Head e Body, “One Flesh”,”Trinity Journal 12, no. 1 (1991): 79-94; Raymond E. Brown, The Semitic Backgroundof the Term “Mystery” in the New Testament (Philadelphia, PA: Fortress Press,1968), 1-30; Charles C. Ryrie, “The Mystery in Ephesians 3,” Bibliotheca Sacra 123,no. 489 (1966): 24-31; Ladd, Teologia do Novo Testamento, 89-90; Francis D. Nicholed., 405.74 Ladd, Teologia do Novo Testamento, 87-98.75 Ellen Gould White, Parábolas de Jesus, trad. Siegfried Julio Schwantes, 6ª ed.(Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1980), 33.76 W. D. Davies e Dale C. Allison, Jr., A Critical and Exegetical Commentary on theGospel According to Saint Matthew, ed. J. A. Emerton; C.E.B. Cranfield and G.N.Stanton, 3 vols., The International Critical Commentary on the Holy Scriptures ofthe Old and New Testaments, vol. 2 (Edimburg: T&T Clark Ltd, 1998), 370-373.

rábolas do Reino de Mateus 13, onde Ele dá a “conhecer os mistéri-os73 do reino dos céus” (Mt 13:11).

Esse discurso explicativo é composto por sete parábolas (dosemeador, do trigo e joio, do grão de mostarda, do fermento, do te-souro escondido, da pérola e da rede) que revelam aspectos cruciaisacerca do Reino de Deus.74 Todas as parábolas começam com a fraseo`moi,a evsti.n h` basilei,a tw/n ouvranw/n (“O reino dos céus ésemelhante a...,” Mt 13:24, 31, 33, 44, 45, 47, 52), a não ser a pri-meira parábola, a Parábola do Semeador, que veremos a seguir.

O TEXTO DA PARÁBOLA DO SEMEADOR

Na Parábola do Semeador, dois principais temas são aborda-dos, o conhecimento dos mistérios do Reino e a missão do Reino.Como diz White: “Pela parábola do semeador, ilustra Cristo as coisasdo reino dos Céus e a obra do Grande Lavrador.”75 É a respeito des-ses dois assuntos e nessa mesma seqüência que o texto da parábolaserá abordado, tendo em vista que a Parábola do Semeador está divi-dida em três partes:76 (1) o relato da parábola em si (Mt 13:3-9), (2)a discussão a respeito do porquê Jesus fala em parábolas (Mt 13:10-17) e (3) a interpretação da parábola (Mt 13:18-23).

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CONHECER OS MISTÉRIOS DO REINO

Embora a Parábola do Semeador não comece com a expressãoo`moi,a evsti.n h` basilei,a tw/n ouvranw/n, foi em ligação imediata aessa parábola que Jesus afirmou aos discípulos: “porque a vós outrosé dado a conhecer77 [gnw/nai] os mistérios do reino dos céus” (Mt13:11). A Parábola do Semeador, portanto, tem a intenção de fazercom que os discípulos gnw/nai ta. musth,ria th/j basilei,aj tw/nouvranw/n.

Essa intenção de Cristo, a respeito do conhecer (ginw,skw),coadunava-se tanto com o ambiente palestino-judaico histórico, teo-lógico e político, quanto com o contexto imediato vivenciado por Je-sus. Diante da ampla incompreensão a respeito do Reino de Deus porparte dos textos apocalípticos judaicos, da literatura rabínica e essêniae da atitude dos zelotes, bem como da dúvida de João Batista, dasfalsas acusações dos fariseus e da falta de percepção da multidão e dafamília de Jesus, fazia-se necessário que h` basilei,a tw/n ouvranw/nfosse compreendido de acordo com o que fora dito pelo AT e peloensino do próprio Messias. Por isso, o ato de conhecer estámarcadamente presente em toda a extensão da Parábola do Semea-dor.

Quatro verbos principais são amplamente usados por Jesus, ejuntos tornam possível esse conhecer (ginw,skw). O primeiro é (1)ble,pw que de maneira geral, significa “olhar,” a capacidade de ver

77 A palavra “conhecer” é a tradução do vocábulo grego gnw/nai que está na formado aoristo do infinitivo ativo de ginw,skw, que pelo seu espectro de significadotambém pode expressar “aprender,” “averiguar,” “descobrir,” “entender,”“compreender,” “perceber,” “reconhecer,” entre outros. Joseph Henry Thayer, AGreek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids, MI: ZondervanPublishing House), 117-118. ginw,skw na filosofia grega era considerado a “visãoda alma,” não os fenômenos terrestres efêmeros e mutáveis, mas a “visão”permanente e “real,” a natureza metafísica e imutável das coisas. No pensamentohebraico ginw,skw é algo que surge continuamente de um encontro pessoal, e estárelacionado à revelação divina e leva o indivíduo à obediência. Conhecer a Deussignifica entrar no relacionamento pessoal que Ele mesmo possibilita. Colin Browne Lothar Coenen, ed., Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,trad. Gordon Chown, 1ª ed., 4 vols., vol. 1 (São Paulo, SP: Sociedade ReligiosaEdições Vida Nova, 1989), 473-476; Kittel, Friedrich, e Bromiley, ed., 119.

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78 Colin Brown e Lothar Coenen, ed., Dicionário Internacional de Teologia doNovo Testamento, trad. Gordon Chown, 1ª ed., 4 vols., vol. 4 (São Paulo, SP: SociedadeReligiosa Edições Vida Nova, 1989), 702; Gerhard Kittel, Gerhard Friedrich, e GeoffreyWilliam Bromiley, ed., Theological Dictionary of the New Testament, vol. 5 (GrandRapids, MI: W.B. Eerdmans, 1995, c1985), 315.79 Wiliam Carey Taylor, Dicionário do Novo Testamento Grego, 4ª ed. (Rio de Janeiro,RJ: Casa Publicadora Batista, 1965), 152; Colin Brown e Lothar Coenen ed., 698-705;Johannes P. Louw e Eugene Albert Nida ed., Greek-English Lexicon of the NewTestament: Based on Semantic Domains, 2 ed., 2 vols., vol. 1 (New York: UnitedBible Societies, 1988, 1989), 276, 354, 380.80 F. Wilbur Gingrich e Frederick W. Danker, Léxico do Novo Testamento Grego/Português, trad. Julio P. T. Zabatiero, 1ª ed. (São Paulo, SP: Sociedade ReligiosaEdições Vida Nova, 1993), 14; Johannes P. Louw e Eugene Albert Nida, ed., 281, 282.Para poder observar diversas nuances em que avkou,w aparece, tanto no gregoclássico, como na LXX e no NT ver: Colin Brown e Lothar Coenen, ed., DicionárioInternacional de Teologia do Novo Testamento, trad. Gordon Chown, 1ª ed., 4vols., vol. 3 (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1989), 362-369.

como um dos sentidos físicos.78 Jesus usa ble,pw em Mateus 13 (6vezes em 4 versos) tanto no sentido de “ver,” “olhar” (v. 13 ble,pontej,v. 14, 17) como no de “perceber” (v. 13 ble,pousin, v. 16). Intima-mente relacionado com ble,pw, e fazendo par com ele, está o verbo(2) ora,w, que tem como significado geral “ver,” “perceber,” ter uma“visão espiritual” ou “intelectual,” “contemplar.”79 Jesus menciona ora,w4 vezes em 3 versos, denotando “compreender” (v. 14), “ver,” “per-ceber” (v. 15, v. 17 ei=dan) e “contemplar” (v. 17 ivdei/n). Quandoesses dois verbos são considerados, não como palavras soltas, masdentro do curso natural do texto e conectados um ao outro, pode-senotar que para Jesus todas as atitudes, desde um simples ble,pw (olhar)até o`ra,w (contemplação), são necessárias para plenamente segnw/nai ta. musth,ria th/j basilei,aj tw/n ouvranw/n.

Combinando com a macroestrutura de Mateus, na sua forma denarrativa/discurso e ver/ouvir, juntamente com a dupla de verbosble,pw/o`ra,w encontra-se o verbo (3) avkou,w, que aparece 15 vezesem 11 versos. avkou,w significa literalmente ouvir ou escutar,80 e emMateus 13 tem o sentido de “entender” (v. 9, 13 avkou,ousin), “escu-tar” (v. 13 avkou,ontej, 14-15), “compreender” (v.16), “prestar aten-ção” (v. 18), e “ouvir” como algo mais significativo do que o simplesescutar (v. 17, 19-20, 22-23).

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O único dos quatro verbos que aparece nas três partes da pará-bola é avkou,w, e com um papel preponderante. Jesus, após contar aparábola, termina com uma expressão de exortação enfática (v. 9), oe;cwn w=ta avkoue,tw81 (o que tem ouvidos ouça), conclamando todosa que não apenas ouvissem a história, mas a que entendessem o seusignificado. Na segunda parte, Cristo chama de maka,rioi (bem-aven-turados) os que ble,pousin (vêem) e avkou,ousin (ouvem, compreen-dem) a respeito dos ta. musth,ria th/j basilei,aj tw/n ouvranw/n(mistérios do Reino dos Céus). E na explicação da parábola, cadatipo de pessoa, representado por cada tipo de solo, o` to.n lo,gonavkou,wn (“ouve a palavra,” v. 19, 20, 22, 23), independentemente desua aceitação ou não da palavra. Por analogia, o ato do semeador emsemear, compara-se ao ato de proclamar a Palavra do Reino de Deuspara que esta seja ouvida por todos, mesmo sabendo-se de antemãoque a mesma será aceita por uns e rejeitada por muitos. Todos, po-rém, devem ouvi-la.

A fim de se conhecer os mistérios do Reino dos Céus, contudo,ouvir apenas não é o bastante. Por isso, intimamente relacionado, etambém fazendo par com avkou,w está o verbo (4) suni,hmi, que apa-rece 5 vezes em 5 versos (v. 13-15, 19, 23). suni,hmi tem, de maneirageral, os seguintes significados: “perceber,” “notar,” “discernir,” “exa-minar,” “entender” e “compreender.”82 Nesse vocábulo está suben-tendido uma progressão no conhecimento: primeiramente a percep-ção, depois tomar nota, examinar, para então poder chegar a plenacompreensão.83 Na Parábola do Semeador o verbo suni,hmi é usadotanto no sentido de “entender/compreender” (v. 13, 14, 19, 23), comono de “apreender” (v. 15).81 avkoue,tw está no presente do imperativo ativo de avkou,w. O imperativo no gregotem, na maioria das vezes, a conotação de uma ordem, mas pode expressar tambémuma exortação ou mesmo uma súplica. Lourenço Stelio Rega e Joahannes Bergmann,Noções do Grego Bíblico: Gramática Fundamental (São Paulo, SP: SociedadeReligiosa Edições Vida Nova, 2004), 267-276. Wiliam Carey Taylor, Introdução AoEstudo do Novo Testamento Grego, 3ª ed. (Rio de Janeiro, RJ: Casa PublicadoraBatista, 1966), 142-144.82 Elsa Tamez L. e Irene W. de Foulkes, Dicionario Conciso Griego-Español DelNuevo Testamento (Nördlingen: C. H. Beck, 1978), 173; Thayer, 605; Gerhard Kittel,Gerhard Friedrich, e Geoffrey William Bromiley, ed., Theological Dictionary of theNew Testament, vol. 7 (Grand Rapids, MI: W.B. Eerdmans, 1995, c1985), 888; JohannesP. Louw e Eugene Albert Nida ed., 379, 382.83 Colin Brown e Lothar Coenen, ed., 34.

