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A a - Margaret Moore

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Page 1: A a - Margaret Moore

A Substituta — Margaret Moore

TÍTULO ORIGINAL: The Overlord's BrideClássicos Históricos nº 213ANO: 2001

SINOPSE:FORA UM ASSASSINATO HEDIONDO…

A primeira esposa de lorde Kirkheathe morrera e havia rumores que o comprometiam. Mas ele queria herdeiros, e apenas por isso aceitara casar-se com Elizabeth Perronet. Aquele homem severo realmente não era um selvagem, mas por que teria a reputação de ser tão indomável e rude?

Traição, teu nome é mulher! Pelo menos era assim que pensava Raymond D'Estienne, graças à decepção que tivera no primeiro casamento. Como poderia, então, lidar com a admirável Elizabeth, que acabara de sair do convento e que estava determinada a mudar-lhe a vida de uma maneira que ele jamais ousara sonhar?

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Capítulo 1

— Pare de fazer gracejos como se fosse uma simplória! — advertiu lorde Perronet, o nariz adunco voltado, com arrogância, em direção à sobrinha, esperando que ela colocasse o cavalo junto ao seu.

Elizabeth deixou de olhar para o castelo que se erguia à sua frente. A estrutura maciça erguia-se por entre a bruma como se fosse uma enorme fera à espreita da presa.

— Considerando-se todas as coisas inesperadas que me aconteceram nos últimos três dias, não seria de se esperar que meus miolos estivessem um tanto desarranjados? — a moça resmungou, provocando mais um olhar de aborrecimento no tio.

— Havia tamanho desprazer no modo com que a tratava desde que fora buscá-la no convento, que seria impossível disfarçar seu mau humor.

— Você continua a mesma!— comentou sardônico. — Pensei que as piedosas irmãs já a tivessem domado…

— Bem, meu tio, tudo que posso dizer é que elas tentaram bastante.Lorde Perronet resmungou seu descontentamento num grunhido sem

significado. Olhou-a de cima a baixo, com atenção.Elizabeth sabia que ele não deveria estar gostando do que via. Se

estivesse, ela não teria sido enviada para aquela morte em vida em meio às freiras, treze anos antes. Teria ficado com lady Katherine DuMonde para terminar seus estudos, sua preparação para o casamento e seus deveres como castelã. Teria, também, se casado e tido filhos.

— Deve esforçar-se por comportar-se decentemente, como uma moça de alta linhagem — ordenou seu tio.

— Imagino que gostaria de me ver mais parecida com minha prima Genevieve…

— Aquela rameira?! Não, certamente que não!Elizabeth mantinha um sorriso de satisfação nos lábios. A bela Genevieve

era quem deveria estar fazendo aquela jornada ao Castelo Donhallow naquele dia.

No entanto, tinha comprometido sua honra com um nobre galês-normando e se casara com ele, deixando o tio num terrível dilema, pois ele já se tinha comprometido numa aliança de casamento com o poderoso lorde Kirkheathe.

Sem se deixar abater, porém, lorde Perronet fora até o Convento do Santíssimo Sacramento e dera a Elizabeth a opção de ficar lá até o fim de seus dias ou sair e tomar, o lugar da prima.

Nunca houvera, para ela, escolha mais simples a fazer. A oportunidade de ter liberdade, fosse nas bases que fosse, pareceu-lhe infinitamente melhor do que a escravidão em que vivia entre as freiras.

— O senhor não medisse quase nada sobre lorde Kirkheathe, meu tio — comentou, enquanto prosseguiam na viagem até Donhallow. Agora já lhe era possível avistar uma pequena vila à base das muralhas e parecia-lhe poder

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perceber algumas pessoas agitando-se ao redor de uma fogueira.— Não há nada a saber — seu tio respondeu seco. — Kirkheathe é rico,

respeitado, tem amigos na corte e devemos rogar aos céus que ele aceite você em lugar da desvairada de sua prima.

— E, se, ao me ver, ele decidir não aceitar?Os olhos negros do lorde voltaram-se para ela mais uma vez.— Digamos que será melhor que ele aceite — disse, duro. — Um homem

precisa ter o máximo de amigos na corte que conseguir arranjar.Elizabeth pensou por instantes, antes de indagar:— O senhor não confia nos amigos que já tem lá?O rosto de lorde Perronet tornou-se intensamente vermelho. — Eu não disse isso! — protestou.— Então, porque procurar ter uma aliança de família com lorde

Kirkheathe? As terras dele ficam tão distantes das suas!— E desde quando uma mulher que passou os últimos treze anos num

convento sabe alguma coisa sobre política ou alianças?— Acha, meu tio, que não há política num convento? Nenhuma aliança a

se fazer ou a se partir? Nenhum segredo a ser guardado? Nenhum poder? Por Nossa Senhora, senhor, acredite que não sou a simplória que imaginou a princípio!

— Bobagem! O que importa agora é, que lorde Kirkheathe a aceite, para que tudo esteja bem, tanto para você mesma quanto para mim.

— Já que tenho de me ater a assuntos exclusivamente femininos, tio, diga-me ao menos como ele é?

— E o que mais quer saber, além do que já contei?— Ele é bonito?Lorde Perronet riu com desdém.— Você não está em posição de preocupar-se com a aparência do

homem — Observou-o.— É que, como não sou bonita, ocorreu-me que… também não sendo,

ele poderia não se importar muito com minha aparência…Mais uma vez os olhos negros, voltaram-se para Elizabeth, percorrendo-

a, de cima a baixo. — Na verdade, você se parece mais com Genevieve do que acho

conveniente — comentou ele, em tom soturno.Elizabeth surpreendeu-se com tais palavras. Era impossível parecer-se

com a prima, que tinha um rosto perfeito e cabelos, maravilhosos. Não a via desde que deixara a companhia de lady Katherine, mas, mesmo assim, imaginava que Genevieve não tivesse mudado tanto.

— Genevieve esteve doente? — perguntou, querendo justificar seus pensamentos.

— Não. Você que melhorou. Ela o olhou, incrédula, mais uma vez, lembrava-se muito bem dos

comentários e críticas que sempre recebera no convento, em especial da reverenda madre! Sabia que não era bonita. Por que seu tio estava, então,

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sugerindo que fosse?— Ele não sabe, não é? — indagou em voz baixa.— Quem não sabe o quê? — lorde Perronet perguntou, num muxoxo

aborrecido.— Lorde Kirkheathe não sabe que aconteceu a Genevieve, não é?— Eu nunca disse isso.Apesar da negativa, Elizabeth insistiu:— Quando pretende contar a ele quem sou de verdade? Antes ou depois

do casamento?Dessa vez, seu tio preferiu não responder.— Se ele é um homem esperto não devia tentar ludibriá-lo — ela

prosseguiu — decidida a deixar claro seu, ponto de vista — Se ele tem amigos na corte, vai saber sobre Genevieve em breve e isso não seria nada bom para o senhor, meu tio. Além do mais, não permitirei tal coisa. Não pretendo me casar sob falsos conceitos.

— Prefere voltar ao convento?— Não. — Elizabeth lembrava-se muito bem do que passou lá: um

inferno de fome, castigos e frio que queria apagar da memória. — Mas não quero começar a vida com uma mentira — insistiu — Nada fiz de errado e nem o senhor. Com certeza, ele verá que o senhor está tentando manter sua palavra do acordo. Ou ele teria preferência por Genevieve. Não acredito, pois se ele a tivesse conhecido, o senhor não estaria agora tentando enganá-lo…

— Tudo o que lorde Kirkheathe quer é que sua noiva seja virgem.— Bem, quanto a isso estou mais do que apta. Nem mesmo falei com um

homem desde que entrei naquele convento. Portanto, meu tio, não vejo razão para mentiras. Além do mais, Genevieve também não se casou com um homem influente, apesar de galês?

— É ima família galesa com sangue normando — lorde Perronet explicou. — Eu não pretendia fazê-la passar por sua prima. O fato é que… Bem não vejo motivo para contar a lorde Kirkheathe a verdade. Afinal, uma mulher Perronet é uma mulher Perronet.

— Mas não sou Genevieve. Para começar sou mais velha do que ela. — Confie em mim, Elizabeth. — Mais uma vez, as palavras de seu tio

eram frias e não muito, claras.A dúvida, porém, permanecia na mente de Elizabeth. E se lorde

Kirkheathe não a quisesse? E se a mandasse embora?— Eu não falaria com ele como você fala comigo. — disse lorde Perronet,

minutos depois, após ter pensado muito. — Posso garantir que um homem com a reputação que ele tem, não iria gostar disso.

— Prometo ser uma noiva humilde e dedicada meu tio. — Estava determinada a fazer qualquer coisa para não voltar ao convento. — A reverenda madre fez o que pôde para tornar-me a mais humilde das servas de Deus.

— Mas não acho que ela tenha tido muito sucesso em tal empreitada.— Ela me ensinou a parecer humilde e dedicada quando necessário —

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Elizabeth esclareceu. — Entendo. Bem, eu gostaria que você agisse assim comigo, então!Ela sorriu, sincera.— Tenho sido autêntica com o senhor meu tio. Isso não é ainda melhor?— Não. A resposta irritada a feria, mas ela aprendera também a mascarar seus

sentimentos naquele convento. Deixou que alguns minutos se passassem para perguntar:

— Que idade tem lorde Kirkheathe?— Não interessa.— Mas, se ele não é jovem talvez, interesse ao senhor saber que poderei

ser sua viúva um dia, Uma viúva muito rica, dona de uma fortuna imensa…Elizabeth acertara no argumento.— Acho que ele deve estar com trinta e poucos anos — o tio respondeu,

com expressão calculista. — Mas acredito que você possa ter um filho que herde sua fortuna antes que ele morra.

— Espero ter muitos filhos e filhas, meu tio. Ele já tem outros filhos?— Não.— Mas já foi casado antes?Lorde Perronet pigarreou, aborrecido.— Chega de perguntas! — determinou voltando os olhos para o céu

cinzento. — Acho que vai chover e é melhor nos apressarmos! — Chamou, então, o líder de seus homens, que seguia à frente do comboio, e logo estavam trotando em direção ao Castelo Donhallow.

Raymond D'Estienne, lorde Kirkheathe, acariciava a cabeça de seu cão favorito, sentado na enorme cadeira do hall, como um rei em seu trono. Ao seu redor, os criados esperavam, também, ansiosos e tensos, olhando, de vez em quando para seu senhor, ou um para o outro, ou, ainda, para a porta que dava para a cozinha. Nenhum ousava falar, com medo de receber o olhar severo de lorde Kirkheathe.

Ninguém ali queria ser notado por ele. Lá fora, a chuva caía, forte, batendo contra as muralhas de pedra do castelo, intensa o suficiente para ser ouvida sobre o crepitar das chamas na enorme lareira.

A festa de casamento estava atrasada. Perronet e sua sobrinha, noiva de lorde Kirkheathe, deveriam ter chegado há horas. Raymond impacientava-se. Imaginava o que poderia tê-los detido. Vinha recebendo mensageiros de Perronet há dias, sempre desculpando-se pelo atraso.

Se o homem e sua sobrinha não chegassem naquele dia, seria o fim. Não era um peixe para ser mantido num anzol assim. Precisava, isso sim, do dinheiro que o dote da moça garantia, mas poderia encontrar outra noiva agora que decidira casar-se novamente. Quanto aos dotes pessoais da mulher em questão, esses eram muito menos importantes do que o dinheiro que a acompanharia.

Nos últimos dias, Raymond vinha tentando manter seu castelo apenas

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com a renda de suas propriedades, mas Donhallow era uma construção muito antiga e precisava de reparos. Preferia casar-se a ver seu lar ruir a seu redor.

Precisava também de uma aliança através desse matrimônio, com receio de que seu inimigo obtivesse maior apoio do que ele próprio na corte e também junto ao visconde de Chesney, senhor de toda a região. Perronet e seus amigos podiam fornecer tal apoio.

Um grito soou, vindo de fora do castelo, e todos os criados voltaram-se para seu amo, mas ele não se moveu. Já que o tinham mantido à espera, ficaria aguardando ali. Não sairia na chuva para dar as boas-vindas aos recém-chegados.

As portas da enorme sala se abriram e, Barden, comandante da guarda, marchou para dentro da sala enorme, parando diante de seu senhor. Inúmeras gotas caíam de sua armadura e capacete.

— Lorde Perronet e sua comitiva chegaram, senhor! — Anunciou, em sua postura ao mesmo tempo severa e humilde.

Raymond, ainda assim, não se moveu. Queria que entendessem que estava aborrecido. Muito aborrecido.

Barden, que começava a sua carreira militar ali, conhecia seu amo o suficiente para saber que não haveria nenhum comentário por parte de lorde Kirkheathe. E, com sua eficiência de militar, baixou a cabeça brevemente e, girando nos calcanhares, saiu.

Minutos depois, as portas se abriram novamente e a figura familiar de lorde Perronet surgiu, apressada. Atrás dele, também muito molhada, vinha uma mulher. A noiva, com certeza.

Raymond continuava olhando, sem expressão, enquanto o recém-chegado se aproximava, inclinando-se de leve, os olhos negros presos ao cão, Cadmus.

— Queira perdoar-nos a demora, senhor, mas, o tempo tem estado terrível, além de termos tido problemas com um dos nossos cavalos — Perronet desculpou-se. — Mal posso expressar minha alegria por termos chegado em segurança.

Raymond apenas inclinou a cabeça em resposta. — Permita-me apresentar minha sobrinha, senhor — Perronet

prosseguiu, aliviado. Voltou-se, então, e indicou a moça que o acompanhava.

Elizabeth deu alguns passos à frente, puxando o gorro que lhe cobria a cabeça e que também estava ensopado. Perronet dissera que sua sobrinha era de uma beleza estonteante, o que fizera Raymond ter suas dúvidas. Imaginara ser um exagero, ou, até, uma mentira, que criara para aumentar o valor da noiva. Mas, para sua surpresa, o homem dissera a verdade.

O rosto suave estava emoldurado por uma espécie de touca, mas isso parecia servir apenas para valorizar ainda mais seus traços suaves. Os olhos, grandes e castanhos, eram emoldurados por cílios espessos e curvos, e brilhavam. O nariz, pequeno, era perfeito, muito diferente do de seu tio, e seu rosto parecia ser suave coma a pele deu um pêssego. Quanto aos lábios,

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rosados e carnudos, pareciam convidar a um beijo…Uma sensação já muito esquecida atingiu Raymond enquanto a

observava. Algo forte, um desejo diferente, intenso, estranho… O sangue pareceu circular mais depressa em suas veias, lembrando-o da solidão absoluta em que estava vivendo.

Procurou afastar tais sensações, impondo-se a necessidade de não senti-las. Uma vez, no passado, deixara-se levar por sensações bem parecidas e jurara nunca mais tê-las. A moça parara de andar junto ao tio.

— Sou Elizabeth Perronet — anunciou, em voz suave. Raymond franziu o cenho de imediato. A mulher que estivera esperando

devia chamar-se Genevieve Perronet…— Senhor — interferiu o tio da noiva, logo após lançar um olhar severo à

moça — está é minha outra sobrinha. Sinto dizê-lo, mas… Genevieve provou não ser digna de Vossa Senhoria e da honra de ser sua esposa. Elizabeth, en-tretanto, é uma excelente donzela, e, é claro, o dote permanecerá o mesmo.

Fosse o que fosse que estava acontecendo, Raymond concluiu, não precisavam de uma audiência. Podiam discutir o assunto com maior privacidade. Fez um gesto para que Cadmus permanecesse onde estava e olhou para lorde Perronet com insistência, seguindo, depois, para a torre que levava a seu solar.

— Espere aqui — Perronet recomendou a Elizabeth. — Vou resolver este assunto.

— Não, meu tio — ela rebateu, fazendo-o arregalar os olhos diante tanta audácia. — Este assunto me diz respeito, então, devo fazer parte da conversa. Não sou uma peça de mobília, ou um pedaço de terra.

— Elizabeth… — ele repreendeu, em voz baixa.Raymond, parado a alguns, passos de distância ergueu as sobrancelhas.

Lorde Perronet, percebendo-lhe a impaciência, apressou-se em segui-lo, tendo a sobrinha aos calcanhares.

Uma mulher ousada, pensava Raymond enquanto caminhava. Isso seria bom ou mau? Alicia não foi ousada, pelo menos, não até a última noite de sua vida…

— Ele é mudo? — Elizabeth perguntou ao tio.Os lábios de Raymond esboçaram um sorriso.Ao chegarem porta do solar, parou, deu passagem a lorde Perronet e,

quando Elizabeth ia passar, respondeu no tom áspero e baixo que restara de sua, um dia, bela voz:

— Não. Não sou mudo.

Capítulo 2

Elizabeth jamais ouvira algo tão suavemente rouco quanto a voz de lorde Kirkheathe. E a sensação que a tomou, foi estranha, como se estivesse diante de algo íntimo e, ainda assim, assustador. Como se ele fosse parte homem, parte fera… E imaginou que a voz de um homem poderia ser assim em

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momentos de pura paixão, murmurando coisas em seu ouvido…Corou com tal pensamento, sentindo-se mais aquecida do que o normal,

presa de excitação e vergonha. Sabia que precisava manter-se sob controle diante da situação que iria enfrentar.

Quando já estavam no meio da sala para a qual tinham seguido, ela arriscou um olhar para cima, notando a cicatriz que ele trazia ao pescoço, uma linha fina e macerada de carne avermelhada. Isso talvez explicasse o problema com sua voz, imaginou. Devia ter se ferido ali, embora fosse uma cicatriz um tanto estranha, como se ele tivesse sido pendurado pelo pescoço com uma tira fina de couro.

Mas ela não ousava encará-lo. Talvez estivesse aborrecido por não estar diante da noiva que lhe fora prometida… Talvez, não a aceitasse, uma pobre substituta que era, e a enviasse de volta ao convento.

Havia uma única tocha, presa à parede, iluminando o ambiente. Entretanto, a luz que produzia não era suficiente para mostrar os cantos da sala. Ao centro, havia uma enorme mesa de cedro, pesada como a cadeira solitária, que ficava a sua cabeceira.

Tentando não estremecer, Elizabeth aguardava, ao lado do tio, numa atitude humilde, os olhos baixos. Talvez fosse necessário pedir a intervenção divina para que aquele homem intimidante a aceitasse.

Rezava, em silêncio, para que ele não a enviasse de volta a companhia das freiras. Prometia ser a esposa perfeita, humilde e mansa. Só não queria tornar a ver a reverenda madre, a qual, com certeza, a levaria a morte através de seus castigos brutais.

Lorde Perronet parecia inquieto. Estava mais tenso do que receoso, porém. Elizabeth percebera o quanto se zangara ao olhá-la, há pouco, no hall.

No entanto, bastara-lhe olhar para lorde Kirkheathe para saber que não deveria mentir a ele. Muito menos sobre sua identidade. Ele dava passos largos e lentos ao redor da mesa, agora, colocando-se do outro lado dela. Sentou-se na cadeira de espaldar alto e encarou-os.

— Senhor — começou lorde Perronet, em tom de penitência. — Deve entender a situação em que eu me encontrava. Genevieve nos desgraçou, embora tivéssemos tão amigavelmente acordado em reunir nossas famílias. Imaginei o que poderia fazer, como agir para manter minha palavra… Então me lembrei de Elizabeth. Posso garantir-lhe, meu senhor, que ela é virgem. Esteve treze anos num convento e, nesse tempo, jamais viu ou falou com homem algum.

— Jamais? — indagou lorde Kirkheathe na voz baixa e rouca. — Jamais, senhor — Elizabeth confirmou. — Meu tio foi o primeiro

homem que vi nos últimos treze anos.Ela ergueu o olhar para encontrar o dele, firme, perspicaz. A luz difusa da

tocha tornava seu rosto uma máscara de bronze, os contornos de seus traços mais definidos e demarcados num jogo de luz e sombra.

O que estaria pensando? Indagou-se. Estaria notando sinais das privações pelas quais ela passara no convento? Estaria avaliando se valeria ou

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não a pena aceitá-la?Pelo que podia dizer, Elizabeth concluía que aquele rosto devia ter sido

feito de pura rocha… Mas, de repente, seus lábios se moveram de leve. Um sorriso? Ou teria sido uma ilusão provocada pelo movimento das chamas da tocha?

— Sei que Elizabeth, não foi sua prometida, meu senhor — lorde Perronet interferiu, querendo aliviar a tensão que sentia no ar. — Mas ela também é minha sobrinha e os termos do acordo de casamento não deverão ser alterados.

— Mas deveriam — Elizabeth falou mais uma vez. Não fazia a menor idéia de quais eram os tais termos, mas não permitiria que a ambição de seu tio lhe tirasse a única chance de liberdade que tinha. — Não sou a noiva que foi prometida a ele e isso deve ser levado em conta.

— Elizabeth, mantenha-se em seu lugar! — lorde Perronet avisou, alterado.

— Mas, meu tio, parece se esquecer de que não sou Genevieve. E lorde Kirkheathe não está recebendo a noiva que lhe foi prometida! Acredito que o dote deva ser aumentado, ou que deva haver algum outro tipo de compensação…

— Pelo amor de Deus, você ainda não é esposa dele para estar intercedendo a seu favor dessa forma!

— Meu tio, não é justo…— Justo?! -lorde Perronet gritou, voltando-se para encará-la e tentar de

alguma forma, fazê-la calar-se. — Justo seria aquela infeliz de sua prima ter permanecido virgem e não pular na cama do primeiro cavalheiro simpático que encontrou! Justo seria você saber exatamente onde é seu lugar e recolher-se à insignificância dele! Justo seria…

— Saia, lorde Perronet — cortou a voz singular de lorde Kirkheath.— Perdoe-me pela perda de controle senhor… — começou lorde

Perronet, em tom mais baixo. — É que estivemos numa longa e difícil jornada até aqui e… acabei me excedendo…

— Saia — ele repetiu.— Talvez Elizabeth esteja com a razão.. . Talvez uma alteração no

dote…Raymond levantou-se devagar e lorde Perronet com uma reverência,

retirou-se.Confusa e receosa, Elizabeth observou que lorde Kirkheathe voltava, a

sentar-se. Seria esse um bom ou mau sinal?, pensou. Esperou por alguns instantes mais como ele nada dissesse, decidiu quebrar o silêncio:

— Perdoe minha impertinência por falar em lugar de meu tio, senhor — pediu num tom que julgou ser apropriadamente humilde. Surpreendia-se com a facilidade com que conseguia mostrar-se submissa agora, muito mais do que quando estava diante da reverenda madre. Prosseguiu, então, em voz baixa: — Entretanto, acho que seja justo ajustarmos o dote.

— Por quê?

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— Porque não sou Genevieve.— Por quê? — ele repetiu.— Por que não sou Genevieve?Raymond negou de leve com a cabeça e esclareceu: — Por que seria justo?— Porque não sou a noiva que o senhor estava esperando quando fez o

acordo. Não sou igual á ela.— Não?Agora, ela tinha certeza de que havia a sombra de um sorriso nos lábios

de lorde Kirkheathe. Estaria rindo dela? Teria percebido que estava desesperada e teria achado graça nisso?

— Também quero saber por que quer se casar comigo? — observou ele.Elizabeth engoliu em seco diante de tal indagação, ela precisava

encontra uma resposta plausível. Seu futuro poderia depender do que dissesse agora.

— Meu tio fez um acordo com o senhor… E se Genevieve não pode cumprir sua parte nele, eu devo fazê-lo.

Raymond ergueu as sobrancelhas, mas nada disse, dando-lhe ensejo para continuar:

— Meu tio teme o quê possa acontecer se ele não cumprir o acordo. As sobrancelhas de Raymond ergueram-se ainda mais. — Quero me casar, senhor! Desta vez, ele baixou as sobrancelhas numa expressão sisuda. — Senhor, se não se casar comigo, ele vai me mandar de volta ao

convento e não quero voltar para lá! É uma vida miserável a que se vive lá dentro! — Elizabeth aproximou-se da mesa, as mãos em súplica. — Se aceitar casar-se comigo, meu senhor, prometo ser uma boa esposa. Não reclamarei de nada e não pedirei nada! Apenas… — Ela se interrompeu, sabendo que não deveria prosseguir.

Mas Raymond indagou, curioso.— Apenas…— Apenas filhos. É um desejo que sempre tive, o de ser mãe.Outro sorriso, tão suave quanto o primeiro, curvou de leve os lábios dele.

O que Elizabeth não daria para saber o que ele estava pensando!— Sei que minha aparência não é das melhores — ela prosseguiu, ainda

mais humilde. — Portanto, se desejar ter uma amante, não o culparei por isso.As sobrancelhas se ergueram mais uma vez, enquanto Elizabeth corava

diante de seu olhar perscrutador.— Eu me manterei atenta a meus serviços de casa e jamais irei interferir

na administração de seus bens.Raymond continuava erguendo as sobrancelhas e Elizabeth buscava, no

fundo da mente, as outras observações que ainda se lembrava de ter ouvido da boca de lady Katherine sobre os deveres de uma boa esposa e mãe a fim de viver uma vida familiar senão feliz, pelo menos, sem conflitos.

— Serei uma boa anfitriã para seus amigos e para sua família,

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procurando deixar nosso lar confortável para todos eles, para o senhor, e para qualquer convidado que traga para cá.

A expressão no rosto dele se alterava um mínimo, deixando-a ainda mais confusa quanto ao que deveria dizer. Talvez ele não quisesse que fosse tão hospitaleira…

— Vá buscar seu tio — ouviu, num sobressalto.O que significavam aquelas palavras? Pensou desesperada. Não eram

uma aceitação e nem uma dispensa. Apenas uma ordem.Sabia que não havia motivos para hesitar, ou continuar falando. Ele era

um guerreiro, um comandante. Já tinha tomado sua decisão e nada havia que ela pudesse fazer para modificá-la!

Nisso, ele agia como a reverenda madre, a qual decidira, assim que pusera os olhos em Elizabeth pela primeira vez, que ela era um grande problema em formato de gente, e nunca mudara de opinião, apesar de todos os esforços de Elizabeth para convencê-la do contrário.

Sem maiores esperanças, ainda assim, ela não queria dar-se por vencida. Precisava tentar ainda.

— Por favor, meu senhor — implorou. — Aceite-me. E, à não ser que seja um homem muito mau, serei a esposa mais devotada e fiel que um homem poderia ter.

Raymond a encarou-a por alguns segundos e perguntou: — Como sabe se sou ou não um homem mau? — Não sei: Mas não acho que seja, pois, mesmo no convento, teríamos

ouvido falar do senhor, se fosse mau. Os atos ruins de um homem correm mais rápido do que os bons…

— Nunca ouviu falar de mim?— Não, até que meu tio foi ao convento.Elizabeth pensou tê-lo ouvido suspirar.— Vá buscá-lo — Raymond repetiu a ordem.— Senhor, por favor, não me mande de volta! Eu preferiria morrer!— Ou casar-se comigo!— Sim! — assim que falou, ela se amaldiçoou por ter dito tal palavra.

Que chances teria agora?!Viu-o apontar para a porta, imponente, e percebeu que não havia mais

esperança.Baixou a cabeça, mas ergueu-a em seguida, e, com o resto de dignidade

que ainda sentia foi até aporta e abriu-a, vendo que seu tio aguardava, impaciente, do lado de fora.

— Ele quer vê-lo, tio — disse apenas.Os olhos de lorde Perronet se arregalaram, como numa pergunta muda,

mas Elizabeth não lhe fez nenhum sinal, bom ou ruim. Olhou para trás, por sobre o ombro esquerdo, para o homem que não conhecia e que, sabia agora, jamais conheceria.

— Vou esperar aqui fora — disse, dando um passo no limiar da porta, mas a voz rouca de Raymond ordenou:

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— Fique!Ele queria que aguardasse para ouvir sua recusa pessoalmente,

Elizabeth imaginou, entristecida. Sentia-se inferior a um verme… Mas voltou-se, retomando à sala. Ergueu o rosto, olhando-o de frente, quase desafiadora.

— Senhor? — apressou-se lorde Perronet, colocando-se diante da cadeira em que Raymond ainda permanecia.

— Vou me casar com ela.Ele acabava de dizer que a aceitava! Elizabeth agradecia aos céus, sem

ainda poder acreditar de todo. Não teria mais que voltar ao convento! Baixou a cabeça, permanecendo ali, parada, estática.

Muitas vezes já desmaiara na vida, mas sempre por falta de alimento ou devido às longas e cansativas vigílias durante as quais as freiras a obrigavam a contemplar a natureza terrível de seus pecados. Nunca antes sentira-se tonta devido ao alívio. Agora, porém, isso estava acontecendo!

De repente, dois braços fortes a ampararam, levando-a até um banco que não tinha notado ainda, por estar envolto nas sombras. Não vira um homem durante treze anos e, por muito mais tempo ainda, não sentira o toque de um. E nenhum homem a segurara daquela forma, nem mesmo para ajudá-la.

Crispou os dedos nos antebraços que a prendiam ainda, sentindo os músculos que se contraíam por baixo do tecido escuro de lã. Sentiu a respiração se acelerar involuntariamente ao sentir-lhe o cheiro, tão masculino, tão diferente do das mulheres, ou de seu tio, que sempre tivera um estranho gosto por perfumes orientais.

Queria poder inclinar a cabeça sobre o peito largo que estava tão próximo, sentir-se ainda mais protegida, mas não ousou fazê-lo.

— Vinho? — Raymond ofereceu enquanto a ajudava a sentar-se.— Não… sim…— Vinho, Perronet! Ali! — Lorde Kirkhathe apontava para um aparador,

num dos cantos escuros da sala, e o outro nobre apressou-se em pegar a garrafa.

— Está doente? — Raymond perguntou.— Não, meu senhor — ela respondeu, antes de tomar o primeiro gole da

bebida. Depois, erguendo os olhos para o rosto dele, completou: — Estou feliz.Ele afastou-se abruptamente, como se Elizabeth lhe tivesse cuspido o

vinho na face, depois voltou-se, e caminhou até a cadeira. Ao que parecia, Elizabeth se precipitara. Mais uma vez.

Lorde Kirkheathe olhou para Perronet, depois apontou para outro dos cantos escuros, onde havia outra cadeira, fazendo-o apressar-se em trazê-la para junto da mesa.

— Estou com o documento aqui, senhor, pronto para ser assinado, com uma cópia, é claro — explicou lorde Perronet, tirando dois rolos de papel da bolsa de couro que trazia consigo. — Agora, quanto às alterações no dote.

Elizabeth mais sentiu do que viu quando, Raymond lançou-lhe um olhar, antes de dizer:

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— Sem alterações.Quando ela ergueu à cabeça, ele já não a fitava, mas a seu tio, o qual

parecia estar tão atônito quanto ela.— Deixe como está — lorde Kirkheathe acrescentou.— Mas não sou Genevieve… — Elizabeth protestou ainda, levantando-se

devagar.— Acredito que lorde Kirkheathe esteja mais do que ciente disso agora —

comentou seu tio, ainda parecendo aborrecido com ela. — Não vejo necessidade de ficar lembrando-o do fato a todo momento.

Voltando-se para Raymond, continuou com expressão ambiciosa, o que deixou Elizabeth horrorizada:

— A colheita não foi tão boa quanto eu esperava este ano. — Quando será o casamento? — ela interferiu, sem poder se conter.

Queria colocar um ponto final na tentativa do tio de alterar o contrato de casamento a seu favor, como era claramente seu intento. Não podia permitir que ele provocasse a ira de lorde Kirkheathe.

— Amanhã, ao meio-dia — Raymond respondeu.— Excelente, meu senhor! — Perronet exclamou, com um sorriso

satisfeito. — Quanto mais cedo, melhor. E, se aquele cavalo não tivesse machucado a pata…

Elizabeth aproximou-se da mesa.— Por que esperar até amanhã? perguntou, ansiosa. — O documento

está aqui, pronto para ser assinado! Não vejo necessidade de esperarmos, a não ser que não haja um padre disponível…

Raymond olho-a calmo.— Donhallow tem um padre — informou. — Entao, senhor, por que não nos casamos hoje?— Elizabeth, cale a boca! Ouviu o que lorde Kirkheathe disse! —

admoestou seu tio. — Ele marcou a data, para amanhã e você não…Raymond ergueu a mão esquerda, silenciando-o com a força do gesto.

Por alguns momentos, Perronet olhou para aquela mão, sem saber o que fazer, até que Raymond num gesto impaciente mostou-lhe que queria ver o documento.

— Vamos nos casar hoje — arrematou Raymond.Elizabeth respirou fundo, satisfeita. Viu quando lorde Kirkheathe ergueu

os olhos de sobre o documento e seus olhares se encontraram por instantes. Sabia que ele a queria, viu isso naqueles olhos escuros e misteriosos. Por

tudo o que ela dissera ou haveria algo mais? indagou-se.Não tinha certeza. Ainda assim, sabia que, se ele não quisesse, não

haveria poder na terra que o tivesse feito aceitá-la como esposa. E Elizabeth estava certa de que queria sentir-se nos braços dele novamente, poder descansar a cabeça em seu peito, sentir seu toque. Queria dar-lhe filhos.

Ele voltou a ler o documento e Elizabeth deixou que seus olhos passeassem sobre sua figura; como se fosse uma pintura a ser admirada no teto da capela do convento…

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Ele se levantou, então e, indo até um armário próximo, trouxe de lá uma pena e um pequeno frasco de louça. Então, enquanto lorde Perronet mordia o lábio inferior, ansioso, assinou seu nome. Depois, com calma e deliberação, Raymond leu a seguinte folha do documento e, com a mesma classe, assinou-a também. Depois tornou a olhar para Elizabeth, então chamou-a:

— Venha — E estendeu-lhe a mão direita. Trêmula e grata, ela aceitou a mão que lhe era oferecida e permitiu que

ele a acompanhasse para fora da sala. Conforme caminhava, prestava atenção ao que não notara antes: a torre por onde passavam era feita de pedras enormes, bem como o resto do castelo, muito sólido e cinzento. Um corrimão tinha sido cravado na rocha e os degraus estavam gastos. Donhallow era muito antigo, em especial aquela parte por onde andavam agora.

De repente, a vontade de espirrar tomou-a , fazendo-a cobrir boca e nariz com a mão.

— Lã molhada sempre me faz espirrar — explicou depois, como numa desculpa.

Raymond parou de andar de imediato fazendo-a imitá-lo. Olhou-a de cima abaixo, dizendo apenas:

— Espere aqui. E voltou para o solar, seguindo ainda mais adiante, para dentro da torre,

deixando-a nas escadas. Seu tio apareceu à porta do solar, viu-a ali, sozinha, e aproximou-se, admoestando-a:

— O quê, em nome dos céus, você fez agora?!— Espirrei.— Você… o quê?!— Espirrei. Por causa da lã molhada. E lorde Kirkheathe disse-me para

esperar aqui.— Muito engraçado, minha sobrinha! — Mas ele não gostara em nada da

brincadeira. — Devia ter sido humilde e dedicada no solar e assim eu poderia ter baixado o valor do dote…

— Ou pago mais… Diga-me, meu tio, barganhou com ele também quanto a Genevieve?

Não houve resposta, e seu tio não a olhava, e Elizabeth prosseguiu:— Não o fez, tenho certeza. Ele ditou os termos e o senhor aceitou

porque sabe que lorde Kirkheathe não ê homem que aceite barganhas. Então, por que achou, que poderia barganhar agora? Poderia ter estragado tudo…

— Ou ter conseguido termos melhores para o acordo.— Melhores para o senhor…Agora, ele a encarava.— E você é assim tão esperta em assuntos masculinos? Conhece-os

apenas em olhar para eles, não? — Havia ironia em suas palavras.— Conheço o suficiente para saber quando devo ficar calada.— Você, calada?! — Ele zombou — O que foi todo aquele falatório no

solar, então? Pelas chagas de Nosso, Senhor, mocinha, você devia ter ficado calada, como qualquer mulher faria!

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— Se tivesse me calado, podia estar saindo deste castelo agora mesmo, ao invés de estar prestes a me casar; O que eu quis dizer meu tio, é que sei quando falar e quando devo calar.

— Espero que sim, ou as coisas poderão ficar bem piores para você, mesmo que ele pareça querê-la agora.

Elizabeth não entendeu o que aquelas palavras continham.— O que quer dizer com isso? — perguntou, desconfiada.— Ele pode não te feito objeções a sua audácia hoje, mas poderá fazê-lo

assim que se tornar sua esposa. Deve lembrar-se disso, Elizabeth. Lorde Kirkheathe não é um homem de bom coração, e há coisas que não sabe a seu respeito.

— Que coisas?

Capítulo 3

A expressão de lorde Perronet manteve-se fechada.— Nada que evite o casamento — respondeu, seco.— Porque quer continuar aliado dele, eu presumo…Elizabeth não acreditava ter se enganado quanto lorde Kirkheathe. No

entanto, talvez estivesse tão determinada a não voltar ao convento, que tinha visto nele o que queria ver e não a realidade…

— Meu tio, devo imaginar que, mesmo sendo ele a personificação do mal, o senhor não se importaria desde que as famílias estivessem unidas e não diria uma palavra sequer de aviso para a noiva a ser sacrificada por isso?!

— Não, não! — Perronet Protestou. — O que quero dizer é que você tem o dom de aborrecer as pessoas, Elizabeth! E não deve aborrecê-lo! Não pode negar o fato de que ele não é exatamente, um homem, cordial… E eu não quis dizer nada além disso.

— Mas há, algo além — ela insistiu. — Posso ver isso em seu rosto. — Prefere voltar ao convento?Elizabeth pensou no convento e no sorriso de satisfação que haveria no

rosto da reverenda madre, se voltasse. Com certeza, não se enganara com o homem que estava prestes a desposar, imaginou.

Até mesmo no convento contavam-se histórias sobre homens maus e lorde Kirkheathe jamais fora mencionado lá… Além do mais, ele viera em seu socorro quando quase desfalecera. Se fosse cruel e egoísta, não o teria feito… E teria discutido sobre a alteração no dote, pois era um direito seu fazer tal coisa. Na verdade, não parecia estar feliz, mas nem ela mesma parecia estar mais feliz do que ele…

Elizabeth sabia também que não deveria julgar ninguém apenas pelas aparências. Aprendera tal lição de modo bastante amargo alguns meses depois de sua chegada ao convento, quando contara à gentil e amável Gertrudes sobre seus planos para roubar algumas maçãs do refeitório da

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reverenda madre. Gertrudes a incentivara e logo em seguida a denunciara apenas para cair

nas graças da freira. Talvez, se tivesse prestado mais atenção ao rosto de Gertrudes, a seu modo de ser, suas atitudes, não tivesse sido enganada… olhara com muita atenção para lorde Kirkheathe e agora era mais esperta do que antes.

— Não, meu tio, não desejo voltar ao convento — respondeu tranqüila. Ouviram passos na escada e logo em seguida lorde Kirkheathe apareceu,

trazendo algumas roupas nos braços.— Presente de casamento — disse, entregando as roupas a Elizabeth. —

Pedirei a uma criada que a leve até meu quarto para que mude de roupa. Senhor, venha comigo!

Antes que Elizabeth pudesse dizer alguma coisa, Raymond já continuava a descer as escadas. E, sem uma palavra, seu tio o seguia.

Ela passou as mãos pelo tecido das roupas, sentindo-o suave como uma pétala de rosa. Uma senhora de meia-idade apareceu em seguida, apressada, informando:

— Devo levá-la aos aposentos de meu senhor.Elizabeth assentiu e seguiu-a além da entrada do solar. Quando

chegaram ao topo da torre, a serva abriu a pesada porta de carvalho, indicando o interior, para que entrassem.

O cômodo era frio: Havia uma única lamparina a óleo sobre uma mesa próxima à cama e o cheiro forte de couro impregnava o ar.

— Vou acender o fogareiro — informou a mulher, aproximando-se para pegar as roupas que Elizabeth ainda segurava. Colocou-as então, sobre a enorme cama, na qual uma colcha de pele sobressaía no aspecto geral do aposento. — Obrigada, senhora…

— Rual, senhora. Meu nome é Rual. Elizabeth hesitou por alguns momentos, mas sua curiosidade acabou

sendo mais forte:— Está no castelo há muito tempo Rual?— Vim, para cá há nove ou dez anos, minha senhora.— Lorde Kirkheathe é um bom patrão?A serva deu de ombros, enquanto procedia na atividade de acender as

brasas do fogareiro. Elizabeth arrependia-se de ter perguntado.Podia ainda lembrar-se de lady Katherine dizendo-lhe que a dona de um

castelo, jamais devia tornar-se íntima dos criados para que estes não perdessem o respeito. Apesar do conselho, ela ainda queria saber mais:

— Eu não gostaria de me casar com um homem cruel…— Ninguém gostaria — comentou Rual, tornando a colocar sobre a mesa

a lamparina que usava para ajudar a acender as brasas.Ao que parecia, os servos de lorde Kirkheathe eram tão reticentes

quanto ele próprio…— Vi a cicatriz ao redor do pescoço dele. Ele se feriu? Foi por isso que

sua voz ficou assim?

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Rual foi até a cama e pegou as roupas.— A garganta dele foi apertada — informou, em tom casual, sacudindo

as peças.A revelação deixou Elizabeth pensativa. Ele tivera a garganta apertada,

de alguma forma violenta e, ainda assim, não morrera. Mas parecia ser forte e saudável, o que devia explicar o fato.

— Quando isso aconteceu? — continuou, a perguntar.— Antes de eu vir para cá, senhora.— E como… — Mas ela se interrompeu quando a serva abriu outra das

peças, que se revelava um belíssimo vestido de veludo escuro bordado com fios de ouro e prata no decote e nas mangas. Era o mais belo vestido que já vira na vida.

— Ele tem um gosto excelente! — comentou:A mulher não respondeu, ajeitando a roupa cuidadosamente sobre o

leito. Estaria pensando que o gosto dele era fraco no que tocava a escolha da noiva ou imaginava que Elizabeth estava a espera de um elogio? Não… Elizabeth quase riu. O dia em que esperaria receber um elogio seria um dia de milagres…

— Acho que não devemos nos demorar, senhora — aconselhou a criada com a sabedoria de quem conhecia o dono do castelo.

— Não, é claro que não. — E passou a despir-se, tirando primeiro a capa e depois a touca, que detestava.

Passou a mão pelos cabelos, soltando-os, sentindo as raízes doloridas por estarem presas há tanto tempo. Em seguida livrou-se do vestido simples, que aprendera a usar desde que chegara ao convento. Felizmente, suas roupas de baixo ainda estavam secas.

Apesar da pressa, aproximou-se do vestido com cuidado, de modo quase solene, como se temesse tocá-lo. Afinal, era delicado e luxuoso demais para ela…

— Deixe-me ajudá-la,senhora — ofereceu Rua!. Elizabeth ficou parada, erguendo os braços, e o vestido, colocado pela serva, caiu sobre seus ombros com graça e suavidade.

— Está um pouco largo — Rua! comentou. — Mas vou apertar os laços e vai ficar bom.

Maravilhada com a beleza do vestido, Elizabeth só conseguia passar as mãos com suavidade ao longo da cintura, e admirar a qualidade do que vestia.

— Como quer que eu prenda seus cabelos, senhora? Com tranças? O vestido estava agora ajustado, mas continuava um pouco largo na

cintura e Elizabeth imaginou que seus longos cabelos serviriam para encobrir o pequeno franzido que ficara por trás dos laços.

— Não, não quero tranças.— Então, deixe-me penteá-los. — A criada foi até um móvel, num dos

cantos, para pegar a escova.Sem tranças, sem toucas, sem nada que os prendesse… Elizabeth não

conteve o sorriso.

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— Parece estar muito feliz, minha senhora — Rual comentou.— E não deveria estar? Hoje é o dia do meu casamento!Uma expressão um tanto preocupada apareceu, no rosto da mulher, que

observou:— É verdade. E todos deveríamos estar felizes, eu suponho. Não há

dúvidas de que nosso senhor queira muito um herdeiro.— É esse meu maior desejo também — Elizabeth confessou, vendo que a

expressão no rosto da criada se acentuava. — Por quê? Acha estranho?— É que… imaginei…— Sim? Que eu não iria querer cumprir meus deveres de esposa?Rual parecia hesitar. Aproximou-se, trazendo escova e pente, e

começou, incerta.— Não o acha… assustador, minha senhora?— Assustador? — Elizabeth pensava. A voz poderia ser… diferente,

estranha, mas apenas isso.— Não. Intimidador, talvez. Ele a assusta?— Não. — Rual parecia hesitar em usar o pente.— Acha que ele se importaria, se eu usasse seus objetos? — Elizabeth

indagou, percebendo sua atitude.— Acho que não. Afinal é sua noiva…Sim, era sua noiva, Elizabeth repetiu para si mesma, portanto, ele não

deveria, se importar se usasse alguns de seus objetos pessoais.

— O cão estava novamente a seus pés e Raymond mantinha o olhar fixo nas chamas da enorme lareira do hall. Padre Daniel esperava, paciente, a seu lado, pronto para pronunciar as palavras que o uniriam a Elizabeth Perronet.

Pouco adiante, lorde Perronet se instalara a uma das mesas preparadas para a festa de casamento e embebedava-se aos poucos com o excelente vinho da casa. Pelo menos, assim, mantinha-se quieto, pensou Raymond lançando-lhe um olhar rápido.

Os criados agitavam-se para lá e para cá, cuidando de pratos e bebidas. Toalhas e doces, mas Raymond não parecia vê-los. Seus pensamentos estavam voltados para seu outro casamento; há quase vinte anos. Estivera tão feliz e orgulhoso naquele dia! Alicia estava linda, encantadora, graciosa… tudo que um homem poderia desejar numa esposa.

Mas ele fora jovem demais para perceber que aquela beleza e aquele encanto eram fugazes e que a vaidade dela seria a única coisa que duraria ainda muito tempo. Elizabeth Perronet também era bela, mas sua beleza era de um outro tipo. Suas feições eram adoráveis, mas havia um fogo em seus olhos, uma inteligência aguçada, uma determinação… E um orgulho, mesmo quando ela lhe implorara para que a aceitasse…

Estava impressionado. Ela não era uma criatura comum, governada pelo capricho e pela presunção.

Entretanto, Raymond não podia negar as outras qualidades de Alicia, ela fora muito amorosa até aquela fatídica noite quando, surpreendentemente entorpecido, ele sentira a mordida dolorida da tira de couro em sua garganta,

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a pressão crescente que cortou sua respiração, a dor aguda, o sangue…Cadmus ganiu a seu lado e foi só então que Raymond deu-se conta de

que suas mãos crispavam-se nas laterais da cadeira a ponto das juntas ficarem brancas. Percebeu também que sua noiva aguardava, ao final das escadas da torre tão paciente quanto padre Daniel.

