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a) R755p Rolon, Renata Beatriz Brandespin. A Prosa poética de Manoel de Barros: lirismo, mitos e memórias. / Renata Beatriz Brandespin Rolon. – Cuiabá: a autora, 2006. 91 p. Orientadora: Profa. Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis. Dissertação. Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Campus Cuiabá.
1. Literatura. 2. Prosa. 3. Poesia. 4. Prosa poética. 5. Manoel de Barros. I. Título. CDU 82-1
Renata Beatriz Brandespin Rolon
A prosa poética de Manoel de Barros:
lirismo, mitos e memórias
Cuiabá
2006
Renata Beatriz Brandespin Rolon
A prosa poética de Manoel de Barros:
lirismo, mitos e memórias
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários e Culturais.
Linha de pesquisa: Estudos Literários.
Orientadora: Profª Drª Célia Maria Domingues da Rocha Reis
Instituto de Linguagem da UFMT
Cuiabá
2006
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao meu pai Juan Nicer Rolon (in memoria).
A minha querida mãe Ordália B. de Nicer Rolon, que sempre esteve ao meu lado ensinando-me os sentidos da vida.
Ao meu querido filho João Paulo R. Silva, razão de minha luta contínua.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Isaac Newton Almeida Ramos, meu eterno mestre, com quem aprendi muitas lições e agucei o gosto pela poesia.
À Profª Célia Maria Domingues da Rocha Reis, minha orientadora, que me acompanhou durante estes 24 meses demonstrando muita sabedoria, disposição e, sobretudo, dedicação à minha pesquisa.
Ao professor Mário Cezar Silva Leite pela leitura atenta e sugestões valiosas.
Aos meus irmãos Carlos Nicer B. Rolon e Juan Carlos B. Rolon, pelo incentivo e companheirismo.
A minha amiga Sulemi Fabiano, pelo companheirismo e ajuda intelectual.
RESUMO
ROLON, R. B. B. A prosa poética de Manoel de Barros: lirismo, mitos e memórias
O presente trabalho constitui um estudo sobre a prosa poética como uma
modalidade literária na qual os elementos estruturais obedecem a outra ordem,
que não a tradicional. Nela, o teor lírico abre caminho para a integração entre
palavra e imagem, que resultam em uma nova essência do fazer poético. Nessa
perspectiva, tento compreender a prosa poética de Manoel de Barros por meio da
análise de alguns textos que compõem o Livro de pré-coisas (1997) e Memórias
inventadas – A infância (2003), em sua forma e conteúdo. Em relação ao
conteúdo, o intuito é investigar a maneira mítica com que Barros fala da origem e
do convívio social do homem por meio de um personagem que representa o
pantaneiro, dotado de crendices e valores que se materializam em acontecimentos
surreais, o personagem Bernardo da Mata. É nesse contexto que em suas
narrativas surge um Pantanal que possui duas esferas, a natural e a encantada.
Além disso, o poeta também busca estabelecer por intermédio de uma prosa
memorialística e criativa, relações com um tempo que possibilita a reflexão do
sujeito. Desse modo, as análises contidas nesse trabalho indicam que a qualidade
estética da prosa poética de Manoel de Barros possibilita a criação de imagens de
um pantanal de homens e mitos, provocando origens e (re) nascimentos.
Palavras-chave: Livro de pré-coisas, Memórias inventadas – A infância, prosa
poética.
ABSTRACT
ROLON, R. B. B. The poetical prose from Manoel de Barros: myths and memories
The current composition compounds a study on the occurrence of the poetical
prose in Manoel de Barros. These texts present non-traditional narratives and they
show that structural elements obey the other order, which is not the traditional one.
In these narratives the lyric drift and the dense rhythm open way for the integration
between text and image, what results in a new essence of poetic doing. In this
perspective, I analyze some narratives, which compounds the Livro de pré- coisas
(LPC) and Memórias Inventadas - A Infância (MI). The goal is in revealing the fact
that by the relates of its narrator, Barros tells, by a mythic way, the origin of man
through Bernardo da Mata, a character who represents the pantaneiro doted by
beliefs that are materialized at surreal happenings. It is into this context that at the
manoelense’s poetical narratives arises a Pantanal that has two spheres: The
supernatural and the enchanted one. Besides, the poet also seeks to establish,
through a memorial and creative prose, relations with the time that makes it
possible the self-apprehension of the subject itself. Thereby, the narratives
analyzed indicate that Manoel de Barros, through his poetical prose, seeks in the
memory images of a pantanal of men and myths from the world that surrounds
them, provoking origins and (re)births.
Keywords: Livro de pré-coisas, mythpoetical narratives, memories.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS DAS OBRAS DE MANOEL DE
BARROS
ESC- Exercícios de ser Criança
GEC- Gramática expositiva do chão
GA – O guardador de águas
LSN- Livro sobre nada
LPC- Livro de pré-coisas
TGGI- Tratado geral das grandezas do ínfimo
MI- Memórias inventadas – A infância
SUMÁRIO
Dedicatória ....................................... ..................................................................I
Agradecimentos..................................... ............................................................II
Resumo............................................. .................................................................III
Abstract........................................... ..................................................................IV
Introdução......................................... ...............................................................10
1 DA POESIA À PROSA POÉTICA ....................... ..........................................13
2 OS (DES)CAMINHOS DE UM MUNDO RENOVADO...................................27
2.1 As Trilhas encantadas do Livro de pré-coisas ..................................32
2.2 Revelações de um universo mítico............... ......................................42
2.3 Bernardo: o personagem-mito.................... .......................................48
3 OS FIOS DA MEMÓRIA DE UM PANTANEIRO.............. .............................66
3.1 Destroços de uma natureza poética ....... ..........................................75
Considerações finais............................... .......................................................86
Referências bibliográficas......................... .....................................................89
Introdução
A prosa poética é uma vertente ainda pouco abordada pela teoria literária.
Os estudos mais recentes acerca da poesia moderna apontam para a ocorrência
de poemas que, mantendo o ritmo e a imagem poética, fogem do padrão
tradicional, apresentando seqüências narrativas. A prosa poética se apresenta nas
mais diversas manifestações do gênero narrativo, ou seja, do romance à crônica
que, num todo ou em partes, vem permeada por uma linguagem mais elaborada,
de forma que os cenários, personagens e enredo, amalgamados, formam um
mosaico lírico. Ainda, nos textos que seguem essa vertente são encontrados
diversos elementos próprios de um poema, como o predomínio de figuras como a
metáfora, o eu-lírico, atitude lírica. Uma das diferenças é que nela não há a
preocupação do emprego de elementos formais, por exemplo, o visual (a
disposição das frases em estrofes, versos) e o sonoro (figuras de som, rimas,
aliterações, assonâncias, paronomásias etc), geralmente buscados nos poemas,
que em si possuem um sentido, e que dão a eles efeitos peculiares. Ressalta-se
que é possível que a prosa poética possa conter efeitos sonoros interessantes,
mas ele não é tão expressivo quanto os desenvolvidos nos poemas, por exemplo,
concretos, parnasianos, simbolistas. O que existe nessa nova estrutura é uma
dinamicidade, materializada seja pela incorporação do falar coloquial ou mesmo
pela metaforização do espaço que não se compara com as narrativas puramente
descritivas.
Manoel de Barros cria uma poesia que emerge em prosa. Fazendo um
levantamento quantitativo e leitura de todos os livros publicados por Manoel de
Barros, constatei que, desde o primeiro, Poemas concebidos sem pecado (1937),
ele utiliza este modo de composição. Devido a esse uso amplo e percebendo que,
de modo geral, o estilo se mantém, elegi para as minhas análises três textos do
Livro de pré-coisas (2 ed, 1997) e um do Memórias inventadas – A infância (2003).
Esclareço que, para aprofundar a compreensão do trabalho literário do autor, em
alguns momentos trabalhei também com versos, em fragmentos ou integrais,
retirados de outras obras do poeta, como: O Guardador de águas (1989),
Gramática expositiva do chão (2 ed, 1992), Livro sobre nada (1996), Exercícios de
ser criança (1999) e Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001).
A partir dessas análises foi constatado que nas narrativas poética de Barros
o Pantanal mato-grossense torna-se um espaço não reconhecido, pois neste,
encanto e natureza mesclam-se. Dessa união surge uma linguagem inventiva que
modifica também a estrutura dos textos. Para relatar o que há no espaço
pantaneiro, o autor confere qualidade estética ao texto, que resulta em imagens
acrescidas de novos sentidos. Seus experimentos com a linguagem revelam os
habitantes do lugar – natureza, homens, animais -, cenários, enredo, resultando
em uma poética que admite novos sentidos agregados em seu corpo.
Para melhor compreender o que seja a prosa poética, em sua manifestação
literária e, mais especificamente, a prosa poética de Manoel de Barros, foi preciso
pesquisar textos teóricos que versassem sobre as definições de poesia, prosa e
prosa poética, assim como suas características e funcionamento como linguagem
literária, estudo que apresento no primeiro capítulo, intitulado “Da poesia à prosa
poética”. Esse trabalho foi necessário para melhor direcionar as análises
estilísticas dos textos selecionados.
O segundo intitulado “Os (des)caminhos de um mundo renovado”, destina-
se à análise estilística da prosa poética dos textos selecionados. Nele é feita uma
conjugação entre mito e poesia, mitos relacionados ao homem, ao espaço que ele
habita, às suas crendices. Tento, então, compreender a fala do poeta sobre a
fauna e a flora pantaneiras, sobre o homem, representado no personagem
Bernardo da Mata, que habita a poesia de Manoel de Barros desde a primeira
publicação do Livro de pré-coisas. Por meio de Bernardo, o poeta traça o perfil de
um ser que vive integrado com a natureza mítica e com os seres do lugar.
Pela importância que esse personagem adquire, ainda no segundo capítulo,
detenho-me na busca de compreender seus feitos e por isso fiz três divisões: a
primeira, “As trilhas encantadas do Livro de pré-coisas”, para mostrar a inovação
na construção de sua prosa poética e a constituição de um espaço natural que
também é encantado; a segunda, “Revelações de um universo mítico”, a partir da
análise do texto “Mundo Renovado”, compreender o espaço que Bernardo habita;
a terceira, “Bernardo: o personagem-mito”, com o estudo do texto “No presente”,
verificar que a presença desse personagem na poesia manoelense possibilita uma
interpretação que abre caminho para a expressão de símbolos, os quais remetem
ao mito da origem do homem. Para analisar esses aspectos, recorri às teorias de
Mircea Eliade nos livros Mito e realidade (1972), Mito do Eterno Retorno (1992) e
Mielietinsk com o livro A poética do mito (1987). Por meio desses estudos, vê-se
que o mito se consagrou como um meio pelo qual contam-se histórias sobre a
sabedoria da vida.
No terceiro capítulo, intitulado “Os fios da memória de um pantaneiro”,
procurei mostrar que os caminhos traçados pela memória de um narrador-menino
elucidam fatos e acontecimentos de seu passado. Por intermédio da figura do avô,
o eu-narrante revela suas lembranças permeadas por símbolos que identificam o
cotidiano do povo pantaneiro. Essas lembranças fazem com que o menino procure
encontrar na figura do avô valores essenciais ao ser. Ainda, neste terceiro
capítulo, há uma divisão: “Destroços de uma natureza poética” com a análise do
texto “Carreta pantaneira”. Neste percebi que, mesmo transformados, os objetos
utilitários mantêm os homens junto às lembranças que foram repelidas,
desarticuladas pelo progresso. Ademais, a presença da carreta, um dos símbolos
da identidade do povo pantaneiro, revisitada pela memória do narrador, torna-se a
representação de uma natureza que encontra o seu próprio caminho, que
consegue se transformar e recriar a vida. A transmutação da carreta, sua aparente
desfuncionalidade possibilita (re)nascimentos, renovações e regenerações dos
seres que habitam esse universo imagético.
CAPÍTULO I – DA POESIA À PROSA POÉTICA
I.1. Alguns estudos teóricos
Aristóteles, em sua Arte Poética (1987), ressalta que o ato de imitar é
próprio do homem, é o que o diferencia dos outros animais por ele ser capaz de
adquirir conhecimento por meio da imitação. Ao falar sobre a mimese, observa
que ela é ativa e criadora por imitar caracteres, emoções e ações humanas, e sua
essência consiste no prazer que daí deriva.
Etimologicamente, a palavra poesia vem do grego poiesis e significa ação,
fazer, criar alguma coisa. Ela está relacionada a um produto literário feito com
especial cuidado. Como observador das artes, Aristóteles (Ibid., p. 234) afirma que
a poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole dos poetas que eram
atraídos para este ou aquele gênero de poesia. Uns escreveram comédias, outros
epopéias, outros tragédias. Para ele não é ofício do poeta narrar o que aconteceu,
e sim o de representar o que poderia acontecer; ou seja, o que é possível segundo
a verossimilhança e a necessidade.
A poesia é uma arte ligada à palavra. O poeta tem um mundo particular que
é erguido imageticamente por meio das palavras. Com sua autonomia discursiva,
ele tem o poder de construir e remodelar o mundo.
Nasce a poesia, nas primeiras sociedades agrícolas, como forma de
recitação em rituais oferecidos em favor da boa colheita. Em muitas civilizações a
poesia tinha um significado e uma tarefa doutrinária, mágica e disciplinar.
Segundo Benedetto Croce (1967, p.14), para os antigos gregos, a poesia possuía
ação milagrosa, “eles a consideravam como um sopro sagrado, um furor, um
entusiasmo, uma divina mania”. Croce ainda observa que no século XVIII, graças
a Vico, a poesia passou a ser concebida na perspectiva da linguagem, perspectiva
essa que se mantém até os nossos dias. A idéia de poesia permaneceu,
sobretudo, como um dado da cultura humana, como forma de representação das
manifestações históricas e culturais dos povos.
O poeta, enquanto criador, ao longo dos tempos, transforma a poesia em
uma arte ímpar, capaz de revelar a essência do homem, do mundo, no caos da
história. Octavio Paz (2003, p. 42) enuncia no primeiro capítulo do seu El arco y la
lira que “El poema no es una forma literaria, mas sino el lugar de encuentro entre
la poesía y el hombre”. É nesse sentido que a poesia e o poeta,
concomitantemente, ajudam o homem a ver e analisar o mundo com um olhar
renovador, conseguindo torná-lo consciente dos sentimentos mais profundos e
inefáveis. Por isso, a poesia, a exemplo de outras artes, mantém-se por si mesma,
sem a necessidade de demonstrar sua finalidade. Dentro dessa concepção é até
aceitável que um poema possa ser utilizado para diversos fins, todavia não pode
ser avaliado em função dessa utilidade.
Com o advento da lírica moderna o poeta torna-se detentor da idéia de que
o recorte que ele faz do mundo, seu oficio de poetar, está apoiado em seu
trabalho com a linguagem e que sua força está na linguagem, linguagem essa
carregada de significado, como ensina Ezra Pound (1995). Nessa perspectiva, cito
o poeta Mallarmé. Ele foi um dos primeiros a refletir sobre seu trabalho com a
linguagem, afirmando não ser mais possível pensar apenas no conteúdo da
linguagem poética. Disse ele, em um diálogo travado com o escultor Degas, que
“não é com idéias que se fazem versos, é com palavras” (apud FRIEDRICH1,
1991, p. 106-7). Assim, para Mallarmé, as palavras têm um peso maior que as
idéias, o que acaba por se configurar como o ponto fulcral do objeto da poética
moderna que, deixando de lado padrões de expressão poética do belo, do
“grandioso”, abre espaço para o feio, para o grotesco, a desumanização, a
obscuridade e a anormalidade.
A palavra, passível de compreensibilidade, dá vida à imaginação poética e
por esta o mundo e o homem são reconhecidos, percebidos e analisados. Com a
1 Em a Estrutura da lírica moderna, Friedrich cita a conversa entre o pintor Degas e Mallarmé, o qual responde a Degas quando este se queixou de que lhe ocorriam idéias em excesso.
criação, há um rompimento do limite entre o real e o imaginário, de onde surge a
imagem, componente fundamental da linguagem poética. Nesse prisma a imagem
não aspira à verdade. Para Octavio Paz (2003) as imagens do poeta têm sentido
em diversos níveis. Para Valéry (1991), ela só é possível porque o poeta se afasta
de seu estado normal de disponibilidade geral e procura novos reflexos.
Da força da imagem poética surge a poesia. Ambas estão interligadas. O
poeta pensa por imagens e traduz seus devaneios não importando o que será
revelado. Nesse âmbito surge a imagem que seduz, choca e acentua o trabalho
do poeta, fazendo emergir um discurso que parece vir de outro, que não daquele
que se conhece. Todavia a imagem poética possui uma autenticidade, uma
representação simbólica e seu significado perpassa a mente tanto do leitor quanto
do poeta.
Las imágenes del poeta tienen sentido em diversos niveles. Em primer término, poseen autenticidad: el poeta las há visto u oído, son la expresión genuína de su visión y experiencia del mundo. (Paz, 2003, p 122)
A poesia, suas combinações, sua linguagem, juntam-se para a
compreensão de suas manifestações ao longo da história literária. Nesse sentido,
afirma Paz (op. cit., p. 42) que a poesia é “el lugar de encuentro”. Poetas e críticos
costumam ser céticos quando solicitados para definir poesia. Muitos deles
preferem responder por meio de um aparente esvaziamento de conceitos, como é
o caso do poeta Manoel de Barros, que utiliza nas suas respostas um forte
componente metalingüístico. Ele demonstra ser capaz de se colocar no plano do
crítico literário para falar de suas obras. Em uma de suas entrevistas, explica-se
da seguinte forma: “Confesso que não sei explicar poesia. Sei que um verso é
bom por sua oralidade harmônica e por suas significações imagéticas2”. Ainda
2 Entrevista concedida à professora Rosidelma Fraga Soares, que fez uma especialização em Língua Portuguesa e Literatura na Unemat, campus de Alto Araguaia, em resposta a uma carta enviada pela professora contendo perguntas ao poeta, que consta como anexo na sua monografia final. A monografia intitulada “O canto insólito em Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros”, foi defendida em julho de 2005.
comentando o seu entendimento sobre poesia conclui: “A poesia, para mim,
sempre foi um jogo à brinca. Nunca é um jogo à Vera. Acho que a gente precisa
desaprender um pouco o que aprendeu3. Tal procedimento não ocorre apenas em
entrevistas, isso também pode ser observado em vários trechos de poemas da
sua obra, como neste caso: “Poesia não é para compreender, mas para incorporar
/ Entender é parede; procure ser uma árvore.” (GEC, p. 212).
A partir desses apontamentos, seguem estudos que versam sobre as
particularidades da prosa poética. Estes começam por mostrar as diferentes
definições para o texto poético e o prosaico. Essas diferenças são baseadas,
sobretudo, na negação e no contraste, as quais partem do pressuposto que tudo
que existe na poesia é diferente na prosa, ainda, a grande poesia é a não-prosa.
Octavio Paz (1990) e Paul Valéry (1991) compartilham da idéia de que uma das
possíveis diferenças está no fato que no texto poético há predominância do ritmo
e, ainda, esse ritmo poético se opõe a um ritmo prosaico. Valéry (Ibid., p. 172),
dentre outros ensinamentos acerca dessa questão, destaca a musicalidade da
poesia como mais um dos elementos que não se encontra nos textos em prosa.
A poesia se distingue da prosa por não ter todas as mesmas obrigações nem
todas as mesmas permissões que essa última. A essência da prosa é parecer,
ou seja, ser compreendida - ou seja, ser dissolvida, irremediavelmente
destruída, inteiramente substituída pela imagem ou pelo impulso que ela
significa de acordo com a convenção da linguagem. (...)
Mas a poesia exige ou sugere um “Universo” bem diferente: universo de
relações recíprocas, análogo ao universo dos sons, no qual nasce e
movimenta-se o pensamento musical. Nesse universo poético, a ressonância
prevalece sobre a causalidade, e a “ forma”, longe de desvanecer-se em efeito,
é como que novamente exigida por ele. A idéia reivindica a sua voz. (1991, p.
172-3)
3 Barros apud Couto, 1993, p. 8.
Para Paz e Valéry as diferenças entre poesia e prosa estão relacionadas a
elementos técnicos, procedimentos formais que se apresentam diante do material
verbal dos textos.
Mostrar poesia e prosa a partir do contraste entre ambas não é novidade.
Nos anos 20, fase áurea dos formalistas russos, já se fazia com propriedade
várias afirmações marcando essa diferenciação. Entretanto, Alexander Potebnia,
citado no ensaio de Chklovski “A arte como procedimento” (1973, p. 39), afirma
que “poesia e prosa são antes de qualquer coisa fenômenos lingüísticos”. Nessa
perspectiva, em uma das importantes obras de Tzvetan Todorov, o responsável
pela apresentação dos formalistas russos ao ocidente, As estruturas narrativas
(1969), Jean Cohen afirma: “a diferença entre prosa e poesia é de natureza
lingüística, isto é, formal” (Ibid., p. 68).
A hipótese entre a diferença e semelhança dos textos em prosa e em verso
é um ponto de partida para analisar as poéticas modernas, sua linguagem e
forma. Para muitos estudiosos da poética, inclusive Todorov (1969, p 23.), a
oposição entre poesia e prosa já está superada. O que permanece é a tensão
entre diferença e semelhança, a qual, segundo ele, poderá garantir as diferenças.
Uma das possíveis explicações para a garantia dessas diferenças está
embasada na idéia de que o princípio de liberdade, adquirido no romantismo,
culmina num momento que modifica o espírito humano e conseqüentemente a
criação literária. A liberdade alcançada possibilitou ao escritor um desprendimento
da composição. Ele pôde criar uma atmosfera lírica em sua obra, seja em prosa
ou em verso. No âmbito da narrativa, essa atmosfera desencadeia ou/foi
desencadeada por uma quebra nas frases ganhando ritmo. Após obter todas as
possibilidades de um texto híbrido é instaurada uma escrita que se constitui e
forma uma estrutura lírico-narrativa nas poéticas contemporâneas. Nesses textos,
as frases e orações são acrescidas de vocábulos que se coadunam à imagem
poética possibilitando uma narrativa cujo fluxo é metaforizado.