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No contexto da Parábola do Semeador, dentre os quatro ver-bos principais, este é o mais significativo. Na LXX suni,hmi podesignificar “conhecer,” “entender,” “discernir,” entre outros. O objetodesse conhecer é o fato de que Deus é Deus (Jr 9:23-24), e o “temordo Senhor,” a “justiça e retidão” e o “bem e o mal” são objetos dessediscernir (Pv 2:5, 9; 1Rs 3:9). O ato de discernir (suni,hmi) está asso-ciado a atividade revelatória de Deus, e só pode ser adquirido comodádiva de Deus, que Ele outorga em resposta ao pedido do homem(1Rs 3:9; Dn 2:21).84

No NT, e de forma especial em Mateus 13, o vocábulo suni,hmiteria seu significado derivado do AT. Das 26 vezes em que o verbosuni,hmi é usado no NT, 13 estão relacionadas diretamente a passa-gens do AT, sendo que 7 vezes são citações diretas de Isaías 6:9-10.85

Das 9 vezes em que aparece em todo o Evangelho de Mateus, 6 vezessuni,hmi está presente em Mateus 13,86 sendo que as primeiras trêsaparições estão em Mateus 13:13-15 (que é uma citação de Isaías6:9-10, extraída quase que completamente da LXX),87 e as três últi-mas (v. 19, 23, 51) estão intimamente ligadas as anteriores. Dessaforma, na Parábola do Semeador, o verbo suni,hmi traz a idéia do“discernimento” associado à revelação divina, concedido por Deuscomo um dom àqueles que o buscam.

Dentro desse contexto, e tendo em vista o fato de que todosouvem e apenas um grupo de pessoas realmente compreende a pala-vra do reino, pode-se inferir que a falta de compreensão por parte dohomem, não se dá pela ausência de revelação – se todos ouvem éporque Deus fala – nem por arbitrariedade divina, mas em que osmistérios do reino dos céus só podem ser compreendidos por aquelesque buscam e pedem esse dom a Deus. Como exemplo, em Mateus13:10, após a exortação enfática a que todos entendessem a parábo-la, “se aproximaram os discípulos e perguntaram” e logo em seguidaJesus afirma que umi/n de,dotai gnw/nai ta. musth,ria th/j basilei,ajtw/n ouvranw/n (“a vós outros é dado a conhecer os mistérios do84 Ibid., 35; Kittel, Friedrich, e Bromiley, ed., 1119.85 Robert Young, Analytical Concordance to the Bible (Peabody, MA: HendricksonPublishers, 1984), 1014.86 Michael S. Bushell, Bible Works 7.0.87 Davies e Allison, Jr., 394.

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A PARÁBOLA DO SEMEADOR NO EVANGELHO DE MATEUS

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reino dos céus,” v. 11) ; no verso 18 Cristo cumpre sua promessa aodizer: umei/j ou=n avkou,sate th.n parabolh.n tou/ spei,rantoj (Atendeivós, pois, à parábola do semeador), chamando-lhes novamente à aten-ção, e então começa a explicar os mistérios do Reino (v. 19-23). Porfim, após contar as sete parábolas do Reino, Ele novamente usa apalavra suni,hmi dizendo: Sunh,kate tau/ta pa,ntaÈ (entendestes to-das estas coisas?), mostrando o Seu anseio em que os discípulos com-preendessem ta. musth,ria th/j basilei,aj tw/n ouvranw/n, ao queos eles responderam nai, (sim).

É importante ressaltar também, que na Parábola do Semeador,toda vez que suni,hmi é usado, está ligado ao verbo avkou,w. Há aquiuma associação óbvia de que para se gnw/nai ta. musth,ria th/jbasilei,aj tw/n ouvranw/n, meramente ouvir não é o bastante, com-preender é imprescindível. Na explicação da parábola há uma gradaçãona compreensão da to.n lo,gon th/j basilei,aj (palavra do reino).Primeiramente há os que avkou,ontoj ))) kai. mh. sunie,ntoj (ouvem… e não compreendem, v. 19); depois a palavra é ouvida, recebida, ecomo não há um aprofundamento no solo, aquilo que “logo nasceu”(v. 5) é “de pouca duração” (v. 21) e depressa morre (v. 6); no tercei-ro tipo de solo a palavra é ouvida e a semente germina, mas os espi-nhos que com ela “cresceram e a sufocaram” (v. 7), fazem com que“fique infrutífera” (v. 22); é apenas no último tipo de terreno, onde háabundância de frutificação, que a Bíblia afirma que ou-to,j evstin o`to.n lo,gon avkou,wn kai. suniei,j (este é o que ouve a palavra e acompreende, v. 23). Em toda a Parábola do Semeador, é apenasnesse verso (v. 23), e exclusivamente a este último tipo de solo, queJesus usa positivamente o vocábulo suni,hmi, e afirma clara e objeti-vamente a respeito daquele que ouve e realmente compreende a pala-vra do Reino. Para Cristo não bastava ler nas Escrituras a respeito doMessias e do Seu Reino, como os fariseus, essênios e zelotes continu-amente faziam. Não era suficiente, também, ver os feitos miraculosose ouvir as Palavras do Reino de Deus, como testemunharam a grandemultidão e os discípulos de João Batista. Era insuficiente ter vividocom Jesus a cada dia durante 30 anos, como a Sua mãe e a Sua famí-lia vivenciaram. Para Cristo o ler (avnaginw,skw), o ver (ble,pw eo`ra,w) e o ouvir (avkou,w) deveriam levar à compreensão, aodiscernimento (suni,hmi) e ao conhecimento (ginw,skw) dos mistéri-os do Reino dos Céus, como revelados por Ele.

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A compreensão sobre os mistérios do Reino de Deus passa, naParábola do Semeador, pela compreensão da missão do Reino, des-crita pela atitude do semeador, como observaremos a seguir.

A MISSÃO DO REINO

Dentro do tema da missão, a frase ivdou. evxh/lqen o` spei,rwntou/ spei,rein (“Eis que o semeador saiu a semear,” Mt 13:3) é bas-tante reveladora. Ela é iniciada com a partícula demonstrativa ivdou,,usada no intuito de chamar a atenção para a importância daquilo quese vai dizer, podendo ser traduzida por “veja!”, “olhe!”, “contemple!”88

Essa é a única vez em todo o capítulo 13 em que a partícula é utiliza-da, demonstrando assim o valor daquilo que Jesus está prestes a pro-nunciar. O restante da frase revela quem é o agente da missão, qual éo tempo da missão e qual é a atividade da missão.

O sujeito da frase e o protagonista da parábola é o spei,rwn89 (osemeador). É verdade que tanto na narrativa quanto na explicação daparábola, todo o enredo e enfoque é a respeito dos solos e suareceptividade. Nada disso seria possível, contudo, sem a primeira fra-se ivdou. evxh/lqen o` spei,rwn tou/ spei,rein. Além do que, o próprioJesus no v. 18 dá nome à parábola, chamando-a de th.n parabolh.ntou/ spei,rantoj (“a parábola do semeador”). É ele quem sai a seme-ar, quem vê a semente ser rejeitada, sufocada ou germinar e produzirmuito fruto.

A Parábola do Semeador não identifica explicitamente a identi-dade do semeador. O contexto amplo do Evangelho de Mateus, con-tudo, que tem como objetivo mostrar que Jesus é o Messias, fazendodEle o protagonista do livro, bem como o contexto imediato, que re-vela o tema da ampla incompreensão acerca de Jesus como o Cristo ede Sua missão messiânica, fazendo-O protagonista dessa seção, tor-

88 Thayer, 297.89 spei,rwn é o particípio presente ativo nominativo singular de spei,rw queacompanhado de artigo o demonstra que este particípio está na sua função nominalsubstantiva. Como spei,rwn está no caso nominativo pode-se inferir que estevocábulo realmente é o sujeito da oração. Abílio Alves Perfeito, Gramática deGrego (Lisboa: Porto Editora, 1997), 152.

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nam possível a estreita comparação do semeador com Jesus.90 Comoo próprio Cristo afirma: o` spei,rwn ))) evsti.n o` ui`o.j tou/ avnqrw,pou(o semeador ... é o Filho do Homem, v. 37)91 e E. G. White corrobora:“Assim saiu também Cristo, o Semeador celeste, a semear.”92 JesusCristo, por conseguinte, é o protagonista da parábola e o modelo doverdadeiro semeador, do verdadeiro proclamador “da palavra do rei-no.”

Na sentença em estudo dois verbos indicam o “quando” da mis-são: evxh/lqen e spei,rein. O verbo evxh/lqen demonstra o início e ainiciativa, enquanto que spei,rein indica continuidade. Desde queevxh/lqen está no 2º aoristo do indicativo ativo93 de evxe,rcomai, queacompanhado do infinitivo significa sair a fim de fazer algo,94 pode-sedizer que o semeador já saiu, e de forma completa. Visto que paraMateus o Reino de Deus “é chegado,”95 a pregação “da palavra do

90 M. L. Bailey, “The Parable of the Sower and the Soils,” Bibliotheca Sacra 155, no.618 (1998): 179, afirma que “a imagem de Deus como semeador e o povo comodiferentes tipos de solos era muito bem conhecida nos círculos judaicos (cf. 2Esdras 4:26-32).” Hans-Josef Klauck, Allegorie und Allegorese in SynoptischenGleichnistexten (Münster: Aschendorff, 1978), 92-96 concorda e amplia esseconceito.91 Apesar de serem parábolas diferentes, a Parábola do Semeador e do Trigo e doJoio estão inseridas em um mesmo contexto, estão inter-relacionadas e juntamentecom as outras parábolas do capítulo 13, revelam aspectos cruciais acerca dosmistérios do Reino de Deus. Por isso, poderia ser afirmado que o semeador de umaparábola seria o mesmo da outra. J. F. Walvoord e R. B. Zuck, The Bible KnowledgeCommentary: An Exposition of the Scriptures 2vols., vol. 2 (Wheaton, IL: VictorBooks, 1983-c1985), 50; Chouinard, Matthew 13:18; D. Carro, J. T. Poe e R. O. Zorzolied., Comentario Bíblico Mundo Hispano: Mateo, 23 vols., Comentario BíblicoMundo Hispano, vol. 14 (El Paso, TX: Editorial Mundo Hispano, 1993-c1997), 187,189; Henry, Matthew 13:1; Blomberg, Matthew, 222; Hagner, Word BiblicalCommentary: Matthew 1-13, 379.92 White, Parábolas de Jesus, 36.93 O aoristo refere-se à própria ação do verbo como um todo, de maneira pontilear,toda a ação condensada em um momento, completa e acabada. O aoristo do indicativopode exprimir, na maioria das vezes, uma ação ocorrida no passado. A voz ativademonstra que o sujeito da oração realiza a ação expressa pelo verbo. Rega eBergmann, 30, 137-139.94 Thayer, 223.95 Dentro do discurso das parábolas do Reino, as parábolas do joio e das redesfocalizam explicitamente no Reino de Deus vindouro e final, (1) através de expressões