Levantou-se, com toda a majestade que lhe era peculiar, e observou-a aproximar-se. Os cabelos castanhos pareciam flutuar sobre seus ombros, como se tivessem vida própria, as leves ondas captando a luz das tochas espalhadas para iluminar o ambiente.

Mas não havia luz naquele grande hall que se comparasse à que estava nos olhos de Elizabeth e no sorriso que ela lhe oferecia, suave e encantador.

Raymond lembrou-se das palavras dela no solar. Não saberia de fato, o quanto era bonita? Teriam as freiras Incutido tamanha modéstia em sua mente? Ela lhe parecera tão sincera quanto a isso e em tudo mais que dissera…

O vestido caíra-lhe bem e não parecia guardar as marcas do tempo. Comprara-o em Londres, um presente para Alicia… Pensara em queimá-lo centenas de vezes, mas agora estava satisfeito por não tê-lo, feito.

Cadmus alcançou-lhe a mão em busca de um afago. Desviando os olhos para o animal, Raymond lembrou-se, mais uma vez, de que não devia confiar em ninguém. Em especial, em nenhuma mulher, não importava o quanto fosse bonita nem o quanto lhe sorrisse. Ficaram-lhe as ruínas de sua voz para lembrá-lo disso pelo resto da vida.

O tio da noiva levantou-se, uma expressão de absoluto triunfo animando-lhe o sorriso imbecilizado pelo álcool. Raymond imaginou que deveria tê-lo feito aumentar o dote ao invés de deixar se impressionar tanto por Elizabeth.

Há muito tempo ninguém ousava discutir à sua frente. E não tinha percebido a energia que aquele tipo de discussão poderia provocar, em especial numa mulher. Ela estivera tão movida pela paixão!

Quanto mais poderia deixar-se levar?Mas isso não importava, desde que lhe desse um herdeiro.

Raymond não tinha a menor intenção de sentir o que fosse por sua esposa, além de uma certa tolerância. E, já que não podia mais confiar em mulher alguma, também não amaria nenhuma delas.

— Tem um anel, meu senhor? — perguntou, o padre, em voz suave.Raymond pegou um que pertencera à sua mãe e que agora estava

em seu dedo mínimo e entregou-o ao padre enquanto Elizabeth colocava-se a seu lado. Padre Daniel fez o sinal da cruz sobre a peça de ouro e devolveu-a. Raymond, então voltou-se e pegando a mão de Elizabeth, colocou o anel em seu dedo anular da mão esquerda. Fazia-o sem encará-la, enquanto o padre pronunciava as palavras apropriadas

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para aquele momento:— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, eu os declaro

marido e mulher, diante dos olhos de Deus, Nosso Senhor, e diante das leis de nosso reino. Pode beijar a nova, meu senhor.

Raymond olhou para o padre com agudeza. Não queria beijá-la. Não ali, naquela sala cheia de gente. Na verdade, nunca. Beijar o fazia lembrar-se demais de Alicia.

— É para selar a promessa, meu, senhor — o padre sussurrou tenso. — Não é estritamente necessário, mas as pessoas ficarão desapontadas se não o fizer.

Ele não se importava se ficariam, ou não. E, de repente, sua noiva tomou-o pelos ombros e o fez voltar-se para dar-lhe um beijo apaixonado nos lábios.

Raymond não poderia ter ficado mais surpreso se ela tivesse retirado uma faca do meio das saias para matá-lo.

Elizabeth achegou-se mais para murmurar:— Quero que todos aqui saibam que estou me casando com o

senhor por, minha livre vontade.O que poderia responder a isso, a não ser:— Venha até a mesa.Ela tomou-lhe o braço, de um modo que se parecia muito mais com

um carinho.— Vai me apresentar seus criados e agregados? — Não. — E não a olhou para ver se a resposta seca a afetara ou

não.Conforme tomavam seus lugares à enorme mesa, Raymond

assentiu em direção ao padre, o qual declarou a todos, já que seu senhor não podia fazê-lo:

— Dêem as boas vindas à nova dona deste castelo, lady Elizabeth D'Estienne!

Capítulo 4

Assim quê padre Daniel abençoou a festa, Elizabeth sentou-se na cadeira com formato de trono, ao lado de seu marido, imaginando a real extensão de todos os erros que, já cometera. Que seu marido estava zangado, não havia a menor dúvida. Até um cego poderia sentir a raiva que havia nele. Não deveria tê-lo beijado, nem lhe falado no tom que usara quando ele se voltara, surpreso por sua atitude. Além disso, deveria ter imaginado que, com a voz que lhe restara, ele jamais poderia apresentá-la a seus convidados.Ainda assim, Elizabeth não se arrependia do beijo, pois era como disser

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a ele: queria que todos soubessem que se casara por sua livre e espontânea vontade. Assim, ninguém jamais pensaria em usá-la contra seu marido ou em pedir sua ajuda em prol de causas individuais. Isso Lady Katherine também lhe ensinara.Aliás, lady Katherine falara sobre quase tudo que uma esposa precisaria saber para sair-se bem num casamento, pensou Elizabeth, lançando um olhar de soslaio ao homem sentado tão quieto, a seu lado.Sim, ela lhe ensinara quase tudo, exceto como lidar com um marido que não tinha expressão alguma no rosto…Lembrava-se das palavras de lady Katherine dizendo-lhe que uma boa esposa tinha o dever de agradar seu marido, de adivinhar-lhe os desejos e amoldar-se a eles.Talvez devesse ser calada também… Mas esperava que não. Podia ser humilde e mansa, mas, calada… Isso sempre lhe fora mais penoso do que suportar as surras.Alguns criados começaram a entrar trazendo a comida. O cheiro agradável do Pão assado penetrou-lhe as narinas e seu estômago, acostumado a comida mais pobre, pareceu alegrar-se, roncando, deixando-a extremamente envergonhada, pedindo a Deus que ninguém tivesse ouvido…Perto a seu cotovelo estava uma belíssima taça de madeira e prata, para o vinho. Beberia vinho nessa noite, provavelmente de alta qualidade, como já provara no solar. Além do mais, o estado de embriaguez de seu tio provava estar certa.

Ele se considerava um perito em bebidas e, se considerasse que o que estava sendo servido era de má qualidade ou procedência, teria apenas experimentado e não bebido tanto. Ao julgar pela cor de seu nariz avantajado, o vinho era excelente.Uma criada colocou um grande pão diante de Elizabeth o qual exalava um aroma delicioso, ela teve de conter-se para não agarrá-lo e dar-lhe uma mordida vigorosa. Quanto à manteiga que o acompanhava, numa delicada travessa também de prata, não havia nem o que comentar. Suave, levemente amarelada, colocada em formato de pequenas bolinhas, numa travessa ao lado.Elizabeth forçava-se a manter uma atitude digna. Lembrava-se de que seu tio a aconselhara a ser sempre cautelosa, coisa que, esquecera por instantes, no momento da cerimônia. Ainda assim, o aroma daquele pão a levava à loucura e rezava para que seu marido o partisse logo.Quando ele o fez entregando-lhe uma fatia, Elizabeth apressou-se em pegar a faca ao lado de seu prato para espalhar a manteiga sobre, o miolo ainda quente. Mordeu-o em seguida e achou tão delicioso que teve de cerrar os olhos para saboreá-lo melhor.

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— O que é isto? — ouviu e voltou-se para ver que lorde Kirkheathe a olhava, surpreso. — Você gemeu…— Gemi — Ela sentia o rosto aquecido, sabia que estava mais corada do que, o normal. — É ó pão. Está muito bom!— Mas é apenas pão.— Posso assegurar-lhe, meu senhor, que não há nada melhor do que o sabor de um bom pedaço de pão. Na Verdade, poucas vezes experimentei algo tão delicioso e acho que posso sentir o sabor em meu corpo todo, até os dedos dos pés. — E baixou os olhos, encontrando os do cachorro, fixos nela.Afastou o pão dele e virou a cadeira um pouco para o lado, para evitá-lo.— Cadmus não vai roubar-lhe o pão. — lorde Kirkheathe explicou. — A menos que o deixe cair. Mas… noto que está, tremendo.

Senhor, não gosto de cães. Em especial os grandes. A reverenda madre tinha um cachorro e ele… — Elizabeth interrompeu-se, notando intensidade no olhar de seu marido. Ele voltou-se para seu prato, e então, deixando de dar-lhe atenção. Ela olhou mais uma vez para o cachorro e, sem acreditar que em vão tentaria roubar-lhe o pão deu-lhe as costas ainda mais.Outros servos entraram, todos homens, trazendo jarros enormes, que Elizabeth imaginou conterem vinho. Ainda mastigando seu pão, ela viu um deles se aproximar e encher sua taça.Seu fio, como notou logo, engoliu o conteúdo da sua de uma só vez. Quando levou o vinho aos lábios, Elizabeth notou que ele era ainda melhor do que o pão. Tomou dois goles grandes, lentos, sentindo a bebida aquecê-la por dentro, fazendo-a relaxar um pouco. Jamais provará algo tão bom. Seria tudo em Donhallow tão bom quanto o pão e o vinho? E todos os dias? Talvez não, concluiu. Aquela era uma noite especial. Uma festa. Sua festa de casamento. Com, um homem que nunca vira antes e que se mantinha quieto e sério a seu lado.Na verdade, o cão prestava mais atenção a ela do que lorde Kirkheathe. Talvez devesse ter se casado com o cão, imaginou, divertida.E riu, fazendo com que a taça em sua mão balançasse. Apressou-se em controlar seus movimentos, pois não queria respingar, a bebida na bela toalha de linho da mesa, nem em seu precioso vestido de veludo. Teria conseguido, mas a mão forte de seu marido aparou a taça, afastando-a.— Sinto muito, senhor — Elizabeth murmurou. — Também não bebo um vinho tão maravilhoso há muito tempo.Ele nem mesmo a olhou. Ela não era Genevieve, mas… teria lorde Kirkheathe de ser tão sério em sua noite de casamento? pensou, um tanto ressentida.— Peço desculpas por tê-lo beijado também. — ela prosseguiu.— Não

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achei que fosse se importar tanto assim, ou não o teria feito. Prometo não fazê-lo novamente.

Ele se voltou, muito lentamente, e ergueu as sobrancelhas. E, apesar de ter acabado de beber, Elizabeth sentiu a boca seca. E de imediato arrependeu-se por ter dito que não voltaria a beijá-lo.Viu-o afastar a taça deliberadamente de seu alcance e engoliu em seco, desviando o olhar do dele. Sua noite de núpcias estava cada vez mais próxima e seu coração batia acelerado. Era como se pudesse senti-lo pulsando em seus ouvidos. E, sentindo uma espécie diferente de desespero, estendeu a mão e tomou a taça, bebendo o resto do vinho que estava nela.— Estou com muita sede, senhor — explicou, mas sem ousar encara-lo. — E com muito calor também.— Está? — A pergunta não fora mais do que um sussurro. – E um pouco tonta.— Então coma mais.Elizabeth assentiu, sentindo-se aliviada por ver que os criados agora traziam os pratos principais. E, quando o servo aproximou-se novamente com a jarra para encher-lhe a taça novamente, lorde Kirkheathe não o impediu, como ela achou que faria.— Esta mesa está maravilhosa, senhor — ela elogiou, vendo as carnes e tortas sendo colocadas adiante de si. — Sempre come tão bem ou é por que hoje temos uma festa?— Sim — respondeu ele, passando os olhos firmes pelo ambiente, numa atitude que os criados pareciam esperar e temer ao mesmo tempo, pois observavam-no e, vendo que eram notados, apressavam-se em agir da melhor forma possível.— Sempre come tão bem? — Elizabeth repetiu. — É de admirar que nem o senhor e nem seus homens estejam gordos…— É uma festa especial — ele corrigiu.— Ah, sim…Lorde Kirkheathe voltou-se, as sobrancelhas erguidas novamente, o que a fez explicar depressa:— Sinto muito se pareci desapontada. Tenho certeza de que deve ter uma cozinheira excelente e criados maravilhosos. Para ser sincera, meu senhor, acho que apenas o pão me bastaria para, viver feliz…

Um muito breve sorriso apareceu nos lábios dele quando acrescentou:— E o vinho.Elizabeth corou mais uma vez.— Não sou uma beberrona, posso garantir senhor. É que o vinho no convento, estava sempre azedo, mal podíamos bebê-lo. Quanto a este…

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é excelente!— Bem, deveria ser. — Por quê? É muito caro?Ele assentiu. Lorde Perronet levara-a a crer que seu marido era um homem rico e, se fazia questão de mostrar o quanto seu vinho era caro, talvez fosse avarento também, pensou, talvez fosse isso o que seu tio tentara lhe dizer… Isso também explicaria a ausência de música na festa, a falta de menestréis ou trovadores para alegrar o ambiente…— Coma — seu marido ordenou-lhe, observando a comida ainda sem ter sido tocada, em seu prato.— Eu gostaria, mas… tenho receio de que meu estômago estranhe tanta comida… Sabe, não estou acostumada a tanta variedade e não quero ter uma indigestão esta noite.As sobrancelhas de Lorde Kirkheathe arquearam-se outra vez, como se ela tivesse dito algo de escandaloso e Elizabeth corou violentamente ao imaginá-lo tomando-a nos braços. Levantou-se, então, sentindo-se levemente tonta, e comunicou:— Acho que… se não haverá nenhum entretenimento, eu deva me retirar, senhor…— Mas a noite mal começou.— Este foi um longo e cansativo dia para mim. Por favor, fique com seus convidados. Rual poderá me ajudar.Raymond nada disse e, de repente, um silêncio expectante tomou conta da grande sala. Podia-se apenas ouvir a respiração pesada de lorde Perronet, adormecido sobre a mesa.Elizabeth não sabia o que dizer ou fazer. Queria apenas ficar sozinha por algum tempo; longe dos olhos frios de seu marido para poder pensar bem no que estava acontecendo em sua vida e preparar-se para… o que estava por vir.

Voltou-se e sentiu que a sala girava. Agarrou-se ao encosto da cadeira para recuperar o equilíbrio e, como antes, sentiu os, braços dele ao seu redor. Mas, dessa vez, lorde Kirkheathe ergueu-a do chão.— Senhor! — ela se surpreendeu.Ele nada disse e seu rosto não traiu a menor emoção enquanto caminhava com ela nos braços em direção à escadaria da torre. Ainda chocada, Elizabeth olhou por cima de seu ombro, vendo que o cachorro os seguia de perto.— Boa noite! — disse a todos, sentindo que deveria pronunciar alguma espécie de despedida. Seu marido mantinha-se calado. O que poderiam estar pensando lá

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embaixo? Elizabeth indagava-se. E, se lorde Kirkheathe considerara seu beijo e sua sede como algo indigno, o que não dizer do que acontecia agora?Mas não queria pensar. Abraçou-se ao pescoço dele, deixando-se carregar, solta, entregue.— Quando eu era pequena — lembrou-se e não pôde deixar de contar — eu costumava sonhar em ser carregada assim. Mas não achei que isso fosse, de fato, acontecer algum dia. E, se alguém me dissesse que isso iria suceder uma semana trás, eu não acreditaria…Raymond não falava.— Acho que nós dois esquecemos nossas boas maneiras hoje. — Elizabeth insistiu, mas ainda assim não houve resposta. Ele apenas seguia subindo. Ela prossegui: — Podia ter deixado que eu viesse com Rual…— Poderia ter caído.— Mas não,estou bêbada…— Não?— Não. Eu lhe disse, foi o pão tão delicioso. — Ela inclinou a cabeça, apoiando-se ao peito do marido, sentindo o tecido de lã, de sua túnica um tanto rude contra seu rosto. — Bem, talvez, tenha sido o vinho, também, mas só um pouquinho… Não se zangue comigo, senhor, por favor. Prometo ser melhor amanhã. É que este foi um dia tão estranho…Estaria ele rindo? Indagou-se de repente. E afastou o rosto para vê-lo. Não… Devia.. ter se enganado. Chegaram ao quarto e Raymond afastou a porta com um dos pés, depois esperou enquanto o cachorro, entrava.

— Ele dorme aqui também? — Elizabeth alarmou-se.Lorde Kirkheathe assentiu e acrescentou:— Guarda a porta.— E não pode fazer isso do lado de fora?— Ele percebe os intrusos.— Costuma ter intrusos no castelo?— Não, mas sou cauteloso. — Colocou-a no chão, esperando que recuperasse o equilíbrio, antes de soltá-la de todo.— Oh… — A torre parecia tão fria quando não estava nos braços dele. — Então… imagino que,seja seguro dormir aqui.— Sim.— Bem, isso é um alívio. Embora eu ache que um homem deveria ser louco para tentar atacá-lo em seu próprio castelo.

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— Um homem poderia sê-lo — ele concordou de um modo enigmático. Elizabeth percebia que agora havia um candelabro com inúmeras velas iluminando o ambiente. Notou que seu marido se afastava e que soltava o cinto, de couro da túnica.Raymond se voltou e avistou-a fazendo um breve sinal com o queixo em direção ao cachorro:— Ele não vai mordê-la.— Espero que não…Os lábios de lorde Kirkheathe moveram-se num ligeiro sorriso ao acrescentar:— Também não vou.Elizabeth sorriu, tensa, notou que, para evitar o cão, à sua direita, teria de ir em direção a cama, ou ,em direção a seu marido, o qual colocava o cinto, sobre um aparador sob a janela.Não deveria ter insistido para que o casamento fosse naquele mesmo dia, recriminou-se. O dia seguinte estaria bem e teria tido mais tempo para acostumar-se com a idéia…

O quê, em nome de Deus estaria errado com ela? Indagou a si mesma, alarmada. Um dia a mais não faria diferença em seus sentimentos e poderia levá-la de volta ao convento!O casamento fora a melhor coisa que poderia ter-lhe acontecido. Não deveria ser tola e tornar-se, de repente, tímida e recatada. Mesmo sendo seu marido um total estranho, para ela, era um estranho bastante atraente…E com determinação renovada, Elizabeth soltou os laços de seu vestido e tirou-o. Passou por seu marido então, e com cuidado colocou o vestido no mesmo aparador ao lado do cinto. E, em seguida, subiu para a enorme cama, vendo lorde Kirkheathe terminar de se despir.

Capítulo 5

Elizabeth Perronet era, sem sombra de dúvida, a mulher mais estranha que ele conhecera, pensava Raymond enquanto a ignorava de propósito. Era como se ela não tivesse a menor idéia do que estava fazendo. Ou de como seus atos poderiam ser interpretados pelos que a rodeavam. E, o mais interessante: era como se ela não tivesse o menor conceito de dignidade e de respeito em relação a ele, seu marido e senhor. Lembrou-se da maneira como ela o beijara, indignado, enquanto tirava a túnica e a jogava sobre o vestido, no aparador. Não queria que ela o beijasse, nem naquele momento, nem nunca! E, naquela noite, a

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tomaria da forma mais suave que podia, mas com a menor intimidade possível.Elizabeth não queria que as pessoas pensassem que fora forçada a se casar? Repetia-se. E o quê, em nome de Deus, importava a opinião das pessoas? Ele era o senhor daquela região, governador e protetor de todos que ali viviam. E isso era tudo de que precisavam se lembrar.Depois, ela quase se embebedara! Por Deus, ela quase caíra no hall! Não havia desculpa possível para isso! Tivera que tomá-la nos braços e carregá-la dali antes que acabasse por envergonhá-lo por completo!Nu da cintura para cima, ele se lavava na água fria que havia na bacia sobre a cômoda. Seu corpo reagira, é claro, à sensação de tê-la nos braços. Aconteceria se fosse qualquer outra mulher. E, quando ela encostara a cabeça em seu peito, como se sentisse segura…Bem, não queria que Elizabeth se sentisse segura com ele, já que nunca se sentiria seguro com ela, com receio de que o traísse também.Que Deus o perdoasse, mas jamais se esqueceria da dura lição aprendida, nem carregando-a nos braços, nem rindo, genuinamente divertido com a observação que Elizabeth fizera, tão infantil e doce, sobre aquele ter sido um dia estranho.

O que precisava fazer agora era torná-la sua esposa de fato e acabar com aquilo. Tinha de consumar o casamento. Não hesitar. Ir até a cama e pronto!Voltou-se, vendo-a ali, sentada, observando-o com os lindos olhos castanhos muito abertos, as cobertas puxadas até os ombros, os cabelos, longos e ondulados caindo-lhe por sobre os braços.— O senhor tem muitas cicatrizes — Ouviu-a observar, em tom casual.De repente, Raymond sentiu-se mais do que parcialmente despido, o que pareceu-lhe absurdamente ridículo. Não estava diante da primeira mulher de sua vida, nem era um jovem inexperiente.Em silêncio, foi até a cama e, sentando-se, passou a tirar as botas. E teve um sobressalto quando Elizabeth passou o dedo delicado por uma de suas cicatrizes, nas costas:— Não faça isso! — protestou de pronto. E ouviu os ruídos nas tábuas debaixo da cama, quando ela se afastou depressa.Levantou-se, então, para tirar a calça, deixando-a sobre o piso. Voltou-se para encarar Elizabeth e ouviu-a novamente, a voz mais suave do que nunca:— Nunca vi um homem nu. Todos são como o senhor?Sem responder, Raymond levantou as cobertas e entrou debaixo delas. Sem preâmbulos, aproximou-se, afastando as roupas íntimas de Elizabeth e colocando-se sobre seu corpo. Então cerrou os olhos e lembrou-se da primeira mulher com quem havia estado na vida, uma

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criada da casa. Tinha quatorze anos naquela época e Gildred fora muito suave. Podia ainda lembrar-se muito bem daquele dia, com Gildred, no pomar, quando aprendera que uma boca podia fazer muito mais do que comer, beber, falar e beijar.

Percebia que Elizabeth era virgem. Isso era ótimo. Forçou o corpo, ouvindo-a gemer de leve, mas nada, além disso. Depois, conforme seguia os movimentos do sexo, percebia que Elizabeth o seguia, em silêncio. Lembrava-se da boca de Gildred. Os lábios de Elizabeth estavam entreabertos, sua respiração quente pulsava junto dele. Os lábios de Gildred sobre seu corpo eram ardentes…

Elizabeth o abraçava, com todo o corpo. Gemia de leve e suas mãos apertavam-lhe ás costas. Já não havia Gildred em seus pensamentos, apenas Elizabeth.. E com a continuidade dos movimentos e dos gemidos que ouvia junto ao seu ouvido, atingiu o clímax com facilidade:Quando tornou a abrir os olhos, encontrou os de sua esposa, muito abertos, encarando-o. De repente, ainda respirando profundamente, sentiu vontade de beija-la com paixão, e abraçá-la com força.— É só isso? — ela murmurou.Raymond afastou-se de imediato, dando-lhe as costas.— Sim — disse apenas.— Espero que tenhamos feito uma criança — Elizabeth desejou, com um sorriso nos lábios, recolocando as roupas no lugar.Raymond rangeu os dentes. Pelas chagas de Cristo, pensou, ela era tão inocente que nem se dera conta que ele acabara de tomá-la com toda a delicadeza com que um soldado bêbado possuiria uma prostituta.— Durma bem, meu senhor — ouviu-a desejar, aprofundando ainda mais aquela sensação de arrependimento que o consumia.Não respondeu. E nem dormiu bem…

Ela acordou assustada, com o grande cachorro lambendo-lhe o rosto. Tentou gritar, mas sua voz parecia ter desaparecido. — Cadmus! — Raymond gritou. Devia ter percebido que não estava tendo outro pesadelo terrível no convento, mesmo porque estava aquecida e coberta. E muito dolorida, sentindo-se tola, sentou-se depressa. Lorde Kirkheathe já estava vestido e olhava-a da porta, o cão agora a seu lado. Seria possível que um cão sorrisse de alegria? Pensou ela, ainda tonta de sono: Porque seu marido não sorria. — Não tenha medo dele — disse Raymond, muito sério. Elizabeth puxou mais as cobertas, apreciando o conforto de seu calor. — Tentarei não ter senhor, mas fui muito mordida, certa vez.

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Ele veria a cicatriz, mais cedo ou mais tarde, resignou-se ela, então decidiu mostrar-lhe agora, erguendo-se um pouco e baixando a gola larga da camisola, revelando a feia e escura marca da mordedura feita pelo cachorro da reverenda madre. Os olhos de Raymond cegaram-se um pouco enquanto se aproximava da cama. — Um cão fez isso? — estranhou. Elizabeth assentiu. Ele se inclinou, observando a pele suave marcada pelos dentes do animal. Embaraçada com tal, proximidade e temendo pelo que mais ele poderia ver do ângulo em que se encontrava, Elizabeth recolocou o tecido de volta ao lugar. — E as outras cicatrizes?Ela sabia que seu marido as notaria também, mais cedo ou mais tarde. No entanto, não conseguia erguer os olhos para ver os dele. — Eu… roubei algumas coisas no convento e fui punida — explicou.— Você? Roubando?!Ela deu de ombros ao esclarecer: — Estávamos sempre com fome e as meninas menores choravam. Então…— Você roubou comida? — Raymond sentou-se a seu lado, na cama. Elizabeth.. arriscou olhá-lo, mas não soube dizer se ele aprovava ou não seu procedimento. Sabia que era um pecado grave roubar de mulheres santas, embora, no fundo do coração, não se arrependesse. — Tudo o que podia, sempre que podia — confessou. — E dava para as outras?Era muito tentador dizer-lhe que jamais tocara numa migalha, mas sabia que, com aquele olhar intenso e perscrutador, seu marido descobriria a verdade num instante. — Comia também — revelou, cabeça baixa.Lorde Kirkheathe tomou-lhe uma das mãos e examinou-lhe os braços finos.— Mas não muito… — comentou. — O suficiente — Elizabeth sussurrou, receosa em falar e, com isso, fez com que ele a soltasse. Seus olhares se encontraram por segundos e depois ele disse, na voz rouca e arrepiante:— Cadmus vai passar a dormir do lado de fora da porta.Sem poder disfarçar o alívio que, sentia, ela murmurou:— Obrigada, meu senhor. Mas, tentarei me acostumar com ele, para que coitadinho não tenha que ficar lá, exilado, para sempre.

Raymond sorriu de leve e Elizabeth sentiu-se, de repente, mais aquecida. Então, alguns ruídos no pátio, lá embaixo, chamaram-lhe a

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atenção e ele soltou-lhe a mão para ir até a janela. Imaginando que já estava na hora da missa, Elizabeth afastou as cobertas e arrepiou-se com o frio da manhã. — Fique aí. — seu marido ordenou. — Como, senhor?— Fique na cama. — Mas… já é tarde. — E levantou-se, sentindo o piso gelado sob os pés. Passou os braços ao redor de si mesma, tentando se aquecer. — Deve haver coisas que eu precise fazer… os criados vão pensar que sou preguiçosa. E isso seria um começo terrível. — Ninguém a perturbará. — Como, senhor?— Fique na cama tanto quanto quiser hoje. E chame por Rual quando necessitar. Elizabeth não sabia o que a surpreendia mais: a noção de que poderia voltar à cama quente e convidativa ou o fato de ele ter falado tanto. — Mas… e a missa? — insistiu. — Já acabou. — Acabou?!Ele assentiu. — Não tem receio do que os criados poderão pensar sobre mim?Raymond tornou a negar. Certamente, ele não se importaria com as idéias dos servos, pensou Elizabeth, lembrando-se, mais uma vez das palavras de lady Katherine. Aliás, nem ela deveria importar-se. Então, porque não aproveitar oferta de seu marido e ficar mais um pouco entre às cobertas?Voltou para o leito, feliz, cobrindo-se, e percebendo que lorde Kirkheathe sorria. — Obrigada, meu senhor. Nem posso me lembrar de quantas vezes sonhei com um luxo destes!— Vai dormir?— Dormir? Não! Se dormisse, não conseguiria aproveitar esta delicia!Raymond sorriu mais uma vez. — Como quiser — aquiesceu. Elizabeth suspirou profundamente, satisfeita. — Ah! Primeiro aquele maravilhoso vestido e agora isto! Oh, meu senhor, agradeço-lhe do fundo do coração e peço a Deus que o abençoe por ter se casado comigo!Lorde Kirkheathe nada mais disse. Saiu do quarto, deixando Elizabeth feliz em sua solidão. Tinha vontade de ri só em lembrar-se de que ele sorrira.

Não havia dúvida de que seu marido tinha muitos afazeres, sendo

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tão rico e poderoso. E faria de tudo para ajudá-lo a descansar de seus deveres, em especial se isso o fizesse sorrir mais vezes. Talvez uma criança o deixasse mais feliz também. Moveu-se na cama e, erguendo os lençóis, notou o sangue seco entre eles.— Oh, Deus! — Suspirou. — Faça-me estar grávida! Se ainda não estou, que seja em breve! Isto, é claro, se for de sua vontade!Ficou mais algum, tempo na cama e depois, animada, levantou-se e, estremecendo com o frio, ouviu ruído de cavalos. Foi até a janela e viu que seu marido cavalgava um belo animal negro e, logo atrás dele, uma tropa de soldados se preparava para partir. Ficou observando enquanto lorde Kirkheathe erguia o braço, dirigindo-se aos pesados portões, seus bem equipados homens logo atrasoEle nada dissera, apenas erguera a mão enluvada e fizera um gesto breve. Tudo era feito num silêncio proposital, com a obediência total e bem treinada de todos os soldados. Com um sorriso maroto, Elizabeth deu-se conta de que a reverenda madre aprovaria seu marido, embora achasse que ele fizera uma péssima escolha no que se referia a sua noiva.Mas a reverenda madre estava muito distante agora e ela, Elizabeth, estava casada e em breve, com a ajuda de Deus, seria mãe; uma mãe carinhosa e dedicada, como fora a sua, antes de morrer daquela febre que também levara-lhe o pai, quando ela tinha apenas oito anos de idade.Suspirou mais uma vez, procurando afastar tais pensamentos, que a deixavam por demais triste, pois provocavam outras recordações, em especial aquelas de quando fora obrigada a viver em casa de parentes, sempre mudando de um lado para o outro sem nunca ser querida ou amada. A melhor fase que vivera fora àquela que estivera em companhia de lady Katherine, a qual apesar de ser rígida, era muito justa. Depois tinham vindo os terríveis anos do convento… Voltou-se e olhou para a cama convidativa, mas achou que de nada adiantaria deitar-se novamente.

Nem queria dar margem a que os criados a julgassem mal, apesar do que seu marido garantira. Além do mais, estava ansiosa por saber se o desjejum seria tão saboroso quanto a festa da noite anterior…Calçou os sapatos apressada, indo até a porta.— Rual!A criada apareceu tão depressa que Elizabeth imaginou que estivesse nas escadas, apenas à espera de seu chamado. — Minha senhora?— Bem, eu devia chamá-la quando necessitasse… e acho que necessito

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agora — disse Elizabeth sorrindo. — Sabe onde está meu outro vestido? Não posso usar o da festa de casamento. — Está no armário, ao lado da cama senhora.— E meus outros pertences?— Estão lá também. — Não ocupam muito espaço, não é? — observou ela, abrindo o armário.— Quer que eu traga um pouco de água quente?— Não se preocupe. Estou acostumada a usar água fria. — E não havia mentira nenhuma nisso, imaginou, calçando as meias e colocando o vestido de lã. Rual procedeu a arrumação da Cama e isso a fez lembrar-se do sangue ressecado. Correu a lavar o rosto para, com as mãos sobre ele, esconder a vergonha que sentia. Tentava convencer-se de que Rual obviamente saberia o que se passara naquela noite. Aliás, todos saberiam. Passou várias vezes as mãos pelo rosto, com a água fria, tentando esquecer o calor que havia em sua pele. Depois pegou a pequena toalha que estava ao lado da bacia e secou-se. O tecido trazia em si o cheiro de seu marido, lorde Kirkheathe… — Oh, Deus… — suspirou, lembrando-se, de repente, que ainda não sabia o primeiro nome dele. — Precisa de mais alguma coisa, senhora? — indagou Rual, segurando as roupas de cama enroladas junto a si. — Não… Ah, sim! Eu… bem, com toda a pressa de ontem, acabei nem perguntando o primeiro nome de meu marido… — Colocava a touca que sempre usara no convento. — Raymond D'Estienne é seu nome de batismo, senhora. O mesmo nome que tinha seu pai. — Você conheceu os pais dele?— Não. Os dois morreram muito antes de eu vir para cá.

Nem queria dar margem a que os criados a julgassem mal, apesar do que seu marido garantira. Além do mais, estava ansiosa por saber se o desjejum seria tão saboroso quanto a festa da noite anterior…Calçou os sapatos apressada, indo até a porta.— Rual!A criada apareceu tão depressa que Elizabeth imaginou que estivesse nas escadas, apenas à espera de seu chamado. — Minha senhora?— Bem, eu devia chamá-la quando necessitasse… e acho que necessito agora — disse Elizabeth sorrindo. — Sabe onde está meu outro vestido? Não posso usar o da festa de casamento. — Está no armário, ao lado da cama senhora.— E meus outros pertences?

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— Estão lá também. — Não ocupam muito espaço, não é? — observou ela, abrindo o armário.

— Quer que eu traga um pouco de água quente?— Não se preocupe. Estou acostumada a usar água fria. — E não havia mentira nenhuma nisso, imaginou, calçando as meias e colocando o vestido de lã. Rual procedeu a arrumação da Cama e isso a fez lembrar-se do sangue ressecado. Correu a lavar o rosto para, com as mãos sobre ele, esconder a vergonha que sentia. Tentava convencer-se de que Rual obviamente saberia o que se passara naquela noite. Aliás, todos saberiam. Passou várias vezes as mãos pelo rosto, com a água fria, tentando esquecer o calor que havia em sua pele. Depois pegou a pequena toalha que estava ao lado da bacia e secou-se. O tecido trazia em si o cheiro de seu marido, lorde Kirkheathe… — Oh, Deus… — suspirou, lembrando-se, de repente, que ainda não sabia o primeiro nome dele. — Precisa de mais alguma coisa, senhora? — indagou Rual, segurando as roupas de cama enroladas junto a si. — Não… Ah, sim! Eu… bem, com toda a pressa de ontem, acabei nem perguntando o primeiro nome de meu marido… — Colocava a touca que sempre usara no convento. — Raymond D'Estienne é seu nome de batismo, senhora. O mesmo nome que tinha seu pai. — Você conheceu os pais dele?— Não. Os dois morreram muito antes de eu vir para cá.

— E o que se diz sobre eles?A criada ergueu os ombros. — O pai de meu senhor era, reconhecidamente, um homem bom, embora tivesse nascido pobre. — E como conseguiu toda esta fortuna?— Toda a propriedade foi tirada de outro homem e dada a ele por lorde Chesney. — Acha que ele não merecia recebê-la?— Isso não é de minha conta, senhora. O conde de Chesney, com certeza, achava que ele merecia. — E quanto a mãe de meu marido?— Faleceu quando ele nasceu. E seu pai não tornou a se casar como ele mesmo fez. Elizabeth foi pega de surpresa coma revelação, mas procurou não parecer chocada. Tentava entender aquela situação. Lorde Kirkheathe não era tão jovem assim e devia ter sido casado antes, talvez, até mais

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de uma vez. — Quantas esposas ele já teve? Perguntou incapaz de guardar para si o que pensava. — Apenas uma. Antes da senhora, é claro. — E ela faleceu dando à luz, também?— Não, minha senhora. — Foi uma doença, então?— Não, senhora. Ele a matou…

Capítulo 6

Elizabeth não queria acreditar no que acabara de ouvir.— Como? — perguntou, mais embaraçada do que nunca. — Ele a matou-a, senhora. Neste quarto.— Mas… por quê?!— Lorde Kirkheathe disse que ela tentou mata-lo. — Rual mudou a

trouxa para o outro braço, para descansar o primeiro. — O que ouvi dizer é que ela colocou alguma coisa em seu vinho e, quando ele, dormiu, passou uma tira ao redor de seu Pescoço e tentou estrangula-lo. Lorde Kirkheathe a empurrou e a fez cair. Ela bateu a cabeça no chão e morreu em seguida.

— É por isso que Raymond tem a cicatriz no pescoço… — Elizabeth pensou em voz alta. — Por isso que sua voz é assim… — E, voltando-se para Rual, indagou: — Não acredita na explicação que ele deu?

— O patrão é muito bravo.— Ele foi levado perante a justiça do reino por crime de

assassinato?— Não.— Então, o que disse a respeito do crime deve ser considerado

verdade.— Lorde Kirkheathe é um nobre.— Ainda assim, há punição, para um nobre que tenha matado a

própria esposa. Ele a tinha agredido antes?— Jamais vi marcas em seu corpo, senhora.O que não significa que não houvesse marcas por baixo da roupa,

imaginou Elizabeth. Ou que ele não fosse cruel com a esposa de outras formas…

— Ele costumava ser grosseiro com ela? — insistiu. — Não, que eu tenha ouvido ou visto.— Bem, meu marido tem a cicatriz e a voz destruída para provar

que foi atacado — considerou.Rual baixou a cabeça e nada disse.

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— Por que ela quis matá-lo? — Elizabeth não conseguia controlar a curiosidade.

— Não sei, senhora.— Rual, se não acredita nas expliçaç5es de meu marido, e percebo

que não o faz, deve ter alguma razão para pensar que ele quisesse matá-la.

— Talvez… talvez suspeitasse de sua fidelidade…Elizabeth pensou por instantes.— E com quem acha que ela ó trairia?Rual deu de ombros.— Ninguém teria um nome suspeito?— Não, minha senhora.Elizabeth pensava com rapidez. Se houvesse a menor suspeita de

que seu marido não tivera um bom motivo para matar a ex-esposa, haveria rumores pelo castelo. Aprendera muito bem como as fofocas e boatos sé alastravam, enquanto estivera naquele convento.

— Senhora, posso me retirar e levar estes lençóis para baixo? — Rual parecia pouco à vontade.

— Sim, obrigada, Rual. — Mais uma vez as palavras sábias de lady Katherine eram sopradas em seu ouvido, dizendo-lhe para não acreditar em conversas de criados. — Meu tio já tomou o desjejum?

— Ele e seus homens partiram com o nascer do dia, senhora, como lorde Kirkheathe lhes ordenou.

— Ele já partiu?!— Assim que lorde Kirkheathe recebeu o dote, ele o mandou

embora. E seu tio estava tão caído ainda, por causa, do excesso de vinho, que mal podia manter-se sentado na sela.

— Mas lorde Kirkheathe estava aqui quando acordei…— Ele voltou, senhora.— Não ouvi nada…— Devia estar dormindo profundamente…— Deve ter sido.— Não tem um vestido mais quente, senhora?— Não. Mas há uma lareira no hall, não?— Sim, e uma muito boa! Lorde Kirkheathe insiste quanto a isso.— Então irei até lá e estarei aquecida. E, quando terminar com a

lavagem da roupa, poderia voltar e mostrar-me meu novo lar?— Como quiser, senhora.

— Lá, meu senhor! Vê? — disse Aiken, apontando para a ponte. — Está apodrecendo. A ponte poderá cair com a chegada da primavera.

Raymond inclinou-se para poder ver melhor, segurando a ponta da

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túnica para que, ela não arrastasse no terreno lamacento. Tinha o dinheiro para pagar os reparos, graças ao dote de Elizabeth. Fora realmente uma sorte Perronet não ter percebido o quanto precisava do dinheiro… ou ele teria diminuído o valor. Agora, porém, podia mandar consertar a ponte e outros locais de sua propriedade.

Poderia ter exigido um dote ainda maior, pensou, mas receou que Perronet desistisse do acordo e levasse Elizabeth de volta ao convento. E ela estava tão desesperada para não voltar… Teria que ser feito de ferro para não ceder às súplicas que ela lhe fizera.

Aliás, se fosse feito de ferro, poderia tê-la ignorado nessa manhã e não ter ficado ali, observando-a enquanto dormia, como um simplório qualquer.

Podia ainda lembrar-se da suavidade daquela visão, os cabelos espalhados pelo travesseiro, um dos braços estendido sobre seu lado da cama, como se o estivesse abraçando, caso ele ainda estivesse ali…

Lembrou-se da cicatriz feita pelo cachorro, no ombro dela e das outras, finas e longas, em suas costas. Que tipo de freira teria feito aquilo?! O tipo que ele gostaria de encontrar e fazer arrepender-se pelo resto da vida…

Endireitou-se e indagou:— Quantas outras pontes estão neste estado?— Dez, meu senhor — Aiken respondeu, caminhando de volta ao

terreno mais firme. Era um homem baixo, atarracado; de movimentos bruscos, e, muito embora fosse um soldado, era também um grande conhecedor de estruturas de madeira e de pedra. — Todas precisam ser consertadas neste verão e acredito que o melhor momento para isso seria em agosto quando as águas estão baixas. No entanto, acho que elas agüentam ainda algumas semanas, senhor.

— Ótimo.Raymond ergueu os olhos para o céu, era quase meio-dia. Devia

voltar para casa. Casa… Pela primeira vez em quinze anos, realmente sentia que tinha um, lar para onde voltar. Cascos de cavalo na estrada roubaram-lhe a atenção. Fane Montross aproximava-se, seguido de alguns de seus homens. Raymond sacou da espada de imediato e dirigiu-se ao meio da estrada: esperando pelo vizinho e antigo amigo, que transformara-se no mais detestado dos inimigos. Montross fez um sinal a seus homens para que parassem.

— Ora, Raymond, que surpresa! — exclamou, de cima do nervoso garanhão que montava.

Lorde Kirkheathe encarou-o com seriedade. Como sempre, Montross estava vestido de maneira extravagante, dessa vez um verde e dourado, já que era tão vaidoso quanto Alícia fora. Também era tão

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bonito quanto ela, com o corpo magro e os cabelos claros emoldurando-lhe os traços finos.

— Imaginei que o noivo fosse ficar em casa, pelo menos hoje! — Havia um sorriso jocoso em seus lábios.

Então, ele ouvira falar no casamento…— Aliás, foi exatamente .por isso que vim até suas terras —

Montross prosseguia — para desejar-lhe felicidades.— Com vinte soldados?— Uma guarda pessoal, apropriada, nada mais.Todos sabemos que

vivemos tempos perigosos e que certas precauções devem ser tomadas… Você mesmo, está com dez de seus homens e encontra-se em suas próprias terras!

Raymond jamais explicaria que aqueles eram pedreiros e carpinteiros que o acompanhavam na verificação de pontes e estradas. Na verdade, não tinha a menor intenção de explicar coisa alguma a Fane Montross.

— Certamente vai ser um cavalheiro, convida-me para conhecer sua noiva? — insistiu ele, sempre sorrindo!

Raymond preferiria manda-lo para o inferno com seus vinte soldados, mas isso seria fazer o primeiro movimento de hostilidade e jamais agiria assim.

— Por favor — concordou, voltando-se para seu cavalo. Olhou para Aiken e ordenou: — Você e mais quatro, cavalguem atrás dos homens de Montross.

— Sim, meu senhor! — obedeceu o soldado, compreendendo o olhar de seu amo: — Não gostaríamos que nenhum deles se perdesse, não é?

Raymond apenas assentiu e, com um gesto, colocou seus homens em movimento, de volta ao castelo.

— Ainda há mais despensas? — Elizabeth perguntou à criada.— Não, minha senhora — respondeu Rual.O castelo, pelo que podia entender, era enorme e mal conseguiria

se lembrar de tudo que tinha visto. Muito menos conseguir lembrar-se dos nomes de todas as pessoas que lhe tinham sido apresentadas em sua visita a seu novo lar. Repassava, porém, àqueles que tinham ficado gravados, por algum motivo, em sua memória: como Hale, sargento de armas e segundo em comando na guarnição do castelo. Ele era um homem forte, de ombros largos e feições rudes que, entretanto, lhe sorrira com bondade.

Gostara de ver os pássaros que lorde Kirkheathe possuía, todos muito fortes e belos animais de caça, em sua maioria. O tratador, um

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homem miúdo e calado, apenas a observava, sem sorrir.Lud, na cozinha, e seus ajudantes, tinham sido muito amáveis. Era

estranho, mas Elizabeth percebia que, em Donhallow, todos faziam suas tarefas com presteza e com alegria ao mesmo tempo.

A única pessoa que parecia não se encaixar nesse perfil era Greta, a mulher que cuidava da lavanderia, Era magra e tensa, de olhos assustados e dedos longos e finos. Ela lhe parecera nervosa demais e Elizabeth tentara deixá-la à vontade, imaginando que sua presença fosse o motivo para a outra estar tão tensa: Não obteve sucesso, porém, e acabou sentindo-se aliviada ao deixar a lavanderia.

A manhã fora cheia para ela e seus pés doíam de tanto que tinha caminhado pelo castelo. Queria apenas sentar-se um pouco e esperar pelo almoço. Donhallow era tão grande, e populoso, que sentia-se, definitivamente, prostrada.

Conforme caminhava ao lado de Rual, rumo ao hall principal do castelo, notou a carroça de um vendedor ambulante próxima à entrada.. Um homem estava ao lado dela, falando com os soldados. No assento da boléia havia, uma mulher muito magra, que segurava um bebê.

Sorrindo, Elizabeth aproximou-se, enquanto tanto o homem quanto a mulher pareciam ficar mais assustados.

A mulher, como podia notar, tinha uma aparência muito debilitada e Elizabeth sorriu-lhe de novo, para tranqüiliza-la.

— Posso segurá-la? — pediu, fazendo um leve gesto em direção a criança. — E menino ou menina?

— Menino, senhora — respondeu a mulher, de modo tímido.— Esta é lady Kirkheathe — um dos guardas informou.— Faça o que ela…Elizabeth silenciou-o com um olhar mais firme.— Adoro bebês — explicou — Mas, se preferir continuar segurando-

o, eu entendo.— Senhora! — avisou Rual, parecendo aflita. — Lorde Kirkheathe

não gosta de vendedores ambulantes!O homem que estava ao lado da carroça lançou-lhe um olhar

zangado. Suas roupas pobres não melhoravam sua aparência enfraquecida e as coisas que trazia na carroça eram, em sua maioria, quinquilharias sem maior utilidade.

Entretanto, não era o homem nem as coisas quê vendia que interessavam a Elizabeth.

— Eu não disse que quero comprar alguma coisa — respondeu ela. — Pôr favor, posso segurar o bebê?

— Se hão vai comprar nada, é melhor não ficarmos respondeu o vendedor, mal-humorado.