Para Tzvetan Todorov (Ibid., p. 71), poesia e prosa têm uma parte comum
que é a literatura. Tanto uma como a outra se materializam por terem como
componentes os mesmos mecanismos lingüísticos, ou seja, ambas têm como
estrutura a língua.
Em relação aos textos narrativos, o seu aspecto fundamental é a narração
de uma história. Nesse contexto, as narrativas estiveram presentes desde a
origem do homem como parte de sua comunicação, de sua história de vida.
Paul Ricoeur afirma:
Uma coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da definição implícita na qual esta coletividade se encontra. (apud BERND, 2003, p. 19)
Dessa maneira a linguagem da prosa acompanha o homem desde quando
ele tenta se identificar como tal. Ele optou por um discurso que procurou
acompanhar as mudanças sociais e que, além disso, possibilitou a abertura para a
descrição, a qual tem, nos textos narrativos, a função de representá-lo,
representar os objetos, o espaço, a História, a sociedade. Para contar suas
vivências externas e internas, criou narradores cada vez mais aprimorados,
chegando, as narrativas, a adquirirem importância pelo modo como são contadas
e não pelo que contam. Walter Benjamin assim elucida a função do narrador:
Sua intenção primeira não é transmitir a substância pura do conteúdo, como faz uma informação ou uma notícia. Pelo contrário, imerge essa substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio. Assim, a narrativa revelará sempre a marca do narrador (...). Trata-se da inclinação dos narradores de iniciarem sua estória com uma apresentação das circunstâncias nas quais foram informados daquilo que em seguida passam a contar; isto quando não apresentam todo o relato como produto de experiências próprias. (1975, p. 69)
Para Todorov, que retoma uma classificação proposta por Jean Pouillon
(1974) com algumas modificações, há três tipos principais de narrador: o narrador
que sabe mais que seu personagem (a visão “por trás”); o narrador que sabe tanto
quanto os personagens (a visão “com”) e o narrador que sabe menos que
qualquer um deles (a visão “de fora”). Quanto ao modo, ele observa que há dois
tipos: a representação e a narração.
Apoiado nas contribuições de Propp, Chklovski, Eichenbaum, esse autor
teorizou sobre as estruturas intrínsecas à narrativa. Em seus estudos ele faz uma
abordagem sobre o tempo da narrativa, aspectos, modos, personagens e suas
relações.
Quanto ao personagem, ele lembra da importância do papel deste, pelo
menos para a literatura ocidental clássica, contrariando a afirmação de
Tomachveski (1973), o qual acreditava na não necessidade do herói numa história
como também em certas tendências da literatura moderna que lhe reserva um
papel secundário.
Os estudos de Mikhail Bakhtin (1993), em particular o texto intitulado “O
discurso no romance”, no item “o discurso na poesia e o discurso no romance” dão
uma grande contribuição para a compreensão do significado e função do narrador
e dos personagens. Este item é um dos que mais têm recebido ataques por parte
da crítica literária, segundo Cristovão Tezza (2003). Bakhtin considera a poesia
monológica ou monofônica e a prosa, dialógica ou polifônica, o que caracteriza
uma desvantagem da poesia para a prosa.
O poeta é definido pelas idéias de uma linguagem única e de uma única expressão, monologicamente fechada. (...).
O prosador-romancista (e em geral quase todo prosador) segue por um caminho completamente diferente. Ele acolhe em sua obra as diferentes linguagens da língua literária e extraliterária, sem que esta venha a ser enfraquecida e contribuindo até mesmo para que ela se torne mais profunda (...). Nesta estratificação de vozes, ele também constrói o seu estilo, mantendo a unidade de sua personalidade de criador (Bakhtin, op. cit., p. 103-4)
A monofonia se explica quando o poeta se afasta de outras vozes para não
permitir a estas uma autonomia, força e, com isso, ele consegue afirmar
plenamente a própria voz, a qual é enfática, gestual e sonora, ou seja, tão forte
que requer o nosso silêncio. Ao considerar o aspecto polifônico na prosa, Bakhtin
(2005) dá um destaque aos romances de Dostoiévski, o qual, no seu
entendimento, possui procedimentos formais que permitem a esse romancista
levar cada uma de suas personagens a falar em voz própria com mínimo de
interferência de parte dele como autor, cujo efeito é o de criar um novo gênero.
Bakhtin chama de “romance polifônico”, o qual apresenta pontos de vista, vozes,
todos advindo do narrador. Ele destaca que Dostoievski “cria não escravos
destituídos de voz (...) porém gente livre, capaz de postar-se ao lado de seu
criador, capaz de não concordar com ele e até de rebelar-se contra ele” (Ibid, p.
4).
Nesse prisma interessa mais o fato de como as cenas narrativas serão
contadas. Isso muitas vezes requer uma transgressão da lógica estabelecida.
Ainda, nas narrativas modernas, importa questionar os conceitos e regras que
tentam aprisionar o discurso da prosa e, nesse sentido, um recurso bastante
utilizado é o da intertextualidade, um meio pelo qual um texto dialoga com outros
textos. Há na estrutura textual marcas que recuperam uma multiplicidade de vozes
que não são controláveis pelo autor. A intertextualidade (Diana Barros, 1999) é,
então, a possibilidade de encontrar num texto várias vozes que estabelecem o
diálogo de um texto com seus múltiplos intertextos.
Pensar a diferença do texto poético para o texto prosaico requer ir muito
além de ter como ponto de partida a roupagem externa desses textos, o que pode
funcionar apenas como marca de divisão. Começar a entender esses textos é
aceitar que poesia e prosa se atraem e que, por isso, as obras que apresentam
essas mesclas trazem em si novas confluências e novos traçados para a literatura.
Na concepção de Tezza (Ibid, p. 273) formas híbridas como “Irene no céu”, de
Manuel Bandeira, é o resultado da união de recursos prosaicos que se unem para
uma nova composição poética, é a prova de que o ritmo e a sintaxe sonora
revestem as diversas poéticas contemporâneas.
Surgem textos com forte teor lírico, os quais se apresentam como obras
ousadas e trazem dentro de si algo mais do que o rompimento de marcas formais.
Numerosas são as obras que trazem em seu âmago a hibridez da forma e da
linguagem. Nestas há que se observar uma certa despreocupação com o rigor
formal e lingüístico. A composição dessas obras dá-se por meio de uma estrutura
irregular ou completamente livre.
Na lírica moderna a distinção entre poesia e prosa não chega a ser ponto
necessário. Com isso, rompe-se a fronteira que delimitava esses textos. O texto
literário tem sido constituído por narrativas de corteis ágeis que lança um olhar
sobre o fazer literário, fazer esse que questiona a si mesmo, “expõe e desnuda”,
segundo Chalhub (1998, p. 42), ou seja, tem consciência da linguagem, da sua
construção, e por poemas que renunciam a tradição formal. Em face dessa
atitude, possibilitaram a prosificação do ritmo. A crítica tem optado por utilizar
locuções como prosa poética e poema em prosa, tudo por causa do crescente
intercâmbio entre prosa e poesia. Uma outra possibilidade é que a
dessacralização das formas e da linguagem abriu caminho para as obras que se
ergueram sobre uma nova reorganização sintática de elementos que compõem a
linguagem literária.
Essa falta de rigor formal possibilitou ao fazer artístico explorar todas as
potencialidades da língua, da forma, e dos termos técnicos que compõem as
diversas estruturas literárias. Outros componentes foram acrescentados para
distanciar cada vez mais o texto das exigências primeiras que acompanhavam a
poética clássica. Essa poética tinha a tendência de alimentar a repetição, o poeta
voltava sobre os mesmos fonemas, o mesmo número de sílabas, a mesma ordem
de disposição dos lexemas, etc.
Uma das características fundamentais perceptíveis na construção do
poema é o fato de este ser escrito em versus, ou seja, o que retorna sobre si, ao
contrário de prorsus, que se entende como o que avança, que continua até o final
da linha, como observa Salvatore D`Onofrio (1978, p. 31). No poema em prosa ou
na prosa poética é desconsiderado esse primeiro aspecto como também outros
que garantam a pureza dos gêneros. Para Anatol Rosenfeld (1985, p. 16) “a
pureza em matéria de literatura não é necessariamente um valor positivo”. Ainda
refletindo a partir da suposta pureza dos gêneros, o poeta polonês Gombrowicz,
radicado na Argentina, diz: “Por que razão não gosto eu da poesia pura? Pelas
mesmíssimas razões que me levam a não gostar do açúcar puro. O açúcar é coisa
deliciosa quando se o toma no café, mas ninguém se poria a comer uma pratada
de açúcar - seria demais” (apud TEZZA, 2003, p. 68).
Na prosa poética as obras se apresentam em forma de conto, novela ou
crônica, e, num todo ou em partes permeiam-se por uma linguagem poética, além
de possuir uma visão lírica de cenários, personagens e enredo. Toda a narrativa
desses textos é composta pelo ponto de vista de um eu-lírico, do eu-lírico.
No Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés (1999, p. 420)
consta que a prosa poética surgiu no século XVIII, todavia foi somente no
Simbolismo que encontrou o seu clima ideal. Os poemas em prosa de Baudelaire
como também a produção literária de outros simbolistas franceses já
apresentavam um discurso carregado de impressões, sugestões e imagens
difusas e pictóricas, o qual possuía um ritmo poético diferenciado que demarcou
grande parte da literatura moderna.
É nesse contexto, nesse caminho onde nada é discernido conscientemente,
que surge o surrealismo trazendo uma literatura em que o real e o irreal, o racional
e o irracional se fundem provocando uma nova concepção de mundo através do
inconsciente. O surrealismo está centrado na crença de uma realidade superior,
na onipotência do sonho. Esse movimento trouxe grande contribuição para a
literatura dando à lírica a possibilidade de afastar-se de uma preocupação estética
ou moral. Octavio Paz em Los hijos del limo (2003) analisando os poetas
surrealistas esclarece:
Para ellos la poesía no era una construcción sino una experiencia, no algo que hacemos sino algo que alternativamente nos hace y nos deshace (...) Para los surrealistas, la poesía no era contemplación sino un medio de transformacíon del mundo y de los hombres: no un re-conocimiento sino una metamorfosi. (Ibid., p. 442-3)
Nessa conjunção acentua-se uma busca de captar e traduzir o indizível em
linguagem, que instaurando a poesia em prosa ou a prosa poética para romper
com a ordem lógica do pensamento e da relação estabelecida entre homem e
mundo. A falta de estrutura fixa desses textos permite uma variação que torna
esta prosa mais leve, com uma cadência poética que capta e oferece ao leitor uma
literatura imagística, dando idéia de algo inusitado.
Na literatura modernista, particularmente na literatura brasileira, há muitos
autores que experimentaram as potencialidades dos textos em prosa e em verso e
procuraram estimular novas formas, como em Memórias Sentimentais de João
Miramar (1924), de Oswald de Andrade, Amar, Verbo Intransitivo (1927), de Mário
de Andrade, para ficar em alguns exemplos.
Para Tezza (2003) o movimento modernista brasileiro constituiu-se com
uma essência fortemente prosadora. Era preciso reinventar a maneira tradicional
de ler e escrever as coisas e subverter a linguagem, opor, contrapor. Dessa forma
os autores modernistas inseriram em suas obras, além do conceito poético, a
integração entre texto e imagem, o que resultou numa nova essência do fazer
poético.
Paz (Ibid., p. 415-6) considera que
El modernismo llega a ser moderno cuando tiene conciencia de su mortalidad, es decir, cuando no se toma en serio, inyecta una dosis de prosa en el verso y hace poesía con la crítica de la poesía.
Toda essa conscientização fez com que ocorresse a fusão de diversos
gêneros lingüísticos, desde textos oriundos de documentos históricos,
jornalísticos, como também textos puramente líricos.
A partir dos procedimentos anteriormente citados, os primeiros poetas
modernistas e outros como Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto, constroem
versos fragmentados por meio de cortes e montagens e reorganizam
sintaticamente as frases. Nas obras destes poetas, desfilam metáforas insólitas e
imagens incomuns, o que é próprio do poema e, por outro lado, perambulam
personagens, cenários que se entrelaçam em narrativas, o que é próprio da prosa.
Advinda desse novo paradigma ressoa a linguagem inicial da poesia que emerge
em prosa. São poéticas que se erguem tendo como material básico as metáforas
do caos cotidiano do mundo que apavora e seduz.
Contudo a prosa poética não se constitui um gênero literário, e sim uma
modalidade de como a poesia se externa. Os textos em prosa poética apresentam
uma cadência que pertence tanto à poesia quanto à prosa. As narrativas estão
permeadas por soluções poéticas, tudo depende do ponto de vista do eu-liríco. A
força da prosa poética está no fato de que se respeita a descrição das cenas
narrativas, as relações de personagens, tempo, espaço, mas, prevalece,
sobretudo, um quadro lírico dos elementos focados.
Com essas considerações, chegamos à prosa poética de Manoel de Barros,
que não é recente e não se limita aos livros utilizados neste estudo. Desde
Poemas concebidos sem pecado4, lançado em 1937, a criatividade do poeta
surpreende, como também a sua opção por não apresentar em sua poética
nenhuma fronteira rígida entre o verso e a prosa.
Em Poemas concebidos sem pecado, no poema intitulado “Cabeludinho”, o
eu-poético conta a sua história, do nascimento à mocidade. Este se apresenta em
onze partes identificadas por números, onde são registrados momentos
significativos de sua vida: 1. Nascimento, 2. Primeira paixão, 3. Jogos infantis, 4. A
partida, 5. A escola, 6. Correspondência familiar, 7. Iniciação à poesia, 8. Iniciação
sexual, 9. A academia, 10. O retorno do bugre e 11. Situação atual.
Os poemas que compõem “Cabeludinho” são compostos por um
vocabulário aparentemente usual, no entanto, com significações diferenciadas.
Toda a linguagem nessa poética sugere uma anormalidade, e isso é colocado por
meio de termos e expressões populares, além dos criados pelo poeta. Hugo
Friedrich (1991, p. 63-4) afirma que “quem quer causar estranheza,
surpreendendo, tem de valer-se de meios anormais”.
1.
4 Este livro está incluído no Gramática Expositiva do Chão (poesia quase toda), editado pela Civilização Brasileira, que apresenta as dez primeiros publicações do autor.
- Vai desremelar esse olho, menino! - Vai cortar esse cabelão, menino! Eram os gritos de Nhanhá 2. - Em seus joelhos pousavam mansos cardeais... (GEC, p. 35-7)
Nesse texto, envolto nas memórias de sua infância, o eu-narrante esclarece
o modo como se deu o nascimento de Cabeludinho, revela o mundo e o
comportamento desse ser que parece possuir um parentesco com o personagem
Macunaíma: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma” (Andrade, 1997,p. 9)
X ”Sob o canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinho / bem diferente de
Iracema / desandando pouquíssima poesia”. (Barros, p. 35).
A exemplo de Macunaíma que sai de sua tribo e vai para a cidade de São
Paulo, o personagem de Barros sai da distante Corumbá para a cidade grande:
“entonces seja felizardo / lá pelos rios de janeiros” (GEC, p. 38). Cabeludinho,
interno em um colégio, escreve uma carta a sua avó:
6. Carta acróstica: “Vovó aqui é tristão Ou fujo do colégio Viro poeta Ou mando os padres...” Nota: Se resolver pela segunda, mande dinheiro para
comprar um dicionário de rimas e um tratado de versificação de Olavo Bilac e Guima, o do lenço.
(GEC, p. 39)
Também esta “carta acróstica” pode ser comparada à carta que o
personagem Macunaíma, assim que chegou a cidade grande escreve as
Icamiabas. A ironia em “Cabeludinho” está no fato de que o menino pensa que
para ser poeta e só criar rimas, como entendiam os parnasianos. “É com tom de
piada, tão caro aos modernistas, que Barros trabalha fatos, evitando o pieguismo”,
entende Miguel Sanches Neto (1997, p. 71).
Manoel de Barros traz nos textos que compõem “Cabeludinho” o retrato da
vida do povo pantaneiro, suas histórias e particularidades do linguajar desse povo:
Vou no mato passá um taligrama .... / quero é minha funda / vou matando passarinhos pela janela do trem / de preferência amassa barro / ver se Deus me castiga mesmo (...) Havia no casarão umas velhas consolando Nhanhá que chorava feito uma desmanchada. (GEC, p. 37-8. Grifos
meus).
A singularidade no modo de falar do poeta faz dele um contador das
particularidades do povo da região do pantanal. A diferencial de sua poética está
no modo de como ele aborda os fatos, está em sua linguagem, que alcança uma
atmosfera melódica, rítmica, o que rompe com qualquer separação que se possa
fazer entre prosa e poesia.
Nesse contexto é que em Poemas concebidos sem pecado, emergem
versos prosaicos e o ritmo marcante é o mesmo das notícias que chamam a
atenção dos habitantes das pequenas cidades. A trajetória de Cabeludinho é
contada como poema-notícia com o intuito de explorar ao máximo o clima de
novidade que se instaura na trajetória dos relatos do menino e na arte do poeta
que busca na liberdade formal, que foi posta em prática pelos modernistas, a
construção de um texto com traço renovador. Barros5 explica: “quando peguei o
Oswald de Andrade para ler, foi uma delícia. Porque ele praticava aquelas
rebeldias que seu sonhava praticar. (...) ele me confirmou que o trabalho poético
consiste em modificar a língua” (GEC, p. 324-5)
A partir da tradição modernista Manoel de Barros ergue sua poética
explorando uma realidade própria que ganha foros de contemporaneidade. Ele
5 Em entrevista concedida a “Revista Bric-a-Brac”. Essa entrevista está publicada no Livro Gramática expositiva do chão no capítulo intitulado “Conversas por Escrito” (1970-1989).
coloca o local e o universal em outros termos. Busca em sua origem, em suas
raízes, a possibilidade de modificar a linguagem e a estrutura dos textos poéticos.
Faz uma arte que cria mundos verbais que impulsionam o homem, a natureza e
até mesmo as estruturas textuais. Ele, como um alquimista, funde um pantanal de
terra e água, funde prosa e poesia.
CAPÍTULO II - OS (DES)CAMINHOS DE UM MUNDO RENOVADO
De que modo uma linguagem poética pode compor uma estrutura
narrativa?
Uma possível resposta para essa indagação seria a mistura dos gêneros,
conforme foi discutido no capítulo anterior. Segundo Bakhtin (2005, p. 106), “um
gênero é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero
renasce e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em cada
obra individual de um dado gênero”.
Os textos que compõem o Livro de pré-coisas, de Manoel de Barros,
rompem com a estrutura fixa da prosa e da poesia, por isso é pertinente lembrar
Octavio Paz (2003), para quem é possível encontrar obras que, apesar de serem
escritas em prosa, possuem várias características comuns aos textos poéticos:
Libros como Los cantos de Maldoror, Alicia em el país de las maravilhas o El Jardín de senderos que se bifurcam son poemas. En ellos la prosa se niega a sí misma; las frases no se suceden obedeciendo al orden conceptual o al del relato, sino presididas por las leyes de la imagen y el ritmo (Ibid., p. 92).
É a partir da aglutinação do texto narrativo e da poesia, que se chega a
uma nova composição, no caso, a prosa poética. Ao analisar a obra de Manoel de
Barros, percebe-se que tanto os seus poemas quanto a sua prosa poética
possuem uma linguagem que resulta num jogo de significantes. A pujança, a
(des)construção da forma nos textos que compõem especificamente o Livro de
pré-coisas e Memórias inventadas – A infância, demonstram a liberdade e a
transcendência da linguagem puramente descritiva, objetiva, esta última
característica das narrativas que primam pela simples retratação dos espaços e
personagens. Vale ressaltar que esse não é um resultado alcançado apenas por
Barros, é o caminho de outros escritores a partir de 40, como Guimarães Rosa,
por exemplo.
No Livro de pré-coisas, o oitavo do poeta6, o projeto estético-poético que
toma conta das narrativas apresenta, da estrutura ao conteúdo, uma marca da
transgressão do autor.
Aos olhos do leitor é apresentada uma prosa poética que relata o
movimento da vida no Pantanal, seu ecossistema, como também apresenta
personagens tipicamente pantaneiros. O livro está dividido em quatro partes. Para
acompanhar o leitor nessa viagem, Barros se utiliza de um narrador, um eu-lírico,
que tem como ofício revelar toda a transmutação da fauna e da flora nesse local.
No âmbito dessa apresentação, o narrador, na primeira parte intitulada “Ponto de
partida”, mais especificamente no texto “Anúncio”, deixa claro o seu propósito:
Este não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma anunciação. Enunciados como que constativos. Manchas. Nódoas de imagens. Festejos de linguagem. Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza. De repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam louros crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos primaveris...(...) (LPC, p. 09, grifo meu)
Ao dizer que não se trata de “um livro sobre o Pantanal”, o narrador procura
mostrar ao leitor que o mesmo não deve esperar uma abordagem referencial
desse ambiente. E, na seqüência, ao afirmar que “seria antes uma anunciação”
ele parece preparar o leitor para o que há de vir. São anunciadas “manchas”,
“nódoas de imagens” e “festejos de linguagem” para celebrar de maneira
estranhada o estado poético. E a natureza é transfeita pelo organismo do poeta.
Ela se instaura como unidade imagética, em perfeito estado de ebulição.
Sinestesias surgem em um espaço de surrealidade: “sapo nu tem voz de arauto”
6 Essa obra teve a primeira edição publicada em 1985 pela Philobiblion (RJ), com capa de Fernando Freitas sobre detalhes de quadro de Juan Miro.
(símbolo metonímico da proclamação), “ruínas enfrutam” (a metamorfose
anunciada), “louros crepúsculos por dentro dos caramujos” (a visão táctil
personificada prepara o entardecer), finalizando o trecho com a pungente
expressão surreal “pregos primaveris”.
Com tais enumerações, o eu-narrante mostra uma busca que levará às
“pré-coisas”. Para compreender melhor o que significa essa expressão, é
importante compreender o significado da palavra “coisa”.