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reino” já se iniciara. A missão do reino não está no futuro, é algo quejá se iniciou, de maneira decidida e integral. O Semeador “deixou Seular seguro e cheio de paz, deixou a glória que possuía junto ao Pai,antes de o mundo existir, deixou Sua posição no trono do Universo.”96

A noção do tempo da missão é complementada pela compreen-são da palavra spei,rein. Na frase em análise (ivdou. evxh/lqen o`spei,rwn tou/ spei,rein) o verbo spei,rein, que está no presente doinfinitivo ativo de spei,rw, vem acompanhado do artigo definido tou/,que é a flexão de to, no genitivo/ablativo singular. Quando o infinitivovem acompanhado de artigo, pode exprimir a idéia do tempo verbalao qual pertence,97 nesse caso o presente. spei,rein, portanto, tendoem vista tanto o tempo presente quanto o infinitivo, está indicando oaspecto verbal linear, durativo e contínuo, que transcende o tempo e oespaço. Consequentemente, o “quando” da missão é tanto agora, algoque já começou (evxh/lqen), quanto constante e ininterrupto (spei,rein).

Além de apontar o tempo da missão, spei,rein indica qual é atarefa da missão através de duas características da palavra: (1) asso-ciação com o artigo tou/ e (2) a espécie da ação que o próprio verboexpressa por meio do seu significado lexical (Aktionsart).

(1) Quando o infinitivo98 vem ligado ao artigo definido neutrogenitivo singular tou/, pode ser usado para modificar o verbo principal

tais como ceifa (v. 39), separação entre maus e justos (v. 49), consumação dosséculos (v. 40, 49), fornalha acesa (v. 42, 50), etc.; e (2) através da utilização do tempofuturo (ex. v. 30 evrw/, 40-43, etc.). A Parábola do Semeador, no entanto, enfoca oReino presente, o Reino da Graça que já havia chegado, porque a expressão temporalda narrativa da parábola (v. 3-8) está no pretérito, onde a maioria dos verbos utilizadosencontra-se no aoristo ou no imperfeito e alguns no infinitivo. Já na explicação (v.19-23) há uma grande predominância do tempo presente quer seja no indicativo ouno particípio e em momento algum há a presença do tempo futuro. Kurt Aland, ed.et al., The Greek New Testament, (Nördlingen: C. H. Beck, 2002), 46-47; Michael S.Bushell, Bible Works 7.0.96 White, Parábolas de Jesus, 36.97 Perfeito, 151. Taylor, Introdução Ao Estudo do Novo Testamento Grego, 125, 365.98 Jean Carrière, Sylistique Grecque: L’usage De La Prose Attique, 3 ed. (Paris:Klincksieck, 1983), 157, afirma que “o infinitivo ou proposição infinitiva com sujeitoexpresso, assinala a expressão de um dinamismo, de uma vontade, de um esforço,de um alvo e também de um propósito tido ou de um pensamento que se exerce.”

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99 William Sanford Lasor, Gramática Sintática do Grego do Novo Testamento, trad.Rubens Paes, 2ª ed. (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1998),78-79; E. D. W. Burton, Syntax of the Moods and Tenses in New Testament Greek3ed. (Edinburg: T. & T. Clark, 1898), 157-158; William W. Goodwin, A Greek Grammar(Boston: Ginn & Company, 1900), 332; Nigel Turner, A Grammar of New TestamentGreek J. H. Moulton: Syntax, 3 vols., vol. 3 (Edimburg: T&T Clark, 1998), 141; C. F.D. Moule, An Idiom Book of New Testament Greek (Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1990), 128.100 H. Liddell, A Lexicon: Abridged from Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon(Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc., 1996), 739; R. L. Thomas, NewAmerican Standard Hebrew-Aramaic and Greek Dictionaries: Updated Edition(Anaheim: Foundation Publications, 1998, 1981), G4697.101 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXIVer. 3.0 (Editora Nova Fronteira and Lexikon Informática).102 Há uma discussão sobre a intencionalidade do semeador ao semear, especulando-se a respeito da preparação do solo. A parábola nada fala se ouve ou não umpreparo prévio. Esse assunto, não obstante, não teria tanta relevância para aexplanação daquilo que a parábola quer enfocar, dentro do contexto em que seencontra. Várias opiniões sobre essa discussão podem ser obtidas em: Chouinard,Mt 13:3; Davies e Dale C. Allison, 382; Ulrich Luz, Matthew 8-20: A Commentary,ed. Helmut Koester, trad. James E. Crouch, Hermeneia, vol. 2 (Minneapolis: FortressPress, 2001), 240-241; Leon Morris, The Gospel According to Matthew, ed. D. A.Carson, The Pillar New Testament Commentary (Grand Rapids, MI W.B. Eerdmans,1992), 336; Hagner, Word Biblical Commentary: Matthew 1-13, 368.

ao indicar o propósito ou resultado da ação.99 Desse modo, quando aparábola diz evxh/lqen o` spei,rwn (“o semeador saiu”), o propósitopelo qual o semeador saiu, o resultado da ação do sair é definido portou/ spei,rein. (2) O significado lexical de spei,rein (cuja raiz éspei,rw) é semear a semente, semear um campo,100 deitar ou espalharsementes para que germinem.101 O propósito e o resultado da açãode sair do semeador é a de simplesmente semear, espalhar a sementecom dinamismo, vontade e esforço. A tarefa da missão, o propósito, oalvo do sair é, no contexto da Parábola do Semeador, puramente se-mear. Ver, ouvir, compreender são atitudes imprescindíveis e que de-vem ser tomadas pelas pessoas que entraram em contato com a to.nlo,gon th/j basilei,aj (“palavra do Reino,” v. 19), mas a tarefa dosemeador é unicamente semear. Semear continuamente, em qualquerterreno, em qualquer pessoa, em qualquer circunstância, permanente-mente, propositalmente,102 com dinamismo e vontade, dando a todosos solos e pessoas a oportunidade de receber, ouvir, compreender e

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conhecer a palavra e os mistérios do Reino do Céu, e então, frutificar.A atitude do semeador é decidida e confiante (v. 4-7; 19-22), poisapesar da realidade de que muitos rejeitam a palavra, ele sabe que“enfim” (v. 8) a semente sempre encontra boa terra, germina e frutificaem abundância (v. 8). O reino de Deus se realiza no cumprimento damissão do semeador. Por isso ivdou. evxh/lqen o spei,rwn tou/ spei,rein.

“Eis que saiu o semeador a semear.” Mat. 13:3. No oriente tãoincertas eram as circunstâncias, e as violências tão grande perigoocasionavam, que o povo morava principalmente em cidadesmuradas, e os lavradores saíam diariamente para o trabalho. Assimsaiu também Cristo, o Semeador celeste, a semear. Deixou Seu larseguro e cheio de paz, deixou a glória que possuía junto ao Pai,antes de o mundo existir, deixou Sua posição no trono do Universo.Saiu como homem sofredor e tentado; saiu em solidão para semearem lágrimas e para regar com o próprio sangue a semente da vidapara um mundo perdido. Igualmente, Seus servos precisam sairpara semear.103

De acordo com a Parábola do Semeador o modelo de semea-dor é Jesus, o tempo da missão é agora e sempre e a tarefa da missãoé espalhar as sementes da palavra com afinco, a fim de que germineme dêem fruto.

CONCLUSÃO

Ao longo desta pesquisa pretendeu-se considerar a Parábolado Semeador desde a perspectiva do Evangelho de Mateus, que tempor objetivo provar que Jesus é o Cristo, e que tem como arcabouçoa mensagem do Reino de Deus, presente e futuro, centralizado noCristo Rei, conforme o que fora previamente revelado pelo AT. Ten-do, ainda, como pano de fundo a narrativa dos capítulos 11:2 a 12:50,que aborda o tema a respeito da incompreensão do Reino, a Parábolado Semeador trata de dois assuntos principais: a necessidade de secompreender a palavra e os mistérios do Reino e a missão de espalhara palavra do reino.

Tendo em vista, também, que Mateus 13 é um discurso que tem

103 White, Parábolas de Jesus, 36.

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como finalidade revelar os mistérios do Reino dos Céus, a Parábolado Semeador colabora com a intenção do Evangelho de Mateus aomostrar que (1) apesar de todos ouvirem a respeito do Reino de Deus,a compreensão dos mistérios do Reino é um requisito básico paraaqueles que realmente querem fazer parte desse Reino. (2) É atravésdo cumprimento da missão do Semeador Rei que o Reino presente seefetiva, dando assim a certeza de que o Reino futuro se concretizará.

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JOSEFO: SUA VIDA, SUAS OBRAS E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA OESTUDO DA BÍBLIA

Clacir Virmes Junior, CePLiB, SALT/IAENE (Brasil)*

RESUMO

Este artigo tem como objetivo fazer uma retrospectiva da vidado historiador judeu Flávio Josefo, ressaltar os pontos altos de suatrajetória, descrever brevemente suas obras e o conteúdo delas e fa-zer um levantamento de algumas das muitas contribuições que seusescritos trazem para nossa maior compreensão da Bíblia.

ABSTRACT

This article has as its goal to make a retrospective approach tothe life of the Jewish historian Flavius Josephus. So that we are ableto detach the main points of his trajectory, to describe briefly his worksand their content, and to survey some of the many contributions thathis writings bring to the Bible understanding.

INTRODUÇÃO

Os escritos de Flávio Josefo freqüentemente são citados em ar-tigos e livros teológicos como fonte de informações para os mais di-versos temas. Em anos recentes, sua obra tem sido exaustivamentepesquisada.1 Durante a Idade Média, ele foi o autor da Antiguidademais lido na Europa, cuja influência não teve igual, sendo apenas so-brepujada pela Bíblia.2 “Eruditos bíblicos têm um grande débito degratidão para com o escritor judeu Flávio Josefo. Sem suas obras,não saberíamos quase nada sobre a história política dos últimos dois

* Aluno do 2º ano de Teologia do SALT/IAENE, sob a supervisão do Dr. JoaquimAzevedo Neto, Ph. D. em Antigo Testamento.1 Para uma discussão detalhada sobre as pesquisas envolvendo a obra de Josefonas últimas décadas do século XX, cf. o artigo de Helen K. Bond, “New Currents inJosephus Research,” CurBS 8 (2000): 162-90.2 Joseph Sievers, “New Resources for the Study of Josephus,” SBL JosephusSeminar 1 (1999): 1-8, 1.