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Elizabeth e a mulher olharam-no, depois olharam uma para a outra e sorriram, enquanto a mãe passava o bebê com cuidado para que ela o segurasse um pouquinho.

— Oh, ele é lindo! — exclamou, vendo o rostinho miúdo e corado que aparecia por entre o cobertorzinho simples.

A criança, porém, começou a chorar e sua mãe mordeu o lábio.— Não me importo com o choro — Elizabeth garantiu-lhe. Passou a

niná-lo tentando fazer com que se acalmasse.De repente; o bebê parou de chorar, arrotou e passou a olhar para

tudo com alegria. A mãe sorriu enquanto o vendedor, contrariado, fechava a cara.

— Já que não tenho nenhum dinheiro, nada posso comprar, mas não razão para que não fiquem por uma noite e comam com os criados, na cozinha.— Elizabeth ofereceu. — Meu marido tem uma mesa muito farta. Por favor, digam que vão ficar e deixem-me segurar por mais tempo pequeno…

— Erick — esclareceu a mãe, suave. Depois voltou-se para o marido e pediu: — Por favor, vamos ficar apenas por esta noite…

— Senhora — chamou Rual, ainda mais tensa. — Acho que lorde Kirkheathe não irá concordar com isso. Ele irá achar que os está encorajando…

Elizabeth olhou com atenção para a criança e depois para sua mãe visivelmente abatida.

— Deixe que eu me preocupe com meu marido, Rual — disse –por enquanto eles podem ficar.

— Bem, vai saber depressa o que ele pensa a respeito — Rual murmurou, apontando com um gesto de cabeça para os portões do castelo.

Lorde Kirkheathe chegava com seus homens e, Elizabeth achou incrivelmente imponente e elegante montado em seu belo cavalo negro. Notou que havia outro homem que montava um belo animal, logo atrás de seu marido.

O estranho tinha as vestes alegres, verde e douradas, e trazia uma vasta capa de veludo verde por sobre os, ombros.

Entre os homens de lorde Kirkheathe, havia outros que não reconhecia terem estado em seu casamento. Deviam estar acompanhando o estranho, imaginou, o qual passava os olhos detalhadamente por tudo ao seu redor.

Elizabeth sentiu, de imediato, que aquele olhar não era bom. Aquele homem não era um amigo. E havia alguma coisa a mais na maneira com que observava todos os pontos de Donhallow.

Ela reconhecia aquele brilho no olhar dele. Inveja! Vira tal olhar

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milhares de vezes no convento entre as garotas que competiam pelos favores da reverenda madre.

Elizabeth, porém, jamais tivera chance de sentir tal coisa, já que sabia que hão deveria esperar por nada ali. Mas souber observar e perceber…

E o olhar que seu, marido lançou ao estranho confirmou suas suspeitas de que não eram amigos. Quanto, ao tal homem, apesar, dos sorrisos e palavras que distribuía e que ela não entendia devido ao burburinho geral, era-lhe possível notar que estava tenso. Como preparado para uma batalha.

Foi então que lorde Kirkheathe a viu e um arrepio de alarme passou por sua espinha. Ficaria ele zangado ao saber que ela oferecera hospedagem ao vendedor e sua família? No entanto, ele não parecia aborrecido, não havia nada em sua expressão.

Os olhos de Raymond cerraram-se um pouco mais, conforme lhe sinalizava para que se aproximasse. Elizabeth devolveu o bebê à mãe e sussurrou-lhe:

— Fiquem, a menos que lhes seja dito o contrário.Ao chegar mais perto de seu marido, Elizabeth notou o olhar do

estranho e nele, a expressão de surpresa foi a que chamou-lhe mais a atenção. Imaginou que seus, cabelos deviam estar despenteados, já que tirara a touca quando tivera na lavanderia, onde o ar era quente e abafado devido as roupas que estavam sendo fervidas. Seu nariz devia estar vermelho porque espirrara demais, já que a umidade da lavanderia deixara suas roupas colando-lhe ao corpo.

Se o estranho fosse um amigo, isso não teria importância, mas ele não era… Lorde Kirkheathe era um homem orgulhoso e, certamente, não gostaria de ver sua feia esposa parecendo-se muito mais com uma criada do que com a dona do castelo.

Sentiu-se corar de vergonha e por estar envergonhando seu marido também,

— Elizabeth, este é sir Fane Montross — disse lorde Kirkheathe quando ela os alcançou. — Montross, minha esposa, Elizabeth.

Ela fez uma mesura.— Encantada, senhor.— Sou eu quem está encantado, senhora! — disse o nobre, sorrindo

e curvando-se demasiadamente. — Não pude descansar até conhecer a jovem e bela esposa de Raymond.

— É casado, senhor?A pergunta pegou-o de surpresa, o que a agradou.— Não, senhora. Sinto não ter tido tal sorte ainda.— Entendo… — Elizabeth murmurou, num tom que deixava claro

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que ela entendia o porquê, motivo que, aliás, não era muito agradável. Então passou a mão pelo braço do marido, pedindo a Deus que ele assim o permitisse e não se afastasse. — Vai ficar e comer conosco, eu suponho…

Elizabeth sentiu os músculos de seu marido mais tensos. Teria ido longe demais?

— Comer? Bem, seria muito agradável. Já faz muitos anos que não sou convidado para partilhar uma refeição em Donhallow.

— Talvez porque os homens fiquem muito… aborrecidos quando não têm companhia feminina — Elizabeth tentou explicar, passando a outra mão pelo braço forte de lorde Kirkheathe e olhando-o com verdadeira adoração. Podia não ser bonita, pensava, mas daria àquele impertinente e vaidoso visitante um motivo para achar que seu marido não precisava de compaixão.

E notou, que os olhos de Raymond a fixavam com um certo ar de… interesse, talvez, até de divertimento…

— Oh, acredito que não seja necessário temer tal coisa neste castelo, senhora — respondeu Montross. — Ele nunca ficou sem companhia feminina…

Se estivesse apaixonada por seu marido, aquelas palavras teriam sido muito doloridas, imaginou. E elas, ainda assim, feriam. Mesmo tendo garantido a Lorde Kirkheathe que ele poderia até arranjar uma amante… Não podia então, pensar em reclamar pelo que ele fizera antes de se conhecerem. Voltou-se para Montross com um sorriso nos lábios e respondeu:

— Para um homem tão viril quanto meu marido, não se poderia esperar nada diferente.

— Kirkheathe teve sorte em encontrar uma esposa tão… compreensiva.

— Sou eu quem teve sorte, senhor — Elizabeth corrigiu — E estou muito feliz. Abençoada, na verdade — E lançou outro olhar de adoração a lorde Kirkheathe.

— Ouvi dizer, senhora, que veio de um convento…— De fato. — Ela continuava a acariciar o braço do marido. — E se

soubesse o que estava perdendo, teria fugido de lá há anos. Mas, se tivesse feito isso, não estaria casada com meu senhor, portanto acho que foi bem melhor ter permanecido no convento até que meu tio fosse me buscar para trazer-me até aqui. Não concorda?

Capítulo 7

Ali, em pé no pátio do castelo, com Elizabeth ao seu lado,

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acariciando-lhe o braço daquela forma, diante de todos, e abertamente desafiando Montross e ele mesmo com suas palavras inteligentes, Raymond imaginava até que ponto deveria deixar que aquela conversa prosseguisse.

No entanto, para sua própria surpresa, estava gostando da estranha situação. Estava particularmente interessado na consternação que via no rosto de Montross. Ele sempre fora muito seguro de si e tinha a língua afiada.

Entretanto, quem imaginaria que Elizabeth, que ficara separada do mundo por tanto tempo, mostrar-se-ia páreo à altura dele, um inimigo tão esperto e sofisticado?

E quem poderia imaginar que ele, lorde Kirkheathe, não acharia uma demonstração pública de afeto algo desconcertante, mas, ao contrário, altamente excitante?

— Não sabia que estava tão feliz — Montross comentou, ainda embaraçado.

Elizabeth riu mais uma vez.— Parece-me que os boatos voam mais rápido do que os falcões

por aqui, senhor — observou. –Já que sabe tanto sobre nosso casamento e acabamos de nos unir ontem… Além do mais, acredito que não dê tanto crédito assim a rumores. Eu mesma posso lhe garantir que depois de tantos anos no convento, não costumo dar ouvidos a fofocas.

— Mas… onde há fumaça… — Montross parecia estar se defendendo tanto quanto estaria numa batalha e isso dava um prazer incrível a Raymond.

— Talvez o ditado se aplique em certas situações — Elizabeth continuava, sem a menor interferência do marido — mas elas são raras. Além do mais, meu marido sabe muito bem o quanto estou feliz, em especial depois da noite passada, não é verdade, meu senhor? — E sorriu, baixando os olhos, como se estivesse absolutamente embaraçada e alegre ao mesmo tempo.

A implicação de suas palavras era óbvia: que sua noite de núpcias fora maravilhosa.

Raymond continuava quieto. Ela era incrível. Quem poderia imaginar o que diria em seguida? Então erguendo o rosto, tomou a encará-lo. E deu-se conta, de repente, que Elizabeth queria sua participação na conversa. Não poderia anunciar seus sentimentos diante de todos!

No entanto, como ela continuasse com aquele olhar indagador e Montross se mexesse, parecendo desconfortável diante da situação, sabia que teria que dizer ou fazer algo.

Levou a mão de Elizabeth aos lábios e beijou-a com suavidade.

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Foram beijos leves, que seguiram até a palma, quase até o pulso, e que fizeram-na corar vigorosamente.

Raymond notou e surpreendeu-se. Ela corava com um simples beijo na palma da mão… Como não ficaria se… de repente, invadido por uma inesperada onda de desejo, ele se endireitou, encarando o outro nobre.

— Deve perdoar-me, senhor — murmurou Elizabeth, voltando-se para Montross. — Não deveríamos estar aqui, no pátio. Por favor, acompanhe-nos até nosso hall.

Nosso hall, pensava Raymond conforme se encaminhavam para lá, tendo Montross logo atrás. Se alguma mulher fosse digna de partilhar aquela casa com ele… E sua riqueza, sua cama…

Também imaginara que Alícia seria digna disso. Assim que entraram, Elizabeth segredou-lhe:

— Perdão, senhor, por minha aparência.Lorde Kirkheathe pensou que ela se referisse ao vestido simples

que usava e que ele só percebera naquele momento. Esse sim, não fazia jus a sua beleza. Se estivesse se referindo à falta daquela touca com que chegara, achava ótimo que não a estivesse usando e que seus cabelos pudessem estar soltos daquela forma, como se Elizabeth fosse um ser selvagem, livre…

— Se me desculparem — disse ela, voltando-se para o marido e o convidado — pretendo trocar este vestido de serviço por algo mais apropriado para receber visitas.

E assim dizendo, apressou-se em subir a escadaria da torre. Vendo-se a sós com seu inimigo, Raymond indicou-lhe uma cadeira, com gesto brusco. A estranheza da situação começava a retomar sua aparência normal.

Jurara, certa vez, que morreria antes de deixar que Montross adentrasse em sua casa novamente. No entanto, ele estava ali, e como um convidado de sua esposa… Sua linda e surpreendente esposa.

Sentou-se na cadeira enorme, que pertencera a seu pai e Cadmus veio logo ajeitar-se a seus pés. Houve alguns momentos de um incômodo silêncio, até que Montross o quebrou: I

-Nada parece ter mudado. Nem a mobília, nem a tapeçaria… — Não houve resposta. E Montross insistiu:

— Ela sabe sobre Alícia?— Isso é assunto meu e de minha esposa — foi a resposta seca.Os lábios do visitante se curvaram num sorriso maldoso e ele se

curvou um pouco para a frente, fazendo Raymond pensar numa serpente pronta a dar o golpe.

— Não, ela não sabe… — Raymond sorriu de leve. Parecia óbvio que Montross não acreditava em sua negativa muda, pois continuava a

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sorrir daquela forma.— Bem, talvez ela não seja tão feliz e apaixonada quando souber o

que você fez a minha irmã… — comentou.— Parece estar esquecendo do que sua irmã quase fez contra

mim… — Raymond rosnou.— Sejam quais forem as circunstâncias que envolveram os fatos,

ela deve ter vivido um casamento miserável para querer matar o marido. Talvez apenas isso baste para sua atual esposa…

Lorde Kirkheathe levantou-se, as mãos fechadas em punhos. Cadmus também ergueu-se, rosnando baixinho, ameaçador.

— Oh, senhor, sinto muito — ouviu atrás de si e voltou-se para ver Elizabeth, que retornava. — Pedi que nos servissem vinho imediatamente. Devia tê-lo feito antes de ir trocar de roupa. Por favor, perdoe-me pela falta de atenção. — Olhou para Montross, que ameaçara levantar-se, mas que agora sentava-se novamente.

— Quanto ao senhor, peço-lhe desculpas também.Raymond não sabia como agir. Elizabeth achava que se zangara por

ela não ter pedido o vinho antes? questionava-se. A raiva que sentia no momento não tinha absolutamente nada a ver com ela. Exceto que não queria que ela ficasse sabendo sobre Alícia pelos lábios de Fane Montross.

— Pedi a Rual que informasse a cozinha sobre nossos convidados e preparar locais extras para que durmam no hall — continuou ela.

— Não vamos passar a noite aqui — Montross apressou-se em informar.

Raymond concordou, em silêncio. Isso seria demais! Não estenderia sua hospitalidade a tanto. Entretanto, jurara jamais receber Montross em sua casa… seria melhor não jurar tanto antes de conhecer sua esposa melhor…

— Não? Talvez, em uma outra oportunidade, então — condescendeu ela.

— Na verdade, não quero abusar de sua bondade, senhora. — Montross pôs-se em pé, disposto a partir.

— Espero que não tenha achado algo de errado na maneira como o recebi…

— Não, senhora. Para ser-lhe franco, considero-a uma pessoa muito gentil. Mas seu marido sabe que não poderei partilhar de sua comida, nem dormir sob este teto, já que ele matou minha irmã.

A mão direita de Raymond, respondendo a um impulso poderoso, foi direto a sua espada, enquanto seus olhos voltavam-se, apreensivos, para Elizabeth.

Ima estranha expressão passou pelo rosto dela, suavizando-se aos

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poucos.— Entendo, senhor — disse ela, muito doce. — A vergonha de ter

uma irmã capaz de cometer um assassinato deve ser muito grande.Raymond sentiu como se o teto desabasse enquanto Montross a

observava, completamente surpreso, a boca entreaberta, os olhos arregalados.

Como ela ouvira falar sobre Alícia? Raymond indagava-se se seu tio lhe contara? E o quanto ele saberia?

Elizabeth foi até Montross ,e bateu-lhe amigavelmente no braço, como faria para consolar uma criança.

— Deve ser terrível ter uma irmã tão má. Mas, com certeza, meu marido, em sua magnanimidade, está disposto a colocar uma pedra sobre o passado.

Agora que o choque inicial passará, Raymond pensava com mais clareza sobre Montross e a maneira com que ele veementemente reclamara aos quatro ventos e em especial ao conde de Chesney, dizendo ser seu cunhado um assassino de sangue frio que matar sua irmã sem motivo algum.

E ele poderia ter convencido muita gente, não fosse pelo testemunho, de todos em Donhallow, pela reputação imputável de Raymond e as evidências do crime de Alícia, marcadas na cicatriz em torno de seu pescoço bem corno sua voz perdida para sempre.

Entretanto, aquela era a primeira vez em que Raymond via alguém dizendo a Montross que ele devia envergonhar-se dá irmã. Poderia beijar Elizabeth por isso!

Cheio de ira, seu inimigo deixou de encarar Elizabeth para voltar os olhos brilhantes em sua direção e depois dar-lhe as costas e chamar seus homens e sair de Donhallow o mais depressa possível.

— Meu senhor, espero não tê-lo ofendido demais. — Elizabeth desculpou-se, cheia de inocência.

Se ela imaginava que Raymond estivesse zangado, não poderia estar mais enganada.

Tomou-a pelas mãos, com suavidade, e murmurou:— Venha.— Mas… para onde?— Meu solar.Elizabeth deixou-se levar, em silêncio. Quando lá chegaram, ele

fechou a porta atrás de si e encarou-a.— Sinto se o embaracei, senhor — ela tornou a desculpar-se. – Quanto sabe sobre Alícia? — Lorde Kirkheathe foi direto ao

assunto.— Conversei com Rual esta manhã. Na verdade, quase a forcei a

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me contar. Ela não, estava muito disposta a falar, posso lhe garantir. Mas, como insisti muito, ela acabou por me contar que o senhor, acidentalmente, matou sua esposa depois que ela o tinha drogado e tentado estrangulá-lo.

Ele assentiu.— Eu não sabia que aquele homem era irmão dela até que ele o

disse, no hall — Elizabeth continuou a explicar. — Percebi que são inimigos, mas não tinha entendido o motivo até então. Espero que não ache estranho eu ter percebido… Mas era tão óbvio. Pelo modo como os dois agiam… Ele o odeia e o inveja, meu senhor. E já que matou sua irmã, embora em legítima defesa, acredito que tal ódio se justifique. — Elizabeth o olhava com expressão meiga. — Confesso que tive algumas dúvidas quanto ao que o levou-a matar sua ex-esposa, pois, afinal, o senhor é um guerreiro e ela era apenas uma mulher…

Lorde Kirkheathe franziu as sobrancelhas antes de interrompê-la:— "Teve" algumas dúvidas?— Sim, mas lorde Montross as desfez, já que parece-me claro que

ele não hesitaria em levá-lo à justiça do reino caso houvesse a menor evidência para acusá-lo de assassinato. E, como tal não aconteceu, acredito que o senhor não teve culpa em matá-la.

Raymond respirou fundo, era como se lhe tivessem tirado um peso das costas.

— Não, não tive — reiterou.— Ainda assim, meu senhor, se me permite expressar minha

opinião, acredito que a inveja desse homem é que causa o ódio que, ele nutre. Tal sentimento deve ter tido raízes muito antigas.

Raymond apenas a olhou, imaginando como uma jovenzinha podia adivinhar tanto.

— Você é vidente? — perguntou, quase sem sentir.— Não! Mas pude perceber tudo apenas observando a maneira

como ele olhava para Donhallow e para o senhor."E para você", Raymond acrescentou, para si mesmo, lembrando-se

de como Montross a olhara. Conhecia o outro muito bem, de suas farras na juventude, para saber como ele olhava para uma mulher que o agradava.

Um estranho sentimento o invadiu.Seria Elizabeth capaz de traí-lo também? Talvez… Além do mais

qualquer homem que a visse a desejaria. Qualquer um poderia tentar tirá-la dele. Uma sensação incômoda passou-lhe pelo peito ao pensar tal coisa. Poderia ser muito ferido por, aquela mulher… E jurara que nenhuma outra mulher o faria, que seria sempre forte.

— Não quero que se zangue comigo, meu, senhor — ouviu-a

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murmurar.— Tudo o que precisa fazer é não me dar motivos para tanto —

respondeu frio.— Tentarei não fazê-lo.Elizabeth possuía a voz tão doce, tão frágil imaginou. A voz de uma

mulher que queria agradá-lo e que, entretanto, fora rejeitada. Não havia como remediar isso agora. Poderia desejá-la, amá-la de vez em quando, mas, apaixonar-se jamais.

Tomou-a pelos ombros e a fez encará-lo, os grandes e brilhantes olhos surpresos. Então beijou-a com paixão. E descobriu-se espantado diante do fervor com que ela correspondeu a seu beijo…

Há anos não beijava alguém assim. Não quisera e nem necessitara. Fora um tolo por não tê-la beijado assim na noite anterior, por não ter acariciado seu corpo voluptuoso. Devia ter usado sua boca e suas mãos para deixá-la pronta a recebê-lo.

Naquele momento, suas mãos deslizavam com desejo pelas curvas de seu corpo, explorando, procurando, descobrindo… Elizabeth gemeu e isso o excitou ainda mais. Sem deixar de beijá-la, passou a mão por baixo de suas saias e a ergueu, carregando-a até a mesa. Soltou-a devagar para que se sentasse à beirada.

Só então se afastou para livrar-se de suas próprias roupas. Elizabeth o observava, os olhos brilhantes como os de um gato na escuridão. E quando ele a tomou, foi com prazer que ela sussurrou em seu ouvido:

— Oh, meu senhor, por favor…Raymond não conseguia pensar, tão fora da realidade que se

encontrava. Podia não saber por que Elizabeth o deixava assim, mas, naquele momento, isso não importava. Queria apenas amá-la, sentir o corpo frágil vibrar junto, ao seu.

E, quando tudo ao seu redor deixou de existir, para entregar-se por completo ao prazer, abraçou-a com força, não querendo mais se afastar.

— Suponho que isto signifique que estou perdoada… — disse ela, num murmúrio.

— Sim — Raymond sussurrou, quase não podendo falar.— Sinto-me feliz, senhor. Mas… se esta era sua idéia de castigo…

devo confessar que gostaria de ser impertinente mais vezes para mais ser castigada…

Tentando não sorrir, ele se afastou, tornando a vestir-se.— Oh! Meu vestido — gemeu ela, olhando-se. — Está todo

amassado! Oh, não! Eu o estraguei! — E passou a esfregar as mãos sobre o veludo, de um modo que, aos olhos de Raymond, era

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incrivelmente excitante.— Não. "Eu" o estraguei — ele corrigiu.— Não está zangado por isso também, está?Ele negou,com a cabeça. Estragaria um vestido a cada hora se

fosse para fazê-lo daquela forma, imaginou, divertido.Elizabeth parou de passar as mãos pelo tecido e; encarou-o, com

certo receio no olhar.— Acho que devo confessar mais uma coisa — disse, meiga. Estava

tensa, como se esperasse, que ele a amaldiçoasse ou coisa parecida. — Um vendedor ambulante, sua esposa e filho estão na cozinha, comendo. Rual me disse que o senhor não aprova a presença de vendedores desse tipo, mas… eu não comprei nada…

— Não faço parte do clero — declarou lorde Kirkheathe, muito sério. — Não faço caridade.

— Senhor, acho que ela precisa apenas se alimentar… o bebê não está doente nem…

— O bebê que você estava segurando?!— Sim, meu senhor. É uma criança saudável e…Ele não esperou para ouvir mais. Saiu, a passos pesados do solar e

foi direto a cozinha, ignorando os olhares assustados dos criados, bem como Elizabeth, que apressava-se a seu lado, sem, no entanto conseguir acompanhar seus passos.

Seu pai morrera de uma doença trazida a Donhallow por um vendedor ambulante e ele próprio quase tivera o mesmo destino. E agora sua esposa deixara que mais um daqueles imprestáveis entrasse em seu castelo, com uma mulher doente! Ela, inclusive, estivera com o filho deles nos braços!

Ao chegar a cozinha, passou os olhos ao redor, notando o casal que se encolhia num dos cantos enquanto os serviçais preparavam algo para comerem.

— Fora! — rosnou. — Saiam de Donhallow agora mesmo! O homem puxou a esposa pelo braço. Ela era magra, como Elizabeth dissera. A criança que trazia nos braços começou a chorar.

— Senhor por favor, não se zangue com eles — Elizabeth pediu, vendo-os dirigirem-se à porta. — Foi minha culpa! Rual me avisou!

Os criados baixavam a cabeça, amedrontados, enquanto lorde Kirkheathe voltava-se para a esposa.

— Já que estão aqui, um pouco de misericórdia… — pedia ela.— Quem é o senhor aqui? -esbravejou Raymond.— O senhor.— Então lembre-se sempre disso!Elizabeth assentiu e murmurou:

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— Lembrarei também o que lhe disse caso aceitasse casar-se comigo, meu senhor. É o dono e senhor deste castelo e errei ao desobedece-lo. Não tornarei a fazê-lo.

Diante de tanta humildade, Raymond desejou não ter reagido com tanta raiva. Mesmo assim, não queria vendedores ou pedintes em Donhallow, para trazer doenças, intrigas ou armadilhas. ..

Olhou para a cozinheira e indagou, brusco: — A comida está pronta?— Sim, meu senhor — Lud respondeu, assustada.— Então, sirva! — E passou por Elizabeth, voltando ao hall. Os

criados apressaram-se a segui-lo e, em segundos, Elizabeth ouviu o tilintar de talheres sendo colocados à mesa.

A cozinheira e seus ajudantes, parecendo piedosos, mas amedrontados ao mesmo tempo, voltaram a seus afazeres.

Elizabeth pegou um pedaço de pão que ficara sobre a mesa e saiu depressa, passando pelo pátio, atrás do vendedor e de sua esposa. Não entendia como tudo ficara tão negro de repente. Naquela manhã estivera tão feliz e certa de que tomara a decisão correta ao deixar o convento! Mas agora, depois de saber algumas coisas sobre seu marido e de ter visto seu temperamento forte, depois de ter testemunhado sua falta de generosidade… E sem poder dizer ou fazer nada que criticasse seu comportamento, já que jurara-lhe obediência cega… sentia-se uma tola.

Passou a mão pelo rosto, por onde rolavam duas lágrimas, e parou diante dos portões enormes e imponentes. Não queria que os guardas a vissem chorando.

Na verdade, não queria chorar. Escolhera seu caminho. E agora teria de caminhar por ele, não importava quantas pedras houvesse sob seus pés.

Capítulo 8

Raymond batia o pé direito no cão, impaciente, e esperava. Os outros, reunidos no hall, também aguardavam, tão silenciosos quanto ele próprio, olhando-se, com jeito significativo, para depois voltarem o olhar tenso para o seu senhor.

Ele jamais perguntaria onde sua esposa fora. Isso seria demonstrar que se importava e os criados poderiam imaginar que ele se importava com os sentimentos dela. E, se isso acontecesse, ela teria poder sobre ele…

Mas, onde ela poderia ter se metido?!, indagava-se. Elizabeth

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comera como uma esfomeada na noite anterior, mas estava acostumada as agruras do convento, às privações alimentares, aos jejuns… e, se a tinha desapontado demais e ela estava se vingando com uma atitude puramente infantil, deixando-o à espera, podia estar certa de que isso não o faria arrepende-se.

— Rual! — chamou, a voz carregada de raiva, os olhos brilhando, fixos na criada que esperava, próxima.

— Sim, meu senhor? — ela se apressou a atendê-lo.— Sirva a comida.— Mas a senhora…— Agora!Rual assentiu e saiu, apressada, em direção ao corredor que levava

à cozinha. minutos depois voltava, acompanhada de outras serviçais, para trazer à mesa o pão fresco e a manteiga.

Talvez Elizabeth estivesse de volta antes de a refeição terminar, imaginou ele, contrariado. Se isso acontecesse, ele a expulsaria dali até que o almoço estivesse concluído. Já que ela não se importava em estar ali para o começo da refeição, podia perdê-la por completo.

Entretanto, Elizabeth não apareceu nem mesmo quando serviram o prato principal. Sua ausência estava mexendo com os nervos de lorde Kirkheathe.

Afinal, o que ela pensava estar fazendo?, indagava-se, alterado. Com certeza, ela não teria sido tão tola a ponto de sair do castelo… Elizabeth sabia que ele tinha inimigos…

Fane Montross faria qualquer coisa para feri-lo, se tivesse uma chance. E Montross a olhara com cobiça… Se a encontrasse sozinha e desprotegida…

Raymond levantou-se de repente, fazendo com que a pesada cadeira arranhasse o chão de pedra. E, sem uma palavra a seus homens, dirigiu-se ao pátio, seguido de perto por seu fiel cachorro.

Os dois guardas do portão se endireitaram ao vê-lo aproximar-se.— Senhor! — saudou o mais velho, solene, quando lorde Kirkheathe

parou à sua frente.— Minha esposa?— Passou por aqui, meu senhor.— Quando?— Há algum tempo.— E para onde foi?— Ela não nos disse, senhor.O olhar do outro guarda se desviou por segundos e Raymond

encarou-o sem expressão.

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— Eu a vi seguindo na direção da vila, senhor — informou o rapaz, gaguejando.

— Sozinha?— Sim, senhor. Sozinha.— Ela jamais deverá deixar Donhallow sem uma escolta,

entenderam?— Sim, senhor! — os dois soldados responderam em uníssono.O comandante da guarda apareceu à porta dos alojamentos e

apressou-se em sua direção.— Aldo errado, senhor? — perguntou solícito.— Minha esposa não deverá deixar Donhallow sozinha novamente,

Barden!As sobrancelhas do soldado se ergueram.— Se eu não estiver de volta com ela antes que o sol desapareça

atrás do muro oeste, comece a organizar grupos de buscas. — Raymond ordenou, o rosto como uma máscara de pedra.

— Sim, senhor.Não havia razão para que lorde Kirkheathe explicasse a Barden o

que temia. O chefe da guarda já ocupava tal posto quando Raymond ainda brincava nos joelhos de seu pai e conhecia muito bem a animosidade entre seu senhor e Montross. Também fora ele quem o encontrara, banhado no próprio sangue, ajoelhado ao lado do corpo de Alicia.

Fora o testemunho de Barden ao conde de Chesney, bem como o ferimento terrível na garganta de Raymond, que tinham feito com que ele não fosse levado ao julgamento do rei sob suspeita de assassinato.

— Acha que devemos esperar, senhor? — barden perguntou.— Sim.Raymond seguiu para a vila. Elizabeth poderia estar lá, em

segurança, e podia estar se preocupando à toa. Os primeiros habitantes pelos quais cruzou no caminho, olharam-no, admirados, pois jamais tinham visto seu senhor entrando na vila a pé. Ele sempre se fazia acompanhar por uma tropa, e sempre a cavalo.

O que poderiam pensar se soubessem que estava atrás de sua esposa?, pensou ele, com crescente frustração. Achariam-no ridículo! Mesmo assim, prosseguiu, decidido a encontrá-la, ignorando a surpresa no rosto de seus vassalos. Muitos deles, aliás, desviavam de seu caminho, baixando a cabeça em sinal de respeito.

Onde, em nome do bom Deus, teria Elizabeth ido?!, repetia-se, e a cada instante mais tenso. Era como se a terra se tivesse aberto e a engolido… Ou alguém a tivesse raptado…

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Passou a mão pela testa suada, olhando ao redor, e começando a pensar em voltar ao castelo. Foi então que ouviu-lhe a voz. Ela estava cantando!

Raymond conhecia a canção. Era uma balada sobre um casal de amantes infortunados. Gostava de cantar essa mesma canção quando era mais jovem, em especial quando fizera a corte a Alicia, quando sua voz ainda era forte e melodiosa.

Para quem Elizabeth estaria cantando agora? E quem a estaria acompanhando com uma harpa, como ele fizera com Alicia?

Seguiu a música, entrando num beco e indo até o fim de mesmo.Elizabeth estava na última e mais pobre moradia dali, junto às

muralhas da vila. E, como a porta estivera aberta, não lhe foi difícil ver sua esposa. A música parou, então, e ela riu. Uma risada leve e alegre…

Raymond espiou, sorrateiro, vendo a sala na qual havia muitos pedaços de madeira e instrumentos incompletos. Um homem extremamente velho estava sentado num banco tosco, coberto de raspas de madeira e ferramentas.

Raymond nem mesmo sabia que havia um homem que fazia instrumentos musicais na vila…

Perto do velho, num banquinho baixo, Elizabeth segurava uma harpa feita de madeira clara. Um raio de sol passava pela janela e atingia-lhe os cabelos.

— Toca muito bem, senhora — elogiou o ancião, em seu sorriso sem dentes.

— Não… Você é que é muito gentil Johannes. É óbvio que não toco há muito tempo. Mal pude me lembrar das palavras da canção…

— Mas sua voz é como a de um anjo.Ela não só cantava como um anjo, Raymond pensou, mas se

parecia com um. E o que estava ele fazendo ali, como um espião, cruzando a vila a pé e espiando por uma fresta da porta? Aquela era “sua” esposa, e estavam em “sua” vila, protegida por “seu” castelo!

Saiu de detrás da porta e entrou na sala a passos firmes. Com um sobressalto, Elizabeth levantou-se, deixando a harpa, que

acabou caindo no chão coberto de serragem.O velho senhor, respirando com dificuldade, ergueu-se também.— Este é meu marido, lorde Kirkheathe — Elizabeth apresentou,

depois de se acalmar, como se aquele velho senhor fosse um nobre que merecesse o mesmo tratamento dado aos ricos e poderosos. — Meu senhor, este é Johannes. Ele faz harpas.

— Venha — foi a única resposta de Raymond, estendendo o braço para segurá-la.

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Elizabeth porém, moveu-se com graça e leveza, afastando-se, pegando o instrumento que caíra e entregando-o ao velho senhor.

– Ainda bem que não quebrou…O homem manteve o instrumento afastado do corpo, como se

quisesse que Elizabeth ficasse com ele, mas antes que ela pudesse pegá-lo novamente, Raymond colocou-se entre ambos, olhando-a, muito sério, e repetindo:

— Venha!estava descobrindo que sua esposa tinha opinião também. Entretanto, ela nada disse, apenas voltou-se para a porta e começou a andar. Ele a seguiu, segurando-a, fazendo-a parar já na rua.

— Jamais deixe Donhallow sozinha outra vez! — rosnou.Elizabeth ergueu a cabeça e encarou-o altiva.— Sou sua prisioneira?Lorde Kirkheathe nunca encontrara uma mulher que o desafiasse

daquela forma.— Sabe muito bem que não.— Então, porque devo ser tratada como uma?Ela devia ter confundido a reverenda madre, no convento, Raymond

pensou, atônito. E a freira devia estar acostumada a obter obediência cega, como ele próprio… Podia entender o que a religiosa sentira, mas de repente, deu-se conta de que admirava Elizabeth.

— Precisa de um guarda — disse apenas, mais calmo.— Até mesmo aqui? Não imaginei que corresse perigo em nossa

própria vila… Na verdade, achei que meu nobre marido estivesse tão zangado e furioso comigo, que minha presença pudesse lhe causar indigestão na hora do almoço.

Lorde Kirkheathe lançou-lhe um olhar cético.Elizabeth prosseguiu:— Bem… talvez não tenha sido isso… Talvez eu não quisesse comer

em sua companhia quando estava com tal humor… então… vim para a vila.

— Sem permissão.— Sim, meu senhor. Sem permissão.Raymond aproximou-se e, ao fazê-lo e vê-la tão de perto, quase se

esqueceu do que ia dizer e do motivo pelo qual se zangara.— Lembre-se de que tenho inimigos — avisou — e eles podem ser

tão audazes quanto você.Elizabeth ergueu os olhos para encará-lo.Não sou sua inimiga, meu senhor — sussurrou, causando um

arrepio em todo corpo de Raymond.Mas sua mente insistia em alertá-lo: “Ela ainda não é sua inimiga!”

Como Alicia… Ela não fora sua inimiga quando se casaram, tinha

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certeza… Então, sem mais nada dizer, colocou a mão de Elizabeth em seu braço e, em silêncio acompanhou-a de volta a Donhallow.

Naquela noite, Elizabeth recostou-se ao lado da janela de seu quarto, observando as sombras que a luz do luar projetava na murada do castelo. O céu, muito negro, estava coberto de estrelas. Olhou-as, imaginando se cada estrela estaria ali sozinha ou se elas formariam famílias, estando sempre unidas em harmonia. Ficava feliz ao pensar que assim era. Talvez ela própria, um dia ainda fizesse parte de uma família novamente. Se conseguisse aprender a segurar a língua e ser obediente, dócil, como prometera a seu marido que seria. Mas… e se não conseguisse? Até o presente, ao que parecia, não conseguira. Talvez lorde Kirkheathe já estivesse, até, pensando em anular seu casamento e mandá-la de volta ao convento. Mesmo assim, o casamento já fora consumado. Ele não poderia agir assim.

Cinco das mulheres que conhecera no convento tinham sido enviadas para lá porque seus maridos, insatisfeitos, haviam encontrado alguma nódoa obscura em seus laços matrimoniais que os tornava, de certa forma, ilegais.

Era um ardil muito bem planejado por todos eles, mas tinha validade…

Elizabeth não queria voltar para lá. Sabia muito bem o quanto tudo fora terrível, mas seria absolutamente impossível viver no convento após ter experimentado o gosto da liberdade e… de outras coisas mais.

Devia ter dado ouvidos a Rual quando a criada lhe falara sobre o que lorde Kirkheathe pensava dos vendedores ambulantes. Mas ela fora apenas movida pelo sentimento de caridade…

Era muito, perturbador descobrir que seu marido era, como seu tio a alertara, um homem de sentimentos não muitos bons.

Não passara maus bocados suficientes em sua vida? Não haveria possibilidade, de felicidade em seu caminho? Nunca? Teria sempre de viver sob a sombra da dor e de palavras duras, ríspidas? Jamais alcançaria paz de espírito? Talvez, quando engravidasse, seu marido já não lhe desse atenção alguma…

Mas não era isso que queria, mesmo sendo senhora daquele castelo, há tão pouco tempo, sabia que não queria ser ignorada por seu marido. Queria ser uma verdadeira esposa; e não apenas uma boa reprodutora. Além do mais, se lorde Kirkheathe não se importasse em nada com ela, teria ele ido procurá-la como fora, para avisá-la dos perigos que poderia estar correndo?

Houve também, aquele estranho e intenso olhar que notara nele quando jurara não ser sua inimiga. Era como se ele temesse acreditar…

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Com o que sua primeira esposa tentara fazer, não era de se admirar que fosse difícil acreditar novamente…

Talvez devesse apenas ser paciente e, esperar. Viu-o lá fora, andando pela amurada, parando de vez em quando para trocar algumas palavras com o guarda que estava vigiando.

Aqueles soldados eram todos muito bem treinados e nada havia que discutir com eles sobre seus deveres, por isso as conversas de lorde Kirkheathe com eles eram sempre muito breves.

Foi até a porta e ouviu. Tentava perceber se ele já estava subindo. Teria seu marido intenção de permanecer fora do quarto a noite toda, conversando com seus guardas, deixando-a sozinha?

Ele não parecia apreciar a companhia deles mais do que apreciara a dela naquela tarde, pensou, amargurada. Não lhe dissera uma palavra sequer depois de retomarem a Donhallow, nem mesmo durante o jantar. E, mais tarde, jogara alguns pedaços de carne que sobraram para Cadmus, olhando, absorto, para o, fogo que crepitava na lareira.

Elizabeth mantivera-se calada também. Ali, no castelo, isso era mais fácil do que fora no convento, lembrava-se. Afinal, havia ali a comida deliciosa que Lud preparava como ninguém, e a falta de conversa apenas deixava-a mais ansiosa.

Tornou a olhar pela janela. Não podia ver mais ninguém dali. Continuava pensando, porém. Eram marido e mulher e isso não implicava necessariamente que tivessem de ver-se o tempo todo. Mas tinha prometido ser boa e dedicada, e era isso o que faria.

Entretanto, como seu marido, lorde Kirkheathe não tinha certas obrigações também? Estaria errada em querer que ele a respeitasse e, até, se afeiçoasse a ela?

Apesar de seus pensamentos ousados, ao ouvir os passos firmes de seu marido aproximando-se da porta, correu a enfiar-se entre as cobertas. Podia também ouvir o ruído das unhas de Cadmus, seguindo-o. Puxou as cobertas até o queixo, vendo o cão entrar e começar a farejar o quarto todo.

De que adiantava isso?, pensou. Se houvesse algum estranho ali ela já estaria morta.

— Não há ninguém aqui além de mim, senhor. — declarou, tentando encontrar forças para não temer o cachorro.

— Já lhe disse que ele não morde — lorde Kirkheathe esclareceu sem se voltar…

— Eu não me surpreenderia se Cadmus me considerasse uma estranha…

Então, como para provar que ela estava enganada, o grande animal, apoiou a cabeça sobre a cama e olhou-a com um ar que mais se

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aproximava da devoção absoluta do que de qualquer outra coisa.Talvez, ela fosse… apetitosa, pensou Elizabeth, sentindo um frio

percorrer-lhe a espinha.— A aparência dele pode ser mais feroz do que sua natureza — ela

continuou, ainda encolhendo — mas não tenho como me certificar de que ele possa ter uma atitude repentina. Afinal, conheço-o há muito pouco tempo.

Raymond voltou-se devagar para vê-la.Elizabeth prosseguiu, no mesmo tom casual: — Às vezes pode ser difícil ajustar-se a novas pessoas…— Talvez — ouviu-o.— Além do mais, pode-se cometer erros sem intenção — ela

aproveitou para acrescentar, percebendo que ganhava sua atenção.Raymond encarou-a por longos momentos. Por fim, disse:-Há muitos anos, um vendedor ambulante apareceu aqui e trouxe

uma doença terrível. Já chegou doente e acabou por espalhar seu mal a muita gente. Eu e meu pai, inclusive. Muitas outras pessoas acabaram adoecendo, em especial os velhos e as crianças. Várias pessoas morreram, meu pai entre elas.

Elizabeth arregalou os olhos.— Sinto muito, meu senhor. Eu não sabia… — desculpou-se de

pronto. — Não teria ficado tão aborrecida quando o senhor mandou aquela gente embora, se soubesse dessa história.

— Esses homens são, na maioria das vezes, desonestos também, Elizabeth — ele acrescentou, enxugando o corpo com uma toalha que pegara do armário, — Não quero que meus vassalos, guardas ou protegidos sejam enganados por eles.

— Entendo isso também, senhor. E para falar a verdade, acredito que aquele vendedor não fosse muito honesto, de fato. Eram a mulher e a criança que, eu queria ajudar.

— Eu sei. Poderia ter-lhe explicado tudo sem me alterar. Mas… não podia imaginar que minha esposa se sentisse tão… feliz em partilhar seu alimento.

— Ensinaram-me que a dona de um castelo deve ser caridosa, senhor. No futuro, porém, perguntarei primeiro.

— Ótimo.Raymond começou a se despir, o que acelerou, de imediato o

coração de Elizabeth. No entanto, não queria distrair-se. — Senhor, como meu marido, devo respeitá-lo e honrá-lo e

perguntarei sempre antes de fazer qualquer ato de caridade. Sinto se lhe causei algum problema, mas… eu… — Elizabeth respirou fundo antes de completar: — …eu não quero temê-lo.

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Raymond encarou-a por longos segundos. No entanto, era como se alguma coisa dentro dele estivesse se modificando. Sua expressão suavizou-se, embora muito pouco, mas o suficiente para alertá-la de que estava sendo sincero ao dizer:

— Também não quero que tenha medo de mim.Uma, estranha sensação de alívio e alegria a invadiu. Uma

sensação muito parecida com a que a tomava quando estava roubando comida no convento e quase a surpreendiam… Ousadia era o nome de tal sensação. E foi o que a levou a indagar:

— Senhor; diga-me, então é seu costume estar sempre de mau humor?

Ele ergueu as sobrancelhas, mas não respondeu. Elizabeth sentiu, de imediato, que poderia ter novamente estragado tudo com sua língua solta.

Quis consertar o que dissera com mais palavras que pareciam vir a sua boca antes que pudesse conte-las:

— Talvez fique assim apenas à noite, então? Se assim for, poderei pegar minhas agulhas e começar a bordar, mesmo detestando tal passatempo. Também poderia aprender a jogar xadrez, embora me pareça um jogo cansativo… Vi a reverenda madre e uma das irmãs jogando, certa vez, enquanto eu esfregava o chão do quarto. Elas ficavam lá, sentadas, olhando para o tabuleiro, e não faziam mais nada. Ah, também posso ficar calada se o senhor assim preferir.

Raymond mais uma vez encarou-a com as sobrancelhas erguidas.— Posso garantir que consigo ficar calada, se for obrigada — ela

prosseguia. — O bom Deus sabe que tive muitos anos para treinar… Aliás, poderei suportar a tortura do silêncio com mais resignação se o senhor me garantir que não está me ignorando de propósito. Sabe, não gosto de ser ignorada…

Um certo ar de riso apareceu no rosto dele.— Já notei — comentou.— E, comparada a algumas pessoas — Elizabeth seguia em frente,

mais aliviada — posso não ter, uma natureza quieta, mas jamais foi de meu feitio buscar atenção sem motivo algum. No convento, fiz tudo o que pude para que não me notassem, mas não tive muito sucesso…

— Acredito…— Quero apenas que entenda que não quero ser ignorada quando

fizer alguma coisa que o desagrade. Posso aprender com meus erros e lembro-me muito bem do juramento que fiz quando concordou em se casar comigo.

— Que bom! — Raymond sentou-se na cama e tirou as botas, depois levantou-se e tirou as roupas íntimas. E, quando olhou para

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Elizabeth, houve mais alguma coisa que ela percebeu que jamais esqueceria: como ele a tomara com paixão no solar, naquela manhã.

Elizabeth engoliu em seco.— Se não quiser conversar comigo — murmurou — é claro que não

espero que se force a fazê-lo, senhor. Como eu disse, posso ficar calada e…

Raymond deitou-se a seu lado.— Elizabeth, fique calada — disse na voz rouca e baixa, tomando-a

em seus braços e cobrindo-lhe a boca com um beijo ardente.E, sem querer dizer mais nada, Elizabeth correspondeu ao beijo

com paixão. Raymond a acariciava com a certeza de que não seria recusado, aprofundava o beijo cada vez mais. E, com a mesma delicadeza com que um músico saberia tocar seu instrumento, passou a acariciá-la, sabendo tocar os lugares que a deixavam mais vulnerável e entregue.

Elizabeth, porém, não era passiva nem na vida, nem na cama. Não podia resistir à urgência em acariciar o corpo de seu marido também, de sentir cada cicatriz, e de sentir-se maravilhada diante de cada gemido que conseguia tirar de sua boca.

— Podemos fazer isto duas vezes no mesmo dia? — perguntou, inocente, olhando-o nos olhos.

Raymond afastou-se um pouco.— Se você quiser… — respondeu. Elizabeth abriu um sorriso maravilhoso. Não precisava responder.— Então, deixe-me prepará-la — ouviu, sem entender.— Como? — ela indagou, o coração batendo descompassado.— Assim…

Capítulo 9

Raymond começou por acariciar-lhe a planta dos pés, com muita suavidade, provocando em Elizabeth sensações com as quais jamais sonhara. Depois, sempre com toques muito suaves, passou os dedos por sua perna e, ao mesmo tempo, beijou-lhe o pescoço e os ombros de leve, quase com cuidado, como se estivesse beijando as pétalas de uma flor.

Em seguida, e sem deixar de beijar-lhe a pele macia do ombro, acariciou-lhe os seios por sobre o tecido da camisola fina, causando-lhe arrepios pela espinha. Com a respiração presa, Elizabeth arqueou o corpo para trás, querendo ser abraçada com a mesma força que já experimentara nos braços do marido.