Pode-se pensar que “coisa”7 é o existente, o evidente, o que se coloca
diante dos olhos, um objeto inanimado, a realidade. Nesse caso, pode-se ver as
“coisas” e lhes dar nomes. Isso faz com que tanto a nomeação quanto as próprias
coisas despertem muito interesse em filólogos, lingüistas, filósofos e poetas.
Isaac Epstein (1986, p. 37) faz uma discussão sobre os signos imotivados
(arbitrários) e motivados. Ele questiona se há, no caso da linguagem verbal,
relação entre os nomes e as coisas. Segundo o autor essa é uma questão antiga,
posto que Platão em um de seus diálogos, o Crátilo, descreve como Hermógenes
e Crátilo pedem opinião de Sócrates sobre se os nomes são dados arbitrariamente
as coisas ou se há alguma correspondência entre a realidade que designa o
mesmo objeto. Para Hermógenes não há nenhum princípio para nomear as coisas
senão o acordo mútuo. Para Crátilo os nomes são naturais e não fruto de uma
convenção. No entendimento de Sócrates as coisas são nomeadas levando em
conta certos fatores motivadores e não arbitrariamente enquanto que para Epstein
(Ibid., 38) “mudar nomes arbitrariamente é atributo de quem tem a posse exclusiva
dos objetos nomeados; o sentido das palavras pertence a quem manda”.
Nicola Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia (2000) informa que alguns
filósofos entendem a palavra “coisa” como representação ou idéia, ou um
complexo de representações ou de idéias. Para Heidegger (apud CASTRO, 1991,
p. 86), a “coisa” ganha ser e existência pela palavra e pela linguagem, é a palavra
que traz as “coisas” ao mundo. Ele afirma que a “coisa” traz em si as dimensões
do céu e da terra, dos mortais e dos divinos, tudo graças à palavra. Tem-se assim
7 Foi desconsiderado aqui o amplo uso que essa palavra adquiriu em nossa língua, assumindo a função de categorias gramaticais diversas.
a compreensão e a revelação da coisa e por isso a interpretação fundamenta-se
não a partir do sujeito, mas da realidade da própria coisa.
Manoel de Barros, além de trazer muitas “coisas” para o seu poema,
também faz uso freqüente desse vocábulo. Observando seus versos, é perceptível
uma relação de materialidade e imaterialidade na representação, uma tentativa de
aproximar essas partes, palavra e coisa, o que afinal, é a busca de toda poesia.
Ele caminha, de certa forma, em sentido contrário às teorias que afirmam: “a
palavra não é a coisa”, como observa Hayakawa (1972, p. 35).
A palavra do poeta materializa literariamente as coisas e projeta imagens.
No seu mundo verbal há semelhança entre a linguagem e o mundo exterior. Indo
além, na extrema singularidade do seu fazer poético, surgem palavras que
aparentemente ainda não adquiriram o estatuto de símbolo, que ainda não se
semantizaram a ponto de formar um contrato ou convenção na designação do
existente, no contexto do universo pantaneiro, que é, em grande parte, o seu
universo poético. Ou seja, na poética de Barros há coisas se formam graças à
palavra que cria imagens do que ainda não está materializado na existência. O
resultado disso é a constituição de palavras que aceitam várias associações, que
se tornam brincadeiras feitas com letras, como os “festejos de linguagem” e as
“nódoas de imagens”. O próprio poeta admite “Gostava de desnomear: Para falar
barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra” (Barros, 1993, p. 18).
É no ambiente familiar que o eu poético utiliza, como material para o seu
trabalho, sapo, homem, pantanal em relações inusuais. Em face disso observa-se
a implantação de outros materiais lingüísticos, de extratos culturais que origina um
processo em que mesmo que o significante esteja ausente não se perde o
significado.
Esse modo de fazer poético em Barros remete às teorias de Severo Sarduy,
quando ele trata dos conceitos de metáfora e proliferação. Para Sarduy esse
processo
é o que consiste em obliterar o significante de um determinado significado, mas sem substituí-lo por outro, por
mais distante que este se encontre do primeiro, mas por uma cadeia de significantes que progride metonimicamente e que termina circunscrevendo o significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele, órbita de cuja leitura – que chamaríamos de uma leitura radical – podemos inferi-lo. (apud Silva Leite, 2004, p. 20)
Nesse contexto são percebidas certas associações que podem se
caracterizar com o que Sarduy denomina “significante ausente”: “No garfo da
árvore seca uma casa de amassabarro!” (LPC, p. 64). O vocábulo “garfo” é signo
constituído de um caráter significativo a partir da relação entre o jogo das palavras
“garfo” e “galho”. Aqui, o significado se constrói mediante a motivação externa da
língua, pois ao contrastar “garfo” numa cadeia paradigmática com “galho” percebe-
se a substituição de /lho/ por /rfo/. Essa associação permite fazer uma analogia de
sentido entre as duas palavras. Além dessa analogia sonora, há o fato que tanto o
garfo como o galho possuem hastes compridas, de pontas, o que os torna
semelhantes quanto à forma física; ou seja, “garfo” remete ao significado
conceitual de “galho”.
Os versos de Barros brincam com a sintaxe e a formação de palavras e
atribuem, às vezes, uma significação inversa da conceitual. Nesses versos, os
significantes não têm a obrigação de remeter a algum significado. Os versos
manoelenses corrompem a sintaxe da significação. O que importa, para a
linguagem desse eu, é o que está na origem. Mas o poeta não pára aí. Ele
valoriza muito o que ainda será criado. “As coisas que não existem são mais
bonitas. O que há de mais bonito é o que está na origem de tudo. É o Éden de
novo, onde a palavra e a imagem se formam” (Barros, 1993, p. 8). Por isso no
cerne do Livro de pré-coisas está o anseio para ter no texto poético a palavra que
dá a idéia de contigüidade.
Na proclamação desse mundo “pré-coisal”, Barros em sua prosa poética
utiliza palavras que podem significar coisas diferentes, que são reorganizadas
através dos sons, das letras, que podem representar coisas por similitude. Esses
recursos criam outras palavras, outros modos sintáticos, assim como também a
palavra inaugural, a “despalavra”. Estas conduzem o conhecedor dessa poética a
um novo mundo. Para ler essa prosa poética é preciso desligar-se dos sentidos
restritos da palavra e aderir ao sentido metafórico da linguagem
Como o poeta, também o leitor de poesia precisa descer uma escada submarina, se despedir da familiaridade dos significados conhecidos para aprender a respirar sob a água densa dos sentidos metafóricos entrelaçados, obscuros, mas genuínos. A recompensa é a descoberta de uma nova dimensão da linguagem: menos utilitária, menos corriqueira, hermética, (...), mas preciosa em sua recusa da simplicidade óbvia e desgastada. (ANDRADE, 1996, p. 139)
Manoel de Barros, mesmo quando usa palavras simples, apresenta algo
novo que concede às palavras a condição de dizer e revelar o mundo e as
relações que nele existem. Na concepção de Bachelard (1989, p. 203) “todas as
palavras são chaves do universo, do duplo universo do cosmos e das profundezas
da alma humana”.
Com base nisso é que no Livro de pré-coisas, o narrador tudo vê com o
olhar de (re)descobrimento. Para Santo Agostinho (apud Bosi, 1999, p. 17), “o
olho é o mais espiritual dos sentidos, e ainda (...) o olho capta o objeto sem tocá-lo
(...) constrói a imagem não por assimilação, mas por similitudes e analogias...”.
Um exemplo desse ilusionismo do olhar é a passagem bem humorada, no livro em
análise, na qual o narrador sugere “aquele morro bem que entorta a bunda da
paisagem!” (LPC, p. 13, grifo meu). É possível observar, por meio desse exemplo,
a capacidade do poeta em humanizar a natureza no intuito de livrar-se de algum
tipo de rigor que se poderia ter ao descrever um cenário. O discurso aqui
empregado possibilita a criação de imagens que se constituem graças à
capacidade de associação que o poeta possui para misturar o real, o que vê ou o
que está guardado em sua memória com a imaginação, que funciona como
elemento gerador na composição de uma poética que procura desvincular-se do
reconhecimento imediato para dar lugar à força da impressão.
2.1- As trilhas encantadas do Livro de pré-coisas
Ao analisar os capítulos do Livro de pré-coisas é possível perceber, a partir
de cada título, a voz do narrador que conta o seu próprio trajeto. Para isso ele se
distancia do texto e, modificando o relato elucidativo de uma narrativa
convencional, dispensa, em alguns casos, o uso de artigos definidos e/ou
indefinidos que poderiam ajudar na composição dos títulos explicativos. Dessa
forma tem-se: “Narrador apresenta sua terra natal”, “Retrato de irmão” e “Lides de
campear”.
Dando seqüência à apresentação, como se fosse uma gradação, esse
narrador revela os mais diversos cenários. Este mesmo vocábulo, “Cenário”, dá
nome ao capítulo seguinte, o qual abriga seis narrativas: “Um rio desbocado” (uma
engraçada metáfora do rio que lembra a expressão popular “o rio desemboca”);
Agroval (neologismo que se refere a um esconderijo de seres ínfimos); “Vespral de
chuva” (uma mistura de neologismo com derivação regressiva a partir da palavra
‘vesperal’ a qual, no contexto, indica o prenúncio da chuva); “Mundo renovado”
(uma recriação mítica da natureza pantaneira); “Carreta pantaneira” (veículo típico
do meio rural que passa por um processo de reutilização saindo do estado de
veículo de transporte ou de carga, para um estado de aparente inutilidade, passa
a ter outras utilidades, serve de abrigo para animais etc.); “Lides de campear”
(narrativa em que é ironizada a idéia de que o homem pantaneiro trabalha pouco)
e “Nos primórdios” (paródia do dia da criação). Dentre as narrativas citadas acima,
será analisada, neste segundo capítulo, “Mundo renovado”.
Após o capítulo denominado “Cenários”, aparece “O personagem”. Este
último também possui seis narrativas. Destas, será analisada o texto “No
presente”. O último capítulo do livro é denominado “Pequena história natural”,
igualmente composto por seis narrativas que descrevem as atividades e modos de
vida das aves e animais mais comuns do pantanal como “urubus”, “socó-boca-
d’água”, “tatu”, “quero-quero”, “quati” e a “garça”. Na última parte do livro, os
elementos constitutivos do pantanal são apresentados com caracterização bem
particular. O que se tem é o afastamento da descrição especular do mundo animal
e de seu exotismo. Esses seres se apresentam fundamentados numa composição
poética que inventa e modifica seus comportamentos, além de nivelá-los à
condição humana: “No alto da árvore mais próxima, antes mesmo do bicho
encomendar, urubu já discute, em assembléia, com os primos.” (LPC, p. 79). Há
ainda o caso das garças, que são chamadas de “viúvas de Xaraés”. A
possibilidade dessa aproximação entre o humano e o animal leva o poeta a
questionar se isso não fará mal a esses seres: “(Acho que estou querendo ver
coisas demais nestas garças. Insinuando contrastes – ou conciliações? – entre o
puro e o impuro etc. etc. não estarei impregnando de peste humana esses
passarinhos? Que Deus os livre!)”. (LPC, p. 94).
Esse modo de apresentar a vida natural pantaneira possibilita o
desenvolvimento do conceito de que este espaço é encantado. Na concepção de
Silva Leite (2000), pode-se considerar que um espaço é encantado quando ele
apresenta dois aspectos: o natural e sobrenatural. No pantanal de Manoel de
Barros a relação apresentada para ilustrar a essência dos seres que lá vivem
possibilita, segundo Silva Leite (Ibid., p. 192) “um forte substrato mítico que se
compõe dos espaços pantaneiros, ao mesmo tempo em que os compõe”. Ainda
Um dos princípios básicos do encantamento do espaço ou da natureza ou ainda dos elementos naturais, é o processo de humanizar, a antropomorfia. Os elementos da natureza recebem sempre características, sentimentos ou sensações humanas. Carregam-se de humanidades (Ibid., p. 194).
Todo esse processo tem como resultado a amostra de um mundo natural
que se ergue mediante uma idéia própria, alcançando um novo significado,
colocando-se também em outras esferas, a do encantamento e a do sobrenatural.
As paisagens e espaços pantaneiros são considerados, no entendimento de
Schlüter (apud Filho, 2002, p. 75), como “paisagens naturais, por serem a soma
de ações da natureza e da civilização através do tempo”. Essas ações é que
constroem as paisagens culturais. Para Corrêa Filho (op. cit., p. 77) no pantanal “a
paisagem altera-se de momento a momento. No mesmo sítio, o aspecto
surpreendido na época das cheias não se ajustará ao verificado no decurso da
seca”.
O narrador manoelense, a cada instante, modifica a fisionomia da
vegetação e dos seres que lá habitam. Ele recria a partir de situações rotineiras e
dos fenômenos naturais, aspectos que instauram o encantamento. De acordo com
os estudos de Silva Leite (2003, p. 57), “O Pantanal, (...) como espaço e território,
tem se prestado muito fortemente ao longo do tempo a uma vasta série de
construções simbólicas que até certo ponto ultrapassam a sua geografia”.
Nesse contexto, o poeta, reunindo a sua percepção de natureza e
conhecimento e vivência e conhecimento da cultura na qual se insere, constrói
paisagens de um pantanal que se revela também pelas forças de entidades
sobrenaturais, conforme o texto que segue:
Pantanal é muito propício a assombrações. Principalmente lobisomens, que são uma espécie de assombração que bebe leite. (...) Pantanal tem muitos veios para esses indumentos. Quem termina de inteirar cem anos vira serepente. Foi o caso de uma velha Honória. Outubro ela sumiu de casa (...). Dezembro apareceu de escamas na beira do vazante. Estava pisada na cacunda e os joelhos criaram cascão de tanto andar no tijuco. A língua fininha, ofídia, assoprava agora como no tempo de pegar a arca de Noé. (LPC, p. 54)
No Livro de pré-coisas, segundo Maria Adélia Menegazzo (1991) o que
mais fala sobre as coisas do Pantanal, o retrato da paisagem instaura a
possibilidade de um cotidiano híbrido, que abarca encantamento, deuses e mitos
religiosos. Nicola Abbagnano (2000) traz que Deus é a natureza do mundo. Por
meio dessa união não há distinção entre divindade e Deus. Então, a natureza
pantaneira que compõem esse livro não é obra de um único ser superior, que tudo
faz e pode. Esse mundo natural é encantado. A materialização do espaço
pantaneiro representa que houve a união de Deus e de outras divindades, eles
são os responsáveis pelo princípio animador do mundo e das coisas, dos seres
desse mundo. O que se apresenta nessas narrativas é que elas possuem um
caráter sagrado. Tudo o que lá está é digno de louvor, pois exigiu, para ser criado,
a união de forças divinas e míticas. Assim, o que importa ser mostrado é um
pantanal que nasce a partir do êxtase de relevar o que é miúdo, insignificante, o
cisco e o chão, a larva, elementos sublimados e ressignificados na lavra poética.
Dentro do capítulo “O personagem” está o “Livro de pré-coisas”, constituído
por sete páginas, com poemas denominados Gags (poemas piada com
comentários analíticos). Há, no capítulo em questão, um livro dentro de outro, ou
seja, poesia dentro de poesia. Esses poemas, em outras variantes, alguns
próximos aos ditados populares, indicam que a poesia ainda está em estado
latente, que irá se expressar graças às mãos do poeta artífice.
Esses textos podem ser considerados como metapoesia. A maneira como é
feita a divisão dessas breves narrativas poéticas, versos compostos por períodos
curtos e outros, mais longos, configura-se como novidade. É como se o poeta
privilegiasse as composições menores, ainda iniciadas, como as “pré-coisas”, com
o intuito de retirar delas seu poder significativo. Não por acaso o uso do prefixo
“pré” parece remeter a um estado anterior à coisa, a um estado puro da palavra. A
desmaterialização da palavra ocorre quando perde a relevância de “coisa”. O
próprio autor esclarece: “pré-coisas como o que vem antes das coisas se
manifestarem na existência da individualidade” (apud Castro, 1991, p. 43.).
Também as narrativas do Livro de pré-coisas, como um todo, tratam de
uma pesquisa ao redor dos seres ainda em estado primário e, por meio dessa
pesquisa, o poeta apresenta um Pantanal mais íntimo, essencial, invisível,
anônimo e secreto. As narrativas poéticas de Barros oportunizam conhecer o
cerne do Pantanal, e de embarcar em uma viagem de caminhos múltiplos e
percursos sinuosos a que a linguagem e os cenários são submetidos. Quem faz
essa viagem descobre que o Pantanal, na poética manoelense, não tem limites,
como compreende Castro:
A pré-coisa do objeto, do potencial, é registrada na e pela apresentação dos elementos constitutivos do pantanal como região própria onde transfazer a natureza é fácil. Esses elementos indistinguem-se dentro do projeto de Manoel de Barros, são o conjunto fermentador da vida animal-vegetal, como o agroval e os tipos humanos substratos das potencialidades a serem vividas e experienciadas. Na potencialidade originária de cada um, apresentam-se advindos do mesmo horizonte pré-coisal, tanto a terra, a água, o brejo, os ínfimos, os pássaros e os homens. (Ibid., p. 43)
Para a construção poética, o poeta mostra tudo o que é “desimportante”; ou
seja, o que não é valorizado socialmente, historicamente, pelas sociedades
consumistas, partidárias do pragmatismo, doutrina de Charles Sanders Peirce
(1976). Esta doutrina está embasada no argumento de que a idéia que temos de
um objeto qualquer soma-se a outras idéias atribuídas por nós a esse objeto, o
que lhe atribui um efeito prático. Partindo dessa premissa notei que, à revelia dela,
Barros absorve substâncias para seus poemas, convidando seu leitor a conhecer
“um comércio de anéis de escorpião e sementes de peixe”, assim como “a alegria
do capim”, dos “bagoaris” e dos “caramujos tortos”, “o agroval de vermes” e tantas
outras situações que rompem e transcendem o convencionalismo poético, do que
poderia ser reconhecido e decodificado.
Na continuidade dessa narrativa desconcertante, permeada por situações
inovadoras, aparecem imagens de uma natureza “transfeita”, da vida pantaneira
em constante transmutação, atividade essa que independe da ação humana: “as
coisas acontecem paradas” (LPC, p. 31), conforme inicia seu “Carreta pantaneira”,
texto analisado no terceiro capítulo. Tanto o ser humano quanto os animais fazem
parte desse cenário, o qual apresenta-se reutilizado pelo poeta que parece evocar
um passado distante repelido pelo progresso. O que se procura mostrar é um
tempo em que os elementos espácio-temporais evoluem naturalmente.
A partir dessas considerações apresento alguns pequenos poemas do
“Livro de pré-coisas”:
Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem (LPC, p. 59).
Neste poema de um único verso há uma comparação que aproveita parte
do conhecimento natural, no caso o aspecto funcional das minhocas. O que
singulariza o verso em si é o fato de elas serem apresentadas oxigenando a terra,
um preparo que torna fértil a terra, realizando um trabalho paciente, como é o do
poeta. Da mesma forma que necessitamos da terra produtiva, necessitamos da
produtividade da linguagem, de que ela seja arejada, reinventada – é o que faz a
poesia como instrumento de análise e compreensão do mundo.
Um outro poema bastante interessante do “Livro de pré-coisas” é o
seguinte:
Se no tranco do vento a lesma treme, no que sou de parede a mesma prega; se no fundo da concha a lesma freme, aos refolhos da carne ela se agrega; se nas abas da noite a lesma treva, no que em mim jaz de escuro ela se trava; se no meio da náusea a lesma gosma, no que sofro de musgo a cuja lasma; se no vinco da folha a lesma escuma, nas calçadas do poema a vaca empluma! (LPC, p. 59-60)
O que há de curioso nesse poema é que ele está metrificado, sendo uma
décima com versos decassílabos. Nele há uma seqüência de gradações verbais,
“treme / prega / freme”. Os verbos dão ao poema um movimento rítmico e
reforçam a presença do substantivo “lesma”, um ser frágil, colocado no “tranco do
vento”, e que, a partir do primeiro verso, inicia sua ação, “treme / prega / freme /
agrega / treva / trava / gosma / lasma / escuma”, até chegar ao último verso,
totalmente abstrato: “nas calçadas do poema a vaca empluma!”. Há a presença do
conjunto de aliterações da consoante vibrante /r/, sonoridade que resulta numa
seqüência de traquinagens com a língua. O poeta brinca de trava língua com o
leitor e cria um jogo lúdico com a poesia, enquanto a poesia apresenta idéias que
transcendem a causalidade, criando um mundo próprio.
O inesperado e o insólito, como o último verso: “nas calçadas do poema a
vaca empluma!”, amalgamam-se para criar um conjunto de imagens que,
simbolicamente, resultam em um mundo de amplas dimensões, que se torna
possível através da e pela palavra. Diante desse processo tem-se uma
autenticidade inquestionável quando se pensa na imagem poética. Ela nos coloca
diante de uma realidade concreta. Pensando nisso, Octavio Paz, ao conceituar
imagem afirma:
designamos con la palabra imagen toda forma verbal, frase o conjunto de frases, que el poeta dice y que unidas componen un poema. Estas expresiones verbales han sido clasificadas por la retórica y se llama comparaciones, símiles, metáforas, juegos de palabras (…), símbolos, alegorías, mitos, fábulas, etc. (…) Cada imagen –o cada poema hecho de imágenes contiene muchos significados contrarios o dispares, a los que abarca o reconcilia sin suprimidos. (2003, p. 114)
Aqueles versos de Barros lembram o poema “Cão sem plumas”, de João
Cabral de Melo Neto. Neste, Cabral associa a imagem de um cão à do rio
Capibaribe e, através de uma linguagem poética, relata a passagem do rio:
Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais
que um cão assassinado. Um cão sem plumas é quando uma árvore sem voz. É quando de um pássaro suas raízes no ar. É quando alguma coisa roem tão fundo até que não tem). (1997, p. 79)
Em Barros, a imagem insólita apresentada no verso “nas calçadas do
poema a vaca empluma”, à primeira vista, entremeia o belo, pois o vocábulo
“emplumar” relaciona-se a ornar de plumas ou penas, enfeitar-se; todavia há uma
certa desarmonia no verso citado. Ocorre então a ruptura com um quadro
imagético que prima pela beleza clássica para dar lugar a uma composição
transformadora. Essa aparente desarmonia reforça a postura do poeta diante do
que é socialmente estabelecido. Nota-se assim a predileção de Barros para criar
seu texto com o auxílio de elementos abusivos para o que se pode considerar
como tradição poética.