Hermenêutica, Volume 7, 85-1012007 Centro de Pesquisa de Literatura Bíblica

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séculos do período do Segundo Templo.”3 Mas quando o nome deJosefo é citado, que tipo de pessoa deveria nos vir à mente? Quem éeste historiador cuja importância permanece mesmo depois de quasedois milênios? Quantas e quais são as suas obras? Como elas ajudamo pesquisador para sua maior compreensão da Bíblia? São estas asperguntas que este artigo visa responder.

JOSEFO: SUA VIDA

Yosef bar Mattathyahu (em aramaico, ou Yosef ben Mattathias,em hebraico)4 nasceu em Jerusalém entre os anos 37 e 38 AD.5 Eradescendente de linhagem sacerdotal por parte do pai e de linhagemreal por parte da mãe, cuja ascendência, segundo ele, poderia sertraçada até o tempo dos asmoneus. A maior parte das informaçõessobre a vida de Josefo vem de sua obra chamada Guerra dos Judeuscontra os Romanos6 (daqui em diante, Guerra) e de sua autobiogra-fia, que pode ser considerada uma obra em separado7 (daqui em di-ante, Vida), encontrada, porém, na maioria das vezes, como um apên-dice ao Antiguidades Judaicas (daqui em diante, Antiguidades).3 Bond, “New Currents in Josephus Research,” 162.4 Flavius Josephus, The New Complete Works of Josephus, trad. William Whiston,coment. Paul L. Maier (Michigan: Kregel, 1999), 8.5 Bromiley limita seu nascimento como acontecendo entre 13 de setembro de 37 e 16de março de 38 AD. Freedman informa que, segundo Vida I.5, ele nasceu no primeiroano do reinado de Calígula. Cf. Geofrey William Bromiley, The International StandardBible Encyclopedia (5 vols. Michigan: Grand Rapids, 1986), 2:1132; David NoelFreedman, The Anchor Bible Dictionary (6 vols. New York: Dobleday, 1992), 3:982.6 Usa-se neste artigo a nomenclatura utilizada na quinta edição das obras de Josefoem português da editora CPAD. Cf. Flavio Josefo, História dos Hebreus, trad. VicentePedroso, 5ª ed. (Rio de Janeiro: CPAD, 1999).7 Tenney, Bromiley, Maier e Bond afirmam que sua biografia é um apêndice aoAntiguidades, enquanto Orr, Herbermann, e Macho parecem preferir classificá-lacomo uma obra a parte. Cf. Merrill C. Tenney, Pictorial Encyclopedia of the Bible (5vols. Michigan: Grand Rapids, 1976), 3:697; Bromiley, ISBE, 2:1132; Paul L. Maier,Josefo: Las Obras Esenciales (Michigan: Editorial Portavoz, 1994), 12; Bond, “NewCurrents in Josephus Research,” 172; James Orr, The International Standard BibleEncyclopaedia (10 vols. Michigan: Grand Rapids, 1930), 3:1742; Charles Herbermann,The Catholic Encyclopedia: An International Work of Reference on theConstitution, Doctrine, Discipline, and History of the Catholic Church (16 vols.New York: The Encyclopedia Press, 1922), 8:523; Alejandro D. Macho, Enciclopediade la Bíblia (6 vols. Barcelona: Garriga, 1964), 4:640.

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Como tenho a minha origem numa longa série de antepassados defamília sacerdotal, eu poderia vangloriar-me da nobreza do meunascimento . . . Não sou somente oriundo da família dossacrificadores, eu sou também da primeira das vinte e quatro linhasque a compõem e cuja dignidade está acima de todas. A isso, euposso acrescentar que, do lado de minha mãe, eu tenho reis, entremeus antepassados. O ramo dos asmoneus, de que ela é proveniente. . . . (Vida 1.1-2)8

Quando Josefo tinha por volta de dezesseis anos,9 buscou ex-perimentar as diversas seitas que o judaísmo possuía em sua época.Segundo ele, existiam “três: a primeira, a dos fariseus, a segunda, ados saduceus, a terceira, a dos essênios.”10 Maier11 destaca que,concomitantemente a essa pesquisa das seitas judaicas,12 ele perma-neceu durante três anos na companhia de um eremita chamado Bano,vivendo uma vida ascética. Por fim, decidiu-se pela seita dos fariseus.Essa forte formação dentro do judaísmo transpareceu em suas obras,13

principalmente em Resposta de Flávio Josefo a Ápio (daqui em di-ante Contra Ápio), seu maior tratado apologético.

8 Josefo, História dos Hebreus, 476.9 Cf. Bromiley, ISBE, 2:1132; Josephus, The New Complete Works of Josephus, 8;George Arthur Buttrick, The Interpreter’s Dictionary of the Bible: An IllustratedEncyclopedia (4 vols. New York: Abingdon Press, 1986), 2:988. A edição da CPADdas obras de Josefo, na tradução de Pedroso, verte o texto da seguinte maneira:“Quando fiz treze anos desejei aprender as diversas opiniões dos fariseus, e dossaduceus e dos essênios, três seitas que existem entre nós...” (Josefo, História dosHebreus, 476); grifo acrescentado. O texto grego de Niesse, disponível na plataformaPerseus, usa a palavra ekkai,deka, dezesseis. Cf. N. Niesse, Flavius Josephus:Flavii Iosephi Opera (Berlin: Weidmann, 1890). Disponível em:<www.perseus.tufts.edu>. Acesso em: 29 maio 2007. Para maiores informações sobrea plataforma Perseus, cf. Sievers, “New Resources for the Study of Josephus,” 2-3.10 F. Leal Ferreira, Flávio Josefo: Uma Testemunha do Tempo dos Apóstolos (SãoPaulo: Paulinas, 1986), 10.11 Josephus, The New Complete Works of Josephus, 8.12 Para uma breve explanação sobre as seitas judaicas, cf. Ronald F. Youngblood,Dicionário Ilustrado da Bíblia (São Paulo: Vida Nova, 2004).13 Como exemplo, cf. Herold Weiss, “The Sabbath in the Writings of Josephus,” JSJ29, no. 4 (1998): 365-90.

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JOSEFO: SUA VIDA, SUAS OBRAS E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA ...

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Os anos seguintes na vida de Josefo são obscuros. SegundoFreedman, foi nessa época que ele aprendeu a língua grega e se tor-nou familiarizado com a literatura helenística de sua época.14 Ele reataa narrativa de sua autobiografia quando, aos vinte e seis anos, viajaem missão especial a Roma para libertar alguns sacerdotes acusadospor Félix, procurador da Judéia. Num episódio que se assemelha àvida do apóstolo Paulo,15 o navio em que ele viajava naufraga no marAdriático. Dos 600 tripulantes, apenas 80 sobrevivem, sendo resga-tados por um navio oriundo de Cirene, indo parar no porto de Puteoli,na costa italiana.16

Este revés se mostrou de muito valor, pois Josefo conheceuAlituros, um ator mímico judeu, favorecido por Popéia Sabina,17

consorte de Nero. Alituros o apresentou a Popéia, que, além de, porsua influência, libertar os seus amigos sacerdotes, ainda deu-lhe al-guns presentes.

Na idade de vinte e seis anos fiz uma viagem a Roma, por estarazão. Félix, governador da Judéia, mandou por um motivo qualqueralguns sacrificadores, homens de bem e meus amigos particulares,para se justificarem perante o imperador; eu desejei, com muitoentusiasmo, ajudá-los, quando soube que sua infelicidade em nadahavia diminuído sua piedade e eles se contentavam em viver, comnozes e figos. Assim, embarquei e corri um grande perigo, comojamais em minha vida. O navio no qual estávamos, umas seiscentaspessoas, naufragou no mar Adriático. Depois de ter nadado toda anoite, Deus permitiu que ao nascer do dia, nós encontrássemos umnavio de Cirene, que recebeu oitenta dos que entre nós, haviamconseguido nadar tanto tempo; o resto havia perecido no mar. Assim,chegamos a Disearche, que os italianos chamam de Puteoli, ondeeu travei conhecimento com um comediante judeu de nome Alituros,

14 Freedman, ABD, 982.15 Para uma análise dos pontos de contato entre a vida de Josefo e de Paulo, nãoapenas nos acontecimentos de suas vidas, mas também em suas abordagensapologéticas, cf. Robert Gnuse, “Vita Apologetica: The Lives of Josephus and Paulin Apologetic Historiography,” JSP 13, no. 2 (2002): 151-69.16 Orr, The International Standard Bible Encyclopaedia, 3:1742; Josephus, TheNew Complete Works of Josephus, 8.17 Segundo Whiston e Maier, e Ferreira, Popéia era simpatizante do judaísmo.

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18 Josefo, História dos Hebreus, 471.19 Freedman, ABD, 982.20 Josefo, História dos Hebreus, 579-80.

o qual o imperador Nero muito apreciava. Esse homem levou-meaté a imperatriz Popéia e eu obtive sem dificuldade a absolvição e aliberdade daqueles sacrificadores por intermédio dessa princesa,que me deu grandes presentes, também, com os quais regressei aomeu país. (Vida 1.13-14)18

É consenso na bibliografia pesquisada de que essa viagem foium marco na vida de Josefo. A imponência da capital romana o con-venceu de que qualquer tentativa de insurreição seria mal sucedida.Ou, talvez, os presentes a ele concedidos foram, na verdade, um su-borno para que ele tentasse dissuadir seus conterrâneos da iminenterebelião.19 O fato é que, ao voltar para Judéia, ele tentou convencerseus compatriotas a desistir dos movimentos de revolta. Suas tentati-vas foram frustradas, e, ao fim, ele foi nomeado comandante-em-che-fe na região da Galiléia. Antes do ataque das tropas de Vespasiano, oentão general Josefo se dedicou a treinar o exército, fortificar as cida-des e nomear magistrados na região sob seu comando.

Mandaram . . . Josefo, filho de Matias, para exercer um cargosemelhante na alta e na baixa Galiléia, acrescentando-se ao seugoverno, Gamal, que é a praça mais forte de todo o país.. . . O primeiro cuidado de Josefo foi conquistar o afeto do povo,para tirar grandes vantagens e reparar assim as faltas que pudessecometer. Para conquistar também os mais poderosos, dividindo comeles sua autoridade, escolheu setenta dos mais sábios e dos maishábeis, que constituiu administradores da província e deu assimàqueles povos a alegria de serem governados por pessoas do própriopaís e conhecedores dos seus costumes. Além disso estabeleceuem cada cidade sete juízes, para julgar as pequenas causas, segundoa forma que ele lhes havia determinado. Quanto às grandes, reservoupara si mesmo o julgamento. (Guerra 3.568-71).20

Porém, o cerco de Vespasiano foi mais forte, e, ao final, partedo seu contingente militar e o próprio general Josefo foram cercadosem Jotápata, onde defenderam a cidade das tropas romanas por 47dias, ao fim dos quais, ela foi tomada. Eles se refugiaram em uma

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cisterna, onde Josefo decidiu entregar-se aos romanos. Seus compa-triotas queriam obrigá-lo a desistir da idéia, e, para salvaguardar aprópria vida, ele propôs uma espécie de suicídio coletivo, onde a or-dem de execução seria dada pela sorte.