Mas ele apenas continuou com os carinhos, deixado-a mais

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entregue. Suas mãos tocavam-na em locais onde ninguém a havia tocado e com tamanha doçura, que a fazia sentir-se como uma delicada peça de fino cristal.

— Ame-me, meu senhor — gemeu, num sussurro. — Por favor…Raymond parou de acariciá-la, o que a fez abrir os olhos de

imediato, temendo que o tivesse aborrecido com seu pedido.— O que foi? — apressou-se em perguntar. — O que fiz de errado?— Você? — A voz dele estava tão baixa que Elizabeth mal podia

ouvi-lo. E seus olhos brilhavam, intensamente. — Você não fez nada…— Mas… deveria ter dito? Há algo que quer que eu faça? — No

medo, ela parecia mais ansiosa, mais tímida, certa de que deveria haver alguma coisa a mais que poderia fazer para agradá-lo. Queria participar mais, saber o que fazer em momentos tão íntimos quanto os que estavam vivendo.

E, determinada a mostrar que podia aprender ergueu as mãos e tocou-o, com a mesma leveza, a mesma delicadeza que Raymond usara em seu corpo.

Ele apenas cerrou os olhos e prendeu a respiração. Elizabeth segurou-lhe os ombros e ergueu o corpo, para poder atingir-lhe os lábios num beijo suave e sensual ao mesmo tempo, seus dedos enfiavam-se por entre os cabelos dele, crispados no delírio da paixão.

Raymond não conseguiu esperar. Possuiu-a com um desejo intenso, alucinante, como jamais sentira, por mulher alguma, inclusive Alicia. E sua paixão deixavam-no mais forte, mais rígido, ferindo-a um pouco. Elizabeth, porém, não protestou.

Ele era seu marido e tinha o direito de amá-la como quisesse.Instantes depois, quando ele, já exausto deixava o peso de seu

corpo cair sobre o de Elizabeth, percebeu que ela estava quieta demais, o que não era de seu feitio. Ergueu-se nos cotovelos, então, encarando-a.

— O que foi? — perguntou, sem voz.— Foi… um tanto doloroso, meu senhor.Raymond afastou-se mais, deitando-se a seu lado.— Por que não me disse? — indagou, seriamente preocupado.— Porque o senhor é meu marido.— Mas não quero feri-la.— Mas se quisermos ter um, filho…— Eu poderia ter esperado mais um dia ou dois. Talvez até, mais.— Talvez eu, não. Quero dar-lhe um filho, senhor.— Então… isto nada mais é do que um dever a ser cumprido?

Elizabeth gostaria de conhecê-lo melhor para poder dizer-lhe as palavras certas.

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— Quer que eu lhe dê uma resposta honesta, senhor, ou a que uma dama daria?

Ele, a olhou profundamente por alguns segundos antes de responder:

— Quero que seja franca.— Então, confesso que, com satisfação, suportaria o sofrimento que

acabei de ter, mesmo se não fosse para termos um filho…Um lento sorriso apareceu nos lábios dele e tal expressão de alegria

deixou-a feliz também.— Venha — chamou Raymond, estendendo o braço para que

Elizabeth se aninhasse contra seu peito. Agora, já não dava uma ordem, mas um pedido. E um pedido que ela estava satisfeita em poder atender.

Raymond sentiu os dedos serem lambidos.— Cadmus! — repreendeu, com voz de sono, voltando-se para cima

e enfiando as mãos sob as cobertas.— Não… Sou eu, meu senhor… — Raymond abriu os olhos para, ver

Elizabeth ao lado da cama, já usando aquele soturno vestido de lã escura, com o qual chegara ao castelo.

Seus belos cabelos estavam cobertos por um cachecol que amarrava no queixo.

Mesmo assim, pensou ele, com apenas o rosto à mostra, ela era linda.

— Você me lambeu? — estranhou, mesmo acreditando que sua esposa seria capaz de fazer algo tão… diferente, excitante e diferente.

— Não. Eu beijei sua mão. — Havia um sorriso puro e temo nos lábios dela.

Raymond passou a mão por sua nuca e trouxe-a para um beijo ardente.

— Volte para a cama — disse em seguida.Ela, porém, se afastou.— Mas o dia já vai amanhecer, meu senhor!Ele olhou para a janela, percebendo, contrariado, que ela tinha

razão.— Acordei há pouco — Elizabeth explicou.Ele ergueu as sobrancelhas, sem, entender, ouvindo a explicação:— Na verdade, acordei antes da madrugada terminar e… bem,

como o senhor observou-me enquanto eu dormia ontem, achei que hoje poderia ficar observando-o também… Sabe que parece ser muito mais jovem quando está adormecido?

Mais jovem e mais vulnerável, Raymond pensou com amargura.

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Mas Elizabeth era diferente de Alicia e, como ele próprio dissera na noite anterior, ela nada fizera para levantar suas suspeitas: No entanto, Alicia também não o fizera. Não até que sentisse aquela fina tira de couro apertando-lhe a garganta mais e mais…

— Eu disse algo errado? — ela preocupou-se, notando sua expressão séria e pensativa. — Eu não quis dizer que há algo de ruim no modo como o senhor dorme e muito menos que, ao estar acordado não tem tão boa aparência…

Tais palavras fizeram-no sorrir.— Está dolorida ainda? — quis saber.— Não muito. De repente, uma onda de desejo passou-lhe pelo corpo, poderosa e

primitiva. Entretanto, como prometera na noite anterior, seria paciente. Queria muito que o corpo de Elizabeth se acostumasse ao seu.

Levantou-se, iniciando sua higiene matinal, enquanto, ela o seguia com o olhar.

— Rual disse-me que o senhor não tem um valete — ela comentou, vendo-o vestir-se.

Raymond apenas assentiu. Elizabeth sentou-se na cama, as mãos postas no colo, os olhos seguindo cada movimento que ele fazia.

— Acho que sua vida deve ser muito movimentada, com tantas coisas a fazer no castelo e na vila, tendo de cuidar de tudo sozinho… — passou a falar, já que, absolutamente, não conseguia ficar calada. — Imagino que alguém tão poderoso como o senhor devesse ter auxiliares para cuidar de suas propriedades. Não os tem para tomar conta de suas outras terras?

— Não tenho outras terras, nem outras propriedades.— Não? — Não.— Mas meu tio disse que… — Elizabeth interrompeu-se, pensativa.

Na verdade, seu tio nada dissera propriamente, apenas a fizera acreditar, na riqueza imensa de seu futuro marido…

Raymond terminava de colocar a túnica. Esperava que Elizabeth não lhe perguntasse sobre seu dinheiro.

— Bem, uma vasta propriedade é bem melhor do que várias pequenas. — ouviu-a observar, como se fosse perita no assunto, e sorriu de leve. Ela prosseguia: — Já pensou como seria terrível termos que ficar viajando o tempo todo, de unia para à outra. Qual é a extensão de sua propriedade, senhor?

— É grande o suficiente. — Maior do que a de Montross, pelo menos, pensou ele satisfeito.

— Sabe, não quero ser intrometida.

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Raymond nada disse, afivelando o cinto da espada.— Vai sair a cavalo hoje, meu senhor?Ele tornou a assentir.— Costuma patrulhar a propriedade porque teme problemas

maiores? Está á espera de algum ataque? Porque devo dizer que duvido que alguém tentasse atacá-lo.

Ele tornou a sorrir e, dessa vez, respondeu:— Mas, poderiam tentar, se achassem que teriam alguma chance.Elizabeth levantou-se e, caminhando devagar, veio em sua direção.

Raymond continuou a falar, subitamente receoso de que se não o fizesse, a beleza que ela irradiava pudesse deixa-lo à sua mercê.

— Também procuramos ladrões de caça e ladrões comuns. Verificamos o estado das estradas ê dos bosques, bem como o das pontes. São muitas coisas que precisam estar em ordem.

— Se, algum homem tentasse atacá-lo, ou a seu castelo, seria um grande tolo — Elizabeth murmurou, tocando-lhe o peito com mãos suaves.

Procurando manter o controle, ele as tomou e afastou-as avisando:— Pare, ou poderá não sarar…Com um sorriso misto de ternura e timidez, Elizabeth baixou a

cabeça e passou os braços pela cintura do marido, apoiando a cabeça em seu peito.

— É uma pena… — sussurrou. — Quero tanto ter um filho seu, meu senhor!

— Quer um filho, ou um filho meu?Ela ergueu os olhos para vê-lo. Sorria, sincera.— Seu, meu lorde Kirkheathe. Seu!Raymond baixou a cabeça e beijou-a, incapaz de controlar-se por

mais tempo. Abraçava-a com força, querendo esquecer as recordações amargas de seu passado e a suspeita terrível que sempre o assombrara depois da morte da primeira esposa. Queria poder enterrar o que passara, renascer, ser capaz de amar de novo e, em especial, de confiar. Talvez um dia…

Cadmus choramingou junto à porta e Raymond teve de interromper o beijo, relutante.

— Acho que ele quer sair — ela concluiu. — Acho que eu também. Estou com fome. E preciso manter minhas forças… — acrescentou, com um sorriso malicioso.

Lorde Kirkheathe foi até a porta e deixou o cachorro sair, depois esperou que Elizabeth tomasse seu braço para, juntos, seguirem até a capela, para a missa matinal.

— Posso seguir com o senhor em sua ronda de hoje? — ela

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perguntou, quando já estavam no corredor.Raymond parou de andar e olhou-a, sem entender aquele pedido.

Mas os olhos dela brilhavam, inocentes e doces, desarmando-o, enquanto dizia:

— Cadmus não é o único que tem estado dentro de casa por muito tempo, meu senhor. A viagem até aqui foi a primeira oportunidade que tive, em treze anos dentro dos muros do convento, para sair e ver o mundo. E ontem foi a primeira chance de liberdade que pude apreciar. Gostaria tanto de conhecer sua propriedade, se for possível… O dia promete ser muito bom e acho que não estou tão dolorida assim que não possa cavalar…

Ele pensava. Por que não? Por que não deixar que Elizabeth o acompanhasse. No entanto, se permitisse tal coisa, que tipo de precedente estaria abrindo?

— Lembro-me de ter prometido que não iria pedir nada… — tentou barganhar.

— Oh… — Elizabeth baixou os olhos humildes — esqueci mais uma vez… Sinto muito, meu senhor.

Continuaram seguindo. O que ela pedira era um quase nada e custaria tão pouco! Raymond considerava. Não precisava deixá-la assim tão triste. Além do mais, os moradores de sua propriedade, seus vassalos mais distantes deveriam vê-la, como os habitantes da vila já tinham feito. Eles tinham que conhecer sua valiosa, ousada e bela esposa.

Sentiu orgulho novamente, como quando vira a expressão surpresa de Montross diante de Elizabeth.

— Pode vir comigo — concordou, por fim, vendo que ela tornava a erguer a cabeça.

No entanto, sua expressão não parecia feliz. — Talvez fosse melhor para mim permanecer aqui. — Mais eu disse que pode vir comigo.— E isso é uma ordem, meu senhor? Confuso, Raymond meneou a cabeça.— Não… Eu… gostaria que me acompanhasse. Elizabeth tornou a baixar a cabeça, passou a mão pelo rosto…

Estaria disfarçando a presença de lágrimas?Raymond tornou a interromper os passos, tomando-a pelos ombros

e encarando-a. Mas ela teimava em manter o rosto baixo.— Se eu o embaraço, senhor, ficarei feliz em permanecer no castelo

— insistiu.Embaraçá-lo… E como isso poderia acontecer?!, Raymond

imaginou. Sendo a mais bela e apaixonada esposa que poderia esperar

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encontrar?— Não, você não me embaraça, Elizabeth.Mas, ela continuava a olhar para o chão. Ou talvez fossem suas

roupas. Devia ser isso! Ela tinha vergonha das roupas que usava! Iria comprar-lhe roupas novas com um pouco do dinheiro do dote.

— Elizabeth, não me envergonho de você — repetiu, querendo vê-la mais animada.

Ela ergueu os olhos, os esplêndidos olhos que brilhavam de modo incrível e que o conquistavam mais e mais a cada momento. Havia esperança e de vida neles.

— Não se envergonha de mim? — indagou ela em voz extremamente suave.

— Mas é claro que não!— Então… ficarei muito feliz em acompanhá-lo na ronda pela

propriedade. Desde que disponha de uma, égua boazinha, e não pretenda seguir com muita pressa. Deve lembrar-se senhor, que embora não muito, ainda estou um pouco dolorida…

— Estou feliz por ver que tem um bosque tão grande, meu senhor! — Elizabeth comentou, cavalgando ao lado do marido numa égua excepcionalmente mansa.

A temperatura estava um tanto baixa, mas, acima deles, o céu estava magnífico, de um azul profundo, intenso. Não havia neve cobrindo o terreno e, ao sol, poderiam imaginar, até, que estavam na primavera.

— Sabe, quando eu e meu tio nos aproximávamos do castelo, vindo pelo lado oeste, devo confessar que minha impressão era a de que ele estava num terreno muito árido.

Ao contrário, como podia ver agora, ao sul e leste havia matas de vários tipos e tamanhos. E, como predissera, o dia estava maravilhoso para cavalgarem. Elizabeth estava feliz como nunca, seguindo ao lado de seu marido, os soldados vindo pouco mais atrás, caçados e, servis. Mas não havia mais ninguém observando-os.

Em Donhallow, era sempre o alvo dás atenções. Não, que não estivesse acostumada a isso, o que era comum no convento, mas o motivo de ser observada naquela época, era por causa dos seus erros. As garotas e mulheres que lá estavam sempre à viam como foco de problemas ou olhavam-na apenas porque sentiam pena, por verem como era castigada.

Já em Donhallow, mesmo chamando a atenção de todos, Elizabeth percebia, que, ao surpreender olhares, as pessoas baixavam a cabeça e coravam, e muitas vezes desviavam o olhar, como se fossem eles os pecadores. Todos, menos Rual. Ela sempre encarava Elizabeth com

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franqueza, o que a agradava. E isso, como sempre se lembrava, ia contra os princípios básicos sobre uma dama, que lady Katherine lhe ensinara.

Aliás, lembrando-se de lady Katherine, Elizabeth dava-se conta de que jamais percebera naquela mulher o menor traço de felicidade. No entanto, uma das últimas garotas a entrar para o convento, dissera que ela estava casada. Isso não parecera ser possível, já que era uma mulher tão austera, e Elizabeth imaginava que tipo de homem poderia ter conseguido conquistar o coração de sua antiga mãe adotiva. Um homem tão severo quanto lorde Kirkheathe, talvez…

Ela ergueu os olhos para vê-lo, altivo e elegante, a seu lado, e sentiu-se, de repente, muito parecida com lady Katherine, desejando que aquela mulher fosse feliz em seu casamento.

Um coelho apareceu correndo, logo adiante, depois parou, no meio da estrada, olhando, assustado e curioso, como se não pudesse acreditar que alguém ousava perturbar sua paz naquele local. Em seguida, sempre muito rápido, ele sumiu dentro da mata. Elizabeth riu do jeito do animalzinho e Cadmus, latindo, saiu correndo em sua perseguição.

— Espero que ele não o alcance — desejou ela. — Seria uma pena ver um bichinho tão gracioso terminar seus dias nos dentes de um cão…

— É da natureza canina perseguir coelhos — respondeu Raymond, sério.

— Ah, mas eu queria que aquele escapasse de tal destino! Cadmus terá velocidade suficiente para pegá-lo?

— Ele é um bom caçador…— E o senhor também, não? Mas não trouxe seus falcões… — Hoje não é dia de caçada.— Para nós, não. Mas, para Cadmus…— Com efeito. Para Cadmus, sim.Continuaram em silêncio e, conforme seguiam, Elizabeth percebeu

o quanto se sentia livre e feliz. E o quanto gostaria que a reverenda madre a visse. Era como se sua alegria atual pudesse compensar todos os anos de sofrimento pelos quais passara.

No entanto, a conversa que acabara de ter com o marido, a fizera pensar em comida e isso a levava a pensar nas garotas que tinham ficado no convento. Com sorte, uma delas poderia ficar ousada o suficiente para continuar roubando comida para as menores…

Foi então que Elizabeth teve uma idéia. E, quanto mais pensava nela, mais animada ficava. Se, seu marido se mostrasse aberto a sua proposta, escreveria ao bispo que cuidava do convento, contando em detalhes, sobre as privações que as garotas eram obrigadas a sofrer

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apesar do dinheiro enviado por suas famílias para seu sustento e bem estar, com certeza, o bispo teria de prestar atenção ao que a esposa de um nobre dizia.

Devia ter pensado nisso antes, concluiu Elizabeth, e não colocar seus interesses egoisticamente, adiante dos demais.

— Está se sentindo bem? — Raymond indagou e ela voltou-se para ele, sorrindo.

— Sim… Não… Bem meu senhor, na verdade, eu estava pensando…

-E pensando profundamente.— É bem verdade. Poderíamos parar por alguns momentos? Acho

que um pouco de tempo longe da sela me faria bem. E, se houver algum riacho aqui por perto, um gole d'água seria bem vindo também.

Raymond assentiu e ergueu a mão direita. A tropa que seguia logo atrás parou de pronto. Ele desmontou e veio ajudar Elizabeth, segurando-a pela cintura e facilitando-lhe a desmonta.

Um calor repentino passou pelo corpo sela, ao sentir-se tão próxima do marido: E, erguendo os olhos para encontrar os dele, notou, feliz, que não era a única vítima de tal sensação.

Naquele momento, Cadmus reapareceu, vindo de dentro do bosque, a boca aberta, a língua pendente, mas, sem nenhum sinal de ter pego o coelho.

— Ele fugiu — Elizabeth murmurou, satisfeita. — Bem que o achei inteligente!

— O coelho?— Sim, meu senhor. O coelho.Raymond meneou a cabeça e depois voltou-se para os homens, que

aguardavam suas ordens.— Fiquem aqui — disse e, segurando a mão enluvada de Elizabeth,

voltou-se para o cachorro, dando-lhe a mesma ordem: — Fique!Sentindo-se enrubescer, Elizabeth olhou sobre o ombro, para os

soldados que relaxavam a postura, junto a seus cavalos.— Meu Deus, o que eles poderão pensar que vamos fazer? —

murmurou, quase sem sentir.— Eles a ouviram pedir água.— Espero que sim. Bem, mas talvez eu deva ficar encantada se eles

imaginarem que o senhor não consegue mais ficar sem mim, nem mesmo por meio dia.

Raymond tornou a sorrir, apertando mais a mão que prendia a dela, enquanto seguiam pelo bosque.

Talvez ele estivesse pensando em fazer algo mais além de beberem água, e visão de uma cabana abandonada a alguns metros de distância

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fez com que isso parecesse uma possibilidade para Elizabeth. Até que ele parou junto a um pequeno córrego, dizendo apenas:

— Beba.Ela se ajoelhou à margem e, com as mãos postas em concha,

bebeu a água límpida e fresca. Voltou-se, então, notando que lorde Kirkheathe a olhava com intensidade. Sentiu haver desejo naquele olhar.

— Não… está com sede também, meu senhor? — indagou, submissa.

Ele negou com a cabeça.— Nem com fome?Um sorriso lento apareceu em seus lábios.— Eu também — Elizabeth sussurrou, levantando-se. Muito embora meu estômago esteja satisfeito…Um brilho intenso surgiu nos olhos de Raymond. Poderia nunca

mais haver um momento tão oportuno, tão delicioso, pensou.— Sabe, as moças que ficaram no convento… devem estar famintas

— Elizabeth comentou, deixando-o surpreso com a mudança de assunto. — Acha, senhor, que eu poderia escrever ao bispo e contar-lhe todo o sofrimento pelo qual elas passam lá? Tenho certeza de que a reverenda madre é muito bem paga para cuidar das moças, mas fica com a maior parte do dinheiro.

Respirou fundo e continuou:— Infelizmente, há pouquíssimos visitantes e as garotas são

proibidas de escreverem para suas famílias, muito embora poucas delas saibam como fazê-lo. E agora que estou livre, graças ao senhor, acho que seria muito egoísmo de minha parte se nada fizesse para ajudar minhas antigas colegas de infortúnio. Acho que devo ajudá-las. Podem não ter a sorte que tive, dê casar-se com um homem como o senhor, e… — Ao ver a expressão no rosto do marido, Elizabeth interrompeu-se.

— Isso é um outro pedido? — indagou ele, erguendo as sobrancelhas.

— Não estou pedindo por mim, senhor, mas pelas moças. E eu me envergonharia se as esquecesse.

— Então, escreva ao bispo.— Oh, obrigada, meu senhor! — Elizabeth aproximou-se, exultante,

e abraçou-o. — E tão generoso!— Talvez não adiante…Ela ergueu os olhos, o sorriso menor nos lábios.— Mas vou tentar assim mesmo. Pelo menos, a reverenda madre

saberá que não pretendo guardar silêncio, sobre o que acontece lá dentro.

Raymond ergueu as sobrancelhas.

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— Guardar silêncio? Você? — comentou.— Falo demais para seu gosto, não é, meu senhor? Mas posso me

calar, se isso o agradar.— Não, isso não vai me agradar. Fale-me sobre a reverenda madre.Uma expressão de repulsa apareceu no rosto de Elizabeth.— Eu prefiro não fazê-lo, senhor — disse, humilde.— Então, fale-me sobre as moças.— Não há muito a dizer. Não tínhamos muitas oportunidades para

conversar, portanto, quando digo que posso ficar calada, acredite, meu senhor. Ficávamos semanas sem falar. E não podíamos conversar quando estávamos em nossas celas, para dormir. Também não podíamos quando estávamos trabalhando, nem quando havia missa, e muito menos a mesa, durante as refeições. — Elizabeth recomeçou a caminhar e Raymond a imitou, seguindo-a de perto.

— É, foi muito difícil para mim. E essa era uma das razões pela qual fui punida. Sabe, eu tentava apenas sussurrar, mas sempre me ouviam… Acho que sempre fui muito melhor sem roubar comida…

— E como era punida?Ela engoliu em seco antes de responder:— Batiam em mim com um açoite, como já pôde notar pelas

cicatrizes em minhas costas. Também me obrigavam a fazer vigílias freqüentes e a esfregar o chão, porque sabiam que eu detestava fazê-lo. Sabe, a água fria, as pedras em meus joelhos… Havia dias em que eu achava que meus joelhos jamais parariam de doer.

— Continue.— Não há mais nada a dizer. Não sobre aquele lugar terrível. Mas

gostaria de falar sobre outras coisas.— Muito bem. Como quiser.— Não temos que voltar? Os soldados estão esperando… — Deixe-os esperar.

Capítulo 10

Lorde Kirkheathe caminhou até um tronco caído e sentou-se. Então fez um sinal a Elizabeth para que fizesse o mesmo, a seu lado. Ela se sentia livre para pensar, falar e agir. E, com tal liberdade, contou a seu marido sobre seus pais e sobre suas mortes prematuras, sobre os anos todos em que foi levada de casa em casa de parentes e conhecidos, sobre o período breve, porém feliz, em que ficou morando na casa de lady Katherine DuMonde.

— Sabe, ela era muito parecida com o senhor. Exceto, é claro, pelo fato de ser mulher. Era muito severa e acreditava que a disciplina era a

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resposta para tudo na vida.— Disciplina?— Sim. E sei que o senhor insiste para que ela seja seguida,

também. Seus homens são muito bem treinados, com certeza muito melhores do que os de meu tio. Sabe, nas duas vezes em que paramos em hospedarias em nosso caminho até Donhallow, eles saíam, jogavam e bebiam, até cair. Meu tio tinha um trabalho e tanto tentando reuni-los novamente. Se não estivesse com tanto medo do que me guardava, acho que até teria me divertido.

— Acha que sou rígido?— Não pode negá-lo, senhor… mas… estou começando a notar que

não é assim o tempo todo. Não, quando estamos a sós, como agora.Elizabeth tocava-lhe o braço e olhava-o com uma afeição que

crescia a cada instante.— Ia beijar-me antes, senhor?Raymond sorriu de leve. Levantou-se, então, e ofereceu a mão

direita a Elizabeth.— Acho que os homens já esperaram demais — disse.Ela aceitou a mão que lhe era oferecida, não sem certo pesar. Mas,

assim que se levantou, Raymond puxou-a para si e beijou-a com tamanha paixão que a deixou sem ar.

— Além do mais, você está dolorida — sussurrou junto aos lábios dela, deslizando os seus pelo pescoço que Elizabeth oferecia.

— Mas já me sinto melhor… — observou ela cerrando os olhos. — Os homens não poderiam esperar um pouco mais?

— Não. — Raymond afastou-se, deixando-a profundamente decepcionada. Mas seus olhos brilhavam e havia uma expressão alegre e maliciosa em seu rosto. — Você me parece arrebatada…

— E como não havia de estar, senhor? Se me beija dessa forma… Imagina que eu poderia estar calma e não querer mais? Sabe de uma coisa? Acho que é um patife, meu senhor. Um belo e tentador patife.

Patife era a palavra mais leve que ela pudera encontrar, já que aquele olhar e aquele sorriso que Raymond trazia no rosto eram, nada mais da que a própria versão da mais maldosa sedução.

— Quando não estiver mais dolorida, vai ver que tipo de patife eu posso ser — ele prometeu, deixando-a com as pernas trêmulas só em imaginar.

— Talvez… esta noite, meu senhor?— Quando estiver pronta.— Bem, talvez não tenhamos que fazer tudo o que fizemos ontem à

noite… — sugeriu Elizabeth ansiosa.— E você não ia pedir mais nada… –Raymond sorriu novamente e

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tomou-a em seus braços. Os homens teriam de esperar um pouco mais…

— Não pode ser verdade! — Fane Montross murmurou para si mesmo, alguns dias mais tarde, ao olhar para a mulher.

Pegou uma pequena pedra que se soltara da parede e lançou-a, com raiva, em direção ao local onde, um dia, houvera uma lareira.

— Como ela pode gostar daquele cretino?!Rual deu de ombros.— O que sei eu? O que sei ao certo é que ela está se apaixonando

por ele, apesar do que você possa pensar. E ele também, está se apaixonando por ela, sé é que quer saber.

— Tem certeza?!— Bem, eu tenho olhos. E parece-me bastante, evidente. Tenho-os

observado de perto desde que ela chegou e posso afirmar que ele está diferente. Quase gentil.

Fane torceu os lábios, em desagrado.— Raymond, gentil… isso eu até pagaria para ver.— Duvida do que estou lhe dizendo?— Não. Acredito em sua palavra.— E ela está feito uma garota tola que encontrou o grande amor de

sua vida. Sinto meu estômago virar só em olhá-los. — Ela não faz idéia de que você o está enganando?— Não sou nenhuma tola. É claro que não!— E não imagina quem você seja… ou melhor… quem foi sua

família?— O conde penso que todos estávamos mortos quando roubou

nossas terras e chamou o rei para dar a D'Estienne o título que pertenceu a meu pai.

— Seu pai era um traidor.— Sim, mas minha mãe, não! E nem eu! Não havia motivos para o

rei tirar-nos nosso sustento!— O motivo, ao que sei, Rual, foi a lei. A fortuna de qualquer traidor

é propriedade do rei. Confesso ter me surpreendido com sua ousadia ao voltar.

— Não me venha com essa história sobre lei, sir Fane! Conheço a lei muito melhor do que você! E por que eu não voltaria? Tenho muito mais direito de estar aqui do que Raymond D'Estienne e farei justiça com minhas próprias mãos!

— Tenha cuidado quando fala comigo, mulher! Eu poderia matá-la agora e não haveria conseqüência alguma, muito menos remorso de minha parte! Seu corpo seria encontrado num bosque e todos culpariam

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ladrões ou ciganos por sua morte. Eu jamais seria suspeito.Rual sorriu, irônica.— Poderia matar-me, sim, mas perderia sua espiã em Donhallow.

Todos lá dentro respeitam lorde Kirkheathe como se ele fosse um deus e temem-no demais.

— Então, diga-me, Rual, por que não o mata?— Para quê? Para ser enforcada? Odeio aquele homem e toda sua

família, mas penso muito mais em minha vida.— E se descobrissem que é uma espiã? Tem certeza de que ele não

desconfia de nada?— Absoluta.— Sabe muito bem que jamais conseguirá sua propriedade de volta,

mesmo que ele esteja morto, não sabe?— Sim, eu sei. Mas, por enquanto, apenas ajudarei o inimigo

daquele infeliz a destruí-lo e ganharei um bom dinheiro com isso.— É verdade. — Fane tirou de um armário próximo um pequeno

saco de moedas de prata. — Com tudo que lhe pago, poderia ir para Londres e viver como uma rainha.

— Mas não sairei daqui até ver lorde Kirkheathe morto! — Rual pegou o dinheiro que ele lhe jogou.

— Ainda assim, acho que está correndo um grande risco.— Valerá a pena. Como disse, poderei ir para Londres e viver como

uma rainha quando ele morrer.— E isso será em breve, eu prometo. Os planos já estão em ação.

Muitas coisas podem acontecer, quando um homem está viajando, longe de casa…

— Sim, eu sei.Montross deu dois passos rápidos e segurou Rual pelo pescoço,

num movimento abrupto.— E é melhor manter essa sua boca enorme fechada, ouviu bem? —

ameaçou.— Assim farei — ela respondeu, quase sem ar.— Ótimo. Faça isso. Agora vá logo embora daqui antes que sua

ausência seja notada.

O sorriso de satisfação que Raymond trazia nos lábios desapareceu assim que cruzou os portões de seu castelo e um dos guardas veio lhe entregar a mensagem que estava lacrada com o selo do conde de Chesney. Leu-a e disse ao mensageiro que seguia um de seus soldados:

— Diga a ele que ficarei honrado em atender a seu chamado. O jovem, parecendo tenso, inclinou-se numa mesura.

— Como quiser senhor!

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— Fique esta noite no castelo e siga caminho amanhã, cedo. — Obrigado, senhor!Raymond levantou-se e foi até a janela para olhar, as amuradas de

seu castelo. Finalmente, o conde, seu senhor, maior, pedia-lhe que estivesse presente no seu Conselho de Nobres. Raymond vivera em seu castelo durante, toda a vida e o conde jamais o chamara, nem a seu pai, para participar de tal honra.

E, tendo o convite vindo logo depois de seu casamento, a razão parecia-lhe óbvia: estava, agora casado com a sobrinha de lorde Perronet, um amigo antigo e grande aliado do conde.

Montross não gostaria de saber do fato. Ele usufruíra da amizade do conde durante anos, chegara até a influenciá-lo em certas ocasiões, mas, agora, ao que parecia, tal influência já se enfraquecera bastante. Mais uma razão para Raymond estar feliz por ter desposado Elizabeth.

Entretanto, apesar do que pensara ao se casar com ela, a aliança com Perronet não era o motivo mais importante para sentir-se bem agora. Seu motivo tinha um nome: Elizabeth. Adorava estar em sua companhia, em especial quando estavam a sós, e não necessariamente na cama. Tê-la por perto já era um grande prazer e ouvi-la falar, ver seus olhos vibrantes, puros, era mais do que poderia desejar da vida.

Sabia que podia fazê-la feliz e que podia estar feliz por causa dela, o que era impressionante, pois casara-se com uma mulher esplêndida, ousada, inteligente, e bela…

Sentia-se um homem completo novamente, não mais o monstro de voz tenebrosa que assustava a todos.

Elizabeth estava na cozinha, naquele momento, discutindo o cardápio da semana com Lud. Embora gostasse da comida dele e estivesse até engordando um pouco, o que era absolutamente necessário dado o estado de magreza em que chegara a Donhallow, Elizabeth era uma mulher econômica e não queria desperdícios, o que também alegrava Raymond sobremaneira.

Mesmo assim, gastara muito com ela nos últimos dias.Comprara-lhe roupas, usando uma quantia de dinheiro que não

podia gastar. Mesmo assim, não se arrependia, pois ela ficara tão agradecida quanto naquela manhã em que permitira que ficasse mais tempo na cama. Até a gratidão que Elizabeth demonstrava era extremamente agradável.

O castelo do conde ficava no centro de uma grande cidade, pensou Raymond, ao deixar o solar. Talvez pudesse comprar um belo vestido para Elizabeth, verde ou vermelho, para combinar com seus olhos…

Talvez comprasse uma harpa, também, para dar a ela…Mas não precisava ir a Chesney para isso. Havia Jóhannes na vila,

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más então não seria uma surpresa…Gostava muito de surpreendê-la, de vê-la abrir aquele sorriso feliz,

de ver seus olhos se iluminarem. Sim, iria, definitivamente, comprar-lhe uma harpa e um belo vestido.

Quando entrou no hall viu que Elizabeth estava junto à lareira, sentada em um banco, e que o mensageiro estava a seu lado. De repente, um pensamento cruzou sua mente com a velocidade de um raio: o mensageiro era jovem, talvez tivesse a idade dela… E era um belo rapaz, talvez, até, um tanto parecido com Montross.

O pior de tudo era que Elizabeth estava rindo de alguma coisa que ele dissera. E, em passos largos, que fizeram sua túnica esvoaçar em movimentos elegantes, Raymond colocou-se diante deles em uma fração de segundo.

O mensageiro levantou-se de imediato, assustado, pálido.Elizabeth olhou para o marido, interrogativa, e franziu as

sobrancelhas.— Sim, meu senhor? — indagou inocente.— Venha comigo.— Certamente. — Ela estava calma. — Com licença, Douglas.

Raymond retornou ao solar sem olhar para trás. Lá, esperou alguns segundos por Elizabeth, que o seguia, mas que não pudera acompanhar a velocidade de seus passos.

— Sim, meu senhor? O que houve? — perguntou ela, assim que entrou, um tanto cansada.

— Fui convidado a ir até o castelo do conde de Chesney, para fazer parte de seu conselho.

Elizabeth arregalou os olhos.— E isso é mau?

Raymond negou com a cabeça.— É bom, então? Oh! — Elizabeth deixou-se sentar sobre uma

cadeira próxima, aliviada. — Imaginei que fosse algo terrível! Pois, o senhor agiu como se fosse… Assustou-me demais!

Raymond não tencionara assustá-la, O mensageiro, sim, mas não ela.

— Alguma coisa mais? — Elizabeth indagou, olhando-o. — Há algo mais… Eu… não devo ir com o senhor, devo?

— Não.— E vai ficar fora por muito tempo?— Alguns dias.— Não gosto de pensar que estará ausente, meu senhor. Mas devo

confessar que me sinto um tanto aliviada. Sabe, ainda não estou

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acostumada com as deferências de uma esposa de nobre…Raymond foi até a janela e olhou para o céu.— Mas parecia estar gostando muito disso há alguns minutos….E, para sua surpresa total, ela riu e confessou:— É verdade!Ele se voltou, muito sério, e o riso desapareceu do rosto de

Elizabeth.— Meu senhor o que fiz de errado? — perguntou ela, levantando-se

e vindo em sua direção. — Mal falei com o mensageiro do conde e admito que, depois do convento, onde era tratada quase como um animal, passei a apreciar a atenção das pessoas, mas isso não significa que me sinta confortável assim… Se o conde não é seu inimigo, que mal há em ser gentil com seu emissário?

Raymond cerrou os dentes e deu-lhe as costas, voltando a olhar pela janela. Elizabeth, porém, tocou-lhe os ombros e puxou-os em seguida, para forçá-lo a olhar para ela — Fale comigo, senhor… O que fiz de errado?

— Não gostei do modo como ele a olhou.— Do modo como… — ela começou a repetir, mas parou,

obviamente atônita, retirando as mãos que o tocavam. — Ele estava apenas sendo educado.

— Estavam rindo juntos.— Ele me disse que achou o senhor intimidante e eu disse que

pensava da mesma forma, então eu ri e ele acabou por relaxar os nervos e riu também. É dever da dona de um castelo deixar seus hóspedes à vontade. Não vejo mal no que eu fiz ou disse, e nem no fato de ter rido.

Ele nada disse e, após alguns, momentos durante os quais seus olhares se cruzaram, Elizabeth começou a entender.

— Senhor… não pode… não pode estar com ciúme!Raymond deu alguns passos em direção a porta. Não se explicaria

para com ela. Não tinha obrigação de fazê-lo. Era seu marido e ela devia entender que…

Mas Elizabeth correu à sua frente e colocou-se entre ele e a pesada porta.

— Está com ciúme por causa daquele rapaz?! — perguntou, parecendo incrédula.

— Sai do meu caminho.— Não, até me dizer a verdade!Raymond, porém, nada disse.-É verdade… — Ela parecia estar chocada. — Meu Deus, não posso

acreditar! Isto é… é ridículo!— Você é minha esposa!

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— Sim, sou, mas… Uma esposa que não é bela…— Parede ser modesta!— Não estou sendo modesta, Como também não sou vaidosa. O

que vai me dizer em seguida? Que Cadmus também é belo? Ou é apenas porque sou sua que devo, ser fria e distante para com todos os outros? Se é isso que espera de mim meu senhor, tentarei obedecer, mas não é, com certeza, o modo como fui ensinada que uma dama deva proceder. Além, do mais, não me sinto feliz por ver que o senhor imagina-me fútil o suficiente para encarar os votos do casamento de maneira tão irresponsável! Portanto, se foi por esse motivo que procedeu, de modo tão grosseiro no hall, acho que me deve desculpas!

— Desculpas? — Raymond rosnou.— Senhor, quero que me ouça e marque bem as palavras que vou

dizer: eu jamais serei motivo de desonra para o senhor! Fiz meus votos de fidelidade diante de Deus e serei sua esposa fiel e companheira até a morte!

Ele assentiu. Acreditava que Elizabeth fosse do tipo que se prende aos votos feitos. Mas, se não fosse dono de seu coração, não importava se, ela agiria ou não de maneira a desgraçá-lo pudesse honrá-lo. Olhava-a, vendo sua determinação, defendendo sua honra com tanta altivez, e percebia que a vida sem Elizabeth seria vazia, sem graça e sem importância.

— Sou uma mulher honrada, embora não bonita, meu senhor — ouviu-a murmurar e sentiu que havia magoa em sua voz.

— Espere aqui — ordenou então, e sem esperar que ela dissesse alguma outra coisa, deixou o solar e seguiu até seu quarto, subindo a escada de dois em dois degraus.

Foi até seu armário e, vasculhando entre as peças de roupa, encontrou o espelho que colocara ali anos antes, quando não mais suportara olhar para á terrível cicatriz em seu pescoço.

Pegou o objeto de prata e desceu de volta ao solar, onde Elizabeth ainda o esperava. Entregou-lhe o espelho, mas ela não se moveu.

— O que significa isto? — ela murmurou.— Nunca viu um espelho?O lábio inferior de Elizabeth começou a tremer.— Por favor, não faça isso comigo, senhor. Eu lhe imploro! Não me

humilhe assim!Ele praticamente enfiou o espelho nas mãos dela e esperou. Mas

ela cerrou os olhos, recusando-se a olhar.— Olhe! — Raymond ordenou. Depois, vendo que ela continuava

com os olhos fechados disse, em voz mais suave:— Olhe-se no espelho. Elizabeth.

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Ela apertou os lábios um contra o outro e, hesitante, obedeceu.Então, seus olhos se arregalaram e, sua boca se entreabriu.— Mas… não pode ser eu…— Mas é.— Não é possível! Poderia ser minha prima Genevieve, mas não eu.

Meu tio não estava mentindo, afinal…Para surpresa de Raymond, ela não parecia estar feliz.Estava, isso sim, perdida, angustiada.— A reverenda madre sempre dizia que eu era feia e ninguém a

contradizia. E, é claro, não havia espelhos no convento.Elizabeth ergueu os olhos tristes para o marido. Sua voz não era

mais do quê um lamento:— Por que ela sempre dizia que eu era feia?— Para feri-la — respondeu ele, em tom suave. — E para quebrar

sua força interior.— Eu, estou quase desejando que não me tivesse mostrado este

espelho… — E devolveu-lhe o espelho, com mãos trêmulas. — Sinto-me tão…confusa… Quando as pessoas da vila, seus homens e Montross, olharam para min, imaginei que sua atenção fosse apenas porque sou sua esposa. Não fazia a menor idéia de que pudesse ter algo a ver com minha aparência. Sou… sou a mesma pessoa que sempre fui, mas… — Elizabeth interrompeu-se, os olhos cheios de lágrimas. Sentou-se numa cadeira próxima, parecendo prostrada.

Quem estava confuso agora era Raymond. Uma mulher não deveria estar feliz por ver o quanto era bela?, pensou.

— Por que está assim? — perguntou.— Foi por isso, então, que me aceitou por esposa, meu senhor? É

por isso que faz amor comigo tão… tão ardentemente? Porque sou bonita?

Raymond ajoelhou-se junto dela, tomando-lhe as mãos pequenas nas suas.

— Lembra-se da primeira vez em que ficamos a sós? — perguntou. — Foi diferente de nossas outras noites, não?

Ela a penas assentiu, sem encará-lo.— E você era, naquela primeira noite, como é agora. Você é muito

linda, Elizabeth, mas é muito mais do que isso.— Sou? — Ela finalmente o olhou. Raymond passou o polegar por seu rosto, secando uma lágrima que

rolava.— É sim.— Fico… feliz por ouvi-lo dizer isso, meu senhor. Tive tanto medo…Ele não compreendia. Medo do quê? Elizabeth era a mais corajosa

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mulher que já conhecera.— Tudo… tudo o que aprendi a observar na reação das pessoas à

minha presença, foi uma mentira — ela começou a falar, explicando seus sentimentos. — E a muito que me senti feliz por ver que o senhor via mérito em mim apesar de minha falta de beleza. Fiquei horrorizada. Imaginando que poderia não haver nada mais do que isso, então…

Ela ergueu as mãos, acariciando-lhe o rosto.— Mas o senhor pode entender melhor do que ninguém o que sinto.

O porquê quero que tudo continue como antes… Eu.. tinha uma idéia sobre o mundo e sobre meu lugar nele como uma mulher simples, sem importância, sem valor… Como o senhor mesmo tinha uma idéia sobre o mundo e seu lugar nele antes de ter sua confiança quebrada e sua voz arruinada… Deve ter sido tão difícil, não? Estou arrasada, e o que acabei de descobrir devia deixar-me feliz. E o senhor aprendeu a ligar com algo muito, pior… Nem posso imaginar o quanto deve ter sofrido… Meu pobre Raymond…

Ele engoliu em seco. Cerrou os olhos e agradeceu a Deus por ter-lhe enviado Elizabeth por esposa. Porque ela compreendia tudo pelo que passara e como seu mundo havia se alterado.

— E acho que você a amava… — ela acrescentou, sem voz. Desde a traição de Alicia, ele tentara esquecer que sentira amor por

uma mulher. Estivera tão desesperado, sentindo tanto medo e raiva, que não podia admitir a si mesmo que, certa vez, uma mulher fora importante em sua vida.

E, naquele momento, ouvindo Elizabeth dizer aquelas palavras, algo parecia se quebrar em seu coração. Era o muro de defesa que construíra para se proteger do mundo e do amor.

— Sim, eu a amei — confessou, por fim, livre de seus sentimentos. — Oh, Deus, eu a amei tanto! — E deitou a cabeça sobre o colo de Elizabeth, para que ela afagasse seus cabelos com ternura e compreensão.

Capítulo 11

Elizabeth passou os braços pelos ombros de Raymond e acalentou-o. E, enquanto acariciava-lhe os cabelos, percebeu que jamais pensara ser um homem capaz de ter o coração partido, como acontecia com as mulheres. E Raymond mostrava-lhe, ali, naquele momento, que carregava o peso da perda e da traição e que tinha uma lembrança física permanente de tais sofrimentos. Não, ele não era apenas ossos e músculos num corpo atlético e viril. Aliás, nos últimos tempos, ela própria vinha notando o quanto ele podia ser carinhoso. Um homem

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capaz de amar como Raymond podia ser seriamente ferido pelas emoções…

O que ela sofrera, comparado ao que via nele? E ouvira-o confessar o quanto amara sua primeira esposa…

Então ele ergueu o olhar para fixá-la e disse, com a voz embargada:— Eu a amei porque Alicia era linda, porque eu tinha orgulho por

ela me aceitar. Mas havia algo mais… Sei agora que não a amei por ela mesma. Não, como amo você.

Elizabeth encarou-o, por instantes, sem ousar acreditar no que acabara de ouvir. Raymond prosseguiu, como se quisesse deixar patente a verdade de suas palavras:

— É verdade. Jamais senti por Alicia o que sinto por você, jamais me importei tanto… E ela nunca me fez feliz como você consegue fazer. Além do mais, sei que ela não seria capaz de aceitar um homem com uma voz como a minha.

— Oh, Raymond… — ela murmurou, já chorando, completamente tomada pela emoção, pela alegria de tal revelação.

Acariciou-lhe o rosto, enternecida e indagou, com um leve sorriso nos lábios:

— Não devemos voltar ao hall, meu senhor? O pobre mensageiro deve estar imaginando que está em sérios problemas, ou que eu estou.

— Ainda não — pediu ele, levantando-sê.— Bem, devo dizer que estou feliz por saber que o senhor não

precisa ter vergonha do rosto de sua esposa. Sabe, cheguei a imaginar que Montross, pudesse estar com pena por isso. Acho que foi por isso que reagi com tamanha ousadia diante dele naquele dia e que temi ter de alguma forma, envergonhado o senhor.

— Não, de modo algum! Eu gostei!— Gostou? Não… tolerou meu comportamento apenas?Ele sorriu.— Não.— Se eu soubesse então que era bonita, não tinha tido tanto medo.

Talvez até fosse mais impertinente e desse a seu inimigo motivos para invejá-lo.

— Ele já o faz. E espero que você nunca mais sinta medo de mim, Elizabeth.

— Acho que agora eu não sentiria mesmo que quisesse. No entanto, não quero manchar sua reputação, meu senhor. Talvez eu devesse fingir estremecer quando se aproxima de mim?

Raymond tocou-lhe o rosto com carinho ao responder:— Quero que haja apenas um motivo em você para estremecer

quando, estou próximo.

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— E o que seria?Ele sorriu novamente, fazendo-a corar e segredando-lhe, os olhos

brilhantes de paixão.— Vou sentir muito sua falta quando for a Chesney. — Sinto que o convite do conde tenha sido individual, minha cara.