Simbolicamente, a vaca, para os povos indo-europeus, é considerada como
arquétipo da mãe fértil e desempenha um papel cósmico e divino, como traz
Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 926-27). No entanto, para a nossa cultura, ela é
um animal desengonçado, cujo nome, por exemplo, se atribuído a uma mulher, é
considerado ofensivo. Seu grande sentido é o utilitário, sendo que até o estrume
se aproveita dela. O emprego desse termo, então, pode ser considerado como
uma nova visão do fazer poético. Entretanto, na poesia contemporânea, é possível
ter a idéia da beleza, da harmonia e da completude que designa este animal. Há,
portanto, uma escolha consciente ao relacionar esse animal com o poema, lugar
sagrado onde o poeta se coloca. É o quimérico que alimenta essa relação, que
transforma e faz a poesia assumir seu novo aspecto, aquele que oferece material
estimulante é que deve ser apreendido poeticamente.
Um dos itens que caracteriza a poesia de Manoel de Barros é a
transformação, uma transformação que afasta a lírica da monotonia, da opressão
do real, como almejava Baudelaire. Além disso, é importante citar Hugo Friedrich
(1991) para lembrar que Baudelaire prenunciava uma lírica que estivesse a favor
das forças sonoras, impostas por conteúdos provenientes dos impulsos da
palavra.
Nos versos de Barros há relevância na sonoridade dos vocábulos
“escuma/empluma”, os quais acentuam a expressividade dos sons vocálicos /e/,
/u/, /a/, e, ao mesmo tempo, valorizam semanticamente o grotesco. Escuma é a
saliva de alguns animais, afogueados ou em cólera, resultado de uma emoção
interna. Na comparação de “escuma” com “empluma” há uma certa contraposição.
Emplumar dá a idéia de enfeitar e assim, através desses vocábulos, tem-se o
sublime versus o ordinário e que neste poema estão representados pela
ornamentação da vaca e, ao mesmo tempo, pela sensação de nojo causada no
momento em que se pensa no molusco.
O universo poético dessa lírica procura afastar-se da monotonia de uma
beleza pré-estabelecida para redirecionar e experimentar a linguagem e a
imagem. Nessa perspectiva exercendo verdadeiramente o seu oficio de poetar,
Barros revela: “a gente aceita um vocábulo no texto não porque o procuramos,
mas porque ele deságua das nossas ancestralidades. O trabalho do poeta é dar
ressonância artística a esse material8”.
Tanto em Barros quanto em João Cabral a novidade permanece, mas no
poema cabralino, socialmente, há uma denúncia, pois no “Cão sem plumas”, a
imagem do rio como metáfora está relacionada a detritos e lama. O arsenal
poético de Cabral é formado por símbolos precisos, mesmo que estes não tenham
a preocupação de informar, por isso o leitor se depara com um universo criado por
cima de uma realidade. As poéticas desses autores estabelecem que o poeta
nunca deve falar de seus sentimentos, mas sim de uma maneira que faz com que
o espaço do poema seja concebido como um “equivalente plástico da realidade
que promove um afastamento entre o poeta e o poema”9.
8 BARROS, Manoel de. Cult – Revista de Literatura, São Paulo, n. 15, out. 1998. Entrevista. 9 Trechos da introdução feita por Marly de Oliveira para o livro Museu de Tudo, 1988.
Em um outro momento de análise, os poemas do “Livro de pré-coisas”,
exemplificam a predileção de Barros em expressar-se numa linguagem infantil.
Seguem os versos com esse experimento:
Os rios começam a dormir pela orla. (LPC, p. 60)
Eu briguei naquele menino com uma pedra... (LPC, p. 62)
Em linhas gerais o propósito do poeta dá-se por um desligamento do
convencionalismo das expressões que, por sua vez, tendem à valorização dos
acontecimentos. A criação poética é próxima da visão que as crianças possuem
das coisas. Tal compreensão pode ser reforçada a partir do momento em que se
lembra que, para Barros, as crianças ensinam os poetas. Há um adentramento
nesse universo sublime e, através dele, o poeta recorre à linguagem das crianças,
além de cenas de seu cotidiano infantil. Nessa perspectiva, o seu olhar infantil
capta imagens como essa: “Eu briguei naquele menino”, promovendo uma
alteração sintática com as palavras.
O lúdico envolve a linguagem, sobretudo do artista moderno. Manoel de
Barros, herdeiro dos precursores do modernismo brasileiro, apresenta, em sua
poética, uma permanente liberdade na apropriação da imagem para contar um
fato normal do comportamento infantil. “A imagem é muito mais simples e muito
mais clara do que aquilo que ela explica”, entende Potebnia, (apud Chklovski,
1973, p. 341).
No segundo exemplo apontado a aparente simplicidade na cena (as brigas),
materializa o profundo trabalho estético que o menino/poeta Manoel faz com a
linguagem. A força do verbo “briguei” juntamente com o uso do advérbio de lugar
“naquele” mostra a associação que o eu infantil faz para se colocar no plano do
texto. Isso dá a essa linguagem a possibilidade de instaurar um outro nível
semântico e lexical, um novo estatuto na linguagem.
Quanto ao primeiro exemplo pode-se dizer que simbolicamente, no verso
“Os rios começam a dormir pela orla”, o vocábulo “rio” dá a idéia de fluidez das
formas, da morte e da renovação, por isso é certo acreditar que o poeta dá
continuidade a infantilização das palavras que provocam a renovação e o
deslocamento da linguagem. Esse falar aparentemente infantil está embasado na
impressão visual que a criança utiliza para se expressar e que segundo Maria
Adélia Menegazzo (1991), a impressão visual primeira não leva em consideração
aspectos lógico-racionais. Para a autora “A linguagem infantil se aproxima em
muito do automatismo psíquico (...). Assim, o discurso recebe elementos
compositivos de realidades diferentes, resultando em um amálgama que supera o
mundo real”. (Ibid., p. 183)
Nessa técnica há a associação dos elementos que se quer relacionar com
os vocábulos conhecidos, o que demonstra a capacidade criadora das crianças.
Para Júlio Cortazar (1954, p. 86) “a linguagem interna é metafórica, referendamos
a tendência humana para a concepção analógica do mundo e o ingresso (poético
ou não) da analogia nas formas da linguagem”. O primordial está na capacidade
de re-criação das palavras, inaugurando novos sentidos. Isso também ocorre com
outras publicações do autor como no livro Exercícios de ser Criança (2001). Os
versos a seguir refletem um diálogo poético entre adultos e crianças:
No aeroporto o menino perguntou: _ E se o avião tropicar num passarinho? O pai ficou torto e não respondeu. O menino perguntou de novo: _ E se o avião tropicar num passarinho triste ? A mãe teve ternuras e pensou: Será que os absurdos não são as maiores virtudes da
poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de
poesia do que o bom senso? Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianças. E ficou sendo. (ESC, p. 1999, 2. Grifos meus)
O texto acima evidencia de maneira singular, a utilização do imaginário
infantil pelo poeta. Essa imaginação provoca, na concepção de David (2004, p.
98), “a não seriedade lingüística e faz surgir uma nova realidade, na qual os
objetos e os fatos são sugeridos e demonstrados com propriedades distintas das
que habitualmente teriam”.
Essa é uma afirmação pertinente, mas, para tanto, é necessário que haja
uma íntima relação entre o que se vê e o que está no inconsciente da memória, é
necessário uma aproximação com o objeto enfocado para mostrar uma
associação possível e transformadora. Para Bosi (1999, p. 15), “a imagem nunca é
um elemento: tem um passado que a constituiu; e um presente que a mantém viva
e que permite a sua recorrência”. A poesia apresenta-se como o terreno propício
para a construção dessa linguagem inventiva, na medida em que desenvolve um
sistema que remonta aspectos presentes na linguagem e abre espaço para o
exercício de proximidade.
2.2- Revelações de um universo mítico
Para falar sobre revelações de um universo mítico é pertinente voltar às
prosas poéticas que compõem o Livro de pré-coisas. Nessa obra é possível
perceber as peculiaridades da poética manoelense no sentido da busca de uma
linguagem que se revela telúrica e inovadora. Os componentes desse reino
poético, homem, fauna e flora pantaneira estão inseridos num regionalismo nada
convencional, pelo contrário, há sim um regionalismo que possui um caráter
artístico que cria e recria o espaço conhecido. É um regionalismo que transforma e
une o discurso da poesia e o discurso da prosa.
Os textos híbridos que compõem a obra em questão pertencem a uma
poética que se dá mediante a soma do que constitui um poema, um conto e uma
crônica. Essa reflexão aponta para uma seqüência narrativa que expressa, ao
mesmo tempo, um discurso verbal onde a voz do narrador ressoa
concomitantemente à do poeta.
O estudo analítico segue com o texto abaixo:
Mundo renovado
No pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites.
Nos pátios amanhecidos de chuva, sobre excrementos meio derretidos, a surpresa dos cogumelos! Na beira dos ranchos, nos canteiros da horta, no meio das árvores do pomar, seus branquíssimos corpos sem raízes se multiplicam.
O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que há ruas de água. Sem placas sem nome sem esquinas.
Incrível a alegria do capim. E a bagunça dos periquitos! Há um referver de insetos por baixo da casca úmida das mangueiras.
Alegria é de manhã ter chovido de noite! As chuvas encharcaram tudo. Os baguaris e os caramujos tortos. As chuvas encharcaram os cerrados até os pentelhos. Lagartos espaceiam com olhos de paina. Borboletas desovadas melam. Biguás engolem bagres perplexos. Espinheiros emaranhados guardam por baixo filhotes de pato. Os bulbos das lixeiras estão ensangüentados. E os ventos se vão apodrecer!
Até as pessoas sem eira nem vaca se alegram. E as éguas irrompem no cio os limites do pátio. Um cheiro de ariticum maduro penetra as crianças. Fugiram dos buracos cheios de água os ofídios lisos. E entraram debaixo dos fogões de lenha. Os meninos descobrem de mudança formigas-carregadeiras. Cupins constroem seus túneis. E há os bentevis-cartolas nos pirizeiros de asas abertas.
Um pouco do pasto ficou dentro d´água. Lá longe, em cima da peúva, o ninho do tuiuiú, ensopado. Aquele ninho fotogênico cheio de filhotes com frio!
A pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa. O roceiro está alegre na roça, porque sua planta está salva. Pequenos caracóis pregam saliva nas roseiras. E
a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeças com sua voz rachada de verde.
(LPC, p. 29-30)
O título, “Mundo Renovado”, é uma metáfora do Pantanal, a qual representa
a vida existente nesta natureza singular. Trata-se de uma natureza que não está
nos cartões postais, mas sim na imaginação de cada leitor que celebra um
acontecimento poético.
Já no primeiro parágrafo percebe-se a figura do narrador, o qual ganha voz
para exercer a sua função, que é a de mostrar ao leitor o seu mundo. De início
aparece um silogismo que rompe com a norma gramatical e semântica: “No
pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é
existidura de limite. E o Pantanal não tem limites”. Aí estão pantanal x régua /
régua x limite; sobretudo x sobremuito (ruptura morfológica) = pantanal sem
limites, e uma das causadoras desta falta de limite é a “chuva”, confirmada pela
presença restritiva do termo “sobremuito”.
No segundo parágrafo há duas prosopopéias marcadas por adjetivações
inabituais: “pátios amanhecidos de chuva e a surpresa dos cogumelos”. É
importante ressaltar que cogumelos são corpos sem raízes, que aqui estão
metamorfoseados, pois a eles são dados sentimentos humanos (surpresos). Toda
a vida desses fungos se multiplica, tudo movido à chuva. As frases estão
sustentadas por um único verbo, “multiplicam”. Esse recurso, de não priorizar os
verbos e sim os substantivos, como “pátio”, “chuva”, “excrementos”, “ranchos”,
“canteiros”, “corpos”, entre outros, mostra a opção pelos nomes. Essa opção
acaba por revelar que o importante, nesse texto poético, não é a possibilidade de
ação, mas sim a opção em reforçar a significação desses vocábulos. Os
substantivos sustentam as frases e, “ao ganharem destaque, preservam o verso
de cair numa torrente banal de fatos a serem simplesmente descritos ou narrados”
(Santos, 2000, p. 60).
No que concerne ao aspecto morfológico, a pouca utilização do uso de
verbos ocorre em função da reorganização que sofrem as palavras, a busca de
uma linguagem que, tendo se erguido a partir das coisas do chão, permitem novas
disposições. O que caracteriza essa linguagem não é o fato de ver nela uma
possível representação, mas sim o desejo do poeta em explorar novas maneiras
de ser e de dizer.
O terceiro parágrafo é iniciado com uma hipérbole metafórica: “o mundo foi
renovado, durante a noite, com as chuvas”. Na seqüência, é apresentada uma
derivação imprópria, de nome para verbo: “garoto com olho de descobrir”.
Novamente é verificada a importância do olhar como percepção, descoberta do
mundo – a renovação não está somente no mundo, mas na maneira com que é
focada. Nesse sentido, o tempo da infância é revivido pela curiosidade peculiar do
olhar do garoto. É através do seu “olhar de descobrir” que se originam todas as
possibilidades de um mundo que experimenta e inova, pelos sentidos, a
linguagem e a imagem. Chevalier & Gheerbrant, (2005, p.654) ressaltam que o
olho, importante órgão de percepção é “símbolo de conhecimento, de percepção
sobrenatural”. Para eles a abertura dos olhos é um rito de abertura ao
conhecimento. A seqüência da narrativa no trecho “garoto com olho de descobrir”,
mostra a necessidade da imaginação poética para enxergar as minúcias dessa
vida pantaneira que é manobrada pelas palavras.
Quanto à chuva, ela é tanta que chega a hiperbolizar expressão e
conteúdo,s frases, animais, a própria natureza: “Choveu tanto que há ruas de
água. Sem placas sem nomes sem esquinas”, diz o eu poético.
Na construção da metáfora “lagartos espaceiam com olhos de paina”,
salienta-se a sinestesia, uma associação da visão dos répteis (lagartos) à
ordem sensorial do tato, sensação causada pelo toque na paina. Os lagartos,
assim como outros animais rastejantes, habitam a obra de Barros e sempre
estão contribuindo para o redirecionamento de sentidos nos versos. No caso
dessa expressão poética o redirecionamento se dá pelo fato dos animais serem
enfocados através de uma evasão da realidade. Essa é uma consideração
possível porque, mais uma vez, o olhar possui a função de abrir as portas
desse universo que nasce de momentos epifânicos. Esses momentos são
aqueles em que algo muito significativo é revelado, são instantes profundos
para os seres: “A pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa.
O roceiro está alegre na roça (...). Pequenos caracóis pregam saliva nas
roseiras. E a primavera imatura das raras sobrevoa nossas cabeças com sua
voz rachada de verde”. (LPC, p. 30)
Ainda nesse mesmo parágrafo há uma frase que possui um interessante
efeito sonoro: “biguás engolem bagres perplexos”. Verifica-se aqui a
expressividade da consoante oclusiva /b/, que, combinada com a consoante /g/ e
/p/, provocam um som explosivo na frase dando ritmo à mesma. Outra vez está
instaurada a metáfora a qual dá vida aos animais e transforma sua representação.
Além do aspecto fonético-fonólogico, há a estranheza da última frase desse
parágrafo: “E os ventos se vão apodrecer”. Essa nova associação para o elemento
da natureza “vento”, traduz a motivação da humanidade que toma conta da vida
criada por Barros. O poeta promove novas aproximações de termos fazendo surgir
um mundo fora de regras. Por meio desses experimentos há um poder
emancipatório de manifestar o que nossa imaginação alcança. A partir dessa nova
ordem estabelece-se um elo entre linguagem e imagem natural.
O sexto parágrafo inicia-se com uma variação de ditado popular: “até as
pessoas sem eira nem vaca se alegram”. A metáfora encadeada se dá no uso do
vocábulo “vaca”, que depois se transforma em “éguas”, em “ofídios” até que “os
meninos descobrem de mudança formigas-carregadeiras”.
No parágrafo seguinte: “o ninho de tuiuiú, ensopado. Aquele ninho
fotogênico cheio de filhotes com frio!”, a presença sonora da consoante labiodental
/f/, som que lembra o sopro do vento, causa o desconforto dos filhotes. O que
também chama a atenção é a opção pelo vocábulo “fotogênico”, fato esse que
simboliza a procura de um instante que só importa para os que procuram registrar
as imagens memoráveis.
A fotografia desse ninho fixa um momento imperceptível, “filhotes com frio”,
uma situação que não é captada pela lente do fotógrafo. Tem-se com esse fato a
necessidade de “aceitarmos o caráter mágico da imagem fotográfica”, como
entende Roland Barthes (1990, p. 36), ademais essa possibilidade mostra que
Manoel de Barros enfatiza a busca por situações que criam espaços entre o ver e
o sentir.
A presença desse ninho remete a um cenário tipicamente pantaneiro, pois
trata-se de um ninho de tuiuiú, ave símbolo do Pantanal mato-grossense. Mas, o
que se destaca nessa frase poética é o fato de o eu-narrante não vislumbrar um
registro documental dos episódios. Embora ele observe com olhos de
encantamento os cenários e situações da vida nesse sistema ecológico, é a
imagem dos pássaros tremendo de frio que é revelada propositalmente pelo eu.
Sua percepção aponta para essa imagem e faz questão de registrá-la em seus
versos. Sua lente capta movimentos imperceptíveis que, aparentemente, nada
representam. É a necessidade de designar o inesperado e o inútil que vivifica os
registros ausentes e evita a superficialidade do ato fotográfico.
No último parágrafo há como que uma preparação da natureza animal,
humana e vegetal, que se encontram em um mesmo nível de humanização: “A
pelagem do gado está limpa. A Alma do fazendeiro está limpa. O roceiro está
alegre na roça, porque sua planta está salva”. O roceiro aí tem vez, porque “sua
planta está salva”. O fechamento vem com uma metáfora habilmente construída:
“E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeças com sua voz rachada
de verde”. Na composição dessa imagem há um encontro sinestésico entre a voz
das araras e sua cor. É bom lembrar que as araras, em sua maioria, são verdes,
mas o diferencial dessa composição está no fato de que a cor verde mais
freqüente nas penas desses pássaros, identificam sua voz. Nesse caso há uma
adjetivação incomum para a voz que exprime uma representação da estação do
ano nesse mundo renovado.
Jean Cohen (1974) esclarece que a adjetivação poética atribui à cor uma
exterioridade, não com sentido em si mesma, mas sempre fora do significado. Da
mesma forma compreende Reis (2001, p. 75) ao constatar que na poética da
escritora cuiabana Marilza Ribeiro isso se dá quando “é considerado um código
específico da natureza, o que nela é mais flagrante, idéia que encontramos
sintetizada em outros versos que mostram uma consciência científica da
substancialidade da cor”.
Retomando a frase “E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas
cabeças com sua voz rachada de verde”, acontece a assonância do /a/, presente
no verso narrativo, que possui, além de um impulso sonoro, a percepção simbólica
da cor. José Lemos Monteiro (1991, p. 122) observa que a vogal /a/ pode
representar algo claro, como também sugestiona a associação imediata com
palavras que remetem a paz, liberdade, felicidade. Nesse sentido, trata-se de um
processo análogo entre a simbologia da vogal /a/ com a cor verde presente na voz
das araras, situação que reforça a conotação benéfica que reveste a cor do som
produzido por esses pássaros. Ainda, na sinestesia “rachada de verde” surge a
junção entre a percepção da cor e o olhar. O valor destinado à cor verde possui
um caráter mítico. A representação dessa cor é benéfica, o que segundo Chevalier
& Gheerbrant (2005, p. 940), “é o mesmo dos paraísos almejados, o das green
pastures, também verde como a juventude do mundo”. É essa qualidade em
especial que desperta para a percepção, a cada instante, da reafirmação do
mundo que renova e regenera a existência do ser.
O primor rítmico da última frase do texto em análise, assim como a
construção de imagens insólitas, ilustra bem a idéia da lírica manoelense, a qual é
composta por procedimentos de subjetivação e desintegração da realidade. Para
penetrar nessa lírica é necessário estar desarmado de regras, julgamentos e
verdades e devanear com o poeta. “A imagem e o devaneio se formam aquém da
verdade do juízo de verdade”, entende Bosi (1999, p. 25), por isso o leitor deve
estar aberto às emoções, para conseguir materializar a imagem construída num
mundo pré-lógico que tem, segundo Barros10, “medo da lucidez”
2.3- Bernardo: o personagem-mito
A análise da prosa poética de Manoel de Barros revela o diálogo entre o
mundo real e o oriundo da criatividade do poeta. Nesse sentido, é oportuno
10 Verso retirado do livro O guardador de águas, 1989, p. 58.
analisar o capítulo “O personagem”, que traz Bernardo, apresentado da seguinte
forma pelo poeta:
Bernardo da Mata é um bandarra11 velho, andejo, fazedor de amanhecer e benzedor de águas. Ele aduba os escuros do chão, conversa pelos olhos e escuta pelas pernas como grilos12.
Abro um parêntese na análise poética e entro no plano da realidade da
pesquisa para dizer da minha tentativa de compreender esse ser fictício que
apareceu pela primeira vez, como foi dito, em 1985, em um dos livros em análise -
Livro de pré-coisas e, depois dessa estréia, figura em todos os demais livros de
Manoel, inclusive aos destinados ao público infanto-juvenil. Movida pela
contemplação estética em que o personagem foi inserido e literariamente criado e
ampliado, resolvi buscar informações sobre ele. Relato aqui, brevemente, essa
experiência, por entender que ela também faz parte de um processo de
assimilação do literário, o modo como o poeta concebeu esse personagem e o
modelo que o inspirou.