Foi então lançada a sorte e o que era determinado apresentava opescoço ao que o devia matar; isso continuou até que restavamsomente Josefo e um outro; o que aconteceu, talvez, por uma especialproteção de Deus ou por causalidade. Josefo, vendo que se elelançasse a sorte, ela, ou lhe custaria a vida, ou ele teria que mancharsuas mãos no sangue de um amigo, aconselhou-o a viver, dando-lhe garantia de salvá-lo.Assim, Josefo conseguiu escapar daquele tremendo perigo quecorrera, quer do lado dos romanos, quer dos de sua própria nação. . . . (Guerra 3.291-92)21

Logo em seguida a isso, Josefo é levado diante de Vespasiano,onde “prediz” que o general e seu filho, Tito, serão imperadores.Vespasiano, que era dado a presságios,22 resolve aprisioná-lo, ao in-vés de matá-lo. Algum tempo depois,23 Vespasiano é aclamado impe-rador romano, e solta-o, conferindo-lhe a cidadania romana. Alémdisso, dá a ele uma pensão do império e propriedades na Judéia. Emhomenagem aos seus patronos, toma o nome de Flávio, em referênciaa família Flaviana, da qual Vespasiano e Tito faziam parte.24

Tito, algum tempo depois, leva Flávio Josefo consigo para suainvestida final sobre Jerusalém. Ele é usado como intérprete e media-dor entre as forças romanas e os rebeldes na cidade. Dia após dia, oex-general judeu conclama seus compatriotas a se renderem aos ini-migos, numa atitude muito parecida com a do profeta Jeremias.25 Esse

21 Ibid., 601.22 Orr, The International Standard Bible Encyclopaedia, 3:1742.23 Segundo Macho, esse evento ocorreu dois anos após seu aprisionamento, em 1de julho de 69 AD (Macho, Enciclopedia de la Bíblia, 639).24 Bromiley, ISBE, 2:1132; Tenney, Pictorial Encyclopedia of the Bible, 3:697; Orr,The International Standard Bible Encyclopaedia, 3:1742.25 Russel Norman Champlin e João Bentes Marques, Enciclopédia da Bíblia,Teologia e Filosofia (6 vols. São Paulo: Hagnos, 2001), 3:597; Bond, “New Currentsin Josephus Research,” 169.

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envolvimento dele na tomada final de Jerusalém lhe dá a oportunidadede ser testemunha ocular dos eventos ali ocorridos, e que são detalha-dos em sua obra Guerra.

Depois disso, Flávio Josefo volta para Roma, onde se dedica àvida literária, sustentado, sucessivamente, por Vespasiano, Tito eDomiciano.26

A isso devo acrescentar que continuei a ser sempre honrado com abenevolência dos imperadores, pois Tito não me demonstrou menosque Vespasiano, seu pai, e jamais escutou as acusações que sefaziam contra mim. O imperador Domiciano, que o sucedeu,acrescentou novos favores aos que eu já havia recebido . . . umsinal de honra mui ilustre, como libertar todas as terras que eu possuíana Judéia, e a imperatriz Domícia sempre teve prazer em meobsequiar. (Vida 1.428-29)27

Sua morte é obscura. Os historiadores não têm maiores infor-mações sobre as circunstâncias de seu falecimento, sendo que a dataprovável é nos primeiros anos do II século. Segundo Freedman, Josefochegou a testemunhar os primeiros anos do imperador Trajano.28

JOSEFO: SUAS OBRAS

As obras de Josefo sobreviveram ao tempo principalmente porcausa da influência dos pais da Igreja. Eles se apegavam a uma passa-

26 Whiston e Maier comentam que seus empreendimentos literários, que ocorreramno fim de sua vida, devem ter sido subsidiados por Epafródito, que, acredita-se, foium erudito literato que vivia em Roma por essa época. Três das obras de Josefo sãodedicadas a ele. Laqueur sugere que Josefo tenha perdido a patronagem da famíliaFlaviana após a morte do imperador Domiciano. Buttrick também nos informa que,durante a época de Domiciano, a adoração ao imperador foi instaurada, fato que,inclusive, levou o apóstolo João ao exílio. Nessa época, Domiciano chegou a executarseu sobrinho Clemente, por adotar costumes judaicos. Talvez, Flávio Josefo tenhaperdido os favores imperiais nessa época, em conseqüência dessa política doimperador. Richard Laqueur, Der Jüdische Historiker Flavius Josephus: EinBiographischer Versuch auf Neuer Quellenkritischer Grundlage (Giessen:Münchow’sche Verlagsbuchhandlung, 1920), 31; George Arthur Buttrick, TheInterpreter’s Bible (12 vols. Nashville: Abingdon Press, 1957), 12:356.27 Josefo, História dos Hebreus, 495.28 Freedman, ABD, 982.

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29 Segundo Tenney, apesar dos debates, a evidência interna e externa não apóia ateoria de que tal passagem seja uma interpolação cristã posterior. A passagem éconsiderada autêntica, mas não na forma como se apresenta hoje (Tenney, PictorialEncyclopedia of the Bible, 697; Freedman, ABD, 991). Para uma discussão maisacurada sobre a autenticidade da passagem, veja John P. Meier, “Jesus in Josephus:A Modest Proposal,” CBQ 52, no. 1 (1990): 76-104. Para um estudo sobre a históriada controvérsia do Testimonium Flavianum, cf. Alice Whealey, Josephus on Jesus:The Testimonium Flavianum Controversy from Late Antiquity to Modern Times(New York: Studies in Biblical Literature, 2003).30 Josefo, História dos Hebreus, 418.31 Embora alguns autores coloquem a data para sua conclusão no ano 81 AD (Bond,“New Currents in Josephus Research,” 171).32 Otto Michel e Otto Bauernfeind, Flavius Josephus: De Bello Judaico. Der JüdisheKrieg (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1982).33 Buttrick, IDB, 2:987.

gem polêmica, chamada de Testimonium Flavianum,29 que apareceem seu Antiguidades:

Nesse mesmo tempo apareceu JESUS, que era um homem sábio,se todavia devemos considerá-lo simplesmente como um homem,tanto suas obras eram admiráveis. Ele ensinava os que tinham prazerem ser instruídos na verdade e foi seguido não somente por muitosjudeus, mas mesmo por muitos gentios. Era o CRISTO. Os maisilustres da nossa nação acusaram-no perante Pilatos e ele fê-locrucificar. Os que o haviam amado durante a vida não o abandonaramdepois da morte. Ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no terceirodia, como os santos profetas o tinham predito e que ele faria muitosoutros milagres. É dele que os cristãos, que vemos ainda hoje, tiraramseu nome. (Ant. 18.3.3.63-64)30

A grande maioria da bibliografia pesquisada divide as obras deFlávio Josefo em quatro, como segue:

Guerra (Peri. tou/ VIoudaikou/ pole,mou): foi escrita antes de79 AD,31 originalmente em aramaico, e posteriormente traduzida parao grego com a ajuda de assistentes.32 Existe também uma versão eslavada Guerra, mas é duvidoso afirmar que tal versão é baseada noaramaico original no qual a obra foi escrita. Muitos eruditos são daopinião de que a versão eslava é uma tradução da versão grega.33

Este livro conta a história da guerra travada entre os romanos e

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34 Tenney, Pictorial Encyclopedia of the Bible, 3:697. Champlin comenta que ela foiescrita por influência de Tito (Champlin e Marques, Enciclopédia de Bíblia, teologiae filosofia, 597).35 Bond, “New currents in Josephus research,” 171.36 Orr, The Interntional Standard Bible Encyclopedia, 3:1742.37 Como a primeira parte do Antiguidades é uma paráfrase do Antigo Testamento,muitos eruditos buscam encontrar nela vestígios da maneira como Josefo se utilizavade suas fontes para escrever seus livros. Contudo, talvez, é possível que ele tenhafeito um uso diferente das fontes nesta obra, por se tratar das Escrituras Sagradas(Bond, “New currents in Josephus research,” 167).38 Josephus, The New Complete Works of Josephus, 12.

os judeus entre 66 e 70 AD. Sobre esta obra, Tenney comenta que“um dos propósitos para se escrever este livro foi certamente deteroutros de revoltar-se contra os romanos como os judeus haviam fei-to.”34 Contudo, pesquisas recentes têm sugerido que, muito mais doque uma propaganda romana contra insurreições de outros povosdominados, Guerra faz um retrato do povo judeu, tentando colocá-losob uma luz melhor e ressaltando que não foi todo o povo que incitoua revolta, mas apenas uma pequena minoria fanática.35

É dividida em sete livros:36 I, o período de Antíoco Epifânio atéHerodes, o Grande; II, de 4 AD até 66 AD, cobrindo os primeiroseventos da guerra; III, acontecimentos na Galiléia em 67 AD; IV, ocurso da guerra até o cerco de Jerusalém; V e VI, a investida e aqueda de Jerusalém; e VII, os resultados da rebelião;

Antiguidades (VIoudaikh. VArcaiologi,a): foi escrito entre 70e 94 AD. É a história37 do povo judeu desde a Criação até o início darevolta judaica em 66 AD. Whiston e Maier comentam que

As fontes de Josefo para a primeira parte de Antiguidades é bíblica.Ele algumas vezes cita ou parafraseia a tradução grega daSeptuaginta, mas algumas vezes parece mais próximo do textomassorético. Ele também se utiliza de Targuns, do Midrash, e outrastradições rabínicas para adicionar cor, drama, e embelezamento aoregistro escriturístico.38

Bond comenta que esta obra tem cunho apologético, demons-trando as origens do povo judeu, e o defende de acusações, tais comoa de que os judeus não gostam dos não judeus (gentios), ou que eles

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39 Bond, “New Currents in Josephus Research,” 172.40 Orr, The International Standard Bible Encyclopaedia, 3:1742.41 Freedman, ABD, 982.42 Para um estudo sobre a relação entre Josefo e Justo de Tiberíades, cf. HeinrichLuther, “Josephus und Justus von Tiberias: Ein Beitrag zur Geschichte des JüdischenAufstands” (Ph. D. dissertation, Friedrichs-Universität, 1910).43 Bond, “New Currents in Josephus Research,” 169-70.44 Josephus, The New Complete Works of Josephus, 8.

fossem fracos e rebeldes. Flávio Josefo destaca o judaísmo como umareligião antiga, com mérito, e que a religião judaica é atacada injusta-mente pelos seus oponentes. Para isso, suas descrições de persona-gens como Abraão, Isaque, Jacó, José, Moisés, Samuel e Davi (entreoutros) são cruciais, e nelas se destacam características tais como li-derança, sabedoria, coragem, piedade, e generosidade, qualidadesapreciadas no mundo greco-romano.39