Mas saiba que também sentirei muito sua falta.Dessa vez, foi ela quem sorriu. Seu coração se iluminava diante da

sinceridade que percebia nas palavras dele.— Temos algum tempo antes do jantar… — sugeriu, maliciosa.— Elizabeth?— Sim, meu senhor?— Venha comigo até nosso quarto.— E quanto ao mensageiro?— Está bem. Vamos primeiro, voltar ao hall e assegurar ao rapaz

que ele não está correndo perigo algum. Depois seguiremos para nosso quarto. Está bem assim?

Ela riu feliz.— Como desejar, meu senhor.

Raymond passou o olhar austero pelo rosto dos nobres que se reuniam no Conselho, no Castelo Chesney. Jamais, com exceção de uma vez em Londres, estivera entre tantos nobres do reino como agora. Estava também impressionado com o tamanho e a suntuosidade da decoração no hall do castelo. Era óbvio que seu dono era um homem de imensas posses e de muito poder.

Mesmo assim, Raymond estava ali atendendo a um convite e não a uma ordem. Isso o fazia sentir-se à vontade.

Mas havia algo mais que o deixava feliz naquela manhã: o pensamento sobre a harpa que comprara para Elizabeth no dia anterior, assim que chegara.

Também encontrara um tecido maravilhoso para mandar fazer-lhe um vestido, e uma camisola de seda muito suave que decidira levar também para agradá-la ainda mais. Custara-lhe muito, mas, quando imaginara sua esposa usando a delicada peça, não resistira ao impulso de comprá-la.

Fora tentado também a seguir de volta para casa com seus presentes, mas o dever o mantivera ali.

— Lorde Kirkheathe, que grata surpresa! — murmurou uma voz em seu ouvido.

Ele se voltou para encontrar o tio de Elizabeth logo à sua esquerda. — Lorde Perronet… — saudou, com uma breve mesura.— Como está minha sobrinha?

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— Bem.— Já está grávida?— Estamos casados há apenas um mês, senhor — Raymond

lembrou-o com certa repreensão na voz.— Sim, é claro… Bem, ela é… digamos… Não… a acha… — Elizabeth é perfeita para mim. — Essa era uma descrição simples

de tudo que ela significava em sua vida, mas sabia ser o suficiente para satisfazer a curiosidade de Perronet, o qual pareceu bastante aliviado.

— Ah, lá está lorde Lockington! Tenho algumas coisas a discutir com ele. Se me permite, senhor, poderemos conversar mais tarde.

Raymond inclinou a cabeça e, agradecido pela aparição providencial do outro nobre, viu Perronet afastar-se.

— Mas, em nome de Deus, se não é Raymond DEstienne! — Outra voz conhecida o fez sorrir: Era o barão de Clarewood que vinha apressado, em sua direção. — Estou muito feliz por vê-lo aqui, meu amigo! — O barão sorria abertamente, como era seu costume, mas parecia haver uma certa preocupação em seu olhar ao indagar: — Está aqui por convite ou ordem?

— Convite.— Ah! Esplêndido! E já era tempo, não? Agora diga-me, é verdade

que, finalmente, se casou outra vez?Charles Clarewood sempre fora muito franco, desde a juventude, e

Raymond não se ofendeu com a pergunta.— Sim, é verdade.— E com a sobrinha de Perronet?Raymond assentiu.— Mais uma vez, esplêndido! Como ela é?Ele pensou por instantes, imaginado se haveria palavras corretas

para fazer jus a Elizabeth. E, diante da evidente impaciência de seu amigo, sorriu e repetiu o que já dissera antes:

— Ela é perfeita para mim.— Meu Deus! Isso só pode ser um milagre!— Pode-se dizer que sim.— E como ela é fisicamente? — Charles fez a pergunta olhando

para Perronet, que se encontrava distante, talvez imaginando se a esposa de Raymond seria parecida com o tio.

— Não, não é como ele — Raymond explicou, entendendo. — Ah, graças a Deus! E, sabe de uma coisa, essa moça fez bem a

você! Posso ver isso muito bem! Que maravilha, meu amigo! Que maravilha! — E bateu várias vezes no ombro de Raymond, com tanta familiaridade, que muitos dos nobres que conversavam ao redor tiveram sua atenção chamada para o fato.

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Charles, notando-os, chamou:— Venha para cá, meu amigo, onde poderemos conversar com

maior privacidade. — E puxou-o para um local mais afastado. — Já faz cinco anos que não o vejo! E deveria ter me convidado para o casamento, ouviu? Bem, mas não faz mal. Sabe que fez uma aliança e tanto, não? Sem dúvida! A prima dela está casada com alguém da família DeLanyea, como deve saber.

— Ouvi dizer, alguma coisa a respeito. — Raymond não lamentava ter perdido a noiva antes prometida.

— Então, meu caro, isso significa que você está ligado a uma das mais famosas famílias dos Marches. Podem até ser metade galeses, mas são muito bem-vistos! Grandes amigos de Urien Fitzroy, também, que é um dos maiores treinadores de lutadores da Inglaterra! Meu próprio filho, Alexander, está quase terminando seus estudos com ele. Se havia, alguém no mundo capaz de colocar disciplina na cabeça daquele rapaz, só podia ser Fitzroy! Mesmo sendo meu filho não posso negar o quanto era teimoso e voluntarioso. E, sabe de uma coisa? Alexander tem a melhor mira em todo o Reino! Se consegue ver um alvo, consegue atingi-lo. Pouca disciplina, como eu disse antes, mas agora, graças ao trabalho de Fitzroy, ele está excelente!

Enquanto Charles falava sem parar, Raymond imaginava como seria ter um filho. E, com Elizabeth como mãe, certamente teria orgulho de seus filhos.

— Seu casamento também criou laços com o barão DeGuerre, sabia? — Charles observou, tirando Raymond de seu devaneio momentâneo. — Por que a surpresa? Não sabia? Perronet não lhe falou dos relacionamentos que seu casamento estaria criando?

— Não falou de DeGuerre.— Talvez porque Perronet tenha suas reservas quanto ao

nascimento de suas amizades e parece-me que DeGuerre nasceu bastardo…

— Meu próprio pai não nasceu nobre — Raymond lembrou-o.— Foi premiado por seus serviços fiéis e dedicados à coroa.— Sim, eu me lembro… Foi-lhe dada a propriedade de um outro

homem…— Sim. A propriedade de um traidor.— Bem, mas isso foi há muito tempo e ninguém pode negar que

seu pai serviu o conde muito bem. E agora que você está, de alguma forma, relacionado com os DeLanyeas através de seu casamento e está também ligado ao barão DeGuerre, o que é formidável! Na verdade, eles são todos homens muito importantes, por isso, não me surpreende vê-lo aqui. Montross deve ter se mordido de raiva quando soube… Não é de

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admirar que não tenha vindo.Fane Montross não estava presente? Raymond sequer o percebera.

Charles continuava falando:— Ele mandou um recado, dizendo estar doente, mas não acredito.

Ou talvez esteja, afinal, doente por saber que você fez ligações tão importantes: — Charles notava a preocupação no rosto Raymond. — O que há? Achei que ficaria satisfeito…

Satisfeito?, Raymond repetiu para si mesmo. Como poderia ficar satisfeito se eslava longe de casa e Elizabeth estava lá, tendo Montross por vizinho? Ela sabia o que sentia pelo ex-cunhado e os motivos que tinha para sentir-se assim. Era uma mulher inteligente que também, não gostava de Montross. Saberia, com certeza, ter cuidado…

Raymond trouxera consigo apenas alguns de seus homens. Deixara os outros no castelo, sob o comando de Barden. Montross não seria tolo bastante para atacá-lo, em especial agora que o conde de Chesney tinha Raymond em alta conta.

Além do mais, Montross não tinha por costume uma ataque direto. Sempre usara e sempre usaria subterfúgios e estratagemas, o que poderia atestar quanto a veracidade de sua doença, impedindo-o de ir a Chesney. Não fosse por isso, ele estaria lá, sim, usando a oportunidade para colocar os outros nobres contra Raymond. Se achasse que Raymond estava ficando próximo demais do conde, estaria ali para garantir sua própria posição no Conselho como o mais influente.

A não ser, é claro, que imaginasse ter um motivo melhor para permanecer em casa…

Montross saberia que Elizabeth ficara em Do11haUow. Os habitantes da vila e os vassalos tinham visto quando Raymond passara pelas estradas apenas com sua comitiva. Se Montross ousasse por os pés em sua propriedade quando estivesse ausente, se tentasse visitar o castelo, se chegasse a tocar a mão de Elizabeth, Raymond não responderia por seus atos!

— Adeus, Charles. Preciso voltar para casa — disse, resoluto.— Voltar? Mas ainda não prestou homenagem ao conde! Se partisse

agora, isso seria considerado um grande insulto, ou até mesmo traição, já que o conde representa a coroa!

— Poderei me desculpar mais tarde.— Quando?— Enviarei uma carta ou virei pessoalmente.— Montross não ousaria… — Charles começava a perceber quais os

motivos que levavam Raymond a agir daquela forma.— Nunca se sabe do que aquele homem é capaz, Charles!— Raymond, isso é loucura! Esperou tantos anos por isto e agora…

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— Se o conde fizer perguntas, meu amigo, diga-lhe que assuntos da maior importância obrigaram-me a voltar para casa. Não posso ficar, Charles. Adeus!

— Senhora?Elizabeth ergueu a cabeça diante do chamado. Raymond partira há

dias, mas era como se Donhallow estivesse absolutamente deserto sem sua presença. Os dias demoravam a passar e ela procurava qualquer coisa que pudesse preencher seu tempo.

Como naquele momento, quando verificava as moedas que seriam dadas aos criados naquela semana. — Tinha, ainda, uma outra distração, mas esta ela mantinha para si mesma e assim procederia até a volta de seu marido.

— Sim? — respondeu para Rual.— Há uma mulher aqui que deseja falar-lhe.— Uma mulher?— Sim. Ela diz ser a mãe de Erick e que precisa de sua ajuda. Elizabeth pensara na família do vendedor ambulante nos últimos

dias, imaginando como estariam vivendo.— Eu a verei imediàtamente. Onde está?— Junto aos portões. Disse que não entrará mais do que isso. Isso parecia compreensível, considerando-se o modo como

Raymond expulsara-os naquele dia, pensou Elizabeth, levantando-se.— Vai falar com ela agora, senhora? — Rual indagou. — É claro.— Lorde Kirkheathe não está aqui, mas acho que ele não gostaria

disso…Elizabeth parou e voltou-se. Agora que sabia porque Raymond

tratara o vendedor e a família daquele modo, não mais temia sua raiva.— Não vejo perigo algum em falar com a pobre mulher nos portões

— esclareceu. — Talvez possa, até ajudá-la de alguma forma. Deve estar desesperada para vir até aqui e me procurar depois da maneira como foi enxotada de Donhallow. Por favor, cuide das moedas enquanto falo com ela.

Saiu apressada, esperando que a criada soubesse contar direito.Avistou a frágil criatura, que andava de um lado para o outro junto

aos portões.— Oh, senhora! — Ela se colocou de joelhos assim que Elizabeth se

aproximou.— O que houve? — Ela estendeu os braços ajudando a pobre

mulher a levantar-se. Estava preocupada com a expressão de sofrimento no rosto da infeliz. — Está, doente?

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— Não, minha senhora.— Graças a Deus. Mas… qual é o problema? Onde está Erick?— Com o pai, numa cabana abandonada, não muito longe daqui. Eu

vim porque… porque estamos passando fome, senhora! Meu marido não sabe eu estou aqui, acha que fui procurar comida no bosque, mas não vamos conseguir sobreviver com o que tenho encontrado pôr lá! Já quase não tenho leite e… e… — A mulher começou a soluçar.

Apesar do que Raymond pudesse pensar e da promessa que lhe fizera sobre consultá-lo antes de prestar caridade, Elizabeth não podia deixar que a mulher se fosse de mãos vazias.

— Não diga mais nada — pediu. — Venha comigo até a cozinha. Vou arranjar-lhe um pouco de comida.

— Oh, Deus lhe pague, senhora!— Qual é seu nome?— Hildegard, senhora.— Venha, Hildegard. E não chore mais.— Seu marido pode não gostar…— Bem, não posso dizer que ele vá se sentir feliz, mas… não vai se

zangar quando eu explicar a situação — Elizabeth garantiu.— É que… feri meu braço… Acho que não vou poder carregar muita

coisa… .— Não se preocupe. Irei com você. Aliás, eu adoraria ver Erick

novamente.— E vai… levar soldados?Elizabeth encarou-a.— Não deveria? — perguntou.— Talvez seu marido não aprovasse… Não quero causar-lhe

problemas…— Como eu disse, lorde Kirkheathe irá entender quando eu lhe

explicar o que houve. No momento, ele não se encontra no castelo.— Mas poderá ficar sabendo quando chegar e zangar-se com a

senhora… Elizabeth sorriu.— Vou arriscar para ver seu garotinho outra vez. Além do mais,

poderemos levar mais comida. Agora, pare de encontrar empecilhos e venha comigo.

Ainda vacilante Hildegard seguiu-a até a cozinha, onde, seguindo ordens de Elizabeth, os criados prepararam duas cestas, uma maior para ela levar e outra menor, para a pedinte. Os criados, mesmo sabendo que as ordens eram estranhas, nada disseram e obedeceram em silêncio.

— Sente-se por alguns minutos, enquanto vou buscar meu xale e algo mais quente para você usar, Hildegard — disse Elizabeth, num

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sorriso…E, enquanto esperava por sua benfeitora, a mulher continuava

tensa, como a saber que estava agindo mal.

Capítulo 12

Elizabeth trouxe um xale que já não usava para a mulher. Seguiu com ela até o pátio, onde pararam.

— Precisamos de uma pequena estratégia, Hildegard — avisou.Virando seu manto do lado avesso, para que, assim, ele ficasse da

mesma cor do manto usado por Rual, falou:— Veja, assim posso passar por minha criada. Ela está ocupada

contando algumas moedas e estaremos fora da vila quando ela terminar. Nem vai perceber que saímos.

Hildegard assentiu, notando que o disfarce, de fato, funcionava.— Bem, isso deve ser suficiente para enganar os guardas, mas

precisa falar comigo como se estivesse falando com Rual, entende? Afinal, nenhum deles espera que eu deixe o castelo.

— Tem certeza do que está fazendo, senhora?— Absoluta. Temos que levar esta comida a sua família e eu quero

ver seu filhinho. Há também algumas coisas que quero lhe perguntar sobre o tempo em que estava grávida.

Os olhos da mulher se arregalaram diante do sorriso que surgiu nós lábios de Elizabeth. E ela apenas assentiu, respondendo a uma pergunta que Hildegard nem precisou fazer:

— É, eu acho que sim…— OH', senhora! Ficarei feliz em responder qualquer pergunta que

me faça! Sabe, minha mãe era parteira. — Verdade? E você é também?— Infelizmente, não. Minha mãe morreu há alguns anos, antes que

eu pudesse aprender seu oficio. Lembro-me de muitas coisas que me contou, porém, mas não ousaria chamar-me de parteira apenas pelo que sei.

Um certo ar de apreensão apareceu em seu rosto ao concluir: — Talvez fosse melhor que a senhora permanecesse aqui. — Ora, sinto-me muito bem! Na verdade, não me sinto tão bem há

anos! E acho que a caminhada me fará bem. Sua família está na cabana abandonada ao lado do riacho?

— Sim. Conhece o lugar?— Conheço. — Elizabeth sentiu uma onde de calor tomar-lhe o rosto

ao lembrar-se da primeira vez em que estiver lá com Raymond. — Não sei como não a encontramos lá…

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— É que… faz pouco tempo que chegamos…— Bem, seja como for, estou feliz que estejam lá agora, pois assim

poderei ajudá-los. Agora comece a falar comigo, como se eu fosse Rual, está bem? Não se esqueça, lady Kirkheathe deu-lhe comida e pediu-me para acompanhá-la.

Hildegard assentiu.— Muito bem, então, vamos ver se conseguimos passar pelos

guardas sem maiores problemas.Elizabeth baixou a cabeça, para que a touca de seu agasalho caísse

sobre o rosto. Ao se aproximarem dos guardas do portão, começou a temer que a mulher fosse tímida demais para agir como orientara. Diminuiu o passo e pigarreou, como a dar-lhe um sinal. E Hildegard começou:

— Sua senhora é muito gentil! — sua voz estava trêmula, mas, devido a sua aparência franzina, isso não seria de estranhar e os soldados não imaginaria que estava tensa. — Tenho certeza de que poderá voltar a tempo de servir o jantar. Deve ser muito agradável trabalhar aqui…

Elizabeth podia ver as botas dos soldados pelos quais passavam, junto aos portões.

A mulher continuava com o falatório: — Seu senhor é um homem assustador e eu tremi o tempo em que

estive diante dele naquele dia…Ninguém percebeu o disfarce enquanto passavam pela vila, ainda

mais porque era dia de feira e havia muitas pessoas pela rua, o que dificultava qualquer tipo de identificação. Assim que se afastaram das casas, Elizabeth afastou a touca da cabeça e sorriu.

— Pronto! Não foi tão difícil, foi? Acho até que foi fácil demais e que devo falar com meu marido sobre os guardas que vigiam os portões e que podem ser tão facilmente enganados…

— Oh, senhora, não quero causar problemas a ninguém!— Não se preocupe. Não vou falar sobre este dia em especial. Seguiram em direção ao riacho, deixando a estrada principal para

embrenharem-se no bosque:— Queria falar sobre gravidez e parto, senhora? — Hildegard

lembrou-a, enquanto caminhavam.— Sim! Sabe, sempre achei que as mulheres ficam enjoadas

quando estão grávidas.— Algumas, sim. Outras, não, senhora. Depende da natureza da mulher.— Que bom! Porque, como já disse, nunca me senti melhor em

minha vida! No entanto, estou certa de estar grávida porque estou atrasada em mais de uma semana e isso jamais aconteceu.

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— Seus seios estão sensíveis, senhora?— Sim, desde antes da partida de meu marido, mas achei que fosse

por causa de… Bem…Hildegard sorriu, compreensiva, e acrescentou:— Se eles ainda estão sensíveis, e ele se foi há vários dias, e a

senhora ainda não sangrou este mês, imagino que deva, de fato, estar grávida.

— Oh, espero que sim, Hildegard!— Acho que será uma ótima mãe, senhora.— Eu adoro crianças!— Mesmo quando são más?— Considerando-se que eu sempre fui repreendida e castigada

porque me diziam que era má, acho que gosto, em especial, desse tipo de crianças.

A mulher olhou-a, surpresa com suas palavras.— E verdade — Elizabeth ratificou. — Cheia do pecado original,

simplória e sem esperança de melhoras… Ah, e feia como o próprio demônio, como dizia a reverenda madre no convento.

— Mas… ela era cega?Elizabeth teve de rir diante de tal indagação.— Não, ela enxergava muito bem! Na verdade, algumas das moças

achavam que ela até possuía olhos na nuca! Nada lhe escapava!Exceto a própria Elizabeth, pensou ela, divertida, e com a satisfação

que tal idéia sempre lhe dera.— Bem, ela deve ter sido uma mulher muito má, para dizer tal coisa

— Hildegard comentou.— Ela era, de fato.— Não deve ter tido uma vida fácil, não é, senhora?— Minha vida tem sido mais fácil do que, a de muita gente,

imagino. Mas passei maus bocados no convento. Estou feliz agora, porém! E se estiver, de fato, grávida, todas as, as minhas preces foram atendidas!

Os passos de Hildegard diminuíam de ritmo e Elizabeth percebeu, no rosto dela, a expressão de esforço e sofrimento. I

— Não tema — aconselhou, compreensiva… — Sei muito bem o que a espera na cabana e não falo de seu marido ou filho. Eles estão no castelo de Montross? Assim que me deixar lá, eles serão libertados?

Hildegard parou de andar, olhando-a, incrédula. Mas não podia mais mentir:

— Ele… ele disse que… estaríamos livres para ir se eu… fizesse isto… Se não o fizesse, acusaria meu marido de roubo de caça e o colocaria no calabouço para sempre! Então, o que seria de mim e de

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meu filhinho, senhora? Oh, eu sinto tanto! Foi tão boa para nós e é desta forma que lhe pago…

Elizabeth segurou-a pelos ombros, eles estavam trêmulos. — Hildegard, onde, exatamente, está sua família agora? — Na cabana. Com ele.— Graças a Deus! Se estão lá, será mais fácil para vocês

escaparem. Eu temia que estivessem presos no castelo. Não sei ao certo o que Montross seria capaz de fazer se estivesse lá… Agora pare de chorar ou ele vai acabar suspeitando que já sei de tudo.

— Como… como desconfiou, senhora?— Meu marido, certa vez, perguntou-me se eu era vidente; mas não

é nada tão especial assim. Pareceu-me óbvio que havia mais em seu pedido do que fome porque você estava desesperada, mesmo quando viu que iria ajudar. E, como estava, sozinha, imaginei que alguém a estivesse obrigando a agir assim, mantendo sua família refém para garantir que o fizesse. Meu marido tem um grande inimigo, um tipo vil, capaz de colocar uma mulher, contra seu próprio esposo.

— Senhora… se não é vidente, então é muito, muito inteligente.— No convento, a única coisa que tive de estudar eram as mulheres

que ali estavam. E depois de treze anos, acho que acabei conhecendo um pouco mais sobre as pessoas em geral…

Hildegard olhava-a com tristeza.-Oh, senhora, saiba que, se aquele homem não estivesse com meu

filhinho, poder nenhum sobre a terra poderia colocar-me contra a senhora.

Elizabeth sorriu, com compreensão e amargura.— Acredito, Hildegard. E quando estiver longe, e em segurança,

acho que não mais nos veremos. Portanto, é melhor nos despedirmos agora. Adeus.

A mulher agarrou-lhe as mãos e beijou-as, aflita.— Deus a abençoe, senhora!Elizabeth continuou seguindo, resoluta, em direção à cabana.Notou a carroça e o cavalo do vendedor, junto a cerca quebrada.

Hildegard seguia atrás, limpando as lágrimas do rosto.Quando se aproximaram, Elizabeth foi até a porta. Num dos cantos

do ambiente escuro, o vendedor segurava o filho adormecido nos braços. Seus olhos assustados estavam em sir Fane Montross, que empunhava a espada.

— Sir Fane! — Elizabeth gritou, com aparente surpresa, passando a cesta para Hildegard, que a pegou sem problema algum no braço. — O que está fazendo?

Montross embainhou a espada de pronto.

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— Senhora, chegou tão de repente. Eu estava, mostrando a este vendedor a minha espada, já que ele pedira para vê-la.

Ela quase podia admirar a facilidade com que o inimigo de seu marido mentia.

— Pareceu-me que o estava ameaçando… — insistiu, vendo que Hildegard corria a abraçar o filhinho.

— Por Deus, não senhora!— Mas é uma coincidência interessante nos encontrarmos aqui, no

bosque. Como já deve saber, sir Fane, meu marido não aprova a presença de pedintes ou de vendedores ambulantes em nossa propriedade. Mas, felizmente ele está ausente. Está em Chesney. Então, quando Hildegard foi até Donhallow para pedir-me ajuda, fiquei feliz em poder socorrê-la. — Ela se voltou para a mulher:

— Acho que deve apressar-se em sair daqui, pois, se meu marido descobrir que vocês estiveram aqui, em sua propriedade, não sei o que poderia acontece.

Elizabeth deixava as palavras fluírem cheias de significado, e olhava Hildegard nos olhos.

— Perdoe-nos, senhora — pediu o vendedor, inclinando-se, humilde. — Partiremos agora mesmo.

— E acho que seria aconselhável jamais retomarem.— Sim, senhora!Elizabeth observou-os enquanto iam até a carroça, o bebê acordou

e começou a chorar enquanto seus pais revezavam-se em segurá-lo e subirem para a boléia, partindo em seguida, apressados.

— Receio que meu marido tenha sido muito cruel com eles antes — Elizabeth observou para Montross. — E devo confessar que estou surpresa diante da audácia dessa gente em voltar para pedir ajuda.

Ele olhava-a e sorria.— É óbvio que é uma dama caridosa e gentil, senhora — comentou.— Diga-me, sir Fane, por que está em terras de meu marido? — Eu estava caçando e um de meus falcões desviou-se para este

lado. Eu o estava procurando.— Sozinho?— Não vi necessidade de trazer meus homens atrás de uma única

ave.— Entendo…— Da mesma forma que a senhora não viu necessidade de trazer

uma tropa em seu… passeio. E devo expressar minha gratidão por seu comportamento educado e acolhedor quando estive no castelo de seu marido. Sabe muito bem porque não pude ficar, mas agradeço o tratamento que me foi dispensado, mesmo assim.

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— O senhor era um convidado e era minha obrigação recebê-lo bem.

— Ah, mas havia mais em sua gentileza do que apenas obrigação de dona do castelo… — Montross observou, aproximando-se.

— Não, não havia. E devo adverti-lo, senhor, para que mantenha-se afastado. Diga-me, pareço ser tão estúpida quanto sou bonita? Devo parecer, já que imagina que eu seja tão tola a ponto de vir até aqui sem proteção e não perceber que havia algo de errado na maneira com que aquela pobre mulher me pediu ajuda.

Ele tornou-se, de repente, muito sério. — Eu não fazia idéia de que aquela gente estivesse aqui e com

certeza, não tinha plano nenhum preparado para fazer-lhe mal, senhora, ou não teria guardado minha espada.

— Deveria estar planejando alguma coisa, com certeza, a não ser que eu esteja muito enganada, o que não estou. Ia tentar me seduzir, não? Talvez não hoje, mas pretendia começar seu jogo de sedução.

Montross estava boquiaberto.— O que ia me dizer? Que sou boa demais para meu marido? Que sou

linda e que tal beleza está sendo desperdiçada com ele? Ou iria passar-se por protetor valente, dizendo coisas sobre a maldade de meu marido, sugerindo que ele devia ser um monstro por ter levado sua irmã a tentar matá-lo, mostrando que ela fora brutalmente assassinada depois de ter sido usada enquanto sua esposa?

— Eu não pretendia fazer nada disso! — ele se defendeu, mostrando-se indignado. — Estava apenas passando pelo bosque atrás de meu falcão e encontrei o vendedor por acaso!

— Se é assim, eu devo estar muito, muito enganada, não, acha? — Havia ironia em suas palavras.

— Estou dizendo a verdade!Elizabeth encarou-o como se estivesse diante dê um inseto

extravagante. — Então devo me desculpar por achar que o senhor talvez, me

achasse atraente. — murmurou.— Eu a acho muito atraente. Muito. E também acredito que seja

como disse: sua beleza está sendo desperdiçada com Kirkheathe…— E acha que eu seria muito mais feliz a seu lado?— Eu faria tudo ao meu alcance para fazê-la feliz.Elizabeth sorriu, e recebeu o sorriso de volta.— Bem, sir Fane devo dizer-lhe, que é bastante persistente. — Talvez porque eu tenha me apaixonado assim que a vi.— Verdade?— Sim. A senhora é a mais bela mulher que meus olhos já viram.

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— E o senhor é o mais terrível mentiroso que já conheci. E deve considerar-me uma mulher vil e estúpida para acreditar em sua conversa. Assim que o vi, percebi o quanto detestava e invejava meu marido. Os dois são inimigos e agora percebo que meu marido tem bons motivos para tanto. Apenas um covarde chega até outro, homem através de sua esposa.

Montross tentava argumentar, mas Elizabeth não lhe dava tempo. — Agora, se fosse o senhor, eu pegaria meu cavalo e sairia daqui o

quanto antes, antes que eu chame pelos arqueiros de meu marido para que eles me protejam. Vinte dos melhores entre eles estão ocultos entre as árvores ao redor da cabana. Vieram antes, enquanto eu atrasava meu passo com Hildegard. Bastaria que eu erguesse minha mão direita pára que o senhor fosse alvejado no peito por inúmeras flechas.

Montross entreabriu os lábios, irado.— Não se atreveria!— Vai arriscar?— Está blefando…— Devia acreditar em mim, senhor. Meu marido não teve

necessidade de levar os arqueiros a Chesney.Ele encarou-a por alguns segundos pensando. Então deu-lhe as

costas e, apressado, saiu da cabana e foi ate seu cavalo.— Não, meu grande inimigo — murmurou Elizabeth, vendo-o partir

em disparada. — Não sou tola.Sorriu, então, fazendo um sinal para que os homens descessem das

árvores.

Era dia de feira e Raymond teve de passar com o cavalo pela multidão que bloqueava a velocidade de seu retorno. Estava impaciente e viera adiante de seus homens, mas agora precisava deter-se e seguir devagar, ou poderia ferir alguém da vila.

Além do mais, estava mais, aliviado, pois, se houvesse algum problema maior em Donhallow, Barden o teria avisado e a feira não estaria acontecendo como de costume.

E agora, vendo os rostos surpresos de seus vassalos, imaginava se teria sido tolo em voltar com tanta pressa. Tinha arriscado a ser mal-visto pelo conde deixando Chesney daquela forma precipitada. Entretanto, não ficaria em paz até ver Elizabeth bem.

Quando cruzou os portões do castelo, seu coração batia descompassado, na antecipação do que encontraria. Havia uma tropa de arqueiros no pátio, e agiam como se tivessem acabado de voltar de uma prática. Não havia, porém, nenhuma carroça trazendo alvos fictícios…

Dirigiu-se ao sargento de armas, preocupado.

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— Senhor! — saudou o homem. Não parecia particularmente tenso, mas as flechas que os homens tinham consigo eram melhores. Não havia sido uma prática, então… — Onde estão seus homens, meu senhor?

— Estão chegando.— Se soubéssemos que estava retomando ela teria esperado, com

certeza.— Ela…— Lady Kirkheathe.— Esperado para quê?— Para seguir com a mulher daquele vendedor. Perdoe-me se agi

mal obedecendo as ordens dela, senhor, mas… ela é sua esposa e achei que devia-lhe obediência.

— Barden não protestou?— Ele tentou, senhor, mas… — o soldado não terminou sua

explicação, pois Raymond já seguia, decidido, em direção ao hall.

Capítulo 13

Raymond não precisava ouvir mais nada. Elizabeth simplesmente precisava compreender que não era assim tão livre para agir como bem entendesse.

Ele tinha seus motivos para as ordens quê dava e, se alguma coisa tivesse acontecido com ela… bem, não queria nem pensar. Antes que chegasse ao hall, Elizabeth apareceu, correndo, o rosto encantador brilhando de felicidade.

— Oh, meu senhor! Voltou cedo! Estou tão feliz que… — de repente, ela se interrompeu, a alegria cedendo vez à preocupação. — Mas…o que houve? Aconteceu alguma coisa em Chesney?

Raymond apenas a olhou. Não deixaria que sua zanga viesse a tona em público.

— Vamos para o solar. — disse, seco passando por ela em passos firmes e apressados. Ouviu os dela, ágeis e leves, seguindo-o, e teve uma estranha e agradável sensação que não soube definir.

Quando lá chegaram, voltou-se de imediato.— Senhor qual é o problema? — Elizabeth estava ainda mais

ansiosa. Fechou a porta-atrás de si e encarou-o, os olhos muito abertos. — Por favor, conte-me logo! Está me deixando angustiada.

— Está? Então pode compreender muito bem meus sentimentos quando Hale me contou o que houve por aqui hoje.

— Ficou angustiado?Raymond assentiu, notando agora, a real intensidade do temor que

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lhe passara pela mente quando soubera o que Elizabeth havia feito.— Montross é um homem perigoso, Elizabeth — observou, muito

sério.— Eu sei, e me lembrei do que me disse sobre não deixar

Donhallow sem proteção. Foi por isso que levei os arqueiros comigo.Raymond arregalou os olhos. Hale não lhe havia contado isso.

Elizabeth prosseguiu em sua explicação:— É isso mesmo, meu senhor. Montross estava lá, como eu achei

que estaria. Foi uma armadilha, como suspeitei. Ele enviou Hildegard, a esposa do vendedor, aqui com a desculpa de implorar por um pouco de comida e fazer-me acompanhá-la. Felizmente, consegui adivinhar o que Montross estava planejando para vingar-se de você Raymond, mas ele não havia levado seus homens consigo.

Ele mal podia respirar direito diante de tais revelações.— Por que não? — conseguiu murmurar.— Porque não pretendia levar-me à força, mas tentar seduzir-me.Raymond teve de se sentar.Ela continuava com a história:— Hildegard estava muito tensa. Muito mais do que estaria

normalmente por ter receio de voltar a Donhallow. Afinal, eu fui gentil com ela quando aqui esteve pela primeira vez e, como não tinha passado pelos portões, não precisava estar angustiada como estava. Mas percebi que não se sentiu aliviada quando prometi ajudá-la. Na verdade, pareceu-me ainda mais tensa. Então deduzi que aquilo tudo deveria ser alguma espécie de estratagema para que eu saísse do castelo. E imaginei que a única pessoa interessada em algo assim só poderia ser seu grande inimigo. Achei que Montross poderia tentar matar-me, ou raptar-me, ou, ainda, seduzir-me. E, pelo que pude notar sobre ele, preferi pensar que se tratasse da última opção. Ele é vil o suficiente para crer que poderia seduzir qualquer mulher e covarde a ponto de tentar atingi-lo, Raymond, através de mim.

Ele passou a língua pelos lábios, pensativo. Elizabeth era de fato, a mulher mais esperta que já conhecera.

— Não é de se surpreender que eu tenha imaginado tanto. — disse ela, sorrindo, como se tivesse adivinhado seus pensamentos. — Sabe, sempre havia garotas, no convento, que tentavam ferir outras, das quais não gostavam, fazendo com que suas amigas se voltassem contra elas. E Montross não é diferente delas…

Raymond assentiu e Elizabeth continuou:— Mesmo assim, mesmo tendo razões, não deveria ter saído daqui,

Elizabeth — repreendeu.— Mas eu tinha que fazê-lo! Se não agisse assim, ele teria ferido a

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família do vendedor! Sabe tão bem quanto eu que ele não mediria seus atos!

Raymond estava incrédulo. Sua esposa arriscara a própria vida pela de um vendedor ambulante e sua família… Ouvia-a falar, analisando suas atitudes, e tinha a sensação de estar fora da realidade, de que aquilo tudo poderia apenas ter-sido um sonho…

— Acha que sou descuidada, eu sei, mas fiz-me acompanhar de seus melhores arqueiros, pára ter certeza de que estaria a salvo. Meu maior medo foi em relação a Hildegard, temendo que ela não acreditasse que os guardas não me reconheciam ao ver-me disfarçada…

Raymond se levantou, tomando-lhe as mãos e olhando-a de frente.— Ele poderia tê-la matado, mesmo assim — murmurou.— Mas ele teria de desembainhar sua espada para fazê-lo,

Raymond. Procurei manter-me a uma distância segura, para que ele tivesse de avançar contra mim se tivesse alguma intenção perversa e isso daria tempo suficiente aos arqueiros para agirem. Por isso, exatamente, preferi levá-los, ao invés dos soldados.

Raymond olhava-a, pasmo diante de sua coragem e esperteza. — O pior era não saber como estavam o marido e o filhinho de

Hildegard — ela se lamentava. — Se Montross pretendesse matar-me, eles deveriam estar em seu castelo. Mas, felizmente, eu não subestimei sua vaidade e eles estavam ali, com ele, e tentou manter a aparência de que nosso encontro foi apenas uma coincidência.

Raymond pensava que sua Elizabeth não tinha a menor noção de perigo. Ela, por sua vez, continuou a contar o acontecido.

— Sabe, ele disse que estava em nossas terras à procura de um falcão fugitivo… Mas, graças a Deus, tudo acabou bem, Raymond. A família do vendedor conseguiu escapar ilesa e Montross entendeu que não deve ter a menor esperança de conseguir estar entre você e eu. Acho que isso vale por qualquer risco a que eu tenha sido exposta.

Raymond puxou-a para si, abraçando-a com força.— Não, não… Se ele a tivesse ferido, ou pior… — E não pôde

terminar, sem conseguir encontrar palavras para descrever o quanto aquele episódio o afligia.

— Mas estou bem. E muito, muito feliz por tê-lo de volta. Senti tanta saudade — E apertou os braços em torno da cintura dele, — Sabe, há mais uma coisa que quero lhe contar.

Ele ergueu as sobrancelhas, imaginando o que mais Elizabeth teria feito em sua ausência.

— Acredito estar grávida.Todos os outros sentimentos desapareceram do coração de

Raymond para dar lugar a um novo, uma alegria sem igual, como jamais

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sentira. Elizabeth estava carregando seu filho! Ergueu-a nos braços, sorrindo, e começou a rodá-la pelo solar, absolutamente feliz.

— Oh, ponha-me no chão, senão vou me sentir mal! — ela protestou de pronto, percebendo que o mundo começara, de repente, a girar rápido demais ao seu redor.

Raymond obedeceu de imediato.— Bem, não precisa ficar tão preocupado… — Elizabeth observou

num sorriso, vendo que ele se arrependia do gesto impensado: — Afinal, tenho me sentido muito bem nos últimos dias. Aliás, eu estava preocupada em sentir enjôos e coisas do tipo, mas conversei com Hildegard, cuja mãe foi parteira, e ela disse que nem todas as mulheres sentem-se mal na gravidez. E, como estou atrasada em meu período e tenha outros sintomas também, é praticamente certeza que eu esteja esperando um filho.

— A que outras sintomas está se referindo?— Meus seios estão sensíveis.Ele ergueu as sobrancelhas. Elizabeth prosseguiu:— E, já que está tão sério meu senhor, quero perguntar-lhe porque

voltou de Chesney tão cedo? Imaginei que ficaria por lá mais alguns dias, ou devo pensar que a saudade que sentiu, foi, forte demais?

Raymond pensou por instantes, sabendo que essa fora, sim, a principal motivação para sua volta.

— Também — confessou.— Também? Não foi a principal motivo de sua volta, então? — Fiquei enfadado — ele explicou, puxando-a para si, para um beijo

ardente, que provava estar mentindo e ter voltado, apenas porque não conseguia mais ficar longe de Elizabeth.

— Mas deve haver outro motivo… — sussurrou ela, assim que o beijo terminou.

— Fane Montross não estava em Chesney — Raymond explicou, acariciando-lhe o rosto. — E, como é mais chegado ao conde do que eu…

— Imaginou que, se ele ainda estava em seu castelo, era porque pretendia fazer algo contra nós…

— Contra você, para me atingir.— E a conde não se surpreendeu com sua partida repentina? Se ele

e Montross são amigos…— Não cheguei a falar com o conde.— Não?!Raymond negou com um gesto de cabeça.— Você estava tão satisfeito par ter sido convidado ao Conselho…— Mas estava preocupado demais com você.

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— Oh… Espero que o conde não se ofenda, então. Ele o convidou, e você partiu sem dar-lhe uma satisfação…

Ao imaginar que Montross pudesse estar preparando alguma coisa contra Elizabeth, Raymond não pensara em mais nada.

Agora, porém, que tudo estava bem, embora pudesse ter sido diferente, percebia que o conde poderia, sim, ofender-se com o que fizera. Mas não pretendia preocupar Elizabeth com isso. Por isso deu, de ombros, notando que o rosto dela se iluminava.

— Precisamos convidá-lo a fazer uma visita a Donhallow — Ela sugeriu. — Podemos explicar-lhe que você estava preocupado com meu estado, e isso não seria mentira… E, enquanto ele estiver aqui, faremos com que entenda que você se sentiu muito honrado com o convite para participar do Conselho, e que ficou arrasado em ter de partir tão cedo, mas que não havia outro modo.

Raymond beijou-a de leve.— Você é muita esperta — elogiou! — Mas ele segue para Londres

dentro de quinze dias. — Podemos convidá-lo quando retornar… Ele sorriu. Ao que parecia, teria de cantar-lhe o real motivo pelo

qual não podiam, receber o conde em Donhallow.— Não temos dinheiro para tanto, Elizabeth.Ela franziu as sobrancelhas.— Ele é um convidado assim tão caro? Quantos homens trará? Com

certeza, não mais de cinqüenta…— Cinco ou cinqüenta não faria diferença. Não temos dinheiro para

recebê-lo em hipótese alguma.— Mas você é rico…Raymond tentou interrompê-la, mas Elizabeth na lhe deu tempo,

insistindo:— Meu tio disse que…— Ele estava enganado.— Enganado?-Sim. Estou quase sem dinheiro algum!— Mas este castelo… — Elizabeth começou a falar.Foi a vez de Raymond interrompê-la:— É difícil de manter e a renda que vem dos vassalos mal é

suficiente para cobrir as despesas e os impostos. Além do mais, Donhallow é um castelo muito antigo e que precisa de muitos consertos. Se não forem, feitos, poderemos vê-lo ruindo ao nosso redor.

Raymond percebeu que havia compreensão nos olhos dela. — As pontes e estradas também precisam ser reparadas, não? —

Elizabeth indagou, num meio sorriso.

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— Sim. Gastei o que ainda me restava preparando o castelo para recebê-la para o casamento, para impressionar seu tio, na verdade. Foi por isso que insisti para que ele partisse logo no dia seguinte. Não queria gastar mais.

— Devia ter pedido mais dinheiro para o dote.— Acontece que eu não queria perder você. Elizabeth calou-se, emocionada, diante de tal revelação. — O que disse? — murmurou pouco depois.— Que não queria perdê-la.Ela corou, seu coração acelerado, o sangue parecendo correr mais

depressa em suas veias.— Já naquela época?— Com certeza.Elizabeth aproximou-se mais e beijou-o longa, profundamente,

quase fazendo arrepender-se por não ter feito tal confissão antes. Depois encarou-o como se houvesse repreensão em seu olha, e completou:

— O senhor, com certeza, não demonstrou o que sentia…Raymond sorriu.— Poderia ter feito uma fortuna como ator, sabia? Porque sabe

fingir, muito bem — Elizabeth insistiu brincando.— O dinheiro seria bem-vindo, mesmo assim — ele comentou,

desanimado.— De quanto foi o dote? — Quinhentas libras.— Mais isso é muito dinheiro!— Eu sei. E o que ainda resta, será destinado a reformas em

Donhallow. — E resta muito?— Não… Gastei mais do que devia em caias que… – Ela se afastou para encara-lo.— Sim?— Em presentes para minha esposa.— Para mim?! — Nas roupas novas que comprei aqui e também em Chesney.— Mas isso é terrível!— Bem, essa não é a reação que eu esperava ver…— Mas… Raymond! Não deveria ter gasto! E, se eu soubesse…— Seja como for, agora é tarde para fazermos conjecturas. — Mas deve ter sobrado algum dinheiro para preparar alguns

pratos, não?! — ela se alarmou.— Muito pouco.

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Elizabeth passou a caminhar pelo cômodo, parecendo pensativa. Raymond sabia que ela buscava uma solução e sorriu, mais uma vez satisfeito por ter se casado com uma mulher tão voluntariosa, tão esperta, tão inteligente.

— Quanto tempo acha que teríamos antes do conde vir até aqui? — perguntou ela, sem parar de andar.

— Bem, se ele vai a Londres… Uns cinco meses eu diria. Ele segue para a França logo depois de ir a Londres.

— Maravilhoso, então! Cinco meses serão mais do que suficientes para economizarmos algum dinheiro!

— Elizabeth, ele nunca viaja com menos de trinta homens, além da esposa e dos criados.

— Quantas pessoas no total? — perguntou, pensativa.— Quarenta, pelo menos.— Bem, cinco meses… Passaremos pela primavera e pelo verão…

— ela calculava em voz alta. — Vi algumas lojas quando estive na vila e sei que há linho bom em algumas delas, embora um tanto simples… Quanto ao espaço, não haverá problemas, porque Donhallow é imenso. Precisamos apenas nos preparar bem, planejar os detalhes, evitar gastos desnecessários… Sim, cinco meses, serão suficientes!

Minutos atrás, quando ela falara na possível visita do conde, Raymond achara a idéia completamente impossível de ser realizada. No entanto, vendo-a sorrir daquela forma, tão animada e certa do que dizia, estava inclinado a acreditar que não só podiam encontrar um modo de ter o dinheiro necessário para cobrir os custos, como também que o conde teria a estadia mais confortável é agradável de que já desfrutara, em sua vida.

Cinco meses depois, Elizabeth gemeu de leve, levando o dedo ferido aos lábios. Raymond parou de dedilhar a harpa e olhou-a, preocupado. Esparramado no chão, a seu lado, Cadmus abriu os olhos.

Ela ficara maravilhada com seu presente, mas, depois que Raymond a corrigira algumas vezes, Elizabeth o convencera a tocar e descobrira que seu marido era um músico muito melhor do que ela mesma. Nos dias que se seguiram, tinham aprendido a compor juntos. Ela cantava ele a acompanhava.

— Não foi nada — ela acalmou-o, observando bem o dedo picado pela agulha com a qual, bordava um guardanapo. — Mas esta é a quarta vez nesta tarde que faço isto, sabia? Teria sido muito melhor se a reverenda madre tivesse me forçado a bordar e costurar com tanto empenho quanto me forçava a limpar o chão, Eu, com certeza, saberia usar a agulha com muito mais habilidade.

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— Pois eu acho que você borda bem demais. Cante aquela canção, que eu gosto, sobre a primavera.

Elizabeth deixou de lado o trabalho e passou as mãos pela barriga proeminente, começando a cantar enquanto o observava tocar. Gostava de fazer isso, em especial quando Raymond não percebia seu olhar. Enquanto tocava, era como se Raymond, pudesse esquecer todas as preocupações de sua vida. Como acontecia quando estavam na cama, juntos.

De repente, Elizabeth sentiu que o bebê se mexia dentro de seu ventre.

— Oh, Raymond, venha aqui depressa! — chamou. — Ele está mexendo outra vez!

Ele deixou o instrumento e acorreu para junto de Elizabeth, tocando-lhe a barriga. E seu sorriso encantou-a tanto quanto os movimentos da criança.

— Acho que ele vai ser muito forte. — ela observou e, logo em seguida, notou que uma sombra de preocupação passava pelos olhos de seu marido.

Apressou-se, então, a acrescentar:— Também sou muito forte. A parteira da vila disse isso, lembra-se?

Não se preocupe, Raymond. Minha mãe levantou-se, animada, um dia depois que nasci, como sempre ouvi dizerem. Aliás, minhas tias achavam que ela fora impertinente por agir assim…

— Mesmo assim… mandei buscar uma parteira em Chesney — ele comunicou.

— Mas, Raymond, isso vai custar caro! Tenho tentado economizar tanto para a visita, do conde e você faz uma coisa dessas!