Após ter um contato maior com estudos críticos sobre a poética do autor,
descobri que Bernardo da Mata existia na vida real e era muito parecido com seu
homônimo poético. Fiquei interessada em saber mais sobre aquele homem que,
segundo muitos diziam, não falava, só emitia grunhidos que apenas Stella de
Barros, esposa de Manoel, entendia. A imagem que tinha dele provinha dos
versos - um ser especial, sem maldade no coração, puro, que não se deixou
contaminar pelas concupiscências do mundo.
No final de 2003 fui a Campo Grande – MS e, por intermédio do professor
Isaac Newton Almeida Ramos, da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato
Grosso) que pesquisa a poesia de Manoel de Barros, descobri que Bernardo vivia
em um asilo chamado “Dom Bosco”. Resolvi visitá-lo e, assim, observar se, no
11 De acordo com o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (1986) bandarra significa: vadio, mandrião, vagabundo. No livro Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), Manoel de Barros apresenta em um verso a seguinte definição para o vocábulo: Bandarra é cavalo velho solto/ no pasto, às moscas. 12 Em entrevista a Antonio Gonçalves Filho da Folha de S. Paulo, em 15 de abril de 1989.
pouco contato que teríamos, ele tinha algo daquela imagem que eu havia criado.
Pensando no seu jeito de ser, e até como uma forma de começar um possível
diálogo, levei algumas frutas para presenteá-lo. No caminho fui pensando no que
ia perguntar a ele e a primeira curiosidade era saber porque ele havia saído do
Pantanal, como ele estava vivendo sem a convivência dos bichos. Mas, o que
realmente eu queria saber era se o próprio Manoel o havia levado para viver ali.
Por razões literárias, eu preferia não acreditar nessa hipótese.
Já nas dependências do asilo fiquei imaginando como era possível um
homem como o Bernardo morar ali. Como poderia um ser que eu havia conhecido
através da poesia estar vivendo ali? Ao ver a quantidade de pessoas idosas,
enfermas, que lá estavam arrependi-me de querer conhecer Bernardo. Era melhor
ficar com a imagem da ficção: “Com as mãos aplaina as águas / Deus abrange
ele”.
Pedi informação para encontrar o ilustre morador e um funcionário, sem
hesitar, respondeu-me que o Bernardo Vieira de Souza havia morrido há dez dias.
Pensei: não é possível! Deve ser um engano. Senti algo estranho, parecia que
havia perdido uma pessoa muito próxima. O funcionário, vendo a minha
expressão, fez questão de se certificar se estávamos falando da mesma pessoa.
Infelizmente, era. Bernardo morrera de câncer na primeira quinzena de Dezembro
de 2003. Agora, eu o encontraria somente no meio da poesia – “da Mata”, lugar de
onde eu não o deveria ter tirado.
Sem dúvida foi uma experiência singular. Esse quase encontro com um
personagem da literatura fortificou em mim a certeza de que o texto poético
promove uma linguagem que se afirma somente no próprio texto. Barros, como
todo poeta trabalha para que sua obra tenha correspondência dentro de si. Mesmo
sendo Bernardo uma pessoa próxima ao poeta e, mesmo sabendo que ele
possuía um comportamento diferente de outras pessoas, Barros, segue o princípio
básico de que na grande poesia o ato de revelar o homem e o mundo é, sobretudo
um trabalho estético. Correndo o risco de ser simplista, acredito que o texto
literário, mesmo quando se sustenta em motivos reais, converte-se em metáfora,
em imagem. Esse passeio entre os limites do literário e do real desvelou para mim
o sentido de que as revelações feitas pelos artistas são aquelas que ninguém
ainda fez, é “linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala, murmúrio do
incessante e do interminável”, como compreende Blanchot (1987, p. 42). Por isso,
a partir dessas reflexões procuro não mais misturar realidade com ficção. O
homem, que conheci através das poesias de Manoel de Barros, possuía uma
natureza lírica, não humana. O que o glorificava era tão somente a comunhão do
poeta com as palavras.
Agora, ao analisar a trajetória do personagem Bernardo dentro das
narrativas do Livro de pré-coisas, começo a pensar nas manifestações de
elementos míticos na poética de Barros, posto que ao construir um ser com as
potencialidades desse personagem o poeta emprega uma narrativa carregada de
símbolos que remontam ao mito da origem do homem, no aparecimento dos seres
humanos na terra, na convivência pacífica que eles tinham com o lugar, com os
animais, a falta de interesse em possuir. Na sua poética os mitos estão
relacionados ao homem, ao espaço que este habita, às suas crendices. Dessa
maneira, esta parte da análise trará algumas reflexões sobre conceitos recorrentes
à manifestação mítica na sua poética para depois adentrar no universo composto
por imagens, acontecimentos e manifestações sobrenaturais.
Mircea Eliade (1972) afirma que o mito é uma realidade cultural complexa,
que permite ser abordada e interpretada mediante múltiplas e complementares
perspectivas. Essas muitas possibilidades criam uma dificuldade na interpretação
do mito. Neste estudo parto do pressuposto de que os mitos são tessituras
textuais que se renovam e que encontram nas narrativas literárias lugares ideais
para se desenvolverem.
Mielietinski (1987) destaca que o mito se define como representações do
mundo, como sistema de imagens de deuses e espíritos que regem o mundo, ou
como narração, como relato dos feitos dos deuses. O autor, citando Northrop Frye
(Ibid., p. 123-4) diz que ele aproxima a literatura e o mito em função da dissolução
da literatura no mito. Frye considera que a narrativa mítica e a lírica têm como
modelos momentos proféticos e epifânicos. Para ele os ritmos poéticos (artísticos
em termos mais amplos) estão estritamente ligados ao ciclo natural através da
sincronização do organismo com os ritmos da natureza.
Segundo Mielietinski (ibid., p. 200) todas as espécies animais e vegetais, o
modo de vida, os grupos sociais e instituições religiosas, todos os objetos naturais
e culturais “são feitos dos eventos de um tempo há muito passado e das ações
dos heróis míticos, dos ancestrais ou deuses”.
Para o mitólogo Joseph Campbell (1990) os deuses representam um
sistema motivador e de valor tanto para a vida humana como para a natureza. Na
mitologia grega, eles são os comandantes do Universo e de todos os seres que
nele habitam. Eles conduzem a vida dos homens e dominam os fenômenos
naturais
É nesse contexto que está Bernardo da Mata, personagem sui generis, que
habita um universo mitopoético. Devido à sua importância dentro do mundo
pantaneiro ele pode ser considerado como uma das criações dos deuses. Ele
também poder ser considerado uma espécie de totem pantaneiro.13 . Nas tribos
primitivas americanas o totem é um deus primitivo de quem elas se sentem
descendentes. Podem ser animais, plantas e objetos, seres considerados
sagrados, escolhidos como protetor e guia e que essas tribos respeitam, evitando
matá-los, comê-los ou destruí-los. Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 890) explicam
que “a palavra totem é um termo algonquino. Sua verdadeira significação é:
guardião pessoal”.
Após essas considerações, passo ao estudo do capítulo “O personagem”,
apresentando o primeiro texto:
13 A idéia de comparar Bernardo a um totem ocorreu-me durante uma viagem que fiz até a cidade de Tangará da Serra – MT, em ocasião de um evento de Literatura Comparada promovido pelo Departamento de Letras da UNEMAT, Campus de Tangará. Visitei um ponto turístico denominado “Salto das nuvens”. Nesse lugar, logo na entrada, há várias esculturas feitas por um índio que mora e trabalha no local. Essas esculturas representam, segundo ele, os deuses que guardam a natureza.
I. No presente
Quando de primeiro o homem era só, Bernardo era.
Veio de longe com a sua pré-história. Resíduos de um Cuiabá-garimpo, com vielas rampadas e crianças papudas, assistiram seu nascimento.
Agora faz rastros neste terreiro. Repositório de chuva e bosta de ave é seu chapéu. Sementes de capim, algumas, abrem-se de suas unhas, onde o bicho-de-porco entrou cresceu e já voou de asa e ferramentas.
De dentro de seus cabelos, onde guarda seu fumo, seus cacos de vidro, seus espelhinhos – nascem pregos primaveris!
Não sabe se as vestes apodrecem no corpo senão quando elas apodrecem.
É muito apoderado pelo chão esse Bernardo. Seu instinto seu faro animal vão na frente. No centro do escuro se espraiam.
Foi resolvida em língua de folha e de escama, sua voz quase inaudível. É que tem uma caverna de pássaros dentro de sua garganta escura e abortada.
Com bichos de escama conversa. Ouve de longe a botação de um ovo de jacaroa. Sonda com olho gordo de hulha quando o sáurio amolece a oveira. Escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre. Os embriões do ovo ele vislumbra prazenteiro. Ri como fumaça. Seu maior infinito!
Quando o corpo do sáurio se espicha no areão, a fim de delivrar-se, Bernardo se ilumina. Pequena luzerna no pavio de seu olho brandeia. A jacaroa e ele se miram imaculados. A própria ovura!
Passarinhos do mato bentevi joão-ferreira sentam no ombro desse bandarra para catar imundícia orvalho insetos.
Só dá de banda. Nos fundos da cozinha onde se jogam latas de
vermes ávidos, lesma e ele se comprazem. Teias o alcançam. Lagartas recortam seu dólmã verdoso. Formigas fazem-lhe estradas ...
Unge com olho as formigas. No pátio cachorro acua ele. (Pessoas com ar de
quelônio cachorro descompreende.) Galinhas bicoram seu casco.
Mal desenxerga. (Nem mosca nem pedrada desviam ele de ser
obscuro.) Bernardo está pronto a poema. Passa um rio
gorjeado por perto. Com as mãos aplaina as águas. Deus abrange ele. (LPC, p. 41-3)
Octavio Paz (2003, p. 371) observa que “Cada poeta inventa su propia
mitología y cada una de esas mitologías es una mezcla de creencias dispares,
mitos desenterrados y obsesiones personales”. Assim, diante dos ensinamentos
de Paz, vê-se que nas narrativas de Manoel de Barros é marcante a presença do
mito de um ser que, mesmo sendo humano, tem sua existência revelada de um
modo diferente. Este ser está associado a toda a vida presente no pantanal como
também remete ao mito da origem do homem, do mito e do rito iniciatório. A
criação de uma mitologia própria se estende ao plano da linguagem que remete à
função metalingüística nessa poética.
Segundo Eliade (1972, p.34), o retorno à origem permite um novo
nascimento, místico, espiritual, o qual conduz à possibilidade de renovar e
regenerar a existência. Barros procura instaurar o mito e o rito iniciatório
(regressus ad uterum) como forma de renovar sua arte poética. A partir dessa
renovação são instauradas novas formas de manifestações discursivas nos textos
poéticos e narrativos, é o nascimento de outra linguagem.
Na concepção de Mielietinski (1987) todo grande poeta tem a missão de
transformar em algo integral a parte do mundo que se lhe abre e da matéria deste
criar sua própria mitologia. Nesse prisma, em “No presente”, há efeitos estilísticos,
metafóricos, relacionados a elementos sonoros, morfológicos, sintáticos e
semânticos que subvertem a simples relação causa-efeito entre as frases. Eles
vão sendo arrolados e proporcionam uma narrativa mítica com ares da mais pura
poesia.
No primeiro parágrafo, primeira oração, “Quando de primeiro o homem era
só, Bernardo era”, a presença do adjunto adverbial temporal “quando” remete ao
começo de uma história, como também ao princípio dos tempos. Tal construção
reporta ao livro do Gênesis, cuja passagem bíblica conta o dia da criação da terra
e do homem, sendo que este homem era Adão e encontrava-se só na terra. No
Dicionário de Símbolos de Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 13), Adão é
igualmente o símbolo do primeiro homem e das origens humanas. O personagem
Bernardo representa, de forma mítica, o surgimento de uma criatura humana, mas
diferente das outras. Ele simboliza uma espécie peculiar desde o princípio, e que
permaneceu dessa forma, único, só.
Nesse ritual de construção, o verbo intransitivo “veio”, na segunda oração,
uma referência de tempo-espaço, e “de longe com sua pré-história” remetem não
somente ao lugar de onde ele saiu, mas também, de certa forma, retorna ao
prefixo do próprio título do livro (pré). Esse parágrafo contém marcas estruturais
de um texto narrativo, como é o caso da referência ao espaço geográfico onde se
identifica a ancestralidade do personagem: “Resíduos de um Cuiabá-garimpo”,
com “vielas rampadas”.
O parágrafo seguinte inicia-se com um período simples: “Agora faz rastros
neste terreiro”. O sujeito da frase vem localizado temporalmente pelo advérbio
“agora”, que lembra o título do texto, “No presente”. Essa marca de tempo mostra
o pós-nascimento do personagem Bernardo, como também seu comportamento
inabitual diante de toda a vida que o cerca. Há uma força em Bernardo, que “faz
rastros neste terreiro”. O fonema consonantal /r/, aliterante em “rastros” e
“terreiro”, intensifica essa idéia que, segundo Nilce Martins (1989, p. 37), se ajusta
à noção de vibração, atrito, abalo. Esse fonema age de tal forma na frase a ponto
de fazer um sulco na terra, e esse ritual simboliza miticamente a união entre o
personagem Bernardo e o chão, comunhão que mostra o equilíbrio com a
natureza mítica que brota no transcorrer da narrativa.
Pensando o texto como uma construção poética, no segundo parágrafo,
segunda frase, o período aparece na ordem inversa. A inversão é um recurso
poético porque coloca em primeiro plano determinados elementos enfatizados
pelo poeta, e tem como núcleo do sujeito o vocábulo “chapéu”, que vem depois do
predicativo do sujeito “Repositório de chuva e bosta de ave” e do verbo de ligação
“é”, expressão do relacionamento amigável entre homem e animal. Toda essa
construção frasal continua na terceira oração, que também está na ordem inversa,
recurso que se estenderá por quase toda a narrativa. Esse procedimento ocorre
em todo o poema, e somado a outros processos de ruptura aproximam o
movimento da prosa de Barros com o de sua poesia.
O pronome indefinido “algumas”, dessa oração, funciona como uma
espécie de adjetivo restritivo o qual aparece entre vírgulas. O sujeito “Sementes
de capim” introduz ao predicado um verbo transitivo, “abrem-se”, acompanhado de
uma nova situação adverbial de lugar “de suas unhas”, que prepara uma oração
subordinada precedida pela palavra “onde”. Na seqüência surge uma gradação
verbal “entrou / cresceu / voou”, que provoca uma intensa movimentação, posto
que as frases são curtas, rápidas, em sua maioria, coordenadas. Não por acaso
esta frase é a que possui, até então, o maior número de verbos. Nesse
emaranhado de ações não é o personagem principal o centro das atenções, elas
voltam-se para os seres de menor significação, como é o caso do “bicho-de-
porco”, colocado em uma situação surreal que dá uma nova dimensão ao quadro
apresentado, pois o bicho “voou de asa e ferramentas”. A novidade desta situação
reforça a originalidade do poeta e amplia a apresentação/representação do meio
natural escolhido por ele.
No terceiro parágrafo a oração intercalada traz uma gradação de objetos
que o personagem guarda coisas em seu cabelo de onde “nascem pregos
primaveris”. Barros ficou conhecido como o poeta da destruição, do desmanche
dos sentidos tradicionais das palavras, da reutilização dos fragmentos em novas
imagens, da decomposição semântica. O que se tem aqui é a opção por “pregos
primaveris” em vez de grandes, novos, enferrujados, tortos, o que seria uma
adjetivação considerada normal. Tal fato talvez possa ser explicado pela
tranqüilidade inquietante que o personagem Bernardo representa. Analisando
novamente a primeira oração ratifica-se a referência ao lugar “De dentro de seus
cabelos”, que é um depósito de “inutilidades”. Como o poeta Manoel, ele também
gosta das coisas desimportantes.
Do texto de onde sai esse homem de comportamento tão surpreendente há
o uso de verbos transitivos diretos. Nas composições textuais percebe-se que a
presença desses verbos se dá quando os personagens estão mais integrados com
o lugar, com o grupo. No caso de Bernardo fica expresso que ele se mistura ao
lugar, a todo ser vivo que lá está. Para Nilce Martins (1989) as frases de verbo
transitivo exprimem o dinamismo da vida, com seres em todos os tipos de
relacionamento – físico, emocional, social. Nessa perspectiva, quem habita esse
lugar são os seres em formação, os “pré-seres”, que cruzam o caminho de
Bernardo, por isso, à sua volta não há, aparentemente, nada de interessante ou
utilitário. Os habitantes não têm nada a comunicar, o que eles deixam
transparecer está no sentido inverso de quem tem uma história real a contar ou
algo a mostrar. Bernardo “Escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do
ventre. Os embriões do ovo ele vislumbra prazenteiro. Ri como fumaça”. (LPC, p.
42), “Porque já desde nada, o grande luxo de Bernardo é ser ninguém. Por fora é
um galalau14. Por dentro não arredou de criança. É ser que não conhece ter. Tanto
que inveja não se acopla nele”. (LPC, p. 48).
Para reforçar esta apresentação, o poeta afirma, no quarto parágrafo, que
Bernardo “Não sabe se as vestes apodrecem no corpo senão quando elas
apodrecem”. Isso fortalece a existência de um ser mítico, uma metáfora do homem
simples da região que, distanciado da civilização, leva a refletir sobre a existência
humana e a existência das coisas. Nessa passagem há um ser que não se
importa com objetos materiais. Ele se comporta como um ser estático que
independe de todo consumismo. Todo o movimento de sua vida é apresentado em
relação à ação do tempo, sem preocupações. O verbo “apodrecer”, que aparece
duas vezes na mesma frase, reforça tais considerações.
No mundo de Bernardo só há lugar para o “ser que não conhece o ter”. Na
primeira frase do quinto parágrafo, “É muito apoderado pelo chão esse Bernardo”,
o advérbio de intensidade “muito” liga-se à dependência da terra e também ao
predicativo do sujeito “apoderado” que, junto com o complemento nominal “pelo
chão”, ratificam a origem deste homem. Aqui há a representação do homem-terra,
do homem-árvore, que está enraizado no chão pantaneiro. O chão simboliza a
relação que o homem tem com o espaço que habita, por isso todo o
comportamento desse homem e suas funções sensitivas, estão metamorfoseados
em elementos animais e vegetais. Nesse contexto Mielietinskii (1987) observa:
14 Segundo consta no Dicionário Aurélio (1986) “galalau” se refere a homens de estatura elevada.
Merece atenção o fato de que uma divindade antropomorfa se combina freqüentemente com a árvore universal. Por exemplo, os egípcios representavam a deusa Nut na forma de árvore, Zeus está intimamente ligado ao carvalho sagrado, na mitologia maia a árvore cósmica é o lugar da habitação do deus da chuva, (...), às vezes do deus do fogo (Ibid., p. 249)
No plano da literatura, na escola realista, ocorreu a zoomorfização dos
personagens com a intenção de destacar o instinto animal, em geral com
conotação negativa. Na prosa poética de Barros a intenção é outra, caminha no
sentido de reforçar a mitificação de Bernardo através de suas ações. É como se o
poeta, no exercício de sua função, de construtor de um mundo que se dá pela
palavra, atribuísse a este homem o poder de representar os atributos míticos que
dão aos seres a aproximação necessária com a vida animal e vegetal: “Seu
instinto seu faro animal vão na frente” (LPC, p. 41). Ou, como no parágrafo
seguinte, em que estão postos os modos de sentidos de Bernardo: “língua de
folha” (a exemplo dos répteis que têm na língua seus sensores de direção, seus
olhos) e “de escama” (tato); ou ainda, “É que tem uma caverna de pássaros dentro
de sua garganta escura e abortada”. Em virtude da maneira como é feita a
menção dos seus órgãos dos sentidos, fica expresso que eles possuem outras
utilidades. A sua garganta “abortada” não é usada para falar, ela é mais útil como
“abrigo de pássaros”, pois neste mundo mítico, natural a fala, que serve para a
comunicação entre os homens civilizados não lhe é muito útil. Todas essas
características, de um ser composto pela união do homem+animal+vegetal, dão
um caráter encantatório a Bernardo da Mata.
Maria Adélia Menegazzo (1991, p. 193) esclarece que em Manoel de
Barros as imagens que resultam da fusão humano/vegetal, começam a se delinear
no livro Poemas concebidos sem pecado (1937) e chegam até O guardador de
águas (1989). Para ela esta relação adquire configurações infra-humanas como no
poema intitulado “A draga” 15:
15 Este poema está no livro Poemas Concebidos sem pecado, mas foi retirado do Gramática expositiva do chão (poesia quase toda).
A gente não sabia se aquela draga tinha nascido ali, no Porto, como um pé de árvore ou uma duna.
(...) Meia dúzias de loucos e bêbados moravam dentro dela,
enraizados em suas ferragens. Dos viventes da draga era um o meu amigo Mário-pega-
sapo. Ele de noite se arrastava pela beira das casas como um
caranguejo trôpego. (GEC, p. 44)
No Livro de pré-coisas essa fusão se materializa em Bernardo. Ele é um ser
que intimamente está ligado à natureza pantaneira. Em função da maneira como é
apresentado é possível ver nele o guardião de uma natureza transfeita,
sobrenatural, que se reorganiza sobre o prisma do poeta. Nesse território ele deixa
transparecer que a criação desarticulada funciona melhor e, em virtude disso,
Bernardo não se comporta com as características de um ser biologicamente
construído. Ele pode ser visto como um dos deuses que guarda a natureza do
pantanal, não por acaso ele também é O Guardador de Águas, título do nono livro
de Barros, que lembra O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro, um dos
heterônimos de Fernando Pessoa.
O universo mitopoético do texto “No presente” reafirma a idéia de que, no
mundo mítico, a consciência se libera e cria personagens e comportamentos que
se opõem à simples receptividade dos sentidos, posto que as histórias relatadas,
mesmo possuindo elementos humanos e culturais, contam com a interferência de
forças e entes sobrenaturais. Campbell (1990) explica o fato que, muitas vezes, o
mito busca explicar o mundo e tudo aquilo que, racionalmente, não se pode
explicar, mas que passou a existir num dado momento dos primórdios temporais.