É dividida em 20 livros com cinco divisões:40 (a) I-X, da pré-história até o cativeiro babilônico; (b) XI, a época de Ciro; (c) XII-XIV, o início do período helenístico, de Alexandre, o Grande, incluin-do a revolta dos Macabeus, até a ascensão de Herodes, o Grande;(d) XV-XVII, o reinado de Herodes; e (e) XVIII-XX, da morte deHerodes até a guerra em 66 AD;

Biografia (Flaouiou VIwsh,pou Bi,oj): além de ser uma espé-cie de autobiografia (segundo Freedman, a primeira autobiografia daantiguidade que chegou a nós),41 é uma defesa de Josefo contra umrival seu, Justo de Tiberíades.42 É opinião quase unânime de que Flá-vio Josefo era muito cheio de si, presunçoso e auto-suficiente, e nessaobra, muitos desses traços de personalidade vêm à tona. Alguns eru-ditos chegam a postular que ele pretendia, de fato, ser um segundoJeremias, e que, algumas vezes, transparece em seus escritos uma certapretensão em ser o Messias.43 Contudo, Maier comenta que esse pro-cedimento de auto-exaltação, totalmente estranho nos nossos dias porparte de um escritor, era perfeitamente normal em sua época, sendoque outros escritores, como Horácio e Cícero, também o fazem emsuas obras;44

Contra Ápio (Kata. VApi,wnoj): foi escrita entre 97 e 100 AD.É uma obra apologética, onde Josefo defende a religião e antiguidade

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45 Ibid., 13.46 Para uma discussão sobre quem era Ápio, não só nos escritos de Josefo, mastambém de seus contemporâneos, cf. Kenneth R. Jones, “The Figure of Apion inJosephus’ Contra Apionem,” JSJ 36, no. 3 (2005): 278-315.47 Ibid., 310-15.48 Bond, “New Currents in Josephus Research,” 164.49 Ibid., 167.50 Como exemplos desses estudos, cf. Christopher Begg, “Joab’s Murder of AbnerAccording to Josephus,” Hermen 5 (2005): 59-94; Christopher Begg, “Samson’sFinal Erotic Escapades According to Josephus,” Hermen 6 (2006): 39-63; Michael

do povo judaico contra os sistemas idólatras egípcio e grego. “Josefoapresenta uma brilhante defesa do judaísmo contra todos seusdetratores, contrastando os confusos, contraditórios e não documen-tados primórdios da história grega com os bem organizados anais nasescrituras hebraicas, que também têm, de longe, uma maior antiguida-de.”45

É divido em dois livros: o primeiro é uma defesa geral do juda-ísmo, e o segundo é uma defesa direta aos ataques de Ápio deAlexandria.46 Alguns eruditos declaram que uma das razões para oescritor judeu compor esta obra seria a de que Ápio teria escrito umaobra “contra os judeus” (kata. VIoudai,wn), sendo Contra Ápio umareação a esse tratado.47

Bilde, comentando sobre a totalidade dos escritos de Josefo eseu significado, declara que “é o status político e espiritual do povojudeu e do judaísmo no mundo grego-romano que constitui o temacentral de todas as obras de Josefo.”48

Muitos estudiosos, além de estudar o conteúdo das obras deJosefo, também se interessaram pelas fontes que ele usou, tais como aobra de Nicolau de Damasco, os comentários de Vespasiano e outrosgenerais romanos (às quais ele muito provavelmente teve fácil acessodurante o tempo em que permaneceu na corte romana), e as memóriasde Agripa II. Contudo, estas obras não chegaram até nós e nos éimpossível detectar quais partes de seus escritos são mais ou menosbaseadas em cada fonte.49

Existem muitos estudos que abordam como Josefo reconta osepisódios bíblicos,50 e como sua abordagem reflete o uso de diversas

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fontes para que a narrativa se torne atrativa e atinja seu objetivo final,que, na maioria dos casos, é a defesa do judaísmo.

Josefo queria escrever outras obras, como um tratado sobre alei mosaica, sobre o templo e Jerusalém, e sobre a natureza de Deus.Mas não se sabe se ele chegou a produzí-las ou se elas se perderamao longo do tempo.

JOSEFO: SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ESTUDO DA BÍBLIA

Hoje, temos disponíveis cerca de 130 manuscritos gregos e 230manuscritos latinos das obras de Josefo.51 Os pais da Igreja, comoEusébio de Cesaréia,52 grande historiador eclesiástico, e outros, comoIrineu, Clemente, Orígenes, Tertuliano e Jerônimo, utilizavam-se mui-to de seus livros para defender o cristianismo.53

Muitos são os aportes que os escritos de Flávio Josefo provê-em para o melhor entendimento da Bíblia ou de questões a ela relaci-onadas. Algumas de suas contribuições são:

Entendimento do Novo Testamento: Josefo explica e amplia,de maneira independente do relato do Novo Testamento, as biografi-as de muitos personagens do I século, principalmente personagenscontemporâneos de Jesus, como Pilatos e Herodes, e em menor graude outros, como João Batista54 e Tiago, irmão de Jesus, além de per-

Avioz, “Josephus’s Portrayal of Lot and His family,” JSP 16, no. 1 (2006): 3-13;Michael Avioz, “Josephus’ Retelling of Nathan’s Oracle (2 Samuel 7),” SJOT 20, no.1 (2006): 9-17; David A. DeSilva, “‘...And Not a Drop to Drink’: The Story of David’sThirst in the Jewish Scriptures, Josephus, and 4 Maccabees,” JSP 16, no. 1 (2006):15-40.51 Sievers, “New Resources for the Study of Josephus,” 1.52 Para uma abordagem contra o Testimonium Flavianum e o papel de Eusébio emperpetuar os escritos de Josefo, cf. K. A. Olson, “Eusebius and the TestimoniumFlavianum,” CBQ 61 (1999): 305-22. Laqueur sugere que o Testimonium Flavianumseja uma espécie de “jogada de marketing” para se infiltrar dentro do cristianismo, jáque, segundo ele, Josefo perdera os subsídios tanto da família Flaviana quanto deEpafródito (Laqueur, Der Jüdische Historiker Flavius Josephus, 277).53 Josephus, The New Complete Works of Josephus, 10, 14. Norman L. Geisler, BakerEncyclopedia of Christian Apologetics (Grand Rapids: Baker Books, 1999), 253.54 Cf. John P. Meier, “John the Baptism in Josephus: Philology and Exegesis,” JBL

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sonagens do contexto da igreja primitiva, como os reis Agripa I e II,55

Félix e Nero.56

Ligação com o evangelho de Lucas e Atos: alguns estudosapontam para os pontos de contato entre os escritos de Flávio Josefoe os livros escritos por Lucas. Entre eles, se destaca que ambos falamde certos personagens e lugares, usam o mesmo recurso da dedicató-ria e usam recursos historiográficos semelhantes. Essas e outras ca-racterísticas ajudam a elucidar o método lucano na composição deseus livros.57

Aspectos da vida de Jesus: apesar de ter citado Jesus em ape-nas uma de suas obras, seus escritos revelam alguns aspectosesclarecedores sobre o contexto onde Jesus viveu e elucidam algunsde Seus ensinamentos. Inclusive ele esclarece práticas que apóiam al-guns fatos relevantes sobre a vida de Cristo. Como exemplo, pode-mos citar o estudo de Craig Ewans sobre as práticas funerárias entreos judeus, como descritas por Josefo, e como elas apóiam a realidadeda ressurreição de Jesus.58

Dialeto koinê: as obras de Flávio Josefo estão escritas no mes-mo dialeto koinê do Novo Testamento. Isso contribui para lançar luzsobre termos e expressões59 utilizadas no texto neo-testamentário, poisos seus livros se utilizam de palavras comumente utilizadas no I sécu-lo, contemporâneas ao texto bíblico.60

Descrições geográficas: a arqueologia tem demonstrado queJosefo foi, na maioria das vezes, muito acurado61 em suas descrições

111, no. 2 (1992): 225-37.55 David Noel Freedman, The Anchor Bible Dictionary, eletronic ed. (6 vols. NewYork: Doubleday, 1996), 98.56 Josephus, The New Complete Works of Josephus, 10.57 Contudo, não existem evidências de que Josefo tenha influenciado Lucas, ou vicee versa (Bond, “New Currents in Josephus Research,” 179).58 Craig A. Evans, “Jewish Burial Traditions and the Resurrection of Jesus,” JSHJ 3,no. 2 (2005): 233-48.59 Como exemplo, cf. Dorothy I. Sly, “1 Peter 3:6b in the Light of Philo and Josephus,”JBL 110, no. 1 (1991): 126-29.60 Cleon L. Rogers, The Topical Josephus: Historical Accounts that Shed Light onthe Bible (Michigan: Zondervan Publishing House, 1992), 12.61 Para uma discussão sobre as contradições nos escritos de Josefo e seu método

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de cidades como Jerusalém e Massada, sendo, por isso, de grandeajuda para a compreensão da topografia desses e outros lugares cita-dos em suas obras.62

Aspectos do mundo do I século: os estudantes do Novo Testa-mento encontram em Flávio Josefo uma rica fonte de informações so-bre a agricultura, indústria, religião e política deste período.63

Teologia judaica do I século: as obras de Josefo refletem opensamento teológico judaico do I século DC, ajudando na melhorcompreensão do judaísmo no período posterior a queda de Jerusalémem 70 AD.64 Suas descrições das seitas e práticas judaicas são consi-deradas muito acuradas e concordam com outras fontes sobre o mes-mo assunto.65

Historiador do período inter-testamentário: os tratados deFlávio Josefo sobre o período inter-testamentário, principalmente ahelenização da época de Alexandre, o Grande e a revolta dosMacabeus, em grande parte, ajudam na melhor compreensão dessaépoca.66

Testemunha da extensão do cânon do Antigo Testamento:alguns trechos das obras de Josefo são importantes testemunhas comrelação a quais livros pertencem ao escopo canônico67 dos escritosjudeus. Ele assevera que

histórico, cf. Steve Mason, “Contradiction or Counterpoint? Josephus and HistoricalMethod,” Review of Rabbinic Judaism 6, no. 2-3 (2003): 145-88.62 Champlin e Marques, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, 597; L.Monloubou e F. M. Du Buit, Dicionário Bíblico Universal (Petrópolis: Vozes, 1997),437.63 Tenney, Pictorial Encyclopedia of the Bible, 3:697.64 Bond, “New Currents in Josephus Research,” 170.65 Kenneth Atkinson, “Josephus’s Portrayals of the Pharisees, the Sadduceess, andthe Essenes in the Light of Qumran Texts and Pseudepigrapha,” SBL JosephusSeminar 5 (2005): 1-25.66 Maier, Josefo, 7.67 Para uma discussão sobre o testemunho de Josefo quanto a extensão do cânonjudaico, cf. Peter Höffken, “Zun Kanonsbewusstsein des Josephus Flavius in ContraApionem und in den Antiquitates,” JSJ 32, no. 2 (2001): 159-78.