— Eu insisto! — Acho que será um desperdício.Ele pensou um pouco antes de responder, muito sério, muito

próximo:— Não quero perdê-la no parto.Elizabeth sorriu e acariciou-lhe o rosto.— Está bem, então — aceitou, suave. — Mas mais por sua causa do

que por mim, porque estou muito bem de saúde. E desde que não queira trazer também um médico ou um padre, ou ambos…

— Não… Apenas se forem necessários…Elizabeth sorriu.— O que Aiken disse, esta manhã, sobre as pontes? -perguntou,

mudando de assunto. — Os consertos já estão no fim? — Os mais importantes, sim. O resto será feito no inverno. — Ótimo. — Ela o observou por instantes, depois decidiu abordar

um assunto no qual já vinha pensando há muito tempo: — Teremos de

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convidar Montross para a recepção que daremos ao conde.Ele se voltou, brusco, olhando-a, aborrecido.— Ele também rende homenagens ao conde, Raymond. — Elizabeth

insistiu, certa do que dizia. — E é seu amigo. — Mas é "meu" inimigo!— E meu também, mas, mesmo assim, acho que devemos fazer a

coisa certa. E, se você o convidar e ele se recusar a vir, ninguém poderá dizer que você agiu mal.

— Não o quero em minha casa!— Eu sei. Também não o quero aqui. Mas acho que ele não vai

aceitar. Então, por que não convida-lo? E se o conde perguntar alguma coisa ou fizer algum comentário, você poderá dizer que o convidou, mas que ele não quis vir. Quem parecerá pior sob tais circunstâncias?

— Você não conhece Montross como eu. Ele é atrevido.— Então, que venha! É bom que venha e veja você com o conde.

Talvez seja algo que Montross deva testemunhar pessoalmente para entender que você não deixa de ter certa influência também.

Raymond ainda parecia incerto quanto a tal idéia.— Meu senhor — Elizabeth insistiu — não me disse, ao voltar de

Chesney que nosso casamento deu-lhe vantagens em relacionamentos com pessoas influentes da corte?

— Sim. Os DeLanyeas, de Gales, e os DeGuerre.— Então, por que temer Montross?— Não o temo! — ele rosnou. — Mas será o que ele irá dizer-se não o convidar.Raymond cerrou os dentes.— Deus do céu! — protestou, olhando-a com orgulho e admiração.

— Casei-me com uma guerreira mais do que esperta. Elizabeth sorriu.— O guerreiro aqui, é você, Raymond — corrigiu. — Sou apenas

uma esposa. E muito devotada.— Você é a melhor esposa que um homem poderia ter, Elizabeth.

Ousada como um guerreiro, sábia como um ancião e mãe sem igual. Meu filho terá orgulho de você, como eu tenho.

— Bem, poderá ser uma filha.Raymond olhou-a com paixão.— Mas poderá haver um filho depois dela — sugeriu. — Quero dar-

lhe muitos filhos, Raymond.— Tantos quantos Deus nos enviar, Elizabeth. Pois ele já me enviou

uma jóia rara, mais valiosa do que qualquer coisa que eu pudesse desejar.

Elizabeth abraçou-o, absolutamente apaixonada. E feliz por saber que

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seu amor era correspondido na mesma intensidade. De repente, porém, a tranqüilidade daquele momento íntimo foi quebrada por um ruído que vinha do pátio.

Um som terrível, que Elizabeth conhecia, e que a fez desprender-se do abraço do marido para acorrer a uma das janelas.

— O que foi? — Raymond alarmou-se. — Quem chegou?

Capítulo 14

— É Montross? — Raymond perguntou. — ou o Conde, assim tão cedo? Cadmus latia, como se também quisesse saber quem acabara de chegar.

Enquanto isso, Elizabeth continuava a olhar para a pessoa que acabara de entrar no pátio do castelo, seguida de perto por um guarda que lhe servia de escolta.

— E a reverenda Madre — murmurou ela, sem expressão.— Do Convento do Santíssimo Sacramento? — Raymond

surpreendeu-se.— Sim. — Elizabeth observava enquanto a mulher apeava de seu

cavalo branco. — Por que terá vindo? O que deseja aqui?— Sente-se — Raymond aconselhou. — Você não me parece bem.E ela estava, de fato, péssima. As recordações dos maus momentos

que vivera no convento a assombravam. Lembrava-seda voz austera e do rosto terrível daquela freira, e muito mais das mãos que seguravam o açoite com o qual muitas vezes apanhara.

— Deve ter sido minha carta ao bispo… — concluiu, num murmúrio.Raymond ergueu-a nos braços e levou-a até a cama, percebendo

seu estado.— É melhor que permaneça deitada — sugeriu carinhoso.Elizabeth inclinou a cabeça em direção ao peito dele, sentindo-se

amada e protegida.— Vou falar com ela — disse Raymond, com convicção. — Não! — ela se alarmou. — Não sou mais uma criança

amedrontada e faminta. Sou a esposa do lorde Kirkheathe! — E esforçava-se por levantar-se novamente.

Raymond ajudou-a, vendo que estava determinada, e corrigiu: — A muito amada esposa de lorde Kirkheathe. Mesmo assim, acho

que ela vai querer falar comigo também.— Por quê?— Por que também escrevi, uma carta.— Escreveu?Ele assentiu e explicou:

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— Escrevi ao bispo dizendo que acreditava em tudo que você me havia dito sobre aquele convento e das atrocidades que eram cometidas lá. Sugeri, também, que a madre fosse destituída de seu cargo.

— Raymond, você fez isso?! — Ela estava chocada e maravilhada ao mesmo tempo.

Ele tornou a assentir.— Agora, por que não fica aqui e descansa; enquanto falo com ela?— E deixá-la pensar que sou uma covarde que tenho medo de

enfrentá-la? Depois, de tudo que lhe disse sobre Montross? Não, Raymond, não posso…

— Tem certeza de que está bem?— Bem, já me senti melhor na vida, mas não vou me deixar

subjugar por uma leve indisposição. — Elizabeth sorriu e tocou-lhe a mão. — Além do mais, quero que madre me veja ao lado de meu marido. Ela sempre dizia que eu teria um fim terrível e quero que perceba o quanto estava enganada.

— Também quero encarar a mulher que achou que poderia, vencer sua força de vontade meu amor.

Assim, juntos, ambos deixaram o quarto, seguidos de perto por, Cadmus.

Quando desceram as escadas e entraram no saguão, Elizabeth percebeu que qualquer traço de bondade e, gentileza tinha desaparecido do rosto de seu marido. Era com se o estivesse vendo naquele primeiro dia quando checara ao castelo. Quase esquecera de como ele, poderia ser frio e imponente e de como tal aparência poderia ser assustadora.

A reverenda madre aguardava junto à lareira, e voltou-se quando os ouviu aproximarem-se. Elizabeth notou logo que ela parecia ter envelhecido muito naqueles poucos meses. Havia novas rugas, de preocupação ao redor de seus olhos e boca.

Ainda assim, vendo-os caminhando juntos, um olhar de altivez passou pelo rosto da freira, como muitas vezes antes Elizabeth vira. No entanto, embora sempre tivesse apreciado cães, como aquele que incitara contra Elizabeth; a mulher olhou para Cadmus com certa reserva. O animal começou a rosnar baixinho, tão ameaçador que pareceu afligir ainda mais a freira.

Elizabeth teve vontade de acariciá-lo por isso, quando Cadmus sentou-se junto a Raymond.

— Madre… Elizabeth cumprimentou, fazendo uma breve reverência diante de sua antiga opressora. E apresentou: — Este é meu marido, Lorde Kirkheathe. Senhor, esta é a reverenda madre, do Convento do Santíssimo Sacramento.

A freira pareceu ser tomada, de surpresa, mas dirigiu-se a Elizabeth

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com o costumeiro desprezo:— Elizabeth, vim até aqui por que…— Lady Kirkheathe — Raymond corrigiu-a de pronto, na voz áspera.A reverenda madre empalideceu um pouco. Depois continuou,

como ele impusera: — Lady Kirkheathe, vim para exigir que retire as acusações que fez

contra mim em sua infame carta ao bispo.Raymond cruzou os braços, fazendo-a dar um passo atrás, receosa. — Não quer se sentar? — Elizabeth ofereceu. — Não gosto de

ficar em pé por muito tempo, devido a meu estado.A freira olhou para seu ventre e ergueu as sobrancelhas. Elizabeth

sentou-se numa das cadeiras próximas, e a reverenda madre fez o mesmo, à sua frente. Raymond colocou-se de pé, atrás de Elizabeth, e ela não tinha a menor dúvida de que, de sua posição, ele encarava a freira com olhos duros, inflexíveis.

— Quer discutir a Carta que enviei a outra pessoa? — perguntou, com certa ironia.

— O bispo contou-me o que escreveu e…— Ele fez isso? Devo confessar que isso me surpreende, já que o

conteúdo da carta era bastante forte. Sempre imaginei que o bispo fosse uma pessoa generosa e educada, e tal altitude não condiz com a imagem que eu tinha dele.

A freira mordeu os lábios, tensa.— Ele me contou porque… porque retirou-me de meu cargo e agora

está me enviando para a lrlanda! — Ela pronunciou o nome do país como se este fosse uma maldição.

— Mas a senhora sempre disse que nós todas éramos pequenas bárbaras que tinham sido enviadas ao inferno… devia sentir-se em casa…

— Quero que escreva novamente a ele e retire suas observações odiosas e desonestas!

— Está falando com minha esposa! — Raymond rosnou, colocando as mãos sobre os ombros de Elizabeth, demonstrando seu total apoio a ela.

A freira olhava-os, parecendo mal poder acreditar no que via.— Você… deve-me isso — murmurou, e os últimos vestígios de

arrogância desapareceram de seu rosto.— Eu a recebi no convento quando ninguém mais a queria!

Elizabeth ergueu a mão e tocou a do marido, num gesto de absoluta cumplicidade.

— Teve de fazê-lo — rebateu. — Era seu dever para com o convento. Meu tio pagou-lhe bem por isso. E pagou muito bem.

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— Eliz… — começou a reverenda madre, mas lembrou-se logo do que lhe fora imposto e controlou-se: — Lady Kirkheathe, cumpri minha obrigação para com a senhora e, se de alguma forma sente-se lesada com isso, talvez deva lembrar-se de que sua família a abandonou, deixando-a a meus cuidados.

— Isso não lhe dava o direito de deixar-me passar fome. Nem às outras meninas.

Raymond deu alguns passos para o lado da cadeira sem soltar a mão de Elizabeth.

— Sei de tudo o que fazia contra as moças do convento. — disse, num tom que seria suficiente para fazer a própria Elizabeth estremecer. Os olhos da freira iam de um ao outro, sem saber em qual dos dois buscar mais atenção. Ergue-se devagar, murmurando:

— O senhor sabe apenas o que ela lhe contou…— Vi as cicatrizes.— Mas ela roubava coisas.— Roubava comida, porque a senhora deixava-a passar fome, bem

como às outras moças!— Isso é mentira!Raymond cruzou o espaço que os separava em largas passadas e,

por um instante, Elizabeth temeu que agarrasse a freira pelos braços e a sacudisse. Mas ele parou diante dela, muito próximo, rosnando:

— Corno ousa dizer que minha esposa mente?! — E, como a reverenda madre nada dissesse, apavorada, prosseguiu: — Também escrevi ao bispo, reiterando tudo que ela dissera antes. Também supõe que possa me forçar a negar tudo o que eu disse?

Lágrimas de raiva e frustração encheram os olhos miúdos da freira para rolarem devagar por seu rosto empalidecido.

— Ela me fez perder meu posto… — conseguiu, ainda, murmurar.— Não. — Elizabeth interferiu. — Se alguém teve culpa nisso, foi a

senhora, não eu.— Estou velha demais para ser enviada àquele lugar horrível! —

exclamou a reverenda madre, desesperada. — Vou morrer lá!— E quantas moças morreram por causa do frio e da fome naquele

convento? — Elizabeth argumentou, em voz baixa e carregada de dor. — Seu cachorro comia mais do que todas nós juntas!

— Eu cumpri com minha obrigação!— Não, a senhora não fez isso… Ficou com o dinheiro de nossos

parentes e gastou-o em comida e vinho que partilhava com suas poucas freiras preferidas. Acha que não sabíamos disso? Acha que as freiras que não eram suas favoritas também não sabiam? Podíamos sentir o cheiro da comida sendo preparada e nossos estômagos roncavam de fome!

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— Era um trabalho muito difícil tomar conta de vocês todas… .— Mas não precisava nos castigar por existirmos… Devíamos

aprender tarefas domésticas no convento, como bordar, costurar, tocar algum instrumento. Mas a única coisa que nos ensinaram foi a sermos escravas dos trabalhos mais pesados, como esfregar aquelas pedras ásperas de joelhos, sem trégua, sem descanso! E lavar toda aquela roupa até nossos dedos sangrarem! Tratou-nos como os menos valorizados escravos, e jamais vou me esquecer disso, reverenda madre! — Elizabeth pronunciou as últimas palavras com desdém.

Ainda assim, a freira insistiu:— Fiz o melhor que pude.— Imagino… Pois saiba que não é bem vinda aqui. Adeus, madre!Desesperada, a freira voltou-se para Raymond. Mas ele apenas

ergueu as sobrancelhas, reiterando seu apoio à esposa, e ela teve de voltar a fixar Elizabeth com olhar suplicante.

— Não é capaz de sentir pena? — pediu. Elizabeth assentiu, acrescentando, em voz suave:

— É claro que sim. Sinto pena dos irlandeses.A freira encarou-a por mais alguns segundos, a boca aberta, sem

poder acreditar no que ouvira. Depois, apressada, saiu dali sem, olhar para trás.

Raymond voltou-se para Elizabeth, perguntando, atencioso: — Está se sentindo bem?— Sinto como se tivesse acabado de enfrentar um leão… — Ela

sorriu. — Obrigada por me ajudar.— Não há por que me agradecer. Você já a tinha vencido há muito

tempo, minha querida.

Uma semana mais tarde, Raymond encontrou Aiken esperando por ele do lado de fora do estábulo, quando retornava de uma patrulha. O soldado sorriu, mas Raymond conhecia-o bem demais para saber que havia algo de errado. Esperava que Aiken não lhe pedisse mais dinheiro para o conserto das pontes, pois já estavam no limite do que poderiam gastar.

— Senhor! — chamou o soldado, assim que Raymond entregou o cavalo para um dos rapazes das cocheiras.

— Bem, eu… preciso lhe falar. Mas não aqui, se me permite.Raymond seguiu com ele, tendo Cadmus a seu lado o tempo todo.

Foram até a capela que, naquela hora do dia, estava sempre vazia. Lá dentro, Raymond parou, obrigando o outro a fazer o mesmo.

— Então?— Bem, senhor, o caso é o seguinte: outra noite, na semana

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passada, bem, eu queria me divertir um pouco, sabe? E, como as mulheres da vila costumam ser muito fofoqueiras, decidi ir um pouco além, se é que me entende, senhor.

— Não consigo entender o que sua diversão tem a ver comigo, mas prossiga.

— É que, senhor, um homem merece certo descanso, mesmo que tenha de pagar um pouco mais por isso…

— Trouxe-me aqui para discutir o preço que pagou a uma prostituta?! — Raymond estaria se divertindo com a situação, não estivesse o soldado tão tenso.

— Não, meu senhor! De forma alguma! É que… fui até a vila próxima ao castelo de Montross. Sabe, lá há um lugar muito especial… As garotas são limpas e honestas, mas o preço é mais alto.

— Sei. Conheço o lugar. — Com certeza, senhor. Bem, como eu dizia, há uma garota lá,

muito bonita e muito… talentosa, se é que me entende. E parece que, ela é a favorita de Montross, pelo menos, era até uma semana atrás.

— E o que isso tem a ver comigo?— É que ela estava bastante aborrecida e, depois de beber muito

comigo, acabou por me contar o motivo. Parece que Montross foi para Londres para encontrar o conde de Chesney.

Raymond murmurou um palavrão. Devia ter esperado algo assim. Era óbvio que Montross tentaria encontrar o conde antes que este chegasse, para encher seus ouvidos de maquinações diabólicas.

Raymond temera que o amor o enfraquecesse e, de fato, fora distraído por seus sentimentos.

— Ela estava certa disso? — perguntou.— Sim, senhor. E muito zangada com ele também.— Entendo. Obrigado por ter me contado, Aiken.— É que… senhor, há mais…— Mais? — Raymond franziu as sobrancelhas.— É. Havia uns sujeitos de aparência terrível por lá. E perguntei

para a garota quem eles eram. Ela disse que eram mercenários. Ao que parece, Montross os está contratando.

Raymond praguejou novamente.— Quantos? — quis saber.— Aproximadamente dez.— E que motivos Montross está alegando para contratá-los? — Ah, o de costume: diz que está procurando por homens, extras

para tomar conta de sua propriedade. Para protegê-la, para ser mais, preciso. Foi isso o que ouvi por lá.

— Protegê-la contra quem?

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— Contra o senhor.— Mas… Aquele infeliz! Mentiroso! — Raymond cerrara os dentes e

suas mãos estavam fechadas em punhos. — Não quero as terras dele!— Eu sei disso, senhor, como sabem todos que o conhecem bem.Raymond respirou fundo.— Espero que o conde saiba a verdade — observou, contrariado. —

Obrigado mais uma, vez pelo aviso, Aiken.O soldado assentiu e completou:— Imaginei que devesse saber antes da chegada do conde. Agora,

se me der licença, senhor, vou cuidar de meus afazeres nas pontes.Raymond assentiu e ele se foi, apressado.— "Se" o conde vier — Raymond completou, meneando a cabeça,

aborrecido. Quem poderia imaginar que tipo de veneno Montross iria destilar desta vez?

Elizabeth tivera tanto trabalho para preparar tudo para a vinda do conde… Não iria aborrecê-la nem preocupá-la sem necessidade. Talvez o conde viesse, pois, como Charles observara, Raymond agora estava ligado a homens poderosos e, apesar do que Montross pudesse dizer, o conde não arriscaria ofendê-los, mesmo se não tivesse grande apreço pelo casal que o convidara…

Ainda assim, Raymond achou melhor poupar Elizabeth de tal preocupação. Queria que ela estivesse tranqüila e com a saúde bem equilibrada. Nos últimos tempos, vendo-a a cada dia mais próxima do parto, ele começara a sentir um pavor estranho, um medo absurdo de que Elizabeth pudesse vir a morrer ao dar a luz. Mesmo com as palavras da parteira da vila, garantindo que ela estava muito bem, Raymond não se convencia de todo. Seu medo era forte demais. Se Elizabeth morresse, sabia que boa parte de si mesmo morreria também.

A morte de Alicia fora um golpe, sim, mas doera mais em seu orgulho do que em seu coração. Com Elizabeth, seria muito diferente…

Deixou a capela, acompanhado pelo cão, sem querer mais pensar num assunto tão doloroso. Parou por segundos no hall, para indagar a Rual sobre o paradeiro de sua esposa.

— Ela está no solar, senhor — foi a resposta.Raymond mandou que o cachorro aguardasse junto à escada e

subiu, de dois em dois degraus. Quando abriu a porta do solar, viu que sua esposa estava absorta, lendo uma carta. Tão absorta, na verdade, que sequer o ouviu entrar.

Quem teria escrito para ela?, indagou-se Raymond, curioso.

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Capítulo 15

Elizabeth ergueu os olhos para o marido e lançou-lhe um sorriso encantador, levantou-se, com certo esforço, e indagou:

— Foi tudo bem na ronda?— Não vimos nada de diferente.— Acabei de receber uma carta de Genevieve — ela informou,

alegre.— Sua prima? — Raymond se aproximou dela.— Sim. A mulher que deveria ter sido sua esposa. Escrevi para ela

há algum tempo.— Mas não me disse nada…Elizabeth franziu as sobrancelhas..— Devia ter-lhe pedido permissão? — estranhou.— Não. — Raymond, respondeu, lembrando-se de que não queria

perturbá-la. Então beijou-lhe de leve a testa e, sentando-se numa poltrona, puxou-a para seu colo. — Mas estou surpreso por você querer se corresponder com ela, considerando-se as circunstâncias.

— Talvez eu tenha escrito para agradecer-lhe… — Havia malícia em seus olhos.

Não era de admirar que todos os pensamentos sobre Montross e todas as preocupações desaparecessem de sua mente quando estava com Elizabeth, imaginou Raymond, sorrindo.

— Foi esse o motivo, então… — comentou.— Humm… Não exatamente. Eu disse a ela o quanto estava feliz e

o quanto esperava que também estivesse.— E ela está?— Parece que sim e ficou feliz por ter notícias minhas. Na verdade,

acho que ela imaginava que eu estivesse condenada a um destino terrível.

— Palavras pouco agradáveis, considerando ser eu o centro de tal assunto…

— Bem, mas ela nunca o conheceu, não é?— Não.— Então, tinha apenas a idéia fornecida pela descrição que meu tio

lhe fez sobre você. E devo dizer que ele não é a pessoa exata para descrevê-lo, se é que me entende…

— Então devo culpá-lo pelo ato desesperado de sua prima para evitar casar-se comigo…

— Mas tudo terminou bem, não foi?— É verdade.— E como eu dizia, esse não foi o único motivo pelo qual escrevi a

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minha prima — prosseguiu ela, suspirando. — Eu queria saber sobre a irmã do conde.

Raymond olhou-a, sem entender.— A irmã do conde?! — estranhou.— Sim. Achei que a irmã do conde, chamada Maude, tivesse

chegado à casa de lady Katherine um dia antes de minha partida, e Genevieve disse-me que eu estava certa, pois se lembra dela muito bem. Também se lembra de que Maude e seu irmão eram muito chegados e que, quando, algum tempo depois, ela morreu, ele ficou arrasado.

— Elizabeth, não está pensando em falar ao conde sobre sua irmã falecida, está?

— É claro que sim! Ela era tão simpática e todos gostavam tanto dela! Inclusive lady Katherine!

— E lady Katherine gostava de você também, não?— Sabe… acho que sim. Ela não era muito dada a demonstrar seus

sentimentos, como outra pessoa a quem amo e respeito muito… — E lançou-lhe um olhar significativo e apaixonado. — Lembro-me de que, certa vez, eu disse às outras meninas para pararem dê aborrecer uma colega mais nova e acho que, depois disso, houve digamos… certa camaradagem nos olhos dela quando estava perto de mim. Como se fossemos amigas…

— Sabe de uma coisa, Elizabeth, acho que você enfeitiça as pessoas.Quanto a mim, não tenho dúvida de que me enfeitiçou.

— Eu não fiz nada disso! Nem mesmo tentei fazer com que gostasse de mim!

Ele riu.— É… Nisso, você falhou completamente…— Falhei?-Sim.— Então, vou fazer tudo que estiver ao meu alcance para agradar

também ao conde.Raymond fingiu uma expressão aborrecida ao responder: — Está tentando fazer com que eu sinta ciúmes novamente? — Não, não… — Elizabeth riu, mostrando o quanto não levava a

sério a carranca do marido. — Vou fazê-lo sentir-se feliz e confortável, para que tenha uma excelente impressão sobre nós.

— Bem, se há alguém neste mundo que pode fazer isso, esse alguém é você, minha querida.

Elizabeth brincou com a borda da túnica que ele vestia, e com carinho, enfiou a mão para dentro, acariciando seu peito.

— Genevieve disse que é muito feliz no casamento. Não consigo

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imaginar como isso é possível…— Por que não? — Raymond cerrou s olhos, deliciando-se com o

carinho que recebia.— Porque ela não está casada com "você"! Coitadinha! Não faz a

menor idéia do que desperdiçou…— Sabe de uma coisa? Você poderia ensinar o próprio Montross a

ser bajulador.Elizabeth retirou a mão, fazendo-o reabrir os olhos. Havia uma

expressão preocupada no rosto delicado. Raymond arrependeu-se de imediato por ter tocado no nome de seu inimigo.

— Ele respondeu ao convite? — indagou ela.— Ainda não.— Fico imaginando se ele simplesmente não vai responder para

depois aparecer aqui no dia da recepção.Satisfeito com o fato de que ela não seria surpreendida, caso

Montross chegasse acompanhando o próprio conde, Raymond abraçou-lhe a cintura volumosa, e comentou:

— Não seria surpresa alguma. Talvez queira nos mostrar o quanto é, ainda, amigo do conde e o quanto não me teme.

— Precisamos estar preparados, então.— Você já fez tantos preparativos que não deve haver mais

nenhum detalhe esquecido, meu amor!Elizabeth parecia pensativa.— Sempre há. — e afirmou. — Mas espero que poucas coisas não

estejam a contento e que o conde chegue amanhã, com o é esperado.— O clima está excelente, às estradas, secas e transitáveis, as

pontes, reparadas. E seus planos estão perfeito. Nada pode dar errado. — Raymond beijou-lhe de leve o rosto e depois o pescoço.

— Raymond, já' está quase na hora de…— Não importa. Não temos tempo para nada. Nada é mais

importante do que ficarmos juntos.Abraçou-a e beijou-a intensamente. Depois acariciou-lhe os seios,

mas pareceu vacilar, e indagou, rouco:— Devo parar?— Não, meu amor. A parteira disse que ainda podemos.— Perguntou a ela?— Sim. Ontem. Afinal, você não é o único interessado em saber…

Adoro quando está comigo.Feliz e aliviado, Raymond sorriu e prosseguiu com seus carinhos.

Na manhã seguinte, em pé no piso, frio do hall, Raymond tinha sua esposa a seu lado e sentia-se orgulhoso, por isso; A sentinela da torre

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avisara sobre a chegada iminente da comitiva que trazia o conde de Chesney, e estavam agora á sua espera.

Ele olhou para Elizabeth, cujas mãos estavam unidas ao redor do ventre. Ela estava absolutamente calma aparentemente, mas ele que a conhecia bem, sabia o que lhe ia na alma. Podia quase sentir a tensão que a atingia.

— Espere lá dentro — disse-lhe — onde pode sentar-se. — Não. Quero estar a seu lado quando ele chegar.— Mas está grávida…— Isso não significa que não possa ficar em pé.— Tem certeza, Elizabeth?— Se eu sentir alguma coisa, cansaço ou vertigem, não hesitarei

em avisá-lo e pedir ajuda.— Promete?Ela o olhou e sorriu.— Dou-lhe minha palavra, meu senhor.— Está bem. Mas procure não se cansar.— Está bem. Estou tensa…— Parece mais zangada do que tensa.— Sinto muito. Mas você fica falando o tempo todo e isso me deixa

tensa!Raymond olhou-a, incrédulo. Jamais, em sua vida, alguém o tinha

acusado de falar demais, ainda "mais" depois do ferimento na garganta.— Sinto muito — ouviu-a desculpar-se.— Bem, a parteira me avisou de que você poderia ficar um tanto…

mal-humorada.— E quando falou com ela?— Ontem, depois… — Lançou-lhe um olhar significativo.— Eu havia lhe dito que ela garantira não haver problemas. Não

confiou em minhas palavras?Ele engoliu em seco.— Eu tinha outras coisas a perguntar — confessou. — Por exemplo…— Não vou falar sobre isso aqui — Raymond resmungou, fazendo

um breve sinal em direção aos soldados e criados que se uniam a eles na espera. Muitos deles ainda faziam os últimos preparativos e os que tinham terminado suas tarefas conversavam em voz baixa entre si.

— Não vejo por que não — Elizabeth insistiu. — Não temos mais nada a fazer até que eles cheguem e, com este burburinho, ninguém poderá ouvi-lo.

— Mas é um assunto particular…— Sou sua esposa! O que quer que eu faça para que me conte?

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— Se fizer esse biquinho mais uma vez, vai me obrigar a beijá-la em público!

— Então me beije…— Não.— Se não vai me beijar, conte-me o que conversou com a parteira.— Não vai parar de pedir até que eu conte; não é?— Não…— Ele se inclinou e, segredou-lhe ao ouvido:— Eu queria saber exatamente quanto tempo ainda temos até que

sejamos obrigados a parar de fazer amor.Elizabeth afastou-se e olhou-o de soslaio. — Bem que eu, desconfiei que era isso — disse, com ar triunfante.Então ouviu o barulho da comitiva, aproximando-se da entrada do

castelo, Elizabeth, enfiou a mão pela dele, e Raymond apertou-a. Sabia que sua jovem esposa nada tinha a temer do conde. Ela trabalhara e planejara tudo para que sua visita fosse a mais agradável possível e, durante cinco meses, dera tudo de si com tal intento, além do mais, Elizabeth era alegre e espirituosa, duas qualidades que conquistariam até o homem mais recalcitrante. Afinal, não tinha ela conquistado-o tão absolutamente?

Se havia alguém, a ser temido ali, era como sempre, Fane Montross. Mais uma vez, agora em silêncio, Raymond praguejou, arrependendo-se por não ter sido mais diligente.

Agora, tudo dependia do que Montross dissera ao conde e do quanto ele estivera aberto a ouvir suas intrigas. Se dependesse da recepção que teria ali, tudo estaria bem. E, em sua maior parte, graças a Elizabeth.

Raymond dava-se conta naquele momento que seus receios tinham tido fundamento. Estivera certo em imaginar e em preocupar-se com o fato de que Montross, depois de ter ido ao encontro do conde, tivesse seguido com ele até Donhallow. Agora ele ali entrava, ao lado de seu lorde maior, altaneiro e falso como sempre.

Elizabeth prendeu a respiração ao avistá-lo, Raymond apertou-lhe uma vez mais, a mão, para dar-lhe segurança. Afinal, como Charles dissera, o conde sabia muito bem que lorde Kirkheathe, com seu casamento, tornara-se aliado de poderosas famílias da Inglaterra.

Os pratos da balança estavam agora equilibrados, e Montross teria que despender grande esforço para fazer com que o seu pesasse mais dali em diante.

E, ao que parecia, ele estava disposto a fazê-lo naquele mesmo instante. Minutos depois, o cortejo adentrava o pátio e Elizabeth inclinou-se, numa saudação, dizendo a Raymond, em sussurros:

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— Sabia que ele viria acompanhando o cortejo? — Imaginava que sim.— Não está surpreso, então devia saber com certeza que isso

aconteceria.— Vamos discutir isso mais tarde, sim?— AH, com certeza, meu senhor! — aceitou as mãos do marido,

descendo com ele as escadas para saudar os recém chegados.O conde de Chesney já desmontara e agora voltava-se para lançar

um olhar à solidez das paredes de Donhallow.Raymond mantinha o olhar em Montross, o qual fixava Elizabeth

como um lobo prestes a atacar um cordeiro. Poderia matá-lo apenas por aquele olhar!, pensou ele, enciumado.

— Meu senhor!— Raymond inclinou-se em uma mesura ante do conde.

Este voltou-se com singelo sorriso no rosto marcado pela varíola, respondeu:

— Lorde Kirkheathe.— Permita-me, senhor, apresentar-lhe, minha esposa, Elizabeth. —

Havia orgulho em sua voz.O conde dirigiu a palavra a Montross, que estava próximo:— Como você disse, ela é muito bonita!Um arrepio de raiva misturada a ciúme passou pelo corpo de

Raymond, com a força de um raio. Como Montross ousava descrever sua esposa a quem quer que fosse?, referir-se a seus predicados?

— A beleza que possuo vem de minha felicidade, senhor. — Elizabeth respondeu ao conde, tornando a chamar-lhe a atenção. — E talvez porque esteja grávida. Diz-se que a gravidez faz uma mulher florescer. — O nobre riu.

— É, dizem, sim concordou. — E posso opinar sobre isso porque minha querida esposa jamais me pareceu tão linda como quando estava grávida. — E olhou para trás, onde sua esposa, uma senhora gorda e de pouca beleza, se encontrava. — Por favor, não gostaria de adentrar ao hall com sua comitiva, senhor? Preparamos refrescos — Elizabeth pros-seguiu, sempre muito suave. — Sir Fane também, é claro.

Havia uma cortesia impecável em suas palavras, embora estivesse óbvio que o tom que usara para falar ao conde fora muito mais agradável. Montross sabia que tal diferença não passava despercebida ao conde, apesar do sorriso constante que o nobre sempre mantinha nos lábios.

O conde estendeu o braço para que Elizabeth se apoiasse nele e, assim, entrassem no hall. Raymond fez o mesmo com lady Chesney.

Quando lá chegaram, os esforços de Elizabeth para deixar tudo

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maravilhoso mais uma vez tornaram-se evidentes, pois Raymond, que ainda não notara certos detalhes, estava encantado e a mulher que vinha a seu lado até prendeu a respiração diante do que fora preparado para recebê-la e a seu marido.

Elizabeth encontrara tapeçarias maiores nos fundos de uma das muitas despensas do castelo, elas estavam empoeiradas e cheias de minúsculos buraquinhos provocados por traças, mas ela as escovara e batera com as criadas, rindo muito e espirrando mais ainda, e pedira a Rual para que as consertasse.

Elas agora decoravam as paredes, e a mobília, muito bem encerada, brilhava a luz dos candelabros. As tochas das paredes tinham sido lavadas e preparadas com ervas especiais, de modo que, acesas, recendiam a um perfume muito especial.

A comida que seria servida não era das mais caras ou exóticas, mas simples, caseira e saborosa. Elizabeth garantia a Raymond que o tipo de comida não era o mais importante, mas sim se ela estava ou não bem preparada. E acrescentara:

— É melhor termos muita, comida simples e bem feita do quê pouca comida cara e que possa não agradar a todos os gostos.

Apesar da satisfação e do orgulho que sentia de sua esposa, Raymond mantinha-se atento e tenso, em virtude da presença de Montross, logo atrás de si.

Não demorou para seu inimigo fazer notar o que pensara sobre os esforços de Elizabeth. Assim que entraram no hall, e agruparam-se em torno da lareira, ele comentou:

— Bem, Raymond, vê-se bem a diferença que uma mulher pode fazer na toca de um lobo…

Ele não respondeu, e Elizabeth dirigiu a palavra ao conde: — Meu senhor, sabia que conheci sua irmã, na casa de lady

Katherine DuMonde?Um sorriso de alegria iluminou as feições do nobre. — Mas… é verdade?!.. — surpreendeu-se.— Sim. Foi por pouco tempo, o que é uma pena. Minha prima a

conheceu melhor que eu, e fala muito bem de sua irmã.— Ah, sim. Maude era muito querida!— E uma excelente dançarina, disse-me Genevieve. A melhor que

ela já viu.O peito do conde encheu-se de orgulho e seus olhos pareceram

brilhar com mais intensidade.— Ah, eu também jamais vi alguém dançar como ela… —

comentou, saudoso. — Quem sabe, senhora, poderia dar-me a honra de dançar comigo mais tarde?

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Elizabeth modestamente olhou para a barriga.— Oh, devo estar tão desajeitada…— Não acredito nisso — Montross interferiu.O conde lançou-lhe um olhar ácido, obviamente não muito satisfeito

com a interrupção e, como Montross corasse vigorosamente, Raymond lançou um olhar de aprovação em direção a sua esposa.

— Também não creio — disse o conde. — E, se sua saúde nos permitir, eu gostaria muito de tê-la como par numa dança de volteios.

— Seria um prazer para mim, senhor. Aliás, meu marido poderá tocar para nós.

Se ela o tivesse atingido com um soco no estômago, Raymond não teria se sentido tão balançado. Tocar?! Para o conde?! E para outras pessoas dançarem?!

— Elizabeth… — rosnou, num aviso.Ela aproximou-se e, segurando-lhe a mão, voltou-se para o conde.— Ele é modesto demais — comentou, sorrindo. — Mas toca

divinamente.— Eu me lembro… — Montross observou.Raymond encontrara muitos homens rio campo de batalha. Vira

desafio em seus olhares, em suas atitudes. E sabia que estava diante de um desafio novamente.

— Se o conde assim o quiser, eu ficarei satisfeito em tocar — aceitou-o.

O sorriso feliz e orgulhoso de Elizabeth foi seu primeiro pagamento pela atitude tomada.

— Como também ficarei feliz em dançar — acrescentou ela. — Agora, venha, meu senhor. Quero mostrar ao senhor e a sua esposa onde ficam seus aposentos, para que possam descansar e se refrescar antes da festa. — E levou o casal escadaria acima, até a torre do lado leste, deixando Raymond com seu maior inimigo.

Capítulo 16

Eles não estavam propriamente a sós, é claro, já que Cadmus estava sentado junto ao dono e a guarda do conde acabava de entrar no hall, bem como os muitos criados.

— Ouso dize que você ficou atônito com minha presença aqui hoje — Montross observou com um ligeiro sorriso de ironia nos lábios. Ele ainda desafiava.

— O que sei é que você foi bastante rude em não responder meu convite — Raymond rebateu sério.

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— Eu estava ocupado com o conde.Diante de tal afirmação, a única coisa que Raymond fez foi erguer

as sobrancelhas, já que não fora exatamente isso o que a prostituta dissera ao Aiken e, levando-se em consideração o caráter de ambos, ela era muito mais confiável do que Fane Montross…

— Você pode ter ido longe demais com esse seu casamento, Raymond — ele continuou provocando. — Aliou-se a homens poderosos e o conde deve ter imaginado onde de fato, quer chegar…

— O conde ou você?— E o que me interessa com quem se casou ou com quem fez

alianças? Tenho meus próprios aliados.— Interessa-se tanto a ponto de encontrar minha esposa no

bosque. Montross endireitou os ombros.— Com certeza, ela lhe contou o que achou que eu estivesse

fazendo, lá. — Ele sorriu, mas apenas com os lábios.— Nosso encontro foi puramente fortuito. Um acaso da sorte. E

você deve pensar que assim foi, é lógico, ou teria cavalgado até meu castelo para pedir maiores esclarecimentos…

— E essa era a segunda parte de seu plano?, Foi o que pensei. — Não houve plano algum! Você e aquela sua esposa…— Fale de Elizabeth com respeito ou saia daqui imediatamente.

Estou apenas esperando que faça isso para que eu possa contar ao conde o motivo de sua partida.

Montross calou-se por instantes. Sua atitude demonstrava a Raymond que não estava tão seguro assim de sua posição em relação ao conde. Caso contrário, aquele aviso não lhe teria dito nada.

— Sua esposa estava enganada — repetiu apenas.Raymond, então, decidiu tomar outro rumo na conversa:— Presumo que você deva ter comentado sobre seus receios em

relação aos meus novos aliados com o conde.— Como seu fiel vassalo, era minha obrigação para com ele. – E ele ficou tão aborrecido que rapidàmente aceitou meu convite e,

inclusive convidou minha esposa para uma dança… — Ela foi encantadora, e ele se deixou levar.— De fato, ela é muito encantadora.— A afabilidade dele não vai durar muito.— Você ainda parece considerar Elizabeth tão fascinante que não

se importa, em observá-la com luxúria. — A voz de Raymond estava mais baixa agora, e mais ameaçadora também. Montross ergueu o queixo, altivo:

— Não se pode negar queda seja uma bela mulher. — comentou.

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— Exato. "Minha bela mulher".Montross aproximou-se alguns passos. Seu autocontrole estava

desaparecendo aos poucos:— Uma mulher que você não mereceu — sussurrou irritado. —

Como não merecia minha irmã.— É verdade. Eu não a merecia. Merecia algo muito melhor, mas eu

não sábia o que poderia ser melhor até conhecer Elizabeth.Os olhos de Montross se arregalaram, irados. Mas a constatação

que o alarmava era bem outra:— Meu Deus! Você a ama!Raymond não respondeu. Seu coração batia forte, vítima de um

sentimento de vulnerabilidade que chegava a ser incômodo. Pensava agora que não deveria ter dito nada, mostrado nada. Devia ter sido um mistério total para seu inimigo.

— Você tirou minha irmã de mim e depois a matou — Montross disse em voz alta. — Não merece ter amor ou felicidade! Você me enoja, Raymond! Você e aquela sua rameira!

Raymond deu um passo a frente para ordenar:— Saia de Donhallow imediatamente!— Não, não vou sair daqui. Não, até poder falar com o conde outra

vez e avisá-lo de que encontra-se num ninho de cobras aqui.Raymond tentava controlar a raiva que lhe subia do peito. — O conde sabe que você está contratando mercenários? —

perguntou, em tom ameaçador.-Tenho permissão para contratar soldados.— Eu também, se achar que vá precisar deles. Mas não do tipo

escória, como você está fazendo.— O conde entende que preciso de proteção.— Proteção contra mim ou contra ele próprio?O rosto dê Montross tornou-se vermelho como um pimentão. — Ah, então, este é o jogo… — observou sarcástico. — Vai dizer a

ele que não deve confiar em mim, quando o grande traidor é você mesmo?! Vamos ver então em quem ele vai acreditar!

— Sim, vamos ver.Montross encarou-o por longos segundos.— Não, não vou permanecer aqui — disse, por fim. — Não quero

presenciar você e sua adorada esposa comportando-se como passarinhos apaixonados, seu assassino detestável! E, quanto ao conde… — Calou-se, talvez pensando que, mesmo estando completamente fora de si, deveria respeitar seu superior a todo custo.

Voltou-se em direção a porta e saiu pisando firme. Todos que ali estavam acompanharam seus movimentos, depois voltaram-se para

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Raymond, o qual mantinha-se impassível.Ele não lamentava o confronto. Já estava mais que na hora de

Montross entender que sabia sobre os mercenários e para que eles estavam sendo contratados. Era bom que soubesse que estava preparado.

Entretanto estava preocupado também. Se Montross imaginasse ter perdido os favores do conde, a única coisa que mantivera Raymond em cheque nesses anos todos, não havia como prever o que ele seria capaz de fazer…

Já na cama, feliz por poder colocar os pés numa altura acima do corpo, e bocejando, de cansaço e sono, Elizabeth esperava por seu marido. Ele ainda estava lá embaixo, conversando com o conde de Chesney.

A partida repentina de Fane Montross causara grandes especulações. Ela mesma não sabia ao certo o que acontecera, mas imaginava que devia ter havido outro confronto entre os dois antigos inimigos.

O conde não fizera perguntas, o que a fazia pensar que devia ter chegado a mesma conclusão ou que queria fazê-las apenas a Raymond, quando estivessem a sós.

Elizabeth também, queria fazer muitas perguntas a seu marido. Ele não se surpreendera com a presença de Montross na comitiva do conde.

Ela não estava surpresa com a presença dele no castelo, mas jamais esperara vê-lo no cortejo que acompanhava o conde de Chesney, pois isso traía uma intimidade que ela não gostara de ver. Imaginava que alguém devesse ter avisado Raymond sobre aquilo, mas, acima de sua curiosidade para saber a verdade, sentia-se magoada. Ousara acreditar que seu amado marido confiasse nela, tanto quanto percebia que ele a amava. Ainda assim, se confiava, por que ocultara segredos, dela? E o que mais poderia haver em sua vida que não lhe contara?

Quando afinal, ouviu os passos conhecidos que se aproximavam da porta do quarto, bem como o chorar baixinho de Cadmus, aguardou, ansiosa pela aparição de lorde Kirkheathe.

Ele veio quieto, pensativo, e deixou o cão do lado de fora.— Raymond?— Não está adormecida?— Não.— Deveria estar. — Ele veio até a cama e sentou-se, olhando para

Elizabeth longamente. — Parece cansada.— E estou, mas não consegui dormir até falar com você.Ele se ergueu, começando a se despir.

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— Preciso lhe falar — ela insistiu.— Sobre Montross?— Sim, sobre ele. Não estava surpreso ao vê-lo chegar na comitiva

do conde…Raymond não respondeu de imediato. Sentou-se novamente na

cama, para tirar as botas.— Não vai me explicar?— Eu sabia que ele tinha ido a Londres para encontrar-se com lorde

Chesney e que, provavelmente, viria para cá em sua companhia.— E por que não me contou?— Para não deixá-la alarmada, ainda mais por causa de seu estado.

— Ele continuava lidando com sua vestimenta, sem encará-la.— E acha que me assusto assim tão facilmente?Raymond endireitou as costas.— Não vi necessidade em preocupá-la com algo que, afinal, poderia

nem acontecer.— Você se preocupa tanto com minha segurança na hora do parto e

pode não haver a menor necessidade disso também…— Mas é diferente.— Não, não é. E, para alguém tão cuidadoso em relação a minha

saúde, surpreende-me que não lhe tenha ocorrido que um choque assim poderia ter precipitado meu trabalho de parto.

Ele se voltou e, em seu rosto, havia tal expressão de medo, que Elizabeth rapidamente apressou-se em acrescentar:

— Mas isso não aconteceu.Raymond tocou-lhe de leve o rosto, extremamente carinhoso. — Eu devia ter pensado nisso — concordou sentindo-se miserável.— Na verdade, o que mais me deixou abalada foi imaginar que você

não me contou algo de tamanha importância.— Mas eu não queria que se preocupasse…— Mas ficou preocupado por nós dois, sabendo que Montross

estava com o conde, obviamente enchendo-lhe a cabeça com mentiras. Sou sua esposa, Raymond, e quero partilhar tudo com você: alegrias e tristezas, as preocupações e prazer. Não quero que suporte os problemas sozinho. Nunca mais.

— É um hábito difícil de abandonar…— Não, não é um hábito. — Elizabeth pegou-lhe a mão e beijou-a

com carinho na palma. — É medo.Raymond puxou a mão.-Um medo compreensível — Elizabeth prosseguiu, mostrando-lhe

que entendia. — Você confiou em Alicia e ela o traiu. E eu esperava que você confiasse em mim e que soubesse que jamais o trairei. Estava

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enganada pensando assim?— Confio em você; Elizabeth.Eram palavras simples, e, ainda assim, capazes de arrepiá-la por

inteiro, ainda mais acompanhada por aquele olhar, que dizia muito mais.— E, se hão estiver cansada demais, venha comigo que eu lhe

provarei o que digo.— Ir com você? Para onde?— Humm… segredo.— É muito longe?— Não.— Então, não estou cansada demais.Raymond ajudou-a a levantar-se, depois foi até o armário e pegou

dois cobertores grandes, para se cobrirem.— O que diremos aos sentinelas? — Elizabeth indagou, segurando

as pontas do cobertor que ele ajeitara com carinho sobre seus ombros. Depois pegou uma vela da mesa de cabeceira.

— Não vamos sair — Raymond explicou. Tomou-lhe a mão e abriu a porta.

Cadmus olhou-os, humilde e alerta.— Fique aqui — Raymond ordenou ao animal, que tomou a apoiar a

cabeça sobre as patas.— Ele parece ter ficado desapontado — Elizabeth comentou, mas a

única reação de seu marido foi pedir-lhe silêncio, colocando o indicador direito sobre os lábios.