Dessa forma, os mitos estão ligados aos fenômenos inaugurais de tudo: à
genealogia dos deuses, à criação do mundo e do homem, à explicação mágica
das forças da natureza.
O mito nunca reproduz a situação real, entende Abbagnano (2000, p. 675),
“mas opõe-se a ela, no sentido de que a sua representação é embelezada,
corrigida e aperfeiçoada”. Assim, na medida em que é apresentado, o mundo de
Bernardo surge como um ente sobrenatural. Ele personifica seres puros e
imaculados. É como se tivesse no mundo para desempenhar a função de habitar
um espaço ainda em criação, para ajudar na construção deste ou mesmo para dar
conselhos do tipo: “Bernardo me ensinou: para infantilizar formigas é só pingar um
pouquinho de água no coração delas”. (LSN, p. 29).
Em sua existência essa figura humana, está impregnada de filosofias,
talvez por isso o poeta Manoel de Barros concedeu a Bernardo a oportunidade de
fazer um livro de ensinamentos. Bernardo pode ser identificado como o autor dos
textos que compõem “O livro de Bernardo”, o qual faz parte do livro Tratado geral
das grandezas do ínfimo (2001).
No Tratado, na introdução da primeira parte, Barros utiliza como epígrafe
uma definição da personalidade de Bernardo da Mata: “Para ele a pureza do cisco
dava alarme”. Na segunda parte do livro denominado de “O livro de Bernardo”, a
epígrafe é de Adélia Prado, de seus versos retirados do Manuscritos de Felipa: “A
anormalidade é assombrosa. Sua puerícia é mesma carne de poesia”. Barros dá
início a esta parte com dois poemas, depois se afasta e concede licença poética a
Bernardo da Mata, autoridade para ele registrar seus ensinamentos. Essa
possibilidade lembra a construção das entidades heterônimas de Fernando
Pessoa posto que, como estes, Bernardo começa a explicar seu comportamento,
sua existência e, o mais importante, faz a sua poesia.
Com poemas de uma única estrofe, cinqüenta e dois no total, percebe-se a
semelhança destes com os versos que compõem os livros denominados Minutos
de sabedoria, no que tange à estrutura e função destes livros, pois os mesmos
são lidos, geralmente, quando se necessita de algo para suavizar as peripécias da
vida. O livro que Bernardo pôde escrever também traz essa possibilidade. Mas, no
trabalho poético desse personagem/autor, por meio dos conselhos que ele dá, é
possível melhor conhecer e compreender a existência dos seres no mundo.
Em sua linguagem, como num intertexto com a poesia de Manoel de
Barros, repousa a insensatez dos loucos e a inocência das crianças, posto que ele
se apodera de tudo o que está a sua volta para demonstrar que não há
necessidade de angústia ao se procurar entender o estar-no-mundo.
Para ele, o melhor caminho seria a perfeita comunhão da natureza com as
coisas. Bernardo assim se explica em seu livro: “Não tenho pressa./ Tenho só
árvores ventos / passarinhos – issos./, Dentro de mim/ eu me eremito/ como os
padres do ermo”. (TGGI, p. 51) “A chuva/ azula a voz / das andorinhas”., / “Sou
livre / para o silêncio das formas / e das cores.” (TGGI, p 55); / “Ocupo função de
exílio/ quando anoitece/ nas águas./ Sou beato de águas / de pedras/ e de aves.”
(TGGI, p. 56, grifos meus)”. Assim, diante desses ensinamentos, reaparece a
condição sobre-humana de Bernardo. Ele mostra o seu mundo, sua vivência, e
possibilita ao seu leitor uma reflexão autocrítica.
Volto a abordar o texto “No presente”. O resultado do nascimento de toda a
vida no Pantanal de Manoel de Barros e de Bernardo resultou na criação de
imagens pouco vistas. O narrador manoelense regressa ao mundo natural e
transcende as limitações, ou seja, ele age como porta voz de um mundo mítico
para traduzir o que o homem civilizado, que habita tão somente o logos,
desconhece.
Por ter esse narrador um olhar que capta o mundo com lentes líricas, sua
história movimenta-se também de modo diferenciado, por isso, na continuação de
seus relatos, o narrador/poeta ilustra com minúcias o cotidiano do personagem
Bernardo:
Com bichos de escama conversa. Ouve de longe a botação de um ovo de jacaroa. Sonda com olho gordo de hulha quando o sáurio amolece a oveira. Escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre. Os embriões do ovo ele vislumbra prazenteiro. Ri como fumaça. Seu maior infinito! (LPC, p. 42)
Aqui, novamente, ocorre o enfoque aos sentidos do personagem. E
também se nota a força sonora que se acumula por todo o parágrafo. A
assonância dos fonemas /o/ e /e/, juntamente com a fricativa /v/, “conversa / ouve /
ovo / oveira / ventre / vislumbra”, dão um movimento rítmico, um efeito musicado
às percepções do ser que habita essa narrativa. Ainda, a assonância,
principalmente do /o/, causa um som agudo a todo o conjunto de frases e somente
nas duas últimas: “Ri como fumaça. Seu maior infinito!”, o som da risada de
Bernardo age como um filtro sonoro que dispersa e modifica a marcação rítmica
do parágrafo.
Há gradação dos verbos “conversa / ouve / sonda / escuta / ri”, todos
conjugados no presente do indicativo, tempo verbal cujo predomínio reafirma as
ações costumeiras, habituais do personagem e mostra, através de seu
comportamento, expressões peculiares à região do Pantanal: “Sonda com olho
gordo de ulha quando o sáurio amolece a oveira”. Nesta expressão Barros traz
para o texto narrativo elementos telúricos e populares, que se juntam e reforçam
as marcas que identificam o nascedouro de Bernardo.
Outro aspecto a ser considerado é que a ação mostra a variação do estado
de espírito do personagem, que parte da observação até chegar ao frenesi: “Ri
como fumaça”. Todo esse procedimento do fazer literário provoca um “estado
lírico” na narrativa, que, na concepção de Ramos (2002, p. 56), “é o que gera a
desordem, o imprevisto, o excesso, enfim, delírio”.
De todas as frases presentes, ao contrário do que vinha ocorrendo no
parágrafo em análise, somente uma possui verbo intransitivo: “Ri como fumaça”.
Há nesta construção frasal o esclarecimento para o estado emocional do
personagem. Somente ele é capaz de externar esse sorriso mediante o que
testemunhou. Para Nilce Martins (1989) os verbos intransitivos manifestam
emoções, processos mentais. Por conta desse comportamento tem-se a perfeita
harmonia entre homem e natureza, entre Bernardo e animais que rastejam, pois
todos estão no mesmo universo, o do chão que se refaz, graças à palavra.
Na seqüência da narrativa há a conjugação da linguagem popular com a
erudita, logo na primeira frase: “o corpo do sáurio se espicha no areão, a fim de
delivrar-se”. “Sáurio” é uma espécie de réptil e, este, ao se “espichar” no chão,
simboliza o ato do nascimento de todas as espécies animais que vivem no
Pantanal. Ao testemunhar essa cena é visível o regozijo de Bernardo e o resultado
estilístico desse procedimento é uma catacrese poética: “Pequena luzerna no
pavio de seu olho brandeia”. A importância desse momento está no fato de
mostrar a intimidade e a simplicidade desse personagem com o lugar onde vive e
a vida rasteira que por lá circunda, vida que normalmente é desprezada pelos
homens ditos civilizados.
Após esse olhar reconfortador, materializado por um verbo transitivo direto
que aparece acompanhado de preposição, segue uma frase com um sujeito
reflexivo: “A jacaroa e ele se miram imaculados”. Essa representação que abrange
os costumes dos habitantes do lugar pode ser comparada à alegria dos pais
quando presenciam o nascimento de seus filhos, “a própria ovura!” O narrador
alude aos sentimentos do personagem, pois “Bernardo se ilumina” e mostra a sua
infinitude através do recurso de uma frase exclamativa.
A contemplação da imagem que se deu no plano do chão está agora ao
espaço aéreo: “passarinhos do mato bentevi joão-ferreira sentam no ombro desse
bandarra para catar imundícia orvalho insetos”. Nesse fragmento há uma
irreverência formal, a ausência de pontuação que agiliza os relatos e torna o
discurso literário cada vez mais próximo do discurso oral.
Tudo isso é uma representação pictórica do estado de espírito de Bernardo.
O amalgamento dos elementos que compõem esse cenário mítico-narrativo
anuncia uma atmosfera que muda a paisagem pantaneira a ponto de pássaros,
que normalmente pousam nas costas dos animais para catar parasitas, trocarem
os lombos desses pelos ombros seguros de Bernardo. Em Castro (1991) Bernardo
é assim analisado:
Com a apresentação do perfil de Bernardo, pode-se concluir que, para o pantanal, o verdadeiro habitante é a pessoa que tem esses pressupostos manifestados em Bernardo. Poder-se-ia dizer que Bernardo é uma espécie de homem adâmico-pantaneiro, pois vive em estado de graça, em comunhão com a vida efervescente e transmutante, que pulsa em qualquer região do pantanal, (Ibid., p 45)
De um modo geral, as narrativas míticas representam a condição humana e
por isso contam histórias sobre o homem, possibilitando assim um possível
entendimento do que separa o mundo da razão (logos) do mundo do mito.
Na seqüência do texto “No presente” o décimo segundo parágrafo traduz o
universo poético de Manoel de Barros através das ações de Bernardo, o que traz
em um primeiro momento o retorno de alguns dos arquissemas16 do poeta,
(“vermes”, “lesma”, “lagartas” e “formigas”). Esse universo, que se apresenta de
forma surreal, alegoriza Bernardo e contribui para a construção de um
personagem enigmático. Ramos17 depreende, a partir do comportamento de
Bernardo, que no poema “instaura um instante supremo de sagração do ordinário,
do recortador de horizontes, do encantador de formigas e de um ser poetizável”.
Esse ente possui muitos súditos - “Lagartas recortam seu dólmã verdoso”.
O ato de recortar, ofício feito pelas lagartas como se fossem alfaiates, celebra
essa ação transformando estes pequenos animais em operárias responsáveis
pelas vestes desse guardião. “Dólmã”, segundo definição do Dicionário Aurélio, é
um tipo de veste ou casaco militar que, em geral, possui alamares (abotoaduras
metálicas utilizadas na frente de um vestuário), o que faz compreender que o
personagem desempenha um papel relevante para os seres que habitam esse
mundo. Tudo que ele precisa está ao seu alcance. Bernardo está inserido nesse
universo para servir e ser servido, ele é marcado pelas coisas de seu mundo e
suas vestimentas ajudam a confundi-lo ainda mais com a vida natural do lugar.
O trabalho de sacramentar os seres ínfimos é reiterado na única e curta
frase do parágrafo seguinte. Este se inicia com um verbo transitivo indireto, que
exige um complemento verbal seguido de preposição: “Unge com olho as
formigas”. O verbo “ungir” tem o significado de dar posse, investir de autoridade,
16 Segundo Iuri Lotmam (1978) o termo arquissema é formado por analogia com o arquifonema de Trubetzkoy, a fim de determinar, ao nível das significações, a unidade que inclui todos os elementos comuns da oposição léxico-semântica. 17 Retirei esses apontamentos do relatório de pesquisa denominado “As influências de Fernando Pessoa na poesia de Manoel de Barros”, projeto coordenado pelo Profº. Isaac Newton A. Ramos, desenvolvido na Universidade do Estado de Mato Grosso, campus de Alto Araguaia, entre os anos de 1999 e 2000.
sagração e, no presente do indicativo, ele representa a autoridade conferida a
Bernardo para purificar os seres rasteiros. Ele faz isso com o olhar, enquanto que
um religioso, apto a exercer essa tarefa, utiliza as mãos. Mais uma vez instaura-se
a importância do olhar na poética manoelense, pois a intenção do personagem,
nessa passagem, é de transmitir um olhar abençoador, que compreende, ama e
sente a natureza, a beleza de todos os seres, a fim de fazer o que os outros não
podem porque não conseguem ver. O olhar de Bernardo é o olhar da natureza
para ela mesma. Pertencente à espécie humana, ele serve de anteparo para a
natureza ignorada e transfeita.
Quase ao final da narrativa, é possível vê-lo como “pessoa com ar de
quelônio”, da ordem dos répteis, sendo um tipo de tartaruga. Anuncia-se a partir
daqui uma ironia prosopopéica, pois o texto deixa antever que quando ele está
próximo de animais domésticos como “cachorro” e “galinhas”, estes o
“descompreendem”, ao contrário daqueles seres rasteiros e peçonhentos com
quem ele mantinha íntima relação.
Para esclarecer o comportamento desses animais, o narrador/poeta utiliza-
se de uma digressão18, recurso utilizado em vários poemas de Barros e de outros
contemporâneos como a poeta mato-grossense Lucinda Persona: “No pátio
cachorro acua ele. (Pessoas com ar de quelônio cachorro descompreende.)
Galinhas bicoram seu casco”.
Depois de utilizar apenas três vezes o nome do personagem principal, ele
reaparece em uma preciosa metáfora, no penúltimo parágrafo, que se inicia assim:
“Bernardo está pronto a poema”. Parece um anúncio, uma metáfora, para explicar
o que o poeta/narrador entende que, após todo o percurso descrito, Bernardo é a
própria poesia.
Nos parágrafos anteriores vinha-se repetindo o pronome “ele”, em geral, na
voz reflexiva ou então como complemento verbal, no caso, fazendo o papel de um
objeto direto. Do ponto de vista fono-estilístico e estrutural, é como se o narrador
18 Figura de retórica, consiste em o orador afastar-se do seu tema, através da inserção de matéria estranha àquela tratada no momento. Podendo conter a intercalação de um trecho descritivo, narrativo, poético, elogioso, etc., assume a forma de concessão, ou seja, “confessar o fato de que o adversário tem razão num ou noutro argumento” (Moisés, 1999).
estivesse guardando para o desfecho a força do nome do seu personagem
principal. Ao ter seu nome novamente evocado, Bernardo efetivamente se
encontra “pronto a poema”. Nesse estado metalingüístico e poético, Bernardo
possui o perfil ideal para habitar o mundo dos devaneios, da obscuridade, terreno
próprio da poesia de Manoel de Barros. Poesia que surge com o intuito de livrar-se
da referencialidade, da natureza paisagística e da rima fácil.
Esse ser mítico-pantaneiro representa o ilimitado de todas as coisas e de
todas as formas. Após a anunciação, é colocado novamente um arquissema que
mostra a representatividade imagética e metafórica do rio na poética de Barros:
“passa um rio gorjeado por perto”. Para Castro (1991, p. 124) “A metáfora do rio
coloca-o no poema como elemento animador, cheio de vida e sentido”. A força
natural das águas, e o rio, como anunciador da vida traz toda sua expressão
emotiva e sonora. O verbo gorjear, que no verso narrativo aparece como adjetivo,
acompanhado do som /p/ aliterante (“passa”, “por”, “perto”), permite que o rio
emita sua voz melodiosa, no caso seria a celebração das águas. Água e pantanal,
na poesia de Barros são indissociáveis, sobretudo pelo excesso. Apresentam-se,
inclusive em imagens sacralizadas, como na hipérbole na seguinte frase,
precedida pelo verbo transitivo direto “aplainar”: “Com as mãos aplaina as águas”.
Essa ação do personagem reporta à passagem bíblica que traz o episódio em que
Jesus, para salvar seus apóstolos, acalma a tempestade (Evangelho de S. Lucas,
8: versículo 24). É importante lembrar que, conforme foi apresentado desde o
início deste capítulo, Bernardo é um ser especial dotado de características míticas
e divinas que contribuem para que ele seja o guardião dessa natureza híbrida. É o
rio que canta e encanta, é o pastor que apascenta o seu rebanho de seres feitos
de palavras.
Chega-se ao último parágrafo com a expressão de um presente eternizado,
envolto em uma atmosfera mítica e religiosa. Aqui o poeta mostra, como tantos
outros da história literária, que a Bíblia Sagrada é uma das suas mais importantes
fontes. Isso pode ser comprovado numa frase anunciada, que funciona como o
desfecho dessa narrativa mitopoética: “Deus abrange ele”. É uma emblemática
expressão na qual se revela a importância do homem Bernardo.
O fechamento dessa prosa poética alude a um ensinamento cristão. Dessa
forma, é possível a comparação das expressões: “Deixai os meninos, e não os
estorveis de vir a mim; porque dos tais é o reino dos céus” (Evangelho de S.
Mateus, 19: versículo 14) e “Deus abrange ele”. Na frase de Barros, o verbo
“abranger” mostra que o Ser Superior está em Bernardo, que o alcança, porque vê
nele a inocência e a pureza conjugados.
O comportamento de Bernardo subverte a ordem lógica do mundo atual e
sugere uma outra explicação para as coisas. A apresentação da vida mítica do
pantanal revela a necessidade de outras formas de entendimento do homem, do
mundo e de conhecimento da sua origem, mas exprimem, sobretudo, um
redirecionamento da poesia contemporânea, que tem espaço para a
figurativização da linguagem, e nisso consiste a reflexão de Paz (2003, p. 395)
para quem “El mundo pierde su realidad y se convierte en una figura de lenguaje”.
O personagem manoelense tem suas ações reveladas para tornar possível
os mais diversos experimentos da linguagem, além das diferentes moldagens a
que a imagem é submetida, numa prosa poética que exorta homem e palavra.
Como conclui Paz (2003, p. 122).
“El poeta afirma que sus imágenes nos dicen algo sobre el mundo y sobre nosotros mismos y que ese algo, aunque parezca disparatado, nos revela de veras lo que somos”,
CAPÍTULO III – OS FIOS DA MEMÓRIA DE UM PANTANEIRO
Os relatos poéticos de Manoel de Barros, presentes em seus poemas, em
sua prosa poética, em períodos diferentes de suas composições, abrangem uma
vasta fronteira que de certa forma, vai da formação do mundo à vida em
sociedade. A origem e desenvolvimento dos homens, dos animais e plantas
reaparecem com a ajuda da memória do eu-narrante. Munido desse poder o
narrador pode retornar às fontes para recordar momentos significativos.
Nesse espírito de sabedoria e ancestralidade, competência lingüística e
oralidade é que o texto “O lavador de pedra”, o sexto dos quinze que compõem o
livro Memórias inventadas – A infância (2003), quase todo em prosa poética, vai
contar histórias do povo do pantanal, histórias estas que se misturam às próprias
histórias de Manoel de Barros19.
Em Memórias inventadas o seu vigor literário continua em evidência.
Utilizando-se da prosa poética, que desde o Livro de Pré-Coisas não aparecia com
tanto destaque, ele lança suas memórias, mesmo que admita que são inventadas,
para dar ressonância a fatos que constituem sua identidade.
O relembrar renova a vida e a arte do poeta, dá concretude ao presente.
Ele próprio admite: “Depois de velho, a minha infância voltou”20. No entendimento
de Ecléa Bosi (1994, p. 60), o velho, o homem que já viveu muitos anos, quando
lembra o passado “não está descansando, por um instante, das lides cotidianas, 19 Este livro foi publicado pela casa editorial espanhola Planeta, que teve autorização da editora pela qual o poeta é contratado, no caso a Record, para esta publicação. O Memórias inventadas possui um designer arrojado e o volume vem dentro de uma caixa de papel com as páginas não numeradas, há apenas uma numeração, em algarismo romano, nas páginas que constam o título do poema. As páginas estão atadas por um laço de fita de cor azul cintilante. Essas quinze histórias recuperadas são memórias do poeta, que vêm acompanhadas por ilustrações da artista Martha Barros, filha do autor que também ilustra Ensaios fotográficos (2000), Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), assim como a segunda edição do Livro de pré-coisas. Esses outros publicados pela Record. 20 Entrevista concedida a “Folha Ilustrada”, no Jornal Folha de S. Paulo de 10 de fevereiro de 1996.
não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando
consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida”.
O retorno ocorre em fases distintas: a volta à infância do poeta marcada
pela sua vivência no pantanal mato-grossense e a mocidade, marcada pelo seu
tempo de escola na cidade grande. Todo esse trabalho faz surgir, em várias de
suas poesias, a figura do narrador-autor-personagem. Essa mistura mostra o
desejo do autor de evidenciar o seu mundo. Para Ecléa Bosi (Ibid., p. 411), é o
individuo que recorda: “Ele é o memorizador e das camadas do passado a que
tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos”.
(...). Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma
infância livre e sem comparamentos.
(...). Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão
comungante e oblíqua das coisas.
(MI)
Quando eu estudava no colégio, interno, Eu fazia pecado solitário. Um padre me pegou fazendo. __ Corrumbá, no parrrede! Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e Decorar 50 linhas de um livro. (MI, IV) Nas férias toda tarde eu via a lesma no quintal. Era a
mesma lesma. Eu via toda tarde a mesma lesma se despregar de sua concha, no quintal e subir na pedra. (...) Para mim esses pequenos seres tinham o privilégio de ouvir
as fontes da terra. (MI, V) No quintal a gente gostava de brincar com palavras mais do que de bicicleta. principalmente porque ninguém possuía bicicleta. (MI, X)
Em todos os trechos acima, por intermédio da memória, há a
apresentação de uma vivência no mundo, uma apreciação e revitalização de
valores culturais esquecidos no tempo. O ato de recordar simboliza o
nascimento de novas vidas, de novas perspectivas que influenciarão no
devir. Também para Castro (1991)
O retorno ao passado, não se detendo no que a memória histórica possa oferecer como lembrança de fatos reais, ou ainda, indo além das situações factuais, pode oferecer experiências e iluminações sobre a vida, sobre o existir, (...). São momentos de devaneios que atingem o ser do homem em profundidade e oferecem-lhe um conhecimento do repouso do ser em si, do ato de existir. Esses repousos do devaneio profundo oferecem ao homem ou ao poeta uma contemplação especial da existência que a transmite, através de seus poemas, a outras pessoas. (Ibid., p. 191)
Esse movimento cíclico em que estão a infância e a fase adulta do
poeta, não deve ser interpretado como uma espécie de autobiografia. Mesmo
revirando suas memórias fósseis, elas se apresentam de maneira não
homogênea. Seus versos narrativos continuam marcados, com propriedade,
pela linguagem inventiva. Ao comentar sobre as lembranças contidas em
suas narrativas revela: “Não conto nada na reta, escrevo sempre nas linhas
tortas, como digo, aliás, num poema. Na minha poesia parece que tem muita
coisa de fora, mas é tudo de dentro.”21. É a partir desse pensamento que o
ato de narrar permite que ele vença tempo e distâncias para expressar-se
poeticamente sobre seu habitat, o pantanal, sobre a transformação de
hábitos peculiares do povo e da natureza pantaneira. No plano da expressão,
essas lembranças, na maioria das vezes, são apresentadas por desvio não
somente sintático, mas, sobretudo, semântico. São esses procedimentos
criativos que diferenciam a sua narrativa de qualquer outra narrativa ou
crônica sobre o pantanal. É o que se pode observar no texto que segue.