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Temos somente vinte e dois [livros] que compreendem tudo o quese passou, e que se refere a nós, desde o começo do mundo atéagora, e aos quais somos obrigados a prestar fé. Cinco são deMoisés, que refere tudo o que aconteceu até sua morte, duranteperto de três mil anos e a seqüencia dos descendentes de Adão. Osprofetas que sucederam a esse admirável legislador, escreveramem treze outros livros, tudo o que se passou depois de sua morteaté o reinado de Artaxerxes, filho de Xerxes, rei dos persas e osquatro outros livros, contêm hinos e cânticos feitos em louvor deDeus e preceitos para os costumes. (C. Ap. 1.8)68

Daniel: em Antiguidades 10-12, Flávio Josefo afirma ahistoricidade do profeta Daniel como vivendo no sexto século AC,autenticando a fidelidade das predições históricas feitas por intermé-dio dele e refuta a tese de que o livro de Daniel tenha sido escrito apósos eventos nele descritos.69

CONCLUSÃO

Segundo Champlin, “Tonybee, grande historiador norte-ameri-cano deste século [XX], considerava-o [Josefo] um dos cinco maio-res historiadores do período helenista, juntamente com Heródoto,Tucídides, Xenofonte e Políbio.”70

Apesar de sua importância, é claro que não podemos nos ape-gar cegamente aos escritos de Josefo na ânsia de defender qualquertipo de posição. Maier comenta que

O valor do historiador judeu [Josefo] é menor no que respeita aoAntigo Testamento, mas cresce dramaticamente para o período inter-testamentário até se fazer totalmente indispensável para compreendero marco político, topográfico, social, intelectual e religioso da erado Novo Testamento.71

68 Josefo e Pedroso, História dos Hebreus, 712. Cf. também Norman Geisler e WilliamNix, Introdução Bíblica (São Paulo: Editora Vida, 2006), 63, 83; George Arthur Buttrick,The Interpreter’s Bible (12 vols. Nashville: Abingdon Press, 1952), 1:38.69 Geisler, Baker Encyclopedia of Christian Apologetics, 253.70 Champlin e Marques, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, 598.71 Maier, Josefo, 7.

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Criteriosamente usados, seus escritos são uma preciosa fonte de in-formação e estudo.

Josefo não era perfeito nem um perfeito historiador. Muitas ve-zes, suas descrições parecem muito fantasiosas. Contudo, na sua época,hipérboles exageradas eram a regra, não a exceção. e isso de maneiranenhuma tira seus méritos em reportar o mundo do I século. Maier dizque “de fato, ele foi mais confiável do que a maioria dos historiadoresdos seus dias.”72 Rogers acrescenta: “se fosse possível ter apenas umaobra para usar no estudo do Novo Testamento, os escritos de Josefoben Matias, mais conhecido como Flávio Josefo . . . seriam a escolhacorreta.”73 Bilde declara que “Josefo tinha as melhores qualificaçõespara fornecer informação confiável. Ele era bem familiarizado com asescrituras judaicas e foi uma testemunha ocular da guerra.”74 Villalba eVarneda concluem que ele se utilizou de muitos recursos historiográficose era um especialista na arte da narrativa.75

Por causa do incidente em Jotápata, muitos o consideraram umcovarde e um traidor,76 atitude que perdura até hoje, principalmenteem alguns círculos judeus.77 Porém, de maneira especial entre os ju-deus eruditos, esta atitude parece ter mudado muito em anos recen-tes.78

Sua contribuição para a compreensão da Bíblia, principalmentesobre o período neo-testamentário, é de valor incalculável. Bond afir-ma que “ele é . . . [o] comentarista bíblico sistemático . . . de grandeimportância para nosso conhecimento do texto bíblico e sua interpre-tação no primeiro século.”79 Seu trabalho nos ajuda a aprofundar-nos

72 Josephus, The New Complete Works of Josephus, 14.73 Rogers, The Topical Josephus, 11.74 Bond, “New Currents in Josephus Research,” 164.75 Ibid., 166.76 Ibid., 163.77 Maier, Josefo, 9.78 A Revista Morashá, de cunho judaico, publicou em setembro de 2001 um artigosobre Josefo, da professora Jane Bichmacher de Glasmann, da UERJ. O tom doartigo é amistoso e ressalta o valor de Josefo como historiador. Cf. Jane Bichmacherde Glassmann, “Flávio Josefo: Traidor ou Traído?,” Morashá 34 (2001): 1-4.79 Bond, “New Currents in Josephus Research,” 162.

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em muitos detalhes históricos e geográficos citados nos evangelhos.80

Além disso, ele é a principal fonte para o estudo da história judaicaentre o I século AC e o I século DC.81

Este é Josefo como visto, lido e interpretado após quase doismil anos de estudo de sua obra. As questões relativas à sua pessoa,caráter e conduta talvez nunca tenham respostas satisfatórias. Toda-via, é inegável a influência que seu trabalho alcançou e o aporte queele forneceu aos pesquisadores da Bíblia através dos séculos. A histó-ria e a teologia têm uma dívida de gratidão para com o comandante,apologista, escritor e historiador judeu Flávio Josefo.

80 Bromiley, ISBE, 1133.81 Tenney, Pictorial Encyclopedia of the Bible, 3:697; Champlin e Marques,Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, 597.

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UM BREVE ESTUDO ENTRE DOIS RAMOS DAS LÍNGUASAFRO-ASIÁTICAS:

A EGÍPCIA (CAMITA) E A SEMITA

Joaquim Azevedo Neto, SALT, IAENE, Brasil

RESUMO

Esta é uma tentativa de apresentar um breve estudo a respeitoda relação entre as línguas semíticas (neste caso o hebraico) e a lín-gua egípcia do Período Médio.

ABSTRACT

It is a tentative to present a brief study about the relationship ofthe semitic languages (in this case hebrew) to the EgyptionHieroglyphic.

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo apresentar de forma sucinta al-guns possíveis pontos de contato entre a língua hebraica e a egípcia,do Período Médio (2000-1300 a.C.). O segundo milênio a.C. foi es-colhido para este trabalho pelo fato de que houve neste tempo umgrande intercâmbio sócio-político-econômico entre as nações do An-tigo Oriente Médio. Assim sendo, uma visão mais clara se terá dointercâmbio sofrido por estes dois ramos lingüísticos, com respeito àgramática e à semântica das palavras. Neste caso somente, a línguahebraica (representando as semitas), como esta aparece no Códicede Leningrado, será usada para alcançar o objetivo desta investiga-ção. O alvo é de dar um exemplo, e não, o exaurir de todas as evidên-cias da história do desenvolvimento destas línguas. E mostrar que háevidências lingüísticas que podem ser um apoio à estada de Israelpelo Egito neste período.

O ramo Afro-Asiático compõe-se das línguas berber, xadica,cushita, egípcia e a semita. Cada um destes grupos se subdivide em

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vários ramos, com exceção da língua egípcia. As línguas semitasque os egípcios entraram em contato por volta deste período pode-riam ter sido as seguintes: do noroeste: cananéia (ugarítico, fenício,hebraico, moabita, amonita e edomita) e aramaico; do sudoeste:dialetos do sul da Arábia; línguas semíticas do nordeste: assíria ebabilônica.

POSSÍVEIS FATORES DE CONTATOS ENTRE ESTES RAMOS LINGÜÍSTICOS

Neste período da história egípcia existiram vários contatos en-tre a cultura egípcia e a região Siro-Palestina. Existem achados ar-queológicos da península do Sinai que mostram a existência de mi-nas de cobre que foram exploradas pelos egípcios usando mão deobra escrava ou de trabalhadores semitas. Nestas minas, encontram-se várias pedras e murais com escrituras classificadas como proto-sinaíticas, isto é, num nível embrionário do desenvolvimento do páleo-hebraico. Esta escrita já era alfabética e numa linguagem semita data-da por volta do ano 1500 a.C.1 Não podemos esquecer que a cidadefenícia de Biblos foi por muito tempo uma colônia portuária do Egitodurante este período da sua história. Nesta cidade, desenvolveu-seum silabário com sinais gráficos semelhantes ou alfabeto doshieróglifos.2 Vários fortes foram construídos perto da região do atualcanal de Suez para evitar a invasão dos povos da Palestina dentrodo território egípcio.

Assim podemos ver que houve um controle por parte do Egitodesta região Siro-Palestina nesta época, porém não houve um totaldomínio militar. Este controle foi comercial, pois a madeira, óleo deolivas, vinho, etc. eram as riquezas desta região que os egípcios cobi-çavam e não a terra em si. Isto pode ter sido devido ao fato de quenenhum egípcio da alta classe gostaria de ser enterrado longe do rioNilo, o deus doador da vida. Outro fator foi a crença na vida apósa morte, somente aqueles enterrados na banda ocidental do Nilo,1 W. Helck, Die Beziehungen Ägyptens zu Vorderasien no vl. 3 e 2; The Proto-Sinaitic Inscription and their Decipherment (Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1966).2 Joaquim Azevedo Neto, “The Origin of the Proto-Cananite Alphabet,”Hermenêutica 1(2001): 3-29; Joaquim Azevedo Neto, “The Origen of the Proto-Caninite Alphabet,” ( Mestrado, diss., Andrews University, 1994).

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onde estão as pirâmides, poderiam obter a vida eterna.Outra evidência deste contato é a lista chamada de Textos de

Maldições (Execration Texts List), datada deste período, que menci-onando nomes de cidades, vilas e tribos da região Síro-Palestina e deseus líderes.3 Já no Novo Reino, o Egito teve uma nova política inter-nacional. Esta nova pólitica era mais imperialista do que antes e decontrole militar da região, mas ainda sem nenhuma intenção de povoá-la por egípcios.4

Na Décima Oitava Dinastia, os egípcios estabeleceram fortesmilitares por vários lugares da região Siro-Palestina e há evidênciasde que existiram muitos escravos, trabalhadores, diplomatas e comer-ciantes semitas no Egito nesta época como nunca antes. Por outrolado, havia egípcios que comercializavam trazendo bens da regiãoSiro-Palestina para os mercados do Egito. Portanto, houve nestastransações contatos mais intensos entre estas línguas por muitos sé-culos. No período de Amarna, a língua acadiana (semita), escrita emcuneiforme, era a língua franca e da diplomacia daquela época noAntigo Oriente Médio. Documentos e cartas eram trocados pela cor-te egípcia e os reis do Levante na língua franca. Biblos continuavaainda a ser uma cidade portuária chave para a economia egípcia.