Desceram em direção ao hall e, quando já estavam no meio das escadas ele parou e vasculhou as pedras da parede, Elizabeth, não fazia a menor idéia do que ele estava fazendo, até que uma das pedras cedeu a leve pressão de seus dedos. Era uma pedra com uma pequena marca.

— Lembre-se disto — Raymond avisou, apontando para o minúsculo desenho entalhado na rocha. E, logo em seguida, com outro movimento dos dedos, moveu aquela pedra e todas as outras cederam, até o chão, quase sem, ruído algum.

— É uma porta! — Elizabeth sussurrou, recebendo um leve sopro de ar frio no rosto. Olhou para dentro da abertura e viu a série de pequenos degraus que levavam a um lugar mais baixo, o qual se encontrava em absoluta escuridão.

As paredes úmidas, brilhavam conforme aproximava a chama da vela.

— Uma passagem secreta… — maravilhava-se ela. — Onde vai dar?— Ela segue até a parte extrema do castelo, terminando no bosque,

do outro lado.— Tão longe assim?

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— A porta de saída, no bosque, está bem oculta na mata.— Impressionante…— Foi feita para ser usada, como um caminho de fuga. Meu pai a

mostrou a mim pouco antes de morrer. Jamais falei a ninguém sobre isto, nem mesmo a Alicia.

Elizabeth sentiu uma alegria sem igual. Que outra prova da confiança de seu marido poderia desejar?, imaginou. Porque concluía que alguém poderia entrar por aquela passagem também. Ou uma tropa de homens, e tomar o castelo…

— Tem certeza de que Alicia não conhecia esta entrada? Um amante poderia ter entrado por aqui…

— Cheguei a pensar nisso e, assim que pude sair sozinho, verifiquei a outra porta, no bosque. Não parecia ter sido aberta.

— Entendo…— Mas isso não significa que eu estivesse absolutamente certo…— Manterei seu segredo, Raymond. Fique tranqüilo.— Eu sei. — Passou a mão pela pedra novamente, fechando a

entrada. — Você está com frio…— Sim, um pouco — Elizabeth admitiu, abraçando a si mesma.— Vamos voltar para cama.Seguiram, de mãos dadas, de volta ao quarto. E, quando já

estavam sob as aconchegantes cobertas, Raymond voltou-se para Elizabeth, observando-a com olhar intenso:

— Vou contar-lhe uma coisa, Elizabeth, que jamais disse a ninguém — avisou. — É sobre Alicia e seu irmão.

Ela se interessou de pronto.— Eles estavam sempre muito próximos. Na verdade, eram

chegados demais. Eu devia ter prestado mais atenção a isso e a outras coisas antes de me casar com ela.

— O que… o que está tentando me dizer, Raymond?— Havia… sinais… avisos de que o relacionamento deles não era

normal, mas eu estava cego de paixão. Imaginei amar Alicia e queria acreditar que ela era perfeita…

— Até o dia em que ela tentou matá-lo…— Sim. Estávamos caçando naquele dia. Fane, Alicia e eu, com uma

tropa de soldados. Ele e ela dividiam um segredo, como sempre, riam muito, e acabei por me zangar por ser deixado de lado. Quando voltamos para casa, lembro-me de ter dito algo sobre eles parecerem mais amantes do que irmãos. Foi como uma piada sem graça, mas agora acho que uma parte de mim queria descobrir a verdade…

Raymond respirou fundo, olhando para o teto.— Talvez eu quisesse que ela negasse tudo — continuou

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melancólico. — Mas ela não o fez. Não disse absolutamente nada. Naquela noite, tentou me matar. Acredito que ficou com medo de que eu comentasse alguma coisa, que descobrisse toda a verdade e pudesse pedir uma anulação de nosso casamento.

— E acha que ela seria capaz de cometer assassinato para encobrir seu pecado? Poderia ser julgada, condenada e morta!

— Acho que preferiu arriscar. Sabia que seu irmão ficaria a seu lado e que ambos poderiam jurar inocência. Não tenho dúvidas de que, fosse qual fosse a história que ela inventasse, acabaria por comover os jurados, pois sabia como influenciar um homem. Como você bem sabe, tenho temperamento forte e Alicia acabaria usando isso em sua defesa.

Apesar do calor proporcionado pelas cobertas e pelo corpo de Raymond, Elizabeth sentiu-se estremecer.

— Meu Deus! Isso soa tão… tão nojento…— Mas é a única explicação que tenho para o que Alicia tentou

fazer.— Por que você nunca acusou Montross?— Porque nunca tive provas. Seria minha palavra contra a dele e,

até nosso casamento, ele sempre teve mais influência do que eu.— Poderia contar ao conde agora…Ele se virou e tornou a encará-la.— Embora eu nunca tenha amado Alicia como amo você —

confessou — eu me preocupava com ela. Gostava dela. Montross está arruinando sua própria vida, pois está perdendo o apoio do conde rapidamente. E, quando isso acontecer, estará perdido, pois terá perdido tudo. Não quero arrastar a memória de Alicia num mar de lama, sem necessidade.

Elizabeth acariciou-lhe o rosto.— Você é um verdadeiro cavalheiro, Raymond. Mais uma razão

para eu amá-lo tanto.Ele voltou o rosto e beijou-lhe a palma da mão, provocando um

arrepio em todo seu corpo. Mas ela ainda tinha mais perguntas a fazer.— Por que ele partiu de modo tão precipitado? — quis saber.— Discutimos.— Sobre o quê?Raymond demorou a responder.— Tem certeza de que quer saber de tudo?— Sim, Raymond.— Ele está contratando mercenários, homens que lutam de modo

feroz e desonesto. Foi Aiken quem me contou. Montross quer formar brigadas desse tipo de soldado alugado.

— E você falou sobre isso com o conde?

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— Sim.— E o que ele pensa a respeito?— Que Montross está no seu direito.— E que motivos ele tem para estar contratando esse tipo de

gente?— Aparentemente, para proteger-se contra mim. Elizabeth sentou-se de modo tão abrupto, que o bebê em seu

ventre chutou, num protesto. Raymond imitou-a.— O que houve? — perguntou, preocupado.— O bebê chutou… — ela explicou, depois voltou ao assunto: — Ele

quer se proteger de você? Mas você não o está ameaçando… — Foi o que eu disse ao conde. E ele não é tolo, Elizabeth. Na

verdade, não acredito que ele confie em seus vassalos completamente. Em nenhum deles. O que é muito sábio de sua parte. Vai manter-se atento ao que Montross fizer e acho que vai me observar também.

— A você?!— Sim. — Raymond pensou um pouco, depois sorriu e puxou-a de

leve para si. — Fiz alianças excelentes com meu casamento — continuou num sussurro. — E o conde pode imaginar se estou tendo segundas intenções… Pode duvidar de minha lealdade.

— Mas você é leal e…— Sim, meu amor, e é isso que ele vai descobrir com o passar do

tempo. Mas estou cansado de falar sobre o conde e sobre Montross.— Tem razão, meu querido. Este foi um longo dia e acredito que

esteja querendo dormir.Ele sorriu.— Quero sim. Mas não tão depressa…

Capítulo 17

Quatro meses depois, num dia frio de outubro, Rual olhava para a sacola de moedas que Fane Montross lhe apresentava.

— O bebê deverá nascer dentro de quinze dias, de acordo com a previsão da parteira — informou.

Ele viera sozinho, para encontrar sua espiã, como sempre. Era fácil para um homem que conhecia bem o terreno, aventurar-se pela propriedade de Raymond.

— Tem certeza? — quis saber.— Eu estava presente — Rual garantiu. — Ouvi da própria parteira.

Kirkheathe mandou buscá-la em Chesney.— Ótimo…— Sabe, eu não o entendo — Rual murmurou, estendendo a mão

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para receber seu pagamento. — Por que esperar até agora para vingar-se?

— Talvez pela mesma razão que manteve você aqui… — Espera ser pago? — ela zombou.O sorriso de Montross era frio como o vento que soprava do norte

naquele dia.— Não. Porque quero que ele sofra. E esperei até que seu rebento

estivesse a ponto de nascer, até que tivesse se afeiçoado a sua mulher muito mais do que amou minha irmã. E quando Raymond perder sua adorada esposa, saberá, pelo menos em parte, o quanto sofri quando matou minha Alicia.

Rual moveu-se, desconfortável, como se o plano de seu aliado parecesse ser mais aterrorizante do que imaginara, ou como se estivesse tendo segundas idéias a respeito dele…

— O que vai fazer? — indagou desconfiada.— Nada que lhe interesse saber. — Montross ainda sorria.— Se estiver pensando em atacar Donhallow quero estar bem longe

de lá quando isso acontecer.— Entendo. Mas fique tranqüila. Eu a farei saber com antecedência.— ainda bem. Agora, acho que vou andando, ou minha ausência

poderá ser notada. — Rual deu dois passos a frente, na intenção de pegar o dinheiro, mas Montross afastou-se, colocando a pequena sacola atrás das costas.

— Que desculpas arranjou para vir ao bosque hoje? — perguntou.Rual apontou para a cesta que deixava no chão, junto a porta.— Estive a procura de raízes para fazer um remédio que aliviasse

as dores nas costas de minha senhora.— Excelente! Sabe, você sempre me surpreende som sua

esperteza, Rual!— Sou esperta o suficiente para saber quando devo ficar de boca

fechada. — Ela, obviamente, queria assegurar-lhe, mais uma vez, que manteria silêncio sobre sua cumplicidade.

— Diga-me… Lady Kirkhethae fala de mim, às vezes?— Não, nunca.— Nem menciona meu nome?— Pelo menos para mim, não.— Entendo…— Eu não, mas nem quero entender. Tudo o que quero é meu

dinheiro.Ele estendeu a mão que segurava as moedas.— Longe de mim manter uma mulher esperando — Montross

comentou, irônico.

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No entanto, quando Rual tentou segurar a cordinha pela qual ele segurava a sacola, Montross agarrou-lhe o punho com a outra mão e deixou o dinheiro cair enquanto desembainhava sua adaga.

Rual arregalou os olhos, tentando escapar de seus braços fortes. No entanto, mal conseguia mover-se.

— Como pode ver, Rual, não terá mais que se preocupar com coisa alguma.

Então, cerrando os dentes, desferiu um único golpe. Os olhos dela se abriram ainda mais, em desespero, começando a tornar-se vítreos, enquanto sua respiração diminuía aos poucos, até que seu corpo foi escorregando devagar em direção ao chão.

— Sim, eu vou enfrentar Raymond afinal! — Montross sussurrou para si mesmo, com um brilho de triunfo no olhar. — E, quando ele sair de seu castelo para me atacar, sentirá a força de minhas armas! — E soltou o corpo que ainda retinha nos braços, não se importando se Rual já estava morta ou ainda agonizava.

Guardou a sacola de dinheiro e depois, como tinha planejado, fez tudo o que foi necessário para parecer que Rual tinha sido surrada, violentamente e assassinada.

— Está sozinho, meu senhor?Ao som da voz de sua esposa, Raymond sorriu e ergueu os olhos

das listas de suprimentos que estava verificando. A colheita daquele ano tinha sido especialmente favorável e teriam dinheiro e reserva de alimentos suficientes para passarem o inverno em segurança.

Na verdade, aquele fora um dos melhores verões de sua vida, se não o melhor. As notícias sobre os possíveis mercenários de Montross deixaram de chegar a Donhallow, o que levava Raymond a imaginar que o inimigo tivesse percebido seu erro e que, dali em diante, o deixaria em paz.

O melhor de tudo, porém, era a presença de Elizabeth em sua vida. Ela trouxera paz de espírito. Era como se fosse a luz do sol trazendo alegria e serenidade, libertando-o da prisão na qual, por vontade própria, se instalara depois da morte de Alicia.

Ela vinha em sua direção naquele momento, as saias amplas do vestido movendo-se a cada passo, o ventre proeminente avolumando-se cada dia mais.

Notou que Elizabeth estava um tanto pálida e preocupou-se de pronto:

— O que houve? — Levantou-se, indo em sua direção e tomando-lhe as mãos nas suas. — Não está se sentindo bem? Já está na hora?!

— Não, não é isso. — Ela sentou-se, pesadamente. — Estou

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preocupada.— Com o bebê?— Não. Você já se preocupa com isso por nós dois. — Sorriu, mas

seu sorriso logo desapareceu. -Trata-se de Rual. Ela ainda não voltou e o sol já está se pondo.

Raymond lançou um olhar pela janela, vendo que ela tinha razão.— Onde ela foi? — indagou.— Ao bosque. Como sabe, minhas costas têm doído muito nos

últimos tempos e Rual disse que sabia de uma receita com ervas que aliviaria minhas dores. Foi até o bosque para buscá-las. E; como o dia estava claro e eu não precisava de seus serviços, achei que não haveria problema algum.

— Ela foi sozinha?— Sugeri que levasse um guarda consigo, mas ela se ofendeu Disse

que sabia cuidar muito bem de si mesma e que não, iria muito longe, porque conhece o bosque muito bem e sabe exatamente onde ficam as raízes necessárias.

— Realmente, ela conhece toda essa área — Raymond considerou.— Mas… foi logo depois do meio-dia e achei que estaria de volta

logo. Quando começou a demorar, pensei que poderia ter encontrado algum conhecido na vila e se demorado enquanto conversavam… Mas agora já está escurecendo e temo que algo lhe tenha acontecido. Acho que deveria ter insistido para que levasse um soldado, ou, pelo menos, outra criada, para fazer-lhe companhia…

Raymond olhava-a, muito terno. — Rual não deve ter sentido o tempo passar. Deve estar na vila.

Talvez, também, tenha caído, nada de sério, é claro, e deve estar na casa de algum conhecido.tratando de prováveis ferimentos… Vou mandar alguns homens à sua procura. Sabe que caminho ela tomou?

-Não. Nem mesmo perguntei.— Está bem. Não se preocupe. Vamos encontrá-la.— Espero que sim.— Como ela mesma disse, Rual esteve naquele bosque inúmeras

vezes antes — ele a fez lembrar, carinhoso.— Sim, mas nunca se atrasou. Logo será hora do jantar… Eu devia

ter-lhe contado antes…— Elizabeth, ela é uma mulher adulta. Sabe o que faz. Vou enviar

alguns soldados em sua busca, e tenho certeza de que ela logo estará entre nós novamente. Talvez, até, retorne antes deles.

Elizabeth apoiou-se nos braços da cadeira, para levantar-se. — Espero que sim, meu querido.Raymond olhou-a intensamente e, sorriu.

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— Descanse e não se preocupe mais, está bem — pediu-lhe.— Vou tentar.— Venha, vou acompanhá-la até o quarto.— Não, não é necessário. Vá dar as ordens aos homens.

Não a encontraram antes do anoitecer. Elizabeth passou quase que a noite toda em claro, preocupada, enquanto Raymond sequer adormeceu, inquieto tanto com o desaparecimento da criada, quanto com o estado de sua esposa.

Elizabeth estava em seus braços, aninhada como dormia todas as noites, e ele esperou até que o sono por fim a vencesse, já de madrugada, para sair da cama e liderar ele próprio as buscas.

Cadmus cheirava o corpo da mulher morta, que farejara a distância. Fora uma terrível descoberta para os soldados e para Raymond que, ainda montado junto à cabana abandonada, praguejava em voz baixa, para depois chamar o cachorro para junto de si novamente.

Aquilo não era o que esperara encontrar. Esperara, isso sim, descobrir Rual na cama de uma amiga na vila ou, pior do que isso, ferida em algum ponto do bosque, impossibilitada de voltar sozinha para Donhallow. E isso já seria ruim o suficiente. No entanto, o que tinha diante dos olhos era muito pior.

Engoliu em seco, repreendendo-se por ter baixado a guarda, por ter falhado em sua obrigação de senhor daquelas terras, abandonando o hábito de patrulhá-las incansavelmente noite e dia, como fazia antes. Não era de se admirar agora que tivessem sido pego de surpresa. Culpava-se por uma mulher ter pago por sua negligência.

— Fique aqui — ordenou ao cão, enquanto desmontava e se aproximava do grupo de soldados que se juntavam ao redor da criada morta.

Ela estava deitada de costas, o rosto marcado por inúmeros golpes, as roupas rasgadas, as pernas afastadas. A poucos passos, havia uma sacola de palha coberta por um pano de cozinha.

Era um modo horrível para uma mulher morrer, cruel e bárbaro, tirando-lhe tanto a dignidade quanto a existência. Raymond não queria que Elizabeth soubesse daquilo. Retirou sua capa e cobriu o corpo, depois olhou para seus homens.

— Não quero que falem sobre os detalhes desta morte quando voltarmos ao castelo — ordenou. — Que Rual tenha dignidade em sua morte, pelo menos por enquanto. A verdade só será revelada quando pegarmos o infeliz que fez isto e o julgarmos por seus atos. No entanto, quero poupar minha esposa deste sofrimento por enquanto.

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Caminhou em torno do cadáver e ajoelhou-se ao lado da criada, notando seu corpete ensangüentado. Procurou melhor e encontrou a abertura no tecido.

Era claro que Rual tinha sido apunhalada, uma ferida mortal entre as costelas, num golpe desferido por um homem destro, que provavelmente assim agiu depois de tê-la usado, para que não houvesse testemunhas de seus horrendos atos.

— Coloquem o corpo sobre meu cavalo — ordenou.Hale, de cabeça baixa, indicou os homens que deveriam fazê-lo.

Eles a colocaram atravessada na sela, enquanto o cavalo, inquieto por ter sentido o cheiro da morte, resfolegava, impaciente.

Nesse ínterim, Raymond passou a examinar o chão onde o corpo de Rual estivera. Chovera na manhã anterior e a lama estava ainda fofa e cheia de marcas de ferraduras, o que o impedia de precisar quantos cavalos tinham estado por ali, ou quantos homens tinham deixado suas pegadas. Talvez muitos… Bandoleiros, talvez, ou mercenários que ti-nham invadido sua propriedade…

— Hale! — chamou, levantando-se.— Meu senhor?— Quero seu melhor rastreador.— Derrick! — o soldado chamou, e um rapaz se aproximou,

apressado e obediente.— Quantos homens? — Raymond perguntou, o olhar fixo em

Derrick. Este agachou-se junto às marcas no chão e examinou-as com

atenção por alguns segundos, murmurando em seguida:— É difícil dizer senhor.— Muito bem. Vasculhe a área e quando tiver um número, avise-

me.O rapaz baixou a cabeça, respeitoso.— Sim, meu senhor!— Mas não vá sozinho. Hale adiantou-se, chamando por outros homens:— Martin, Rob! Acompanhem Derrick e mantenham os olhos bem

abertos!Os dois homens colocaram-se ao lado do colega, que ainda

verificava o solo e depois, seguindo-o, embrenharam-se bosque adentro.— Senhor, parece que temos problemas sérios — Hale comentou,

com a intimidade que anos de serviço fiel lhe conferiam. — Há anos não vejo nada assim.

— Não. Graças a Deus, não…De repente, algo que brilhava fracamente no chão chamou-lhe a

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atenção. Tornou a inclinar-se e apanhou uma pequena moeda de prata. Não poderia ser de Rua! Mesmo que tivesse algum dinheiro, ela jamais se arriscaria levando-o consigo ao bosque.

Talvez, em seus esforços para escapar a seu agressor, ela lhe tivesse rasgado a sacola de dinheiro e esparramado parte de seu conteúdo… E,quando ele tentara recuperar as moedas, devia ter deixado uma para trás, sem saber.

Raymond franziu a testa. Rual, em seu esforço para escapar… repetia-se. E isso lhe parecia estranho olhou mais uma vez para o chão, em especial para o local exato onde o corpo dela estivera. Ao redor, havia marcas de muitas pegadas.

Nenhuma delas, porém, estava forçada, como se alguém tivesse tentado fixar os pés para ganhar equilíbrio ao segurar outra pessoa que se debatia… Na verdade, não havia marca alguma de luta corporal…

Lembrava-se também de que não havia marcas nos braços de Rual, por onde ela deveria ter sido segura…

Teria sido apunhalada primeiro? Se assim fosse, por que o assassino batera em sua cabeça com tanta força? O ferimento entre suas costelas devia tê-la matado depressa, e, obviamente, sem forças para defender-se.

Bem, se não estava lutando por sua vida ou sua honra, como teria ela rasgado uma sacola de moedas? Ou o que acontecera ali fora algo completamente diferente do que imaginara até então?

Talvez Rual tivesse ido até ali para encontrar-se com alguém… Um amante, talvez… Mas Raymond jamais notara a criada dando atenção maior a algum homem, nem nenhum homem a ela, o que, certamente, não seria suficiente para imaginá-la uma celibatária… talvez esse fosse mais um sinal do quanto negligenciara sua gente, do quanto estava desatento a seus vassalos e criados, culpou-se mais uma vez.

Mas aquela moeda poderia significar algo mais… Talvez Rual estivesse vendendo algo que carregava naquela cesta… Talvez tivesse roubado alguma coisa do castelo para vender… Raymond foi até a cesta, pegou-a e afastou o pano que cobria sua abertura. Havia apenas algumas raízes ainda sujas de terra lá, dentro. As raízes que ela procurara para fazer o remédio para Elizabeth, com certeza.

Não devia ter suspeitado da mulher. No entanto, a saída em busca de raízes poderia ter sido apenas uma desculpa que ela arranjara para vir até ali… Tinha razões para suspeitar. Afinal, uma mulher já o traíra antes…

Quieto e pensativo, procurava lembrar-se de tudo que sabia sobre Rual. E deu-se conta do pouco que sabia, na verdade. Sabia apenas que ela estava em Donhallow há quase dez anos e que jamais sorria. Sempre

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mantivera-se distante, em especial dele, mas isso não era de se estranhar, já que todos os criados o respeitavam demais.

Nada podia lembrar-se que pudesse depor contra Rual, a não ser que ela entrara no bosque muito confiante de si e, de algum modo, morrera ao lado de uma moeda de prata…

Minutos depois, Derrick voltava com os outros dois soldados. E foi ele quem alcançou Raymond primeiro, para informar-lhe, ofegante:

— Apenas um homem, senhor. Em um cavalo.— E de onde ele pode ter vindo?— Das terras de sir Fane Montross, meu senhor. Com certeza

absoluta.Então, o animal viera das terras de Montross, pensou Raymond,

raivoso, mas não muito surpreso. Quem, nas terras de seu inimigo, teria moedas de prata?, indagou-se. E a resposta não poderia ser mais rápida e óbvia: ninguém, além dele próprio.

Ouvira Montross dizer, muitas vezes, que uma única, morte poderia causar mais estragos do que um ataque armado. Que melhor estratégia para aterrorizar o povo de Donhallow, sem arriscar ganhar a ira do conde? Sem arriscar nada, na verdade, nem mesmo a vida de seus homens?

Talvez a morte de Rual fosse apenas um macabro aviso, um sinal de que mais terror ainda estava por vir…

Não havia, porém, provas de que fora ele o autor daquela barbaridade, a não ser, é claro, sua própria crença de que Montross era capaz de fazer aquilo e muito mais.

Entretanto, em silêncio, Raymond jurou que, fosse quem fosse o autor daquele crime, ele iria pagar. E bem caro.

Capítulo 18

Elizabeth estava sozinha ao acordar. E, a julgar pela fraca claridade que passava pela janela estreita, Raymond devia ter saído muito cedo para ajudar nas buscas por Rual.

Não deveria ter permitido que a criada fosse sozinha, arrependia-se agora. Devia ter insistido para que ela se fizesse acompanhar por um guarda.

Não havia grandes perigos nas terras de seu marido, com certeza, tentava consolar-se. O mais certo era que como Raymond supusera, Rual tivesse caído e se ferido, e estivesse sem condições de voltar ao castelo. À noite não fora fria demais e ela não deveria ter sofrido muito.

Ouviu os portões do castelo sendo abertos e escorregou para fora

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da cama. Calçando os sapatos, apressada e com grande dificuldade devido ao ventre volumoso. Era-lhe praticamente impossível correr, foi até a janela o mais rápido que pôde. Inclinou-se no peitoril, tentando ver o que se passava lá embaixo.

Viu de imediato o corpo que estava atravessado sobre o cavalo de Raymond e seu coração se apertou. Ele e seus homens estavam parados ao redor do animal e pareciam conversar.

— Oh, meu Deus! — Elizabeth sussurrou e, sem forças para continuar em pé, deixou-se escorregar até o chão, cobrindo o rosto com as mãos. Como aquilo podia ter acontecido? perguntava-se, desesperada. Mesmo sozinha, Rual devia estar em segurança caminhando por suas terras.

Chorou baixinho, até ouvir a porta do quarto sendo aberta para dar passagem a Raymond. Ele veio depressa em sua direção e ajudou-a a erguer-se, preocupado.

— Elizabeth, não deve ficar nesse chão frio…— Era Rual sobre seu cavalo, não era? — ela quis saber, num

murmúrio dolorido.Raymond conduziu-a até a cama e, depois de vê-la sentada,

sentou-se a seu lado e assentiu.— Mas… como isso pôde acontece?!— Ela foi atacada.— Atacada?! — Havia espanto e horror em sua voz. — E foi

violentada também, não?Raymond engoliu em seco.— Eu não ia lhe falar sobre isso por um tempo, mas… sim, é

verdade confessou.— Raymond, precisa parar com essa mania de querer me poupar de

tudo, fui criada num convento e não no céu. Muitas das garotas que eram enviadas para lá tinham sido violentadas e, embora não tivessem tido culpa, ficavam ali, exiladas para sempre, para ocultarem sua vergonha, e evitar um escândalo na família. Então, sei muito bem que essas coisas acontecem e como acontecem. Não preciso ser poupada de nada. Ela estava muito longe do castelo?

— Estava na cabana abandonada, ao lado do riacho.— Mas não é tão longe assim… — Elizabeth protestou, como se, de

alguma forma, pudesse tornar a morte de Rual impossível de ter acontecido, o que queria que fosse verdade. — Quem poderia fazer tal coisa?!

— Montross. Ela o encarou, horrorizada.— Montross? Mas… ele é um cavaleiro!

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— Sim. Um cavaleiro que deveria respeitar os ideais mais nobres da Cavalaria, mas Montross não sabe o significado da palavra honra.

Raymond enfiou a mão numa abertura de seu cinto e retirou a moeda de prata que encontrara na cabana.

— Encontrei isto e suponho que seja motivo suficiente para suspeitarmos de Montross.

— Uma moeda?— Uma moeda de prata.— Muitos homens levam moedas de prata consigo, até mesmo os

foras-da-lei.Ele assentiu, concordando, e prosseguiu:— Havia marcas de um cavalo ferrado ao redor da cabana e no

caminho que leva às terras de Montross.— Bem… Poderiam ser do cavalo de um de seus soldados ou

oficiais, ou de um daqueles mercenários que contratou. Com certeza, muitos deles devem ser capazes de cometerem tamanha atrocidade.

— Eu sei. Mas conheço Montross muito bem. Ele também seria capaz de fazer algo assim, se achasse necessário.

— Necessário? E porque violentar e matar uma pobre criada seria necessário?

Raymond meneou a cabeça, pensativo. Depois de alguns segundos, indagou:

— Você confiava em Rual?Elizabeth franziu a testa.— Sim. Nunca tive razões para desconfiar dela… Ele olhou para a moeda que virava na mão direita.— Talvez isso tenha sido um erro — murmurou enigmático.— Acha que ela poderia estar aliada a Montross contra nós? —

Elizabeth começava a achar que seu marido podia não estar tão enganado assim: — Acha que essa moeda poderia ser parte de um pagamento? E o que ela poderia ter dito a ele?

Raymond negou de leve coma cabeça. Pensava. Disse, tentando entender o que havia acontecido:

— Ela poderia ter-lhe revelado nosso número de armas, as posições dos meus homens, o que temos na despensa e na sala de munição, quantos arqueiros tenho, quantos cavalos…

Parou e olhou-a intensamente, finalizando:— Centenas de coisas que um inimigo acharia importante saber.O bebê mexeu-se e ela teve de colocar as mãos sobre o ventre,

tendo a sensação de que seus movimentos poderiam ser percebidos por sobre o tecido da camisola.

— Ainda acho difícil acreditar… — comentou.

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— Eu, não. Talvez porque tenha mais experiência com a desonestidade…

Elizabeth sentiu um aperto no peito ao vê-lo falar daquela maneira sobre seu passado.

— Desonestidade feminina em especial, não é? — observou. — Sei, que tem suas razões para pensar assim, meu querido, mas, isso não descarta a possibilidade de ter sido um fora-da-lei.

— É claro que não. Também pode ter sido um dos homens de Montross, que viu a oportunidade diante de si e aproveitou-a.

— Não seria uma explicação melhor, considerando-se a violência que Rual sofreu?

— Sim, ou algo que tivesse por intuito retirar as suspeitas de sobre Montross…

— Raymond, mas se ela era espiã a serviço dele, por que Montross a mataria? E por que o faria agora?

— Talvez porque Rual estivesse cobrando caro demais por seus serviços e ele achasse que já lhe pagara o suficiente.

— Precisamos verificar no quarto dela e tentar achar evidências de outros pagamentos.

Elizabeth notou, que ele olhava a moeda com atenção redobrada.— Pode pensar em outros motivos, não pode? — indagou.Raymond ergueu os olhos para encará-la e sua expressão era tão

séria que a fez estremecer.— Talvez ela já não fosse útil aos propósitos de Montross — ele

explicou. — Talvez ele ache que já sabe tudo o que precisa para começar a avançar contra nós. — E passou os dedos entre os cabelos, angustiado. — Deus nos ajude Elizabeth! Já fui complacente demais, com esse sujeito. Devia ter percebido que o receio de que o conde soubesse sobre suas atividades não seriam motivos suficiente para deter Montross.

Elizabeth tomou-lhe as mãos nas suas.— Ele não pode simplesmente, nos atacar sem motivo — tentou

raciocinar com ele. — Isso poderia levar o conde ou o próprio Rei Julgá-lo por traição! Até mesmo se um servo se rebela contra seu senhor estaremos diante de um caso de traição!

— Tenho certeza de que Montross terá uma boa explicação para seus atos. Já deve ter tudo preparado. Talvez até me acuse de tramar contra o conde ou contra o rei.

— Isso seria ridículo!Raymond sorriu de leve, irônico.— Se ele planeja, de fato, atacar, podemos estar certos de que

dispõe de alguma evidência. Por outro lado, Montross poderá se

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satisfazer com minha morte apenas…— Não diga tal coisa! –Elizabeth protestou, horrorizada diante de tal

perspectiva. — Se ele nos atacar, deverá sofrer as conseqüências. Isso, se sobreviver, é claro!

Ele tornou a sorrir, acariciando-lhe o rosto.— Ah, meu amor, eu gostaria que tudo fosse assim tão simples: um

combate pessoal entre mim e ele. Mas temo que haja mais do que isso… — E beijou-a de leve.

Elizabeth sentiu, então, uma pequena dor no baixo ventre. Levou a mão até lá.

— O que houve? É o bebê? — Raymond alarmou-se.— Não… foi só uma pequena dor, nada mais sério.— Tem certeza?— Tanto quanto você está certo sobre Montross. Então, o que

vamos fazer? Porque precisamos fazer alguma coisa, Raymond!Ele assentiu, diante de tanta resolução.— Precisamos enterrar Rua!

Elizabeth apoiava-se pesadamente no braço do marido enquanto o padre Daniel pronunciava as palavras finais sobre o túmulo de Rual, no cemitério da vila, logo depois do almoço. Foi uma cerimônia muito simples, acompanhada, de belas palavras de adeus enquanto baixavam seu caixão à terra.

Ao redor, estavam outros criados de Donhallow e o som de suspiros e soluços enchia o ar. Elizabeth estava surpresa diante de tanto sofrimento, pois jamais imaginara que a quieta e distante Rua! Fosse particularmente bem-amada por seus colegas.

No entanto, haveria alguma mulher que não se comovesse diante de um fim tão amargo quanto o que ela tivera?

Elizabeth encontrara uma sacola de moedas de prata escondida sob o colchão, no quarto que a criada ocupara e isso poderia ser uma forte evidência de traição. Mesmo assim, até ela estava triste com o modo como Rual fora morta.

Q som de cavalos se aproximando chamou a atenção de todos que ali estavam, interrompendo as últimas bênçãos do padre. Elizabeth apertou a mão que apoiava no braço do marido vendo que Fane Montross, acompanhado de um guarda pessoal e mais vinte rudes e bem armados homens entravam no cemitério.

— Senhor, senhora… — saudou ele, inclinando-se de leve sobre o cavalo. — Ouvi dizer que tiveram um problema em suas terras.

Raymond não respondeu de imediato. Ao invés disso, acompanhou Elizabeth até junto do padre, dizendo-lhe:

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— Fique aqui.Ele estava, mais uma vez, como naquele primeiro dia em que o

vira, quando chegara a Donhallow para se casarem. Frio, distante, imponente.

— Raymond… — ia protestar, mas ele insistiu: — Faça o que estou dizendo.E voltou-se para encarar Montross. Elizabeth não queria ficar com o

padre, mas estava no final de sua gravidez. O que podia fazer, além de observar enquanto seu marido caminhava em direção a seu maior inimigo e seus homens?

— Ouvi falar sobre a morte da criada — Montross repetiu, com outras palavras. — Um caso terrível, não? E, como somos vizinhos, vim para oferecer minha ajuda.

— Os boatos continuam voando com o vento, pelo que vejo — Raymond fomentou, em tom casual.

— Por quê? Não é verdade? Pois foi para isso que vim: para oferecer toda a ajuda que puder…

— Não queremos nada de você. — Raymond estava firme, altivo.— Não? Já sabe quem fez aquilo? Prendeu-os?Raymond cruzou os braços, em silêncio.— Pelo amor de Deus, Raymond! -Montross protestou. — Pode

haver um bando de malfeitores rondando por aqui! Se não os prendeu, onde estarão?

O silêncio persistia.— Vai deixar que continuem a matar pessoas inocentes?Montross continuava com seu discurso eloqüente. — Essa não é a

atitude de um senhor de terras responsável! O conde de Chesney não vai gostar de saber como está agindo.

Diante das palavras que lhe pareciam zombeteiras, e do silêncio de seu marido, Elizabeth não mais conseguiu manter-se calada. Afastou-se do padre antes mesmo que este pudesse detê-la e seguiu em direção a Raymond o mais rápido que podia.

— Temos uma idéia de quem fez "aquilo", senhor — disse, decidida.— Elizabeth — Raymond começou a repreender, em voz baixa. No

entanto, sua voz foi encoberta pela de Montross:— Senhora, é extremamente agradável falar-lhe novamente! — Seu

olhar passava, meticuloso, pelo corpo avolumado de Elizabeth. — Posso perceber muito bem porque seu marido não quer sair de seu lado. Devo concordar com o conde quando ele diz que a gravidez deixa uma mulher ainda mais bela. Não é de se admirar, portanto, que seu marido negligencie suas obrigações para com seus vassalos e para com o conde e prefira desfrutar de sua companhia no castelo…

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— Meu marido conhece suas obrigações muito bem, senhor! Tanto quanto conhece a identidade do homem que matou Rua!

— De fato? E, se está assim tão certo quanto a isso, por que não prende logo o infeliz num dos calabouços de Donhallow? Ou esperto sujeito teria escapado? Ou não teriam evidências suficientes para mantê-lo sob custódia? Que pena, se for esse o caso, não?

— Teremos as evidências — ela assegurou.— Bem… Seu marido não me parece pensar dá mesma forma.Elizabeth voltou-se para Raymond, vendo-o sério e calado, mas não

conseguia entendera expressão que havia em seus olhos, muito menos imaginar o que lhe ia na mente.

— Teremos as evidências — repetiu, tentando parecer convincente.

Montross sorriu.— Está calado demais, Raymond — zombou. — Teria ficado mudo

de repente? Ou há outros motivos para não falar? Talvez medo do que eu possa fazer em retaliação se lançar pesadas e falsas acusações sobre minha pessoa? Preocupação por sua jovem e grávida esposa, que ama tanto, muito mais do que minha bela e infeliz irmã?

Elizabeth encarou o mando mais uma vez. Seria isso? Ele estaria ali, calado, quase indiferente a Montross apenas por temer por ela?

Sentia duas emoções muito fortes dentro de si nesse momento: orgulho por saber que ele se importava tanto assim com sua segurança, e horror por ver que o amor que ele lhe tinha enfraquecia-o diante daquele homem.

— Por favor, Raymond leve-me para dentro, longe dessa pessoa — pediu.

— Sim, Raymond! — Montross zombou. — Leve-a para dentro… e fique por lá também!

— Até logo, Montross — Raymond disse apenas, a voz dura e fria como metal. — E saia de minhas terras.

A risada triunfante e zombeteira de Montross se fez ouvir enquanto caminhavam de volta ao castelo, seguidos pelo padre e pelos que tinham ido ao enterro de Rual.

— Temos que conversar sobre isto, meu senhor — Elizabeth avisou, ao passarem pelos portões.

Raymond encarou-a para responder apenas:— Não.— Sinto se o desobedeci, mas não pude suportar ouvir Montross

dizer aquelas coisas horríveis sem enfrentá-lo.— Não devia ser você a fazê-lo. E eu já lhe tinha dito que,

precisamos de mais provas para acusá-lo!

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— E vamos deixá-lo pensar que pode escapar, assim, impunemente?

— Vamos deixá-lo falando sozinho, sem saber o que pensamos a seu respeito! Isso é o que devemos fazer!

Elizabeth parou de andar.— Oh, senhor, sinto muito! Nem pensei nisso!— Achei que não, mesmo. — Raymond olhou-a, reprovando-a, e

diminuiu os passos, acrescentando: — Eu não devia andar tão depressa.— Não tem importância, Raymond, sinto muito.Ele segurou-apelo braço, conduzindo-a até os estábulos e dizendo,

contrariado:— Não gosto de discutir tais assuntos em público!Quando lá chegaram, bastou um olhar de Raymond para que os

cavalariços saíssem correndo e os deixassem a sós.— Raymond, preciso saber de uma coisa — Elizabeth se apressou

em dizer. — É verdade o que Montross disse? Que não o enfrenta por medo do que ele possa fazer?

— Não sou um covarde, Elizabeth! Fiz o que fiz porque sei que Fane Montross jamais suportou o silêncio e que isso o deixaria fora de si. Não percebeu que aquele idiota veio até aqui hoje apenas para me provocar, ameaçando você, acreditando que meu amor por você, e por nosso filho, me deixaria fraco?

Respirou fundo, e continuou:— Houve uma época, quando eu estava começando a perceber o

quanto a amava, em que imaginei que, de fato, meu amor poderia me enfraquecer, tornar-me vulnerável. No entanto, quando o vi hoje aqui, ameaçando, percebi o quanto eu estava enganado e o quanto ele está, também, por pensar assim.

Elizabeth olhava-o com amor, enquanto ele falava.— Meu amor por você não me enfraquece. Ao contrário, faz com

que eu me tome mais forte ainda e mais determinado a proteger aos que amo. Fane Montross cometeu um erro terrível ao ameaçá-la, meu amor. Não podia ter feito nada pior, pois lutarei por você e por nosso filho até meu último suspiro.

— Oh, Raymond… — Ela toda estremecia, olhando-o nos olhos. — Não quero que morra por mim!

— Prometo fazer todo o possível para evitar tal coisa, minha querida. — E acariciou-lhe o rosto com dedos suaves. — Agora, preciso colocar meus homens em prontidão. Aqueles que deverão combater comigo precisam estar avisados do que pode acontecer. Vem comigo ou prefere descansar?

— Gostaria de acompanhá-lo, meu amor.

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Raymond sorriu mais uma vez maravilhado diante da força de sua mulher.

— Então venha, minha senhora. Embora deva lembra-la de que um dia, mentiu para mim, quando disse que seria capaz de manter-se em silêncio…

Ao checarem ao hall, viu que muitos dos soldados ali estavam, falando nervosamente entre si, bem como outros tantos criados. Ficaram, porém, todos calados, assim que perceberam que seu senhor adentrava o recinto. Alguns, até começaram a se retirar humildes, mas pararam quando Raymond lhes falou:

— Fiquem!Levou Elizabeth até uma cadeira e depois, voltou-se novamente.

Suas, palavras eram fortes, embora sua voz não lhe permitisse dizê-las em tom alto:

— Já sabem sobre o que aconteceu a Rua! Infelizmente, possuo razões para suspeitar que ela não estivesse no bosque pelos motivos que deu a minha esposa, ou melhor, ela estava lá por tais motivos e por outro. Acredito, devido ao que lady Kirkheathe encontrou nos pertences de Rual, que ela tenha sido uma espiã durante muito tempo.

Uma onda de comentários sussurrados passou por entre todos. Entretanto, calaram-se quando Raymond ergueu a mão direita para prosseguir:

— Também acredito saber quem está por trás disso, tudo: Fane Montross. E, se não foi o responsável direto pelo que aconteceu a ela, foi o mandante, com certeza.

Um murmúrio de perplexidade ecoou no salão.— No entanto, não disponho de provas. Não posso acusá-lo

publicamente e todos estamos correndo perigo. Esse homem não se deixará deter por nada, até poder conseguir a vingança que sempre quis contra mim por ter matado sua irmã e, por isso, peço-lhes perdão.

Os olhos de todos se arregalaram, incrédulos, surpresos.— A morte de Alicia foi um acidente — Raymond continuou firme. —

Ela me atacou e, quando consegui afastá-la de mim, empurrando-a com toda minha força, ela caiu, bateu a cabeça e faleceu. E, mesmo sabendo que agi em legítima defesa, sinto por tê-los colocado em perigo, pois Montross quer ter sua vingança a qualquer preço. E, seja qual for a alegação que ele possa ter, assassinatos não são uma resposta que justifiquem seus atos.

A atenção de todos estava em Raymond. Sempre tinham respeitado seu senhor e agora o faziam em dobro, pois percebiam o quanto de lealdade, justiça e hombridade havia nele.

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— Mas, como já disse, preciso de provas para acusá-lo! — ele prosseguiu, colocando a mão na altura da garganta, pois a estava forçando demais. — Colocarei mais patrulhas para guardar Donhallow e quando os homens retomarem deverão me informar de tudo que viram. Absolutamente tudo! Qualquer estranho pego em minhas terras deverá ser trazido a minha presença, ileso, para ser interrogado.

Depois de uma pausa, continuou:— Não quero, jamais, que se obtenha confissões por meio de

pressões ou torturas. Da mesma forma, nenhum de vocês deverá ir às terras de Montross, em hipótese alguma, nem mesmo perseguindo alguém suspeito. Precisamos agir com cautela e sabedoria, para que nada seja usado contra nós! Receio que haja ainda muitos problemas a nossa frente, portanto, avisem suas famílias. Todos devem estar avisados para buscar abrigo no castelo o mais rápido possível, caso isso seja necessário.

— Abaixo Montross! — Ouviu-se no meio das pessoas. E logo muitos gritos de apoio a Raymond se fizeram ouvir, fortes, entusiasmados. Ate que alguém gritou:

— Deus abençoe lady Kirkheathe.— Sim, Deus a abençoe! — Raymond concordou, e todos se

calaram novamente.Ela sorriu e se aproximou, segredando-lhe:— Agora sei por que estava tão calado no dia em que o conheci.

Estava economizando voz para tudo o que disse hoje!Raymond sorriu e beijou-a, arrancando ovações de todos os

presentes.— Meu senhor! Diante de todas essas pessoas! — Elizabeth

repreendeu-o. — Não sei o que lhe deu!— Foi o amor, Elizabeth! Meu amor por você abriu-me os olhos,

libertou-me e, por que não dizer, soltou-me a língua!Ele sorriu, malicioso, acrescentando:— Ou, talvez, eu apenas quisesse que todos aqui tivessem a

certeza do quanto estou satisfeito e feliz com a esposa que tenho.Elizabeth retribuiu-lhe o sorriso, o último que trocariam em muito

tempo…

Capítulo 19

Quatro dias mais tarde, Elizabeth olhou para Raymond, no hall cheio de pessoas onde almoçavam, e sua expressão era tensa. Ele parecia estar exausto, era um grande guerreiro, experiente, mas sentia o peso da dificuldade de estar enfrentando mais um inimigo.

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Cadmus, como sempre, estava deitado a seus pés, e também parecia cansado demais para, até mesmo, pedir por comida. Vários habitantes da vila, bem como outros vassalos já tinham pedido abrigo dentro das muralhas do castelo e ali se encontravam, sentados entre muitos soldados que tinham acabado de voltar da ronda com Raymond.

Estranhos tinham sido vistos no bosque próximo a fronteira entre Donhallow e a propriedade de Montross. Pareciam ser os mercenários contratados por ele, mas, infelizmente, nenhum deles fora capturado, portando não se podia dizer ao certo de quem se tratava e nem por que estavam ali.

Raymond percebeu o olhar intenso de sua esposa e tentou sorrir-lhe, mas não teve sucesso.

— Você precisa descansar — ela aconselhou, tocando-lhe o joelho, por baixo da mesa. — Caso contrário, poderá, até adoecer.

— Estou mais preocupado com você — respondeu ele. — Imaginei que o bebê já teria nascido nesta época.

— Os bebês nascem quando nascem, não há como prever nada. Mas confesso que gostaria que tudo já estivesse terminado. Já me convenci de que a espera é pior do que o trabalho de parto em si.

— Eu ficaria mais tranqüilo se a parteira já estivesse aqui.— Estará em breve. Ela avisou que poderia se atrasar por estar

cuidando de uma parenta do conde. E, se ela não chegar a tempo, ainda temos a parteira da vila, que é muito competente. Ela espera a chegada de apenas mais um bebê em breve e, quando ele nascer, virá para Donhallow a tempo para meu parto.

— Espero que esses dois bebês nasçam depressa, então. — Sabe, não sei o que me preocupa mais, se o. ataque de Montross

ou essa espera de que ele o faça a qualquer momento…Um soldado entrou, apressado, naquele momento, vindo em

direção a Raymond para dizer:— Senhor, avistamos fumaça em rolos espessos vindo da região de

uma das fazendas!Raymond levantou-se de imediato, comentando:— Parece que nossa espera acabou.Elizabeth levantou-se também, com muita dificuldade.— Cuidado, meu amor! — pediu, aflita.— Fique tranqüila. — E, voltando o olhar para o cão, ordenou: —

Fique! — depois tornou a olhar para Elizabeth e acrescentar: — Não me preocuparei tanto se ele ficar com você, junto de Barden e de meus melhores homens. Cadmus a protegerá tanto quanto qualquer soldado.

Elizabeth apenas assentiu, recebendo o beijo rápido do marido para vê-lo sair, depois, seguido por seus homens.