21 Entrevista concedida a “Folha Ilustrada”, no Jornal Folha de S. Paulo de 10 de fevereiro de 1996.
O lavador de pedra
A gente morava no patrimônio de Pedra Lisa. Pedra Lisa era um arruado de 13 casas e o rio por detrás. Pelo arruado passavam comitivas de boiadeiro e muitos andarilhos. Meu avô botou uma Venda no arruado. Vendia toucinho, freios arroz, rapadura e tais. Os mantimentos que os boiadeiros compravam de passagem. Atrás da Venda estava o rio. E uma pedra que aflorava no meio do rio. Meu avô, de tardezinha, ia lavar a pedra onde as garças pousavam e cacaravam. Na pedra não crescia nem musgo. Porque o cuspe das garças tem um ácido que mata no nascedouro qualquer espécie de planta. Meu avô ganhou o desnome de Lavador de Pedra. Porque toda tarde ele ia lavar aquela pedra. A Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse abandonada. É que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. A venda por isso ficou no abandono de morrer. Pelo arruado só passavam agora andarilhos. E os andarilhos paravam sempre para uma prosa com o meu avô. E para dividir a vianda que a mãe mandava para ele. Agora o avô morava na porta da Venda, debaixo de um pé de jatobá. Dali ele via os meninos rodando arcos de barril ao modo que bicicleta. Via os meninos em cavalo-de-pau correndo ao modo que montados em ema. Via os meninos que jogavam bola de meia ao modo que de couro. E corriam velozes pelo arruado ao modo que tivessem comido canela de cachorro. Tudo isso mais os passarinhos e os andarilhos era a paisagem do meu avô. Chegou que ele disse uma vez: Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia.
Dom de ser poesia é muito bom! (MI, grifos do autor)
Esse texto, baseado na experiência do narrador menino, vislumbra um
tempo de profundas recordações que marcaram sua vivência e alteraram suas
percepções. Seus relatos constituem uma tela onde se projeta a aquisição do
entendimento do ser e estar no mundo.
A personagem Scheerazade, do famoso livro As mil e uma noites, a cada
noite criava um episódio da história que contava para manter-se viva. Da mesma
forma pode-se dizer acerca do narrador manoelense que utiliza sua memória para
poder retirar do passado, do seu cotidiano anterior lições que o revivifiquem a
cada novo experimento. É desse exercício incansável, que traz como resultado
novas fabulações, fruto de uma intensa utilização de sua memória, que ele retira
sentido e identidade.
O texto em análise trata da busca do passado, e traz como personagem
símbolo o avô que, aliás, é uma figura que aparece em diversos livros do autor. Na
primeira frase a expressão “A gente morava” identifica o sentido memorialista da
narrativa. A marca de oralidade no texto busca promover um tom familiar e
procura estabelecer com o leitor uma identificação, provocando um certo grau de
intimidade fazendo com que pareça que um tipo de “causo” esteja sendo contado.
Destaca-se ainda a utilização do vocábulo “patrimônio”, ainda na primeira frase.
Tempos atrás essa expressão era utilizada para designar pequenos povoados no
interior do país. A opção por expressões antigas intensifica o desejo do eu-
narrante de manter-se na linha tênue que há entre passado e presente.
É interessante assinalar que todos os textos que compõe o livro Memórias
inventadas não estão justificados, o que faz com que haja umas frases mais curtas
que outras. Esse recurso possibilita depreender que a falta de constância causada
entre períodos breves e os mais longos assemelham-se ao movimento da
memória posto que o relembrar não segue uma constante, não segue uma
linearidade. Pode-se dizer que, de certa forma, os pensamentos vão e voltam, se
misturam entre fatos ocorridos no passado e no presente. Por analogia, a escrita
do autor parece que procura perfazer o caminho semelhante ao da memória.
No tocante a segunda frase: “Pedra Lisa era um arruado de 13 casas e o rio
por detrás” ocorre uma reiteração da expressão que denomina o patrimônio, como
que pretendendo deixar tudo explicado. Essa reiteração se estenderá ao longo de
toda a narrativa. Há também a presença do vocábulo “rio”, um dos arquissemas do
poeta. Cabe registrar que geralmente os povoados começavam próximos aos rios,
como forma de garantir seu desenvolvimento e sustentabilidade. Ainda, a imagem
do rio como que ajuda a reforçar as lembranças do eu. Um exemplo clássico é o
rio que aparece na poesia de Alberto Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que
corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que rio que corre pela minha
aldeia,/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia” (1998, p. 215-6)
O ato de recordar intensifica a presença desse eu-narrante. Ele fala das
comitivas de boiadeiros que movimentavam a região do pantanal de Mato Grosso
com o intuito de vender o gado. Esse trabalho, por sinal, precede o período de
desmonte da carreta pantaneira, que será abordada na análise seguinte. Tal
atividade comercial foi o meio de vida do povo pantaneiro durante muitos anos e
provavelmente esse foi o motivo do avô do menino narrador ter colocado uma
Venda para abastecer esses boiadeiros. Mesmo porque eles “comprovam de
passagem”. Aqui há um duplo sentido: a brevidade da estada deles e essa
aquisição alimentícia que era necessária para continuassem a viagem. Essa
locução “de passagem”, do ponto de vista sintático, funciona como um adjunto
adverbial de modo. Na fala do menino são colocados, em forma de gradação, os
apetrechos que os boiadeiros compravam: “toucinho, freios, arroz, rapadura e
tais”. Misturam-se alimentos não perecíveis com utensílios para a montaria. O
curioso é que este comércio não impediu de o avô praticar coisas inúteis. Para ele
não importava ser o dono da Venda. Ele preferia ser conhecido como o Lavador
de Pedra, pois é deste ato desproposital que surgem as passagens marcantes na
infância do menino.
Na seqüência há um estranhamento semântico, com conotação surreal: “E
uma pedra que aflorava no meio do rio”. Aqui a característica vegetal “aflorar” se
junta ao elemento mineral “pedra”. Esse aflorar provoca um encantamento lírico e
instaura a imagem poética que faz lembrar o poema “A flor e a náusea”22 de
Drummond, neste nasce uma flor no meio do meio do asfalto: “Uma flor nasceu na
rua! / Passem de longe, bondes, ônibus, do rio de aço do tráfego. / Uma flor ainda
desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto”. É na tessitura do texto poético que a
imagem se materializa. Através de uma ágil prosa poética, Barros resgata histórias
inventadas que são trançadas pelo fio da memória. Estas histórias possuem uma
liberdade rítmica, sintática e frásica próximas das suas melhores poesias. A
expressão “no meio do rio”, é outro exemplo de mais um adjunto adverbial, desta
vez de lugar. O curioso aqui é que o rio agora é apenas acessório, as atenções
22 Este poema compõe o livro Carlos Drummond de Andrade - Antologia poética, 24ª ed. 1990.
antes voltadas para ele estão para a pedra, que sintaticamente forma um objeto
direto.
A partir do momento em que o narrador menino diz: “Meu avô, de
tardezinha, ia lavar a pedra”, ele retorna ao título do poema. Todavia esse
episódio faz lembrar um compromisso lúdico de fim de expediente. Cada um, à
sua maneira, procura um tipo de lazer, o avô “de tardezinha”, opta por lavar uma
pedra que estava no meio do rio. Novamente a presença do adjunto adverbial de
tempo, que remete excentricamente ao fato insano do avô em uma explicação non
sense. O motivo é as garças que “pousavam e cacaravam” na pedra. O
neologismo “cacaravam” é formado pela palavra “caca” que significa algo sujo. Na
seqüência, o narrador, já no início da frase aparece se explicando. Engraçada é a
aparente explicação de cunho científico: “o cuspe das garças tem um ácido que
mata no nascedouro qualquer espécie de planta”.
Na oração “Meu avô ganhou o desnome de Lavador de Pedra”, a palavra
“desnome” é formada por uma derivação prefixal contendo uma carga de negação
- “des-” acrescida ao substantivo “nome”. O referido prefixo apesar de ser uso
comum no português aqui está inserido como um neologismo dentro de uma
tradição literária de origem popular. Como observa Nilce Martins (1989, p. 121)
esse prefixo “desde as cantigas de escárnio já revelava a sua vitalidade”. No
tocante a profissão do avô sua importância está realçada pelo uso das iniciais
maiúsculas “Lavador de Pedra”. Vindo dessa maneira parece sugerir, de forma
irônica, que é um serviço pomposo, portanto seria mais importante que ser dono
de uma Venda. Já foi mencionado em uma passagem anterior que o rio foi
substituído em importância pela pedra, que “não crescia nem musgo”. As tarefas
cotidianas do avô eram completadas com esse ato incomum e solitário, que
merece esclarecimentos com respostas parecidas as que se dão às crianças
quando fazem algumas perguntas absurdas.
As atividades nessa Venda parecem não ter sido tão infrutíferas, pois ela “ficou
no tempo abandonada”. Talvez fosse pelo fato dele não dar mais a importância
devida ou porque as comitivas de boiadeiros por lá não mais passavam. Uma
coisa é certa ela ficou “que nem uma cama ficasse abandonada”. Essa
comparação pode ser analisada da seguinte forma: a cama é um local de
descanso para o corpo, um porto seguro para as duras lides do dia-a-dia e, por
isso, ela deve ser arrumada todos os dias, na medida em que fica sem uso
passa a não mais ter a utilidade primeira. Foi o que aparentemente aconteceu
com a Vendo do avô. Essa modalidade de comparação, que parece ser
ingênua, na verdade guarda uma lição de vida a de que é nas insignificâncias
que estão os valores. O narrador menino procura explicar porque acabou o
movimento da Venda: “é que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras
estradas”. Essa explicação remete a uma curiosa conseqüência de cunho
existencial: “A Venda por isso ficou no abandono de morrer”. E continua
sintaticamente os adjuntos adverbiais, no final dessa expressão, com mas uma
belíssima imagem. É oportuno lembrar que dentre as funções do advérbio estão
a de modificar o verbo (no exemplo acima), o adjetivo e o próprio advérbio.
Quando pareciam encerrar as lembranças do menino reaparecem os andarilhos
que ainda passavam pelo arruado. Talvez pelo fato destes não terem propósitos
comerciais podiam parar e prosear com o avô. É nessa “prosa”, nessa
observação do sujeito avô que a memória do menino Manoel registrou vários
dos seus encantamentos. Como arquétipo do velho sábio o avô ensina ao
menino que o homem deve procurar no contato com as coisas que estão ao
redor, nas coisas gratuitas, valores essenciais ao ser. A presença do avô é uma
proposta, “um caminho poético para o neto, como expressão de anseios por
vastos horizontes de liberdade”, compreende Castro (1991, p. 201).
Há ainda na presença dos andarilhos que paravam para prosear outro motivo: o
de dividir a “vianda”, a marmita que o avô recebia. Toda essa aproximação
recupera o avô do estado de abandono em que ele se encontrava. Parece que
ele é que era a própria Venda abandonada. E a utilização do adjunto adverbial
de tempo “agora”, começando a oração expressa a importância e o estado de
graça em que se encontrava o avô. Ele morava na “porta da Venda, debaixo de
um pé de jatobá”. Essa árvore, que é abundante nos cerrados, possui raízes
profundas, seus galhos longos e encorpados produzem sombra, além disso, ela
é conhecida pela sua longevidade. A escolha do avô em ficar morando debaixo
da árvore produz um simbolismo de união. A associação entre os símbolos
representativos para o avô como a água (rio), a pedra e agora a árvore (terra)
promovem um ritual de fecundação entre os seres e a coisas que estão no
mundo.
Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 84) entendem que “Pelo fato de suas
raízes mergulharem no solo e de seus galhos se elevarem para o céu, a árvore é
universalmente considerada como símbolo das relações”. Desse modo, o estar
debaixo da árvore é significativo, pois parte daí o estado de graça que adquire o
avô. Agora ele podia observar “os meninos rodando arcos de barril”, em “cavalo-
de-pau”, “jogando bola de meia” “e corriam velozes pelo arruado ao modo que
tivessem comido canela de cachorro”. Utilizando-se de uma seqüência anafórica
ao final de quatro frases, da expressão popular “ao modo que”, ele apresenta
algumas comparações que põe de um lado a realidade e de outro a fantasia do
menino. “Arcos de barril” versus “bicicleta”; “cavalo-de-pau” versus “ema”; “bola de
meia” versus “bola de couro” e a última de forma engraçada, baseia-se nas
expressões populares, “corriam velozes” versus “comido canela de cachorro”.
Todas as frases anteriores utilizam o seu principal órgão de eleição: o olhar.
O verbo ver aparece no passado imperfeito. O tempo verbal neste texto predomina
ora no perfeito ora no imperfeito. Essa quantidade de orações coordenadas vai
culminar com “tudo isso mais os passarinhos e os andarilhos era a paisagem do
meu avô”. Para a lembrança do narrador menino essas imagens todas eram
grandiosas. A expressão oral “tudo isso” mostra bem a dimensão dessa magia
provocada pelas ações desencadeadas no “patrimônio de Pedra Lisa”.
Ele encerra o texto com duas orações subordinadas substantivas. As
últimas frases significativas desse texto são: “Chegou que ele disse uma vez: Os
andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia”. A primeira traz
a marca forte da oralidade. A segunda traz uma espécie de gradação, que se
acentua no termo intermediário, no caso as crianças. Pois os andarilhos não têm
raízes, não têm um rumo certo. Os pássaros migram de um ponto para o outro.
Somente as crianças possuem um lugar certo e precisam deste para imprimir
marcas de identidade. E todas essas figuras são sagradas pelo poeta em suas
mais diversas obras. Talvez por isso tenham “o dom de ser poesia”.
Em todo o texto é significativa a mudança de ambiente, de situação. O
Lavador de Pedra, que antes exercia seu ofício solitário, que preenchia seu tempo
cuidando de uma pedra do meio do rio, não está mais só. Ele é revisitado nas
memórias do poeta que se dispõe a descobrir as raízes de sua poesia. Manoel de
Barros, observa novamente Castro (Ibid., p. 195), “descobre seu pendor inato para
as coisas da terra como uma energia ancestral impregnada em seu ser: a solidão
das vastidões e a força da terra passam a compor um substrato, mediante o qual
se modela sua visão de mundo”.
Mais uma vez Barros instaura a possibilidade de que a poesia dá-se nos
despropósitos. Ela deve estar impregnada de cheiro, gosto, sabor, de chão,
trapos, andarilhos, loucos, solitários. Para Octavio Paz (2003, p. 87) “En labios de
niños, locos, sabios, cretinos, enamorados o solitarios, brotan imagenes, juegos
de palabras, expresiones surgidas de la nada”.
A poesia de Manoel de Barros também se manifesta no uso expressivo de
conteúdos que evocam passado e presente. Há momentos em que os ecos do
passado, que se materializam no tecido poético, dão um ar de nostalgia às
lembranças do tempo da infância vivida no Pantanal. Em o “Lavador de Pedra”, a
exemplo de vários textos do poeta as palavras iluminam o caminho de vastos
horizontes e liberdade de linguagem. Por tudo isso ele até poderia ter dispensado
a última frase. Parece rascunho. Um comentário desnecessário. Deve ter sido um
descuido do autor ou fragmento solto da memória do poeta-menino.
3.1- Destroços de uma natureza poética
Antes de passar à apresentação e análise do segundo texto deste capítulo
é pertinente reforçar alguns aspectos de sua prosa poética, mormente porque as
revelações feitas pelo eu-narrante estão baseadas em elementos constitutivos de
sua memória. São acontecimentos vividos pessoalmente que se integram a
acontecimentos vividos pela coletividade à qual ele pertence. Michael Pollak
(1992, p. 201) explica que “a memória é seletiva, nem tudo fica gravado, nem tudo
fica registrado”. Isso indica que muito da escrita do eu depende de sua
imaginação, da fantasia e do seu experimento com a linguagem. A memória, nas
narrativas poéticas de Manoel de Barros promove um constante jogo entre o vivido
e o imaginado.
Nesse prisma o narrador se dedica a fazer um aprofundamento em suas
viagens pelo pantanal mato-grossense. Para demonstrar que ele é um viajante, no
título do Livro de pré-coisas ele explica que irá ser apresentado um “roteiro para
uma excursão poética no pantanal”. Através de suas viagens ele irá garantir a
transmissão de fatos gravados em sua memória. Mas não só isso, uma linguagem
trabalhada com requintes metafóricos e metonímicos. Junta-se ao fato da sua
preferência em sagrar o ínfimo, o ordinário e, sobretudo, “as coisas sem
importância são bens de poesia”23. (GEC p.181)
O ato de rememoração acontece, principalmente, pelo aspecto visual.
Graças ao seu olhar penetrador o eu-narrante alcança objetos, pessoas e lugares
para retratar os outros encadeamentos que estão postos à vida natural que habita
a região pantaneira. É por intermédio do ver e ouvir que surge o reviver. Ademais,
é como se ele seguisse o fio de Ariadne das suas lembranças para trilhar
caminhos que elucidam o estrato cultural do povo nativo. Para Edson Santos de
Oliveira (1988, p. 115), em seu estudo sobre questão autobiográfica em Graciliano
Ramos, “Lembrar é tecer fios do passado que não foram tecidos, mas que podem
ser retecidos no presente, reatualizando e resgatando a história”.
23 Este trecho faz parte do livro Matéria de Poesia (1974), um dos dez livros incluídos no seu Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda).
O texto escolhido para mostrar esse cenário resgatado do universo
pantaneiro no qual se materializam as lembranças desse eu feito destroços de
uma natureza poética intitula-se
Carreta pantaneira
As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não foram movidas. Ou então,
melhor dizendo:desacontecem. Dez anos de seca tivemos. Só trator navegando, de
estadão, pelos campos. Encostou-se a carreta de bois debaixo de um pé de
pau. Cordas, brochas, tiradeiras – com as chuvas, melaram. Dos canzis, por preguiça, alguns faziam cabos de reio. Outros usavam para desemendar cachorro. Os bois, desprezados, iam engordando nos pastos. Até que os donos, não resistindo tanto gordura, os mandavam pro açougue. Fazendeiro houve, aquele um, que, havendo de passear pelo Europa, enviou bilhete ao gerente: “Venda carreta, bois do carro, cangas de boi.”
À sombra do pé de pau a carreta se entupia de cupim. A mesa, coberta de folha e limos, se desmanchava, apodrecente. Chegaram a tirar mel na cambota de uma. Cozinheiros de comitiva, acampados debaixo da carreta, chegavam de usar o cabeçalho para tirar gravetos. Enchia-se o rodado de pequenas larvas, que ali se reproduziam, quentes. Debaixo da carreta, no chão fresco, os buracos na areia, para onde os cachorros e os perus velhos corriam fugindo do sol. E a carreta ia se enterrando no chão, se desmanchando, desaparecendo.
Isso fez que o rapaz, vindo de fora pescar, relembrasse a teoria do Pantanal estático. Falava que no Pantanal as coisas não acontecem através de movimentos, mas sim do não-movimento.
A carreta pois para ele desaconteceu apenas. Como haver uma cobra troncha.
(LPC, p. 31-2)
Nas memórias, tanto individual quanto coletiva, existem pontos ou marcos
que segundo Pollak (Ibid., p. 202) “são relativamente invariáveis, imutáveis”. A
carreta, símbolo que representa valores culturais do povo pantaneiro, serve como
referência para o movimento dialético que o narrador faz entre passado e
presente.
Ademais, para T. Todorov (2002) tanto os indivíduos quanto os grupos têm
necessidade de conhecer seu passado, pois disso depende sua identidade. Ele
conclui: “o indivíduo sem memória perde sua identidade, deixa de ser ele mesmo”
(Ibid., p. 95). Neste sentido o narrador em “Carreta Pantaneira” evoca, nos liames
da narrativa, a memória que mantém o fio de sua existência. Trata-se então, na
concepção de Norval Baitello Junior (1999, p. 40), “de um enorme corpus de
informações acumuladas, não na memória genética da espécie, mas na memória
de uma sociedade”.
Segundo Ecléa Bosi (1994, p. 53) “A lembrança é a sobrevivência do
passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à
consciência na forma de imagens-lembrança”, assim, ao mostrar a desapropriação
das funções primeiras da carreta o eu-narrante revela um tempo perdido pelo
homem do lugar. A partir das lembranças desse eu a “carreta” é re-visitada
através de suas novas funções, pois lembrar, salienta a autora (Ibid, p. 55) não é
somente reviver, mas, “refazer, reconstruir, repensar”.
A “carreta”, no texto em análise, tem como característica aparente a
desfuncionalidade operacional, e o que é visto vem apresentado por uma carga de
um humor non-sense acompanhada de algumas ironias: “Dos canzis, por preguiça
alguns faziam cabos de reio. Outros usavam para desemendar cachorro. (...) À
sombra de pé de pau a carreta se entupia de cupim”. (LPC, p. 31). A carreta,
também conhecida como carro de boi, foi o primeiro veículo de transporte utilizado
no Brasil, trazido na época do descobrimento. Com o auxílio dela, um elemento da
cultura do interior do País, foram construídos os primeiros capítulos do
povoamento e da agricultura no Brasil.