As evidências históricas e arqueológicas mostram que existiramestes contatos entre estas línguas e o efeito sobre elas é o que se podever ao compararmos ambas. A seguir daremos alguns exemplos doefeito lingüístico possivelmente devido a estes contatos. Não sepode deduzir baseado nas evidências quem sofreu mais os efeitosdestes contatos comerciais. O que se pode verificar claramente sãoos notáveis efeitos sobre ambos os ramos lingüísticos. 53 G. Posener, Princês et pays dÁsie et de Nubie (Brussels: 1940).4 R. O. Faulkner, “Egyptian Military Organization,” JEA 39 (1953), p. 43.5 Hoch na sua conclusão apresenta que o maior índice de palavras são provenientesda língua hebraica:ex: o pronome relativo hz-ha que, qual//84

…XX´ëë<’i-d-ma-t; dm[ tomar uma posição contra //ô ÃX#’i-t î i; hmda terra //F F

±Íjk¥ ´© ‘a-ma-di; lqm vara, bastão, cajado//X±X©‘ôå ma-qi-ra ; fgn oprimir // // ga-ni-sa.

ò

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EFEITO DESTES CONTATOS SOBREESTAS DUAS LÍNGUAS

A seguir apresentaremos alguns exemplos da influência que po-deria ter vindo de ambos os lados. Observe-se abaixo uma lista depalavras semitas que são encontradas no vocabulário egípcio desteperíodo, estas poderiam ser cognatas ou estrangeirismos devido aeste contato que perdurou por séculos. 6 O objetivo aqui não é exauriras evidências, mas apenas usar uma amostra delas para atingir opropósito deste trabalho.

PEQUENA AMOSTRA DE ALGUMAS DAS PALAVRASCOMUNS ENTRE AS DUAS LÍNGUAS

ba Pai

ë#ÎëëQ ’a-bi-ya 7

hmda terra, país, região, chão de terra

…XX´ëë< ’i-d-ma-t8

tyB casa

¾wëëÙëO bi-ya-ta9

6 W. F. Albright, “The New Cuneiform Vocabulary of Egyptian Words,” JEA 12(1926): 186-90; idem, “Northwest-semitic Names in a List of Egyptian Slaves fromthe Eighteenth Century B.C.,” JAOS 74 (1954): 222-233; Albright e T. O. Lambdin,“New Material for the Egyptian Syllabic Orthography,” JS 2 (1957): 113-127; E.Dévaud, “Etude de lexicographie égyptienne at copte,” Kêmi 2 (1929): 3-18. 7 Hari, Répertoire onomastique amarnien (Geneva: 1976), n. 208; James E. Hoch,Semitic Words in Egyptian Texts of the New Kingdom and Third IntermediatePeriod (Princenton, New Jersey: Princenton University Press, 1994), n. 1, p. 17. 8 The Toponym List of Shoshonq: Relief and Inscriptions at Karnak, vol. 3 TheBubastis Portal (Chicago: University of Chicago Press, 1954), pl. 4, Shishak List, n.98-99, 22nd Dinastia; Hoch, n. 41, p. 46. 9 KRI, vol. 5, p. 95, n. 72; Hoch, n. 112, p. 91.

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l[b senhor, esposo, proprietário, dono

¾‘‘‘‘‘ôÙ b-‘-ra10 ou ¾ ô Ø b-‘-ra11¥¥

COMPARAÇÕES GRAMATICAIS

Nesta seção, alguns elementos gramaticais comuns aos dois ra-mos lingüísticos serão levados em consideração. A ênfase será dadaà língua hebraica. Podemos ver que essa semelhança poderia ter ocor-rido devido aos contatos mencionados acima, mas dificilmente sepoderia tomar uma posição com respeito à direção da origem destassemelhanças. Portanto, os exemplos são apenas ilustrativos deste fe-nômeno lingüístico.

CONSTRUÇÃO DO GENITIVO 12

Conhecido pelo nome de genitivo direto pelos acadêmicos dalíngua egípcia, este simplesmente consiste em colocar um substantivona frente do possuidor.

Por exemplo: × O o dono [da] casa.ôAqui a preposição “da” é subentendida do contexto. Esta for-

ma de expressar o caso genitivo é a mais comum, apesar de existiremoutras formas de expressar este caso usando as “preposições” cha-madas nisba ( FFFFF n, derivadas de adjetivos), escritas explicita-mente no texto.13 Abaixo apresentaremos uma tabela destas prepo-sições nisba:

ô

10 K. A. Kitchen, ed. Ramesside Inscriptions (KRI): Historical and Biogrphical, 7vols. (Oxford: 1969-90), vol. I, p. 17, 14. Esta palavra B‘l é muito usada em nomespessoais nos textos egípcios; Hoch, n. 115, p. 93, nota 5.11 University of Chicago Oriental Institute, Ramses III Inscriptions at Medinet Habu(Chicago: University of Chicago Press 1930-), p. 86, 25; 20nd Dinastia; Hoch, n. 116,p. 94 .12 Veja as seguintes obras sobre a língua hebraica que explicam o caso do Genitivo:Bill T. Arnold e John Choi, A Guide to Biblical Hebrew Syntax (Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2003), 8-13;E. Kautzsch, ed., Geseniue´Hebrew Grammar, trans.A. E. Cowley (Mineola, New York: Dover Publication, 2006, originária de 1910), §129-130.13 James E. Hoch, Middle Egyptian Grammar (Mississauga, Toronto: BenbenPublication, SSEA Publication XV, 1997), p. 30, § 22,b.

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TABELA DO GENITIVO (PREPOSIÇÕES) DE ORIGEM ADJETIVA (NISBA)

MASCULINO FEMININO

SINGULAR

PLURAL

DUAL, RARO

F n(y) ° n(y)tF

�� n(y)wô, ° n(yw)t

F

F» n(y)yw´

° n(y)ty´

F

Ex.: O F¶! a casa do escribaô

@lMh sws O cavalo do reiAssim, a língua egípcia possui duas formas de expressar o

genitivo, todavia a mais comum é a semelhante à forma semítica doconstruto e absoluto, ex.: @lMh sws o cavalo do rei. O aramaicopossui a partícula lv de, para expressar o genitivo de maneira se-melhante às preposições nisba.

CONSTRUÇÃO DA ORAÇÃO COM PREDICADO NOMINAL

Na língua egípcia existe a forma de escrever uma oração depredicado nominal com o verbo de ligação elíptico, como acontece nohebraico bíblico,14 sendo que na língua egípcia este uso é mais fre-qüente e abrangente, pois este é usado tanto para o presente comopara o passado sem nenhuma forma morfológica que ajude ao leitor,14 Ver meu artigo sobre este fenômeno lingüístico na língua hebraica bíblica, JoaquimAzevedo Neto, “A Oração de Elipse Verbal (ou Verbles Clause) do Hebraico Bíblico,”Hemenêutica 6 (2006):81-87.

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a não ser o contexto. Mesmo assim pouca ou nenhuma ambigüidadeé encontrada pelo leitor ao determinar pelo contexto qual seria o me-lhor tempo verbal para o verbo elíptico que deverá aparecer na tradu-ção em português.

ë» $ô j O homem [está] na casa / o homemp

OEx.:ô

$m[ hwhy Jeová [está] com você (Juiz. 6:12)

COMPARAÇÃO GRÁFICA DAS PALAVRAS SEMÍTICAS ENCONTRADASNOS ESCRITOS EGÍPCIOS DESTA ÉPOCA

James A. Hoch escreveu sua tese doutoral15 sobre este assuntoe algumas de suas conclusões são pertinentes a este trabalho. Apre-sentaremos algumas de suas conclusões nesta seção. Hoch catalo-gou 391 palavras semitas encontradas na língua egípcia desta época.Ele apresentou na sua tese vários gráficos que ilustram de maneiraesclarecedora quais os setores sociais do antigo Egito que mais sofre-ram esta influência lingüística semita. A lista de palavras que Hochusa contém não somente palavras hebraicas mas também de váriasoutras línguas semíticas da época, como o ugarítico e o acadiano:

Gráfico 1Distribuição das Palavras Semíticas

nas Categorias

Ecologia 16,1%

Guerras 15,1%

Casa 12,8%

Economia 11,0%

Recreação 11,0%

Atividades 10,7%

[estava] na casa

15 Hoch, p. 473, gráfico 5.

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Abstrata 9,7%

Saúde 4,3%

Arquitetura 3,1%

Legal 1,8%

Política 1,8%

Religião 1,3%

Social 1,0%

Realeza 0,3%

Pelas informações do gráfico 1 podemos ver que as áreas dasociedade egípcia mais influenciadas pelas palavras semíticas foramaquelas que envolvem o cotidiano da população. Por exemplo, temosmuitas palavras referentes aos objetos comerciais, como alimentos,utensílios domésticos, guerra, passatempos e outras atividades emque o povo comum estava envolvido. A alta classe foi também influ-enciada, isto pode ser deduzido baseando-se no gráfico 2, citadoabaixo, quando a maior porcentagem de palavras estrangeiras apare-cem em escritos didáticos escolares. Há certas áreas, porém, quesofreram muito pouco esta influência lingüística semita. Isso pode servisto devido ao fato de haver poucos exemplos de palavras semitasnas atividades em que estas classes participavam, por exemplo, a cas-ta religiosa dos sacerdotes, o sistema legal de governo e leis, a realezae a política.

Gráfico 2Incidência de Palavras Semitas por

Tipos de DocumentosTipo de Textos Nº. de exemplos Porcentagem

Textos Escolares 248 38,8 %Econômico 108 16,9 %Histórico 82 12,8 %

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Oráculos 35 5,5 %Legal 37 5,8 %Cartas 23 3,6 %Miscelâneas 21 3,3 %Religiosos 21 3,3 %Realeza 15 2,3 %Poemas de Amor 12 1,9 %Lit. Sapiencial 10 1,6 %MonumentosPrivados 10 1,6 %

Textos Médicos 8 1,3 %

Outro gráfico (n. 2) que Hoch apresenta na sua tese doutoral éo da incidência de palavras semíticas em documentos separados porassunto. Neste gráfico, vemos que os documentos didáticos usadosnas escolas contêm mais palavras juntamente com os textos referentesà economia e aos textos que descrevem as façanhas dos reis. Istonovamente suporta a idéia de que a população, em geral, sofreu essainfluência semita a tal nível que as escolas ensinavam com um vocabu-lário repleto de palavras semitas e as façanhas dos reis deveriam serescritas com tal vocabulário para serem apreciadas pelos ouvintes.16

CONCLUSÃO

Ainda que existam suficientes evidências lingüísticas, arqueoló-gicas e históricas que comprovem o contato entre esses dois ramosAfro-Asiático (e suas respectivas culturas) no aspecto sócio-político-econômico, não podemos concluir categoricamente com respeito aque direção estas semelhanças lingüísticas se originaram.17

Foram estas originárias das línguas semitas influenciando a egíp-cia?, ou foram estas originárias da língua egípcias influenciando asemita?16 Ibid., p. 478. 17 Veja nota 5 com respeito àquelas palavras que com certeza vieram do Hebraico.

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Mas, o que se pode concluir é que houve um contato lingüísticoque beneficiou ambas as línguas (e cultura) neste período da históriaegípcia. Isto pode ser mais uma possível evidência, ainda que não di-reta, da estada do povo de Israel no Egito, como está relatado noslivros de Gênesis e Êxodo.