Um exemplo de como se apresentam as novas utilidades da carreta e o que
representa para a comunidade pantaneira e o seu ecossistema pode ser
observado na citação abaixo:
Chegaram a tirar mel na cambota de uma. (...) Enchia-se o rodado de pequenas larvas, que ali se reproduziam, quentes. Debaixo da carreta, no chão fresco, os buracos na areia, para onde os cachorros e os perus velhos corriam fugindo do sol. (LPC, p. 32).
Dentro do cenário pantaneiro, o não-movimento origina e preserva vidas.
Os novos acontecimentos vivificam os valores desse utilitário, que estava perdido
no tempo. Esse processo, que aparentemente não tem importância alguma para
as pessoas e, talvez por isso, seja matéria de poesia, traz para o presente a
possibilidade de re-visitar algo que, no imaginário das pessoas, havia perdido o
estatuto de símbolo.
A exemplo do texto “Mundo renovado”, analisado no capítulo anterior, no
“Carreta pantaneira” esse não-movimento é apresentado por um silogismo
poético: “As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque
não foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem”. Há duas
premissas nas frases iniciais e a terceira representa a conclusão desse silogismo.
“As coisas”, anunciadas na primeira frase, remetem a tudo que possa compor o
cenário narrado. Trata-se de coisas em estado primitivo, em estado de
acontecimento, de não-acontecimento, como também são coisas casuais,
pictóricas, míticas e imagéticas, oriundas da memória do eu-narrante.
Progressivamente o verbo “acontecer” aparece quatro vezes em apenas três
frases, no presente do indicativo. Na última ele se transforma em um neologismo:
“desacontecem”. Conforme já foi mencionado em outro momento deste trabalho,
tal recurso é bastante utilizado pelo poeta, principalmente com o uso do prefixo
“des” indicando uma negação. O acréscimo desse prefixo com esse sentido vem a
ser uma licença poética que sinaliza para uma poética de desconstrução, de
desmanche e de destruição com o intuito de ressemantizar o seu código lírico.
Também se destacam as palavras “aqui”, advérbio de lugar, junto ao
primeiro verbo e a forma nominal “paradas”. Sintaticamente o resultado é uma
oração coordenada sindética conclusiva: “desacontecem”. Essa conclusão do
silogismo tem início com uma locução conjuntiva “ou então”, seguida de uma
marca de correção textual “melhor dizendo”, como querendo aferir uma
autenticidade à explicação para a maneira diferenciada que a vida toma forma no
pantanal. Trata-se de uma premissa do absurdo dentro de uma poética do
absurdo, materializada pela conjunção explicativa “porque” que, na verdade, nada
explica só age de maneira pleonástica, pois as coisas “acontecem paradas”, “não
foram movidas”.
Em um segundo momento, o segundo parágrafo, iniciado por uma oração
absoluta, o verbo transitivo direto “tivemos” elucida o fato de que o narrador está
dentro da narrativa. Ele se apresenta como um narrador-protagonista, pois é ele
quem narra é vivencia os fatos. De sua voz são suscitadas as lembranças do
passado e sua expectativa para o futuro, pelo seu olhar microscópio, observador,
é mostrado o novo cotidiano do lugar em que ele está. Suas inquietações e
reflexões colocam-no como peça integrante da história. Todo o desenrolar centra-
se nos momentos de sua vivência interior. Por isto importa aqui revelar a voz do
narrador, pois só as vozes, segundo Leite (2003, p. 79) “convocam, articulam,
integram, organizam, estabelecem (...) uma paisagem, um Pantanal encantado,
em suas lembranças, em suas histórias”.
Notadamente é do segundo parágrafo que se instaura o movimento do
narrador, desse modo, nas orações “Dez anos de seca tivemos. Só trator
navegando, de estadão, pelos campos” marca a mudança climática que sofreu a
região, o que ocasionou a mudança de hábitos das pessoas. Por conta disso, a
carreta foi substituída pelo trator, um dos indícios do desenvolvimento agrícola dos
Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa referência temporal aparece
sob a forma de uma catacrese, posto que em função da longa estiagem não há
espaço para barcos e canoas e sim para tratores que “navegam” pelos campos.
Ao mesmo tempo, a exemplo do sofrimento do nordestino, esses fenômenos
naturais se repetem a cada determinado período. A ação destrutiva do homem
muitas vezes só piora e amplifica os estragos na natureza pantaneira.
Esse relato do narrador mostra que o tempo e o espaço articulam-se de
forma concatenada nas narrativas de tom memorialista. A descrição do ambiente
está embasada na sucessão cronológica que movimenta a fauna e flora
pantaneira. O ambiente alterado pelo tempo cronológico exemplifica que a
testemunha desses acontecimentos se identifica como pessoa do lugar. Mesmo
sendo identificado também como um viajante, seus relatos denunciam seu
reencontro com as impressões e sentimentos de um tempo anterior ao da
narrativa.
É importante lembrar que grande parte do território pantaneiro fica embaixo
d´água no período de cheia. Isso já foi mostrado através do texto “Mundo
Renovado”: “O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. (...). Choveu
tanto que há ruas de água. Sem placas sem nome sem esquinas.” (LPC, p. 29).
Essa imagem foi alterada, porém a “carreta”, anunciada em crônicas e versos que
revelam a cultura do povo pantaneiro será animalizada, passará por diversas
metamorfoses.
O parágrafo seguinte inicia com um verbo transitivo direto “encostou”. Na
seqüência, há uma gradação nominal: “cordas”, “brochas”, tiradeiras”. Essa
gradação marca a utilização de expressões regionais que identificam para o
ouvinte/leitor desse testemunho, os nomes dos utensílios que originalmente
compunham a carreta. Atento igualmente para a ordem em que estão dispostos
esses utensílios, escolha essa que promove e exalta o ritmo sonoro da narrativa -
em nível de poesia. Tal procedimento é característico de quem trabalha com prosa
e poesia ou de quem trabalha com poema em prosa, a exemplo do poeta Manuel
Bandeira em “Tragédia brasileira” quando ele apresenta a seqüência dos nomes
dos bairros, no Rio de Janeiro, pelos quais Maria Elvira e o seu marido moraram e
em que a mesma teve amantes.
Na terceira frase, ainda analisando o segundo parágrafo, o verbo “faziam”,
no passado imperfeito, remete as cenas descritivas. Ele está posto para realçar as
palavras e/ou expressões pantaneiras que aparecem efetivamente ao longo de
todo o relato como: “cabos de reio” e “desemendar cachorro”. A estrutura frásica
desta última vem composta por uma oração subordinada adverbial final. Essas
outras utilidades achadas para os objetos da carreta mostram que as mudanças
ocorridas na estrutura social do povo pantaneiro alteraram a paisagem e a
identidade pessoal, situação essa refletida na transformação do comportamento
dos habitantes do lugar. Ainda nesta terceira frase o pronome indefinido “alguns” e
“outros” substituem a identificação dos personagens dessa história. Esse
procedimento tem como resultado que toda a atenção passa a estar voltada para
a carreta, em outras palavras, ela é a personagem principal desse relato em prosa
poética, apresentada como símbolo e expressão da força da vida que ressuscita
para uma contínua novidade.
Nesse mesmo parágrafo o uso da ironia se amplia, por parte do narrador,
com o intuito de contar de que modo os fazendeiros, que antes se serviam da
carreta, comportam-se diante de algo que para eles parece não ter mais uma
necessidade imediata: “Os bois, desprezados, iam engordando nos pastos. Até
que os donos, não resistindo tanta gordura, os mandavam pro açougue”.
Sintaticamente, a locução verbal “iam engordando” pode ser substituída por
“engordavam”, o que remete ao adjunto adverbial de lugar “nos pastos”. O
vocábulo “gordura” sugere o estado de inércia em que se encontram esses
animais, pois, sem a carreta para puxar, eles estão sem utilidade. Esses fatos
intensificam o desmonte, a desfragmentação da carreta e de seus acessórios e
parecem comprovar que tudo o que for insignificante (como é caso da história
contada sobre o desuso da carreta), que está em estado de putrefação ou
metamorfose são materiais essenciais para a poética singular de Barros. Trata-se
de uma obra está fundamentada na desrealização do objeto. Nesse sentido Dalate
(1997) entende que esse projeto do poeta
incorpora o acaso (...), procura a destruição da ordem através da busca do absurdo, (...), do primitivo e do elementar, introduzindo o conceito de poesia pura, no sentido de uma disposição inaugural, afastadas propositalmente todas as possibilidades de a poesia veicular uma verdade, servir a algum tipo de prática, ou conter intenções didáticas. (Ibid., p.7)
Ainda, na quinta frase, seguindo o fio da narrativa, há uma referência ao
fazendeiro, que aparece seguido de um pleonasmo formado pelos verbos “houve,
havendo”, o que faz lembrar a oralidade do texto. O que se tem por meio desse
recurso é a presença da aliteração da consoante labiodental /v/, que expressa a
musicalidade própria do rodar da carreta. Ou seja, a madeira do eixo, girando na
madeira do encaixe, produz um som contínuo, como um gemido melodioso, o que
era motivo de orgulho para seus condutores.
Em um trecho adiante, provavelmente com o intuito de ressaltar o
comportamento do fazendeiro, o eu-narrante, de forma irônica, conta que o
referido personagem em uma viagem pela Europa, continente que representa ser
um símbolo de desenvolvimento cultural e social do mundo, munido de uma
atualização cultural, dá uma ordem ao seu gerente: “Venda carreta, bois do carro,
cangas de boi”. Por intermédio dessa construção o poeta parece incorporar uma
das principais conquistas do modernismo brasileiro, principalmente no que tange a
enxugar as frases, construindo períodos breves de estilo telegráfico. A mensagem,
transmitida fornece um quadro sintético do desligamento do fazendeiro com a
tradição e ao mesmo tempo revela que ele não pretende preservar um dos itens
que lhe ajudam a ter uma noção de sua identidade. Seu modo de pensar indica
que ele possui uma visão prática das coisas. As quinquilharias, como a carreta
encostada, sem uso, não têm função, não têm valor. Seu comportamento,
diferentemente do poeta Manoel que valoriza os objetos a partir do momento em
que eles perdem sua função prática, exemplifica uma possível incompatibilidade
entre progresso e singularidades regionais. Certamente as preocupações e
ensinamentos do fazendeiro também não são os mesmos do personagem
Bernardo, apresentado no capítulo anterior.
No quarto parágrafo há uma hipérbole personificada: “a carreta se entupia
de cupim”. Além de essa expressão pressupor sua falta de uso traz também uma
outra ironia. A pressuposição dessa possibilidade é intensificada no parágrafo a
ponto de conduzir a carreta a um translado de funções. Tanto o neologismo
“apodrecente” como também a frase “enchia-se o rodado de pequenas larvas”,
reforçam esse estado de inutilidade, de putrefação da carreta. Portanto, é por
intermédio dessas mudanças que Manoel de Barros procura valer-se de seus
conhecimentos acerca do pantanal mato-grossense para organizar uma poética
que se constitui e se preocupa em dar forma a sentimentos corredios. Ele, como
um cronista de um tempo perdido, analisa e demonstra a força da natureza que
consegue encontrar seu próprio movimento. Então que o poeta, desde o segundo
parágrafo, afasta esse eu-narrante com o objetivo de realçar ainda mais as
descrições das ocorrências quotidianas da natureza pantaneira.
Nesse percurso, os recursos morfossintáticos são expressivos: “Debaixo da
carreta, no chão fresco, os buracos na areia, para onde os cachorros e os perus
velhos corriam fugindo do sol”. Nesta frase há muitos advérbios ou locuções
adverbiais, sendo que a expressão “fugindo do sol” se apresenta como uma
oração subordinada adverbial final. No cerne dessa nova valorização e
redescobrimento funcional da carreta a gradação verbal se anuncia celeremente:
“E a carreta ia se “enterrando no chão”, se “desmanchando”, “desaparecendo”.
Esses verbos, no gerúndio, indicam que o processo de desmaterialização da
carreta ainda está acontecendo. Surge uma imagem plástica é emblemática. A
inércia neste espaço é dinâmica, serve de impulso para a vida do lugar. Para
Gaston Bachelard (apud Bosi, 1999, p. 18) “é preciso descer aos modos da
Substância – a terra, o ar, a água, o fogo -, para aferrar o eixo natural de um
quadro ou de um símbolo poético”. Portanto, o que se compreende por intermédio
dos caminhos pantaneiros é que a volta ao passado torna-se apenas um dos
recursos para se vislumbrar o presente. É no imaginário do narrador que se
estabelecem novas e vigorosas composições para esse mundo natural que se
mostra como agente catalisador, propulsor e simbólico. A partir dessas
considerações, vê-se que Manoel de Barros em “Carreta pantaneira” mostra toda
a ação da natureza com o fito de desmitificar a teoria do pantanal estático.
Enquanto isso, no percurso do quinto parágrafo, a oração (grifada) “Falava
que no Pantanal as coisas não acontecem através de movimentos, mas sim do
não-movimento”, apresenta-se como subordinada substantiva objetiva direta, a
qual revela a possível sabedoria do rapaz que vindo de fora, tenta explicar o que
acontece no Pantanal. O valor expressivo do termo “teoria” reside em parte no fato
de que o rapaz adquiriu este conhecimento através de livros, já que o narrador
deixa claro que ele estava ali para pescar, como fazem milhares de turistas que
visitam o pantanal. Abbagnano (2005, p. 952) traz que o termo teoria pode ser
explicado da seguinte forma: “Uma condição hipotética ideal, na qual tenham
pleno cumprimento normas e regras, que na realidade são observadas imperfeita
ou parcialmente”. O rapaz sabe que a vida no pantanal se dá através do não-
movimento porque ouviu falar ou talvez tenha lido. Uma coisa pode se assegurar:
ele não consegue enxergar toda a movimentação que se dá ao longo dessa
narrativa dito estática, que chega a ser ínfima, insignificante, diria para os não-
nativos.
O desfecho sintático dessa narrativa se dá por uma oração absoluta: “A
carreta, pois para ele desaconteceu apenas”. O termo “apenas” funciona como um
operador argumentativo de restrição, posto que está no sentido de anunciar uma
explicação simplória para a desfuncionalidade da carreta. No ato de narrar fica
evidenciado que as definições teóricas delimitam o espaço do homem moderno.
Seu conhecimento parece advir do conhecimento de outros, o verbo “falavam”, no
passado imperfeito, sugere isso. Quem falou não importa. O que fica é a busca de
uma resposta para o que acontece.
O narrador encerra seu trajeto com uma comparação explicativa: ”Como
haver uma cobra troncha”. Uma comparação singular. Ele tenta esclarecer o não-
movimento por intermédio de um dizer popular, próprio do povo da zona rural.
Essas pessoas utilizam a expressão “égua troncha”, para se referir a um animal
que nasce com alguma parte do corpo mutilado. O curioso é que ao trocar o termo
“égua” por “cobra”, o narrador reforça ainda mais o estranhamento dessa analogia,
pois assim como não existe uma “cobra troncha”, pois esses répteis denominados
cefalotórax são formados pela fusão entre cabeça e corpo, ou seja, tem uma só
parte, não existe também um pantanal estático. As teorias estão equivocadas. Os
olhares sobre o pantanal estão equivocados. A verdade é que a percepção sobre
a natureza não pode se restringir tão somente sobre seu caráter natural, não se
pode vê-la sem o intermédio de outras esferas. Para representar os espaços, a
natureza, o narrador manoelense conta que no mundo pantaneiro todas as coisas
se relacionam, amalgama-se e adquirem existência e substancialidade.
Conclusão
Ao longo deste trabalho procurei apresentar a prosa poética de Manoel de
Barros não apenas como um gênero diferenciado da categoria narrativa, mas sim
como um trabalho que o autor realiza sem a necessidade de buscar ou repetir
fórmulas consagradas de crônicas pantaneiras. O imaginário popular é apenas um
ponto de partida para suas memórias recuperadas. Nesse prisma ele caminha por
uma estreita ponte entre o popular e o erudito, entre o sagrado e o profano
poético, entre a forma e a expressão literária.
Das obras selecionadas é possível afirmar que compõem um mosaico
lírico, erguido entre as fronteiras da prosa e da poesia. Não por acaso tratou-se
disso no primeiro capítulo. Foi um capítulo em que se observou os conceitos de
Octavio Paz, Paul Valéry, Hugo Friedrich, dentre outros autores de teoria da
poesia, como também de Mikhail Bakhtin, Tzvetan Todorov e Walter Benjamim e
seus estudos sobre os textos em prosa. Tudo o que foi dito talvez não tenha
servido para elucidar suficientemente o que vem a ser a prosa poética. Muitos
poetas modernistas adotaram o poema em prosa, porém poucos escreveram
prosa poética. Nesse sentido procurei mostrar que Manoel de Barros adota-a
desde as suas primeiras obras.
Produzido o capítulo com o auxílio de vários teóricos, procurei, no
segundo capítulo adentrar efetivamente na análise de textos em prosa poética.
Conforme discussões apresentadas, elas possuem qualidades e características
próprias da poesia, mantendo elementos da prosa. Não lhes faltam o ritmo, a
entonação, a melodia e os traços imagéticos do gênero lírico. Isso foi demonstrado
em poemas e fragmentos de diversos títulos, assim como uma análise estilística
de dois textos do Livro de pré-coisas: “Mundo renovado” e “No presente”. No
primeiro texto procurei mostrar os caminhos de um mundo que se refaz, que se
multiplica apenas com a força da natureza, no caso o Pantanal. Este espaço surge
permeado de revelações míticas, de narrativas que concentram todo o
encantamento produzido pela celebração da natureza pantaneira, como também a
incorporação do homem pela natureza. No segundo, apresentei Bernardo, um
personagem forte, que se sustenta como personagem mítico na medida em que é
celebrado como um guardião dessa natureza, desse espaço. Ele está lá. Do outro
lado da folha contempla os nossos silêncios. Isso o mitifica. Isso o eterniza. Foi o
capítulo que mais exigiu de mim um desprendimento e com o qual mais me
realizei no exercício de análise literária, porque antes de iniciar a pesquisa busquei
o Bernardo extra-literário acreditando que poderia encontrar um homem incomum,
com ares de um ser encantado, que conversasse com os animais. Cheguei bem
perto e descobri que Bernardo só existe e existiu na voz poética de Manoel de
Barros. Ele é o ser que se torna poesia pois “Ele faz um encurtamento de águas /
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros / até que as águas se
ajoelhem”. (GA, p. 10)
No terceiro capítulo, lembrei-me do fio de Ariadne, a qual é conhecida
como Senhora dos labirintos. Segunda consta, é ela quem tem a idéia é dá a
Teseu, seu amado, o fio que lhe permitiria sair do labirinto onde vivia o Minotauro.
Daí adveio o título “Os fios da memória de um pantaneiro”. Dois textos de cada um
dos livros foram escolhidos: “O Lavador de Pedra” do livro Memórias inventadas –
A infância e “Carreta pantaneira”, do Livro de pré-coisas. Nestes, fica clara a
opção do poeta pelo resgate da memória, pelo encantamento através da
recuperação de fatos e cenas de um tempo marcado pela vivência em torno da
natureza pantaneira. Surge a figura do avô, normalmente um ente querido das
crianças, e cuja figura o menino Manoel canta e encanta. Do “patrimônio de Pedra
Lisa” para o conhecimento do leitor, vêm desfiados esse fios de memória. A partir
de uma situação insólita, “lavar uma pedra no meio do rio”, conhece-se a trajetória
do avô sob os olhos do eu-narrante. Não há como ficar alheia às situações
descritivas e poéticas que ele vai apresentando. Aqui ele redescobre os prazeres
da infância sob a ótica do outro. É o novo que conta sobre o velho. É a novidade
que chega pela recuperação de imagens poéticas da infância.
O segundo texto do terceiro e último capítulo, traz a carreta pantaneira.
Símbolo da época da colonização é primeiro veículo presente no interior do Brasil.
Na poética de Barros ela passa de uma situação de aparente desfuncionalidade
para uma nova aplicação. É com este texto que a teoria do pantanal estático é
desmitificada. Volta a importância e a discussão do mito no imaginário popular. O
narrador apresenta uma fotografia em movimento ou desmovimento (pensando
em Barros). O espaço é contagiado pela reprodução de um certo movimento
quando diz que “as coisas que acontecem aqui, acontecem paradas”. A carreta vai
desfragmentando-se, perdendo o estatuto de símbolo e, no lugar dela, surge um
“desacontecimento”. É a sua lenta agonia que move o eixo da recordação. As
memórias fragmentam-se e depois se recompõem no inconsciente formando a
memória coletiva, as memórias inventadas, recuperadas da infância.
Após todas essas considerações, quero reiterar que a prosa poética de
Manoel de Barros se sustenta como toda sua produção. O espaço natural vai se
apresentando como encantado e mítico a ponto de florescer em poema. “E mais:
eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor” (MI, IX),
ensina o poeta.
É por esse entendimento que a linguagem em Barros torna-se imagem. E
é por intermédio dessas imagens que Bernardo é capaz de “acolher o horizonte” e
de guardar em seus cabelos “seu fumo, seus cacos de vidro, seus espelhinhos”,
além de “aplainar as águas” (LPC, p. 41-3). Penso que por isso Octavio Paz
(2003, p. 124) afirme: “Lãs imágenes poéticas poseen su propia lógica y nadie se
escandaliza” e, ainda, “El lenguaje traspasa el círculo de los significados relativos,
el esto y el aquello, y dice lo indecible: las piedras son plumas, esto el aquello.
(Ibid., p. 126). Manoel de Barros é isso, seja na poesia ou na prosa poética, suas
memórias e mitos se eternizam cada vez mais na Literatura Brasileira. Na arte de
Barros, explicar a estrutura da natureza pantaneira, sua esfera encantada é o
mesmo que contar a história da criação do mundo. Nesse contar a poesia
monoelense explora novas maneiras de ser e dizer, de revelar e velar, por
intermédio de uma linguagem de combinações imprevisíveis, os traços de um
sujeito lírico que se refaz a cada novo experimento.
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