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E, quando ele se foi, apoiou as mãos à mesa e soltou a respiração devagar, enquanto a dor passava.

Quando Raymond chegou à fazenda, tanto a casa quanto o celeiro já estavam queimando. As galinhas esvoaçavam por toda parte, em pânico e, dentro do estábulo, um boi mugia desesperado. Raymond viu que o vassalo que cuidava daquela propriedade estava caído, o rosto afundado na lama, tendo uma flecha nas costas. Reconhecia o homem, seu nome era Dennis, e tinha esposa e filhos.

O quintal estava vazio. Os atacantes já tinham fugido, fossem quem fossem.

— Apaguem as chamas. — ordenou, vendo, que seus homens se colocavam depressa em fila, ligando a casa ao poço. — Resgatem o boi! — acrescentou, para um soldado mais próximo de si, o qual apresou-se em obedecer.

Então, Raymond apeou e, sem vacilar, colocou a mão sobre a boca e entrou na casa em chamas. Viu logo a mulher, caída com uma flecha atravessando-lhe o pescoço, junto dela, duas crianças, tinham a cabeça sobre mesa, como se estivessem adormecidas. Eram um menino e uma menina.

Havia sangue sobre a mesa, haviam sido degolados.Ele já vira a morte em muitos campos de batalha, mas nunca se

sentira tão revoltado quanto naquele momento. Saiu novamente da casa, jurando encontrar os responsáveis por aquela barbaridade e puni-los com justiça. Provaria quem estava por trás daquilo e teria prazer em ver o desumano executado por assassinato.

Uma patrulha chegou, a cavalo e, em seus rostos, as expressões horrorizadas mostravam que não havia boas notícias. O oficial desmontou logo e dirigiu-se a Raymond:

— Vimos um grupo a cavalo seguindo para as terras de Montross, a cinco milhas daqui. Os perseguimos, senhor. — disse ele, os olhos cheios de tristeza e remorso. — Saíram de suas terras e então voltamos. Foi quando percebemos a fumaça. Devem ter passado por aqui antes…

— Quando vocês estiveram aqui pela última vez?— Esta manhã.— E estava tudo bem então?— Sim, senhor. Tentamos convencer Dennis a ir para o castelo,

porque lá estaria mais seguro, já que suas terras ficavam muito próximas às de Montross. Sua esposa estava ansiosa para ir, mas ele disse que não seria colocado para fora daqui por aquele… bem… ele deu um nome terrível para Montross, senhor.

— Não me interessa do que ele o chamou, já que está morto agora.— De fato, senhor…

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— O que fizeram em seguida?— Seguimos para o oeste, continuando a vigiar.— E os homens que perseguiram? Que aparência tinham? — Pareciam homens rudes e bem armados. Era óbvio que não

tinham boas intenções. Fizeram-nos segui-los por bastante tempo. Agora entendo que estavam apenas querendo nos afastar daqui. Queria ter chegado aqui antes deles e não depois. Sinto muito, senhor.

— Eu também. Mas teria sido melhor se Dennis lhes tivesse dado ouvidos. Reconheceria algum dos homens se os vissem novamente?

— Acho que um deles, sim. Era enorme e tinha urna grande cicatriz no rosto.

— Depois falaremos a esse respeito.— Senhor! — chamou outro soldado, apontando para leste, por

sobre as árvores, onde se podia ver grossos rolos de fumaça negra que subiam para o céu.

— E lá! — gritou outro dos homens, agora apontando para oeste.Assim que o primeiro momento de surpresa e choque passou, uma

onda de ódio e rancor passou pelo peito de Raymond. Montross estava por trás daqueles ataques e por Deus, ele o faria pagar por tudo aquilo! Jurou.

— Você, leve sua patrulha para oeste! — ordenou ao líder do segundo grupamento a chegar. — O resto de vocês, sigam-me para leste!

Montaram todos e Raymond pediu a Deus que chegassem a tempo de evitar outro banho de sangue. Pedia também que Montross ainda estivesse por ali…

Mas ele não estava em nenhuma das fazendas atacadas. Tinha seguido em outra direção.

Elizabeth arregalou os olhos quando outra contração a atingiu. Suas dores eram muito fortes e vinham com regularidade. Cerrou os dentes, esperando que a dor passasse, imaginando quanto tempo levaria para que seu filho nascesse. Ele não tinha escolhido um bom momento para vir ao mundo, mas, com certeza, chegaria em breve.

A parteira tinha-lhe avisado de que os primeiros partos normalmente levavam mais tempo do que os outros. Por um lado, era bom que Raymond não estivesse em casa, pensou, já que ele se preocupava demais com seu estado. Assim, ocupado com as patrulhas, ele estaria melhor.

Ouviu um ruído do lado de fora, como se o vento estivesse soprando mais forte, ou como se tivesse, começado a chover.

— Senhora! — Greta chamou— a, alarmada, batendo à porta do

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quarto. — Eles atacaram as fazendas mais afastadas!Elizabeth engoliu em seco e olhou para o cachorro, que parecia

tenso. Levantou-se, então, caminhando com dificuldade até a porta.— Atacaram pelo menos três fazendas, senhora! — Greta informou,

assim que a viu. E, trêmula, apontou para a janela, dizendo: — Veja a fumaça!

Elizabeth foi até a janela e segurou-se ao peitoril. Podia ver os rolos de fumaça que subiam, distantes. E o ruído que ouvira era o murmurar dos habitantes da vila, em pânico que entravam para o pátio do castelo trazendo consigo todos os seus animais.

Onde estaria Raymond?, ela se perguntou. E as patrulhas? Teriam sido atacados também? Afastados do castelo e em menor número, teriam sido surpreendidos pelos mercenários de Montross?

Greta começava a chorar enquanto Elizabeth decidia-se: ninguém deveria saber que estava em trabalho de parto. Pelo menos, não por certo tempo. Não, enquanto aquilo estivesse acontecendo lá fora. Tinha, ainda muito tempo antes da chegada do bebê. A parteira lhe dissera…

Queria falar com Barden e saber o que deveria ser feito para proteger Donhallow e sua gente. E, quando tudo estivesse o mais seguro possível, então mandaria chamar a parteira, a qual até já deveria estar dentro das muralhas, com os demais. Mais segura diante de tal pensamento, voltou-se para a criada e indagou:

— Quando a fumaça foi avistada?— Há alguns minutos apenas. Barden enviou-me aqui de imediato

para avisá-la.— Quero falar com ele! Ajude-me a descer até o hall e chame-o.— Mas, senhora, seu estado…— Faça o que eu disse.Greta obedeceu, mais calma, enquanto Cadmus as acompanhava

de perto.Mais uma contração atingiu Elizabeth enquanto esperava pela vinda

de Barden, mas forçou-se a parecer natural, para que ninguém desconfiasse do que se passava. Escondera seu sofrimento muitas vezes antes, quando estava no convento, e faria a mesma coisa agora, até que tudo estivesse sob controle. Mas Barden estava demorando e ela se impacientava.

— Ajude-me a chegar até a porta — pediu à criada, que voltara e aguardava a seu lado. — Vou até ele. Barden deve estar ocupado demais para vir até aqui.

Chegavam à porta quando avistaram o soldado, que se apressava. O barulho lá fora era ensurdecedor, com as pessoas desesperadas falando todas ao mesmo tempo, crianças chorando, animais mugindo,

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relinchando, grunhindo… Muitos ainda estavam entrando no castelo, trazendo suas famílias e animais, e os poucos pertences que podiam car-regar. Os portões, dessa forma, estavam abertos.

— Todas as patrulhas ainda estão lá fora? — Elizabeth quis saber.— Sim, senhora.— Enviou reforços para eles?— Não, senhora.— Então, faça isso!Barden meneou a cabeça.— Sinto muito, senhora, mas lorde Kirkheathe ordenou-me não

mandar mais homens para fora de Donhallow sob nenhuma circunstância. Temos que ficar aqui e defender o castelo a qualquer custo.

Ela mordeu o lábio inferior, sabendo que o soldado não desobedeceria seu marido em hipótese alguma. As patrulhas tinham, em sua maioria, vinte homens. Se Montross enviasse muitos homens contra elas a batalha seria terrível e desleal.

— Quantas pessoas mais ainda virão para o castelo? — perguntou, aflita.

— Muitas, senhora. Não podemos fechar os portões diante deles, mas… é o que teremos de fazer.

— Não! Ainda não! –ela se alarmou, pensando nas famílias que, sem terem para onde seguir, buscavam abrigo seguro ali. — Com certeza, as patrulhas poderão deter os ataques longe da vila.

Mesmo se todos morressem, ela acrescentou apenas para si, desesperada. Mesmo se Raymond morresse… Não, não queria pensar assim. Sua obrigação naquele momento era cuidar de sua gente e cuidar para que todos tivessem abrigo e segurança em Donhallow, salvando tantos quantos fosse possível.

— Senhora, temos que fechar os portões! — Barden afirmou, lançando um olhar avaliador à situação no pátio.

— Peço-lhe apenas um pouco mais de tempo — ela insistiu e prendeu a respiração, sentindo nova contração.

— Senhora, está…— Estou ótima! Mande alguns de seus homens para apressar

aquelas pessoas. Diga para não trazerem mais animais. O gado é lento demais.

— E se não quiserem deixar os bichos para trás?A dor se intensificou, um tanto modificada, atingindo-a com mais

força.Diga-lhes que temos de fechar os portões agora explicou, tentando

controlar-se. — E que o pátio já está cheio demais. Se, ainda assim, se

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recusarem a deixar os animais para trás, diga-lhes que suas únicas opções são: deixá-los ou morrer lá fora, com eles.

— Sim, senhora.— Vá agora e dê as ordens. — Elizabeth sorriu de leve. — Acho que

a maioria vai preferir viver.Barden deu dois passos, depois voltou-se para dizer:— Meu senhor escolheu a esposa certa!Houve um som estranho, como um assobio de cobra, e, de repente,

uma flecha atingiu Barden no peito. Greta gritou, mas Elizabeth, chocada demais para produzir qualquer tipo de som, apenas observou enquanto o valente, soldado dobrava-se em dois, para depois rolar escada abaixo.

As pessoas, no pátio, entraram em pânico e tudo transformou-se num pandemônio. Todos gritavam, empurravam-se, procuravam fugir e esconder-se onde fosse possível. Elizabeth agarrou Greta pelo braço e, apesar de suas dores, puxou-a consigo, enquanto outros homens entravam no castelo, começando um combate sangrento com os de Donhallow.

Duas mãos fortes agarraram Elizabeth e Greta pelos braços e levaram-nas de volta até o hall. Era Aiken, cujos lábios estavam extremamente pálidos. Algumas mulheres e crianças também tinham conseguido chegar até ali e estavam todas abraçadas, como para aliviar o medo que sentiam. Estavam em silêncio, porém, e seus rostos lívidos, e os olhos arregalados mostravam a Elizabeth o quanto estavam apavoradas.

Queria dizer-lhes alguma coisa, consolá-las, mas naquele momento, mais uma contração a atingiu, muito mais forte do que as anteriores.

Apertou os lábios, tentando manter-se firme e em pé. Queria pensar com clareza, como era seu dever de senhora daquele castelo. Greta, no entanto, ajoelhou-se, em prantos.

Elizabeth ignorou-a e, tentando deixar a dor de lado, voltou-se para Aiken, perguntando:

— Quem está no comando agora?— Não sei, senhora. — E olhou, aflito, para Greta, sua esposa.— Muito bem, então, você está.— Mas, senhora…— Coloco-o no comando de Donhallow até meu marido voltar.Ele assentiu, e Elizabeth sentiu-se mais tranqüila por ver que agora

ele já não parecia estar tão pálido.— Farei o melhor possível, senhora — prometeu.— Sei que fará.— Não! — Greta gritou, parecendo alucinada.— Preciso ter um bom homem no comando, Greta — Elizabeth

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explicou, compreendendo a dor da outra, mas mostrando-se decidida.— Assim que eu sair — disse ele — fechem as portas e não deixem

ninguém entrar! Peguem água da cozinha, no caso de tentarem incendiar o teto.

Mais uma contração, ainda pior, atingiu Elizabeth, fazendo-a apoiar-se à parede. Pedia a Deus que lhe desse força para não desmaiar. Não podia desmaiar!

Também não podia permanece ali, ou todos perceberiam que estava em trabalho de parto. E todos tinham outras preocupações no momento. Tinham de salvar Donhallow, como ela tinha que proteger a vida de seu filhinho. Ainda assim, sabia que era sua obrigação liderar sua gente até que Raymond retomasse.

— Vou sair agora, senhora — Aiken avisou. Mas, percebendo a expressão de sofrimento no rosto dela, preocupou-se: — O que está havendo?

— Preciso me deitar…— Greta, ajude-a!A mulher controlou os soluços e, erguendo-se, enxugou as lágrimas

e passou os braços pelos ombros de Elizabeth.— FIque aqui e ajude a outras até que as ordens de Aiken tenham

sido obedecidas — disse ela para a criada, não aceitando seu amparo.A última coisa de que precisava naquele momento era das mãos

trêmulas de Greta e de seu medo absurdo.— Venha, Cadmus — chamou, sendo seguida de pronto pelo

animal. E, com a mão sobre a cabeça dele, apoiou-se como pôde em direção às escadas.

Elizabeth esperava que, mais tarde, seu povo entendesse por que, naquele momento, ela parecia estar abandonando-os. Mas não tinha outra alternativa. Com certeza, estariam a salvo ali dentro. E o resto dos vassalos da vila também, atrás dos muros do castelo.

Montross seria um grande tolo se os matasse, pois, assim, ficaria sem ter quem pagasse as taxas e cuidasse das terras, supondo-se que conseguisse tirá-las de Raymond naquela batalha. E isso só aconteceria se ele matasse Raymond…

Com tal pensamento passando-lhe pela mente e mais uma contração apertando-lhe o ventre, teve de gritar. Sabia que Montross era, sim, um tolo. Um tolo capaz de matar por vingança, capaz de chegar a um homem e fazê-lo dobrar-se por sua esposa e seu filho…

Apoiou-se mais uma vez à parede, a dor parecia não querer passar… Podia ouvir o barulho da mobília sendo arrastada no hall, conforme as mulheres arrastavam coisas, para bloquearem a porta.

— Oh, meu Deus, proteja-nos! — pediu, seguindo escada acima. —

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E proteja meu filhinho também!Cerrou os olhos, devido a dor e, quando as reabriu, viu-se no exato

ponto da escadaria em que Raymond lhe mostrara a passagem secreta.Pensou por alguns segundos, depois forçou a pedra, fazendo com

que as outras deslizassem, abrindo para o corredor escuro e úmido.Precisava de tempo… Tempo para fugir, para se esconder, para ter

seu filho… Se Montross pensasse que ainda estava no castelo…— Sente-se, Cadmus — ordenou e o cão obedeceu-a de imediato. —

Fique aqui!Ela deu dois passos na direção da abertura, e o cachorro fez

menção de segui-la.— Fique! — repetiu. E, caminhando com esforço, entrou no túnel,

voltando-se em seguida, para cerrar a porta de pedras. Ajoelhou-se, no escuro, com receia de que, andando, pudesse escorregar e cair. Continuou seguindo, apoiando o ventre com uma das mãos, enquanto a outra deslizava pela parede úmida. O ar fétido do local quase a fez vomitar. Mas tinha que continuar para proteger o bebê Raymond. Seu bebê. E assim fez.

Capítulo 20

— Fujam! — O grito partiu dos atacantes quando Raymond e seus homens cavalgaram contra o castelo em chamas.

Raymond podia ver pelo menos seis homens, incluindo um que segurava uma jovem ao chão e outro, que ajoelhava-se unto dela.

Cavalgando com fúria, os dentes cerrados, numa expressão de raiva incontida, Raymond desembainhou a espada e, investiu contra eles. O homem que segurava a moça soltou-a de pronto e juntou-se a seus camaradas, que corriam mata adentro. O outro, um tanto atrapalhado no momento de levantar-se, foi deixado para trás.

E Raymond esqueceu-se do que dissera sobre apenas prender aqueles mercenários, poupando-lhes a vida. Usou sua espada com maestria no ato de vingar a morte de outros de seus vassalos. Segundos depois, o corpo inerte do criminoso caía ao chão, enquanto um grito de pavor escapava na garganta da garota que estivera sendo atacada.

Mas Raymond não prestou atenção a ela. Seguiu para a mata, seguindo os que tinham corrido para lá. Seus homens o seguiam de perto. Queria capturar todos aqueles desordeiros. Capturá-los e matá-los. Mas não conseguia encontrá-los. Forçou seu cavalo a parar e olhou ao redor, atento. Podia ouvir brados de homens gritando em batalha. E o barulho estridente, das espadas ao se chocarem.

Sua respiração estava acelerada a sua mente bloqueada com o

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único instinto de continuar lutando. Mas sabia que precisava controlar-se e pensar. Não deixaria que aqueles homens escapassem dessa vez e, por Deus, eles lhe diriam quem os comandava!

Precisava de provas contra Montross a qualquer custo! Os ataques às fazendas eram numerosos e ousados demais para serem algo além de um ataque planejado de seu grande inimigo. O qual, provavelmente devia estar confortavelmente instalado em seu castelo, pronto a negar sua autoria em todas aquelas atrocidades.

Diria, com certeza, que os homens agiram sem seu conhecimento e então…

De repente, Raymond sentiu como se seu coração tivesse parado de bater. Mal conseguia respirar. A idéia de que Montross pudesse "não" estar em seu castelo atingiu-lhe os pensamentos e atormentou-os.

E se aqueles ataques não fossem uma tática direta, mas um engodo para mantê-lo distante de Donhallow, para que Montross pudesse…

Abriu os lábios para gritar por seus homens, chamá-los de volta… Mas não conseguia gritar. Não o fizera desde que Alicia tentara matá-lo. Não… Não podia reunir seus homens novamente para que o seguissem rumo a Donhallow. No entanto, não podia esperar…

Em breve, muito em breve, Raymond D'Estienne conheceria o real sentido da palavra tormento, pensou Montross, com um sorriso de satisfação nos lábios, enquanto subia os degraus sem pressa, seguindo pela passagem secreta que conhecia tão bem. Logo ele saberia o real significado de perder alguém querido, alguém por quem se daria a vida, pois Raymond jamais amara Alicia…

Se a amasse, jamais teria sido capaz de matá-la. Estava tão próximo de vingar-se! Na verdade, depois de tantos anos, a espera do lado de fora dos portões de Donhallow tinha sido muito penosa, quase insuportável. Mas agora seus homens tinham tomado o castelo e estavam fazendo o que queriam lá dentro.

E não eram apenas os poucos mercenários sobre os quais Raymond e o conde tinham ouvido falar. Eram homens diferentes, contratados e pagos em segredo, muito bem selecionados e mantidos afastados até que chegasse o momento da esposa de Raymond dar à luz.

Tivera contato com apenas um dos foras-da-lei, um brutamontes nojento e violento que conhecera em Londres anos antes. Dessa forma, se fossem pegos, apenas um poderia acusá-lo ou citar seu nome. Apenas um fora-da-lei, cuja palavra pouco ou nada pesaria num julgamento perante a corte do rei.

Agora, os atacantes poderiam pegar o que quisessem de Donhallow

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e matar qualquer um que tentasse detê-los. Se pudessem capturar Lady Kirkheathe e mantê-la presa em seu quarto.

Fane Montross sorriu de novo, sentindo o suor a escorre-lhe pelas costas. Tinha planejado e escolhido seus homens muito bem. Tudo o que Raymond viria a saber era, que alguém, matara sua esposa e seu filho antes mesmo que este nascesse. Poderia suspeitar o quanto quisesse então. Sem provas, nada poderia fazer, o que seria ainda mais um castigo para seu coração devastado pela dor.

Fane escorregou e estendeu a mão direita para apoiar-se à parede. Ela estava tão fria e escorregadia quanto o solo e fez uma expressão de desagrado enojo ao limpar a mão nas roupas.

Certa noite no passado, Alicia escorregara daquela mesma forma ao seguir por ali. Ela estendera a mão para garanti o equilíbrio e acabara por encontrar a abertura secreta. No dia seguinte, pegara uma, vela e fora investigar, seguindo o caminho todo até chegar ao bosque.

Jamais contara a Raymond, sobre sua descoberta, porém, como ele próprio fizera, sem nunca ter lhe revelado a existência daquela passagem.

Alicia ficara aborrecida por ver que o marido não confiava nela. E Fane tivera esperanças de que ela, finalmente, percebesse, que Raymond não a amava, não como ele.

Ela deveria saber disso… Afinal, partilhara o segredo daquela passagem secreta com seu querido irmão numa noite em que ele viera dormir em Donhallow para, na manhã seguinte fazerem uma caçada.

Eles deveriam encontrar-se a sós, no solar, quando todos já tivessem se recolhido para dormir. E seria como nos velhos tempos novamente, pensara Montross, feliz, quando um confortava ao outro, muitas vezes dividindo a mesma cama quando seu terrível pai tinha saído para uma de suas noitadas.

E, numa daquelas noites, quando Fane estava com quatorze anos, e Alicia com doze, o conforto que partilhavam tinha assumido um caminho diferente.

Não… Alicia jamais poderia amar alguém como o amava, pensava agora, ainda sorrindo. E ele, da mesma forma, jamais poderia amar outra mulher. Não se envergonhava, do que havia entre ambos, e ela também não, embora soubessem que nunca poderiam revelar nada a ninguém. As pessoas não entenderiam o amor especial que os unia.

Mas, então, Raymond se apaixonara por ela. Fane franziu a testa, lembrando-se de como à irmã mudara quando Raym6nd aparecera em suas vidas. E mesmo agora, depois de tanto tempo, com ela morta, Fane ainda sentia um ciúme terrível. Mas, depois do casamento, Alicia sentira sua falta, pedira que fosse visitá-la.

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A princípio, mostrara-se distante, quase fria, porque tinha medo. Medo de Raymond, da Igreja e, do que as pessoas diriam.

Mas ela jamais sentira medo dele, de seu irmão querido. Fora então, naquela, conversa particular entre ambos, que ela lhe revelara que Raymond parecia desconfiar do que havia entre ambos.

Mas isso seria impossível, Fane pensara na época. Raymond jamais poderia saber, a menos que ela própria lhe tivesse contado!

No entanto, Alicia insistiu na história, dizendo ,que não seria capaz de continuar vivendo, tamanha seria sua vergonha, se Raymond soubesse de tudo. E ela estava tão perturbada, que não quis sequer que seu irmão a tocasse.

Ele insistira. Finalmente, sem conseguir mais lutar, ela permitira que a confortasse mais uma vez, como antes, mesmo tentando negá-lo, era aquilo que Alicia queria e do que mais precisava: estar em seus braços novamente.

Raymond jamais poderia substituí-lo em seu coração. Fora por isso que ela tentara matar o marido na noite seguinte, para livrar-se dele, escapar do inferno em que vivia com sua consciência, e manter seu grande segredo. E, se tivesse conseguido, estaria ambos vivendo, felizes e juntos… Para sempre…

Mas Raymond a matara! E agora Fane seguia, determinado a matar-lhe a esposa, a qual Raymond obviamente adorava, mas a criança que estava prestes a nascer.

Finalmente, ele atingiu o fim da passagem. Sabia que o momento de triunfo estava em suas mãos! Faria com que Raymond pagasse bem caro! Ele saberia o que era perder a pessoa mais amada de sua vida!

E, com um sorriso maldoso, Montross colocou a mão na pedra correta, e fazendo com que o bloco de rochas se afastassem. E, erguendo os olhos, abriu-os desmesuradamente ao dar de frente com o imenso cão de Raymond, ali, parado, como se estivesse à espera dele…

O animal rosnou, ameaçador, mostrando os dentes pontiagudos. Seu corpo todo estava preparado para atacar.

Com a respiração muito difícil e as pernas absolutamente sem forças, Elizabeth sentia as dores agora freqüentes e cada vez mais intensas sacudirem seu corpo. Descansou, por instantes, as mãos apoiadas nos joelhos dobrados, esperando que a agonia diminuísse um pouco. Já tinha sofrido dores antes, podia agüentar, dizia-se, numa tentativa de conforto que, no entanto, mostrava-se inútil.

Gemeu, angustiada. Quanto tempo mais demoraria para que o bebê nascesse? E o que poderia fazer ali, sozinha no bosque? E se o bebê não estivesse na posição correta? E se sangrasse até a morte antes

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de ser encontrada e socorrida?Não tinha idéia do quanto estava distante de Donhallow. Mas, saiba

que precisava ainda, seguir, para escapar aos homens que atacavam…Temia por Raymond, pelo que poderia ter acontecido a ele. Pedia a

Deus que ele estivesse bem, que pudesse combater e vencer os homens de Montross e, em seguida, procurar por ela e encontrá-la. A ela e ao seu filho. Negava-se a ter maus pensamentos. Tudo acabaria bem.

Mas aquela dor não passava… Gemeu novamente, sentindo mais uma angustiante contração, que a derrubou e a fez contorcer-se sobre o solo. Apertou os lábios um contra o outro, para não gritar. Não podia gritar. Não podia ser ouvida. Não soube ao certo por quanto tempo ficou ali, sentindo aquela dor horrível, e um medo enorme de perder a criança para a fatalidade.

Foi então que a chuva começou. Podia sentir os pingos em seu rosto. Em algum lugar e momento que não recordava, perdera o cachecol que lhe cobrira a cabeça.

A dor estava mais intensa agora. Muito mais. Mas, mesmo com tal sofrimento, sabia que não podia permanecer ali, ao relento, tendo apenas as árvores por cobertura. Arrastando-se com dificuldade, foi até o tronco de uma delas, muito devagar, conseguiu colocar-se de pé novamente:

— Oh, Deus! — murmurou, de olhos fechados, tentando suportar a dor. — Ajude-me, por favor!

Deu alguns passos incertos, mas suas pernas fraquejaram outra vez e caiu de joelhos, sentindo o impacto dolorido nas rótulas. A chuva se intensificava. Precisava encontrar abrigo.

Forçou-se a levantar-se outra vez, mas não conseguiu endireitar o corpo.

E assim, dobrada em duas, seguiu mais alguns passos, até que, como num milagre, conseguiu avistar um chalé. Podia chegar lá, animou-se. Tinha de fazê-lo!

E seguiu, determinada a encontrar, um local seco e seguro. Muitas vezes caiu e continuou seguindo, mesmo de joelhos, as roupas enlameadas e ensopadas de chuva. Parou várias vezes, cerrando os dentes para não gritar de dor quando mais uma contração afligia seu corpo.

Então, ao atingir o mourão da cerca, apoio-se a ele e ergueu-se devagar, sentindo que sua bolsa rompia.

— Oh, Deus! — gemeu, avistando os portos que estavam num cercado próximo.

Não imaginava onde o fazendeiro e sua família poderiam estar. Ninguém saíra da casa para ajudá-la… Prestou atenção às janelas,

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então, e notou que estavam fechadas com tábuas pregadas aos batentes. As pessoas que viviam ali não se encontravam no momento.

Talvez tivessem seguido para Donhallow em busca de proteção. Mas, mesmo assim, Elizabeth sabia que, lá dentro, estaria bem. E, cerrando os dentes mais uma vez, seguiu pelo terreiro, chegando à porta da frente do chalé.

A chuva caía e Raymond seguia por entre as árvores, apressado. Tinha de chegar a Donhallow e, sem seus homens a segui-lo em sua proteção, precisava tomar a passagem secreta para poder entrar no castelo sem maiores problemas. Não dispunha de uma tocha, mas isso não seria bastante para detê-lo. Localizou a entrada sem maiores dificuldades e abriu a tranca sem vacilar. Deixou a porta disfarçada entre os arbustos aberta para ter uma certa claridade, pelo menos até uma parte do caminho.

Seguia, as mãos tocando as paredes escorregadias, tentando manter o equilíbrio, já que, aos poucos, a escuridão tornava-se maior. Chegou a imaginar que não conseguiria atingir o fim da passagem, mas, afinal, um de seus pés tocou a porta no final do corredor estreito.

Era estranho, alguma coisa parecia estar bloqueando seu caminho. Inclinou-se e forçou mais a rocha, fazendo com que o bloco de pedras se movesse. A pouca claridade que entrou a princípio revelou-lhe o corpo ensangüentado do que lhe pareceu ser um homem pequeno.

Viu, pela fresta, a pelagem familiar de Cadmus. O cachorro estava morto do lado de fora da porta. E, se ele morrera, o que fora feito de Elizabeth?! Forçou o ombro contra a rocha e, no processo, ouviu ruídos dentro do castelo. Era como se alguém estivesse tentando quebrar a porta do hall com um tronco.

Mas Raymond ignorou tal ruído. Enquanto a porta agüentasse, nada poderia fazer. Seus olhos estavam no cachorro que, ferido em diferentes pontos do corpo, jazia a seus pés. Sentiu um aperto no peito por perdê-lo daquela forma. No sangue que havia ao seu redor, marcas de botas seguiam em direção ao quarto.

Raymond passou por sobre o cadáver do animal e seguiu na mesma direção. A porta do quarto estava aberta. Seu coração começou a bater mais forte conforme entrava.

Viu Montross de imediato, sentado no chão, junto à parede da janela. Sua túnica estava completamente manchada de sangue, o rosto arranhado, os lábios baços como a pele da face, os olhos fechados. Seu peito erguia-se devagar, para baixarem seguida, mostrando uma respiração deficiente.

Raymond cruzou o aposento a passos largos. Sem piedade, segurou

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Montross pela gola da túnica e o fez erguer-se, contra a parede. A espada que ele segurava caiu ao chão, com um ruído gelado e seus olhos abriram-se devagar.

— Onde está minha esposa? — Raymond rosnou, cheio de ódio.— Eu não sei — foi a resposta num murmúrio de dor.Raymond sacudiu-o.— Mentiroso! — tomou a dizer, em sua voz rouca e, agora,

enfurecida. — Deixei meu cão protegendo-a e ele foi morto.— E… ele me matou… — sussurrou Montross, mal conseguindo

olhá-lo.Somente então, Raymond, percebeu que o braço direito de

Montross fora tão ferido que quase estava separado do corpo, ele sangrava em profusão.

— Morreu por nada, aquele animal — continuou ele, quase sem voz. — Atacou-me, mas ela já tinha fugido…

Raymond soltou-o, vendo o farrapo humano em que seu inimigo se transformara arrastar-se parede abaixo.

Sua mente trabalhava depressa. Elizabeth devia ter usado a passagem secreta. Mas… onde estaria? Estaria em segurança?

— Onde estará sua querida esposa? — Montross teve forças para zombar. — Deve ter saído por aquela sua passagem. Deve estar sozinha e grávida, pesada, que chances teria, contra as brigadas de soldados que contratei?

Raymond baixou os olhos irados sobre ele.— Eu sabia da passagem, sim. — Montross sorriu, tossindo logo em

seguida, depois de um lento gemido, completou: — Como acha que consegui entrar, seu tolo? Minha querida Alicia descobriu-a e me contou… Queria que eu viesse para ela… Porque me amava, e só a mim.

Mais uma vez, Raymond agarrou-o pela frente da túnica, fazendo-o erguer-se.

— Onde está Elizabeth? — repetiu, sem voz, mas extremamente ameaçador.

Não vira sinal dela nem na passagem, nem nos arbustos que cobriam sua entrada. No entanto, como não estivera procurando por ela, talvez não tivesse notado algum indício de sua presença. Além do mais, Montross podia estar mentindo. Podia estar morrendo, mas podia ter dado ordens a seus homens para levarem Elizabeth.

Apertou a mão em tomo da garganta do outro e exigiu saber:— Onde está minha esposa?!— Espero que a tenha perdido, Raymond. Desejo que esteja morta,

para que você viva no inferno em que tenho vivido desde que matou minha adorada Alicia.

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A cabeça de Montross inclinou-se de repente, para a frente.— Fane! Fane!! — Raymond chamou, erguendo a voz tanto quanto

podia. Mas era tarde. Montross estava morto.Então, deixando o corpo de seu inimigo cair ao chão, Raymond,

sentiu um aperto tão forte no peito que quase sufocou. Não sabia se Elizabeth tinha, de fato, escapado pela passagem secreta. Se assim fosse, poderia encontrá-la e tudo estaria bem.

Então, vindo de longe, ouviu um ruído ensurdecedor. Conhecia o barulho. A porta do hall tinha sido posta abaixo. Apertou a mão no cabo da espada e saiu correndo do quarto. Parou junto ao corpo do cachorro e olhou para a abertura na parede.

Aquele era seu lar. O lar de seus pais e, agora, também de sua esposa. Era seu dever proteger sua gente e eles precisavam demais de sua ajuda naquele momento. Não podia partir em busca de Elizabeth. Não, agora. Lutaria primeiro contra as brigadas que invadiam Donhallow e só depois seguiria a procura de sua esposa querida.

Começou a descer as escadas, então pedindo a Deus que o ajudasse em sua missão e que mantivesse Elizabeth viva. Se não fosse assim, não precisaria mais seguir vivendo.

Ao chegar ao hall, ignorou os criados e mulheres do povo que seguiam, apavorados, para a cozinha, lá, poderiam encontrar abrigo nas despensas.

Enquanto isso, ele cuidaria de varrer, aqueles vermes de sua casa. Respirou fundo, então e, erguendo a espada por sobre a cabeça, e, com um rosnado semelhante ao de um lobo, partiu para cima dos homens armados que entravam pela porta arrombada.

E então aqueles homens souberam que a reputação de lorde Kirkheathe não se baseava apenas em sua presença intimidante e em sua voz rouca.

Capítulo 21

Raymond atacou o primeiro soldado que veio em sua direção. O homem mal tinha percebido sua presença quando a espada forte o atingiu mortalmente. Seus companheiros olharam, admirados e surpresos, por segundos, depois avançaram contra o recém-chegado, brandindo suas armas. Mais dois caíram, mortalmente feridos.

Vendo que a atenção do atacante estava desviada em outra direção, Greta começou a gritar. As mulheres que a seguiam em direção à cozinha, vendo o que fazia, seguiram-na de volta ao hall. E como feras enlouquecidas, passaram a atacar os invasores, muitas delas gritando palavrões e ofensas enquanto, os feriam como podiam. Lutavam

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ferozmente pelo direito de estarem vivas e de viverem em paz com seus filhos naquelas terras. O desespero tornava-as mais fortes do que poderiam supor.

As espadas dos agressores acabaram sendo-lhes tomadas de surpresa. Aos poucos, eles foram abaixando-se, cobrindo a cabeça com braços, procurando evitar os golpes que as mulheres lhes desferiam com qualquer objeto que tivessem encontrado pela frente, inclusive as próprias espadas, que não sabiam manejar como um soldado.

Raymond ainda lutava quando Aiken surgiu com mais homens, assim que os notaram, os dois oponentes que enfrentavam Raymond jogaram suas espadas ao chão, entregando-se.

— Senhor! — Aiken gritou, surpreso. — Como conseguiu… — Mas sua pergunta ficou no ar.

— Donhallow foi retomado? — Raymond perguntou de imediato.— Sim, senhor! Aqueles mercenários não tiveram coragem de

enfrentar soldados de verdade, quando seus homens chegaram do bosque, acabaram com o resto deles. Eram todos um grande bando de covardes, senhor!

— Excelente. Agora, precisamos encontrar minha esposa. — Sua esposa?! Mas ela não está…— Não. Desapareceu.— Mas, como? A porta do hall foi fechada e bloqueada assim que eu

saí! E a da cozinhas também.— Ela saiu pelo mesmo caminho por onde entrei, e que você

desconhece, bem como todos os outros. Agora, leve os atacantes que sobreviveram ao calabouço.

Greta adiantou-se, ainda respirando com dificuldade devido ao esforço da batalha.

— Senhor, temo que… bem… — disse, constrangida.— Diga logo, mulher! — Raymond ordenou, sabendo que não havia

tempo a perder. — Acredito que Lady Elizabeth estivesse em trabalho de parto,

senhor. Raymond sentiu um aperto no estômago. Ela saíra pela passagem

secreta sofrendo as dores do parto, e depois seguira pelo bosque numa distancia suficiente para que ele não a tivesse visto.

— Tragam a parteira aqui, imediatamente! — Ordenou. — Quero que ela esteja pronta quando eu voltar com Elizabeth! E, num juramento secreto, prometeu a si mesmo que traria sua esposa de volta. Mesmo porque, a outra alternativa que podia vislumbrar era-lhe por demais penosa, para sequer pensar a respeito.

Em uma coisa, Montross estivera certo, se alguma coisa

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acontecesse a Elizabeth, e ele a perdesse viveria num inferno sem tréguas pelo, resto de seus dias.

— Mas… senhor… — Hale protestou.Ele se voltou, aquela terrível expressão dura no rosto novamente,

como há muito seus homens não viam, e encarou Hale e Aiken. — Parou de chover — disse apenas.— Está escuro, senhor — Aiken tentou argumentar. — O chão está

escorregadio e os cavalos podem cair e ferir-se, bem como aos cavaleiros…

— Minha esposa está lá fora, em algum lugar, e deve ser encontrada!

Não havia apelação para sua ordem. Sua angustia era visível, mas a força de suas palavras, era ainda mais eloqüente.

Os soldados tinham sido forçados a abandonar as buscas quando à chuva se transformara num verdadeiro dilúvio.

Nesse meio tempo, Raymond dera ordens para que se fizessem os funerais, inclusive de Cadmus, e que se cuidasse de tudo que fosse necessário para que o castelo voltasse a sua vida normal o quanto antes.

Mas agora parara de chover e Raymond não se importava se estavam ou não no meio da madrugada.

— Vamos levar tochas — explicou.— Senhor, estamos todos solidários quanto ao desaparecimento de

sua esposa — Hale disse, tentando sorrir. — mas não podemos arriscar perder mais gente. Muitos já morreram hoje.

Lorde Kirkheathe passou as mãos por entre os cabelos, pensando naqueles que tinham perecido em defesa de Donhallow, naquele dia, inclusive Barden.

Reconhecia que Hale tinha razão, não podia arriscar as vidas de outros homens naquela empreitada.

— Irei sozinho — decidiu-se, então. Poderia arriscar seu cavalo na busca por Elizabeth, mas não mais do que isso. — Enviem patrulhas de busca pela manhã.

— Eu irei com o senhor! — Rale ofereceu-se. Raymond, no entanto, negou com um gesto enfático.

— Prefiro que fique aqui — disse. — Eu o fiz comandante da guarda, então, seu lugar é aqui, Você também vai ficar, Aiken, para garantir que tudo se restabeleça o quanto antes. Quero que dê atenção especial aos feridos. Se eu não estiver de volta pela manhã, enviem as patrulhas, como já disse.

Hale sentia vontade de protestar, mas sabia que só lhe restava calar-se e obedecer. Raymond já decidira o que deveria ser feito.

— Senhor, é perigoso para sua pessoa também. — Aiken

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argumentou. — E não só por causa da chuva ou da escuridão. Pode haver mais daqueles mercenários espalhados por aí, e estará sozinho…

— Minha esposa também está. Então não vou descansar até encontrá-la.

— Como quiser, senhor. Que Deus lhe acompanhe, então. Hale assentiu, como se pensasse o mesmo, vendo seu senhor

afastar-se em direção aos estábulos. Lá, Raymond ordenou que preparassem seu cavalo de imediato. E, pouco depois, deixou Donhallow.

Começaria a procurar pela saída da passagem secreta no bosque. E prestaria atenção a qualquer detalhe que pudesse lhe indicar em que direção Elizabeth, seguira.

Se ela já tivesse dado à luz ao relento, com aquela tempestade, talvez, fosse tarde demais para salvar a criança. Mas sua esposa era jovem e forte e seu coração simplesmente se recusava a acreditar que Elizabeth pudesse estar morta também.

Ela, que trouxera tanta alegria a sua vida, não poderia agora deixa-lo para sempre. Seguia, levando consigo uma tocha nova bem clara, mas ela era a única fonte de luz na escuridão total que o rodeava. Era como se estivesse nó purgatório, imaginou.

Vasculhou por todos os arbustos do bosque, até chegar à abertura da passagem secreta, onde desmontou e começou a procurar mais de perto por qualquer evidência da passagem de Elizabeth por ali. Ficou ali, sem encontrar nada, por quase meia hora.

Quando já voltava para o cavalo, notou algo que lhe pareceu mais claro do que as muitas folhas das árvores, junto a um arbusto mais alto. Seguiu até lá e, encontrou o tecido, preso a um galho. Soltando uma breve, expressão de triunfo. O Pedaço de pano, pertencia ao vestido de Elizabeth, não havia dúvidas. Então, ela passara por ali, rimando para leste.

Raymond pegou as rédeas do cavalo e seguiu andando devagar, os olhos mais atentos do que nunca, a outra mão erguendo a tocha para melhorar-lhe a visão. Se, ao menos, não tivesse chovendo! Talvez houvesse pegadas ou outras evidências que pudesse seguir.

Chegou à estrada. Talvez Elizabeth tivesse seguido por ela em busca de socorro. Mas, com medo de ser vista pelos atacantes do castelo, poderia, também, ter-se mantido embrenhada na mata… Como saber ao certo?

Ele vacilava, tentando imaginar como ela estaria, sozinha, sentindo as dores do parto, talvez dando à luz sem ajuda alguma…

Prestou atenção ao silêncio da noite, tentando ouvir talvez, um choro de bebê, ou ela própria, chamando-o.

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Mas mão ouviu nada. Era como se estivesse sozinho no mundo, como estivera antes de Elizabeth chegar a sua vida.

Ela teria seguido pela estrada ou voltado para a mata?, pensava, começando a sentir-se esgotado.

— Deus, mostre-me o caminho, por favor! — pediu, cheio de fé e desespero. — Não sei o que fazer…

Pensava… Elizabeth protegeria a vida do bebê com sua vida, se necessário. Tentaria afastar-se dos mercenários. Evitaria a estrada.

Se aqueles pensamentos eram inspirações divinas ou fruto de sua própria lógica, Raymond não sabia, mas eles eram a única coisa que tinha no momento. Voltou, então, para dentro do bosque.

Se, ao menos, a lua estivesse cheia! Se fosse dia! Se tivesse, permanecido com ela em Donhallow! Viu, de repente, uma outra mancha mais clara na escuridão da noite, pouco adiante, junto a uma árvore. Mal podia respirar. Seu coração passou a bater tão depressa que quase o sentia nos ouvidos.

Imaginou que poderia ser o corpo inerte e pálido de um bebê, mas era apenas um pedaço de pano. Inclinou-se e pegou-o, examinando-o à luz da tocha. Reconheceu o cachecol de Elizabeth e sorriu de leve, satisfeito, reanimado.

— Graças a Deus! — murmurou. — Obrigado Senhor, por este sinal!Recomeçou a andar, vistoriando o chão, afastando arbustos,

buscando pôr novas evidências. A tocha estava mais fraca agora, mas não desistiria. Não agora, que estava certo de Elizabeth ter tomado aquela direção.

Já se encontrava próximo à cerca, quando conseguiu avistar o chalé. Ergueu mais a tocha, percebendo que não havia luz dentro da casa, os únicos sons que podia ouvir ali eram os grunhidos dos porcos que se amontoavam num chiqueiro junto à cerca.

Fincou a tocha ao chão e amarrou as rédeas do cavalo na cerca. Depois retomou a tocha e seguiu em direção ao chalé. As janelas estavam pregadas com tábuas, devia estar deserto, concluiu. Os habitantes deviam ainda estar em Donhallow, para onde poderiam ter seguido em busca de abrigo.

Entretanto, isso não era motivo para que Elizabeth não tivesse buscado refúgio ali. Sua esperança crescia. Foi até a porta e abriu-a. Então, seu coração quase parou de bater, ao avistá-la, deitada num catre tosco, a um canto.

Aproximou-se e foi então que viu o sangue, notando, em seguida o quanto ela estavas pálida. Engoliu em seco, sentindo uma angústia que jamais experimentara antes. Elizabeth estava morta!

Ajeitou a tocha a um canto, para mantê-la em pé, ajoelhando-se e

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sentindo os soluços brotarem de seu peito numa onda devastadora e impossível de ser contida. Seu corpo todo tremia, em convulsões de dor e desespero. Ela estava morta. A razão de sua vida estava morta!

— Raymond?Prendeu a respiração ao ouvir seu nome sussurrado. Afastou as

mãos do rosto e olhou-a. Os olhos de Elizabeth, brilhantes como sempre, o fitavam.

— Você está viva… — sussurrou.Ela sorriu, mas estava cansada e abatida demais para reagir, além

disso. Raymond levantou-se e isso deu-lhe a impressão de que ele era mais alto do que sempre fora. E estava vivo! Salvo! Só podia agradecer a Deus por essa felicidade! Por mais essa, corrigiu-se, já que a outra dormia, tranqüila, entre seus braços.

— Sabia que Montross não conseguiria derrotá-lo — disse, sem voz, enquanto Raymond sentava-se a seu lado e acariciava-lhe a testa — Mas procure não fazer barulho, para não acordar nosso filhinho…

Ele olhou, admirado e surpreso, para a pequena criatura que ela lhe apresentava, embrulhada nos farrapos de seu vestido, que usara para protegê-lo do frio.

Elizabeth procurara limpá-lo da melhor forma possível e a criança, como se estivesse se sentindo incomodada em seu sono, começou a chorar, fazendo com que Elizabeth sorrisse ainda mais e completasse:

— Nosso saudável e lindo filho.Raymond passou à língua pelos lábios. Estava emocionado demais

para falar. E, abraçando a ambos, afundou o rosto no tecido que envolvia a criança e chorou, numa expressão incontida de puro alívio e felicidade.

Elizabeth também chorava, mas estava imensamente feliz. — Cuidado para não apertá-lo demais — pediu.Ele se afastou e passou as mãos pelo rosto, num esforço evidente

de controlar suas emoções.— Como foi que conseguiu fazer tudo sozinha? — perguntou

então…— Eu me ajeitei… — Elizabeth o pouparia das explicações, de como

trouxera seu filho ao mundo.Não mencionaria a dor, o medo, o desespero de imaginar que

alguma coisa poderia dar errada. Mas seu filho nascera perfeito e forte e era isso o que importava.

— Agora, acabou tudo e estou bem, meu senhor — garantiu. -E nosso bebê não poderia estar melhor.

Ele notou que Elizabeth se cobria com farrapos e indagou:— Está despida?— Minhas roupas estavam ensopadas por causa da chuva. Tive que

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tirá-las. Cobri-me com um pedaço de tecido que encontrei aqui.— E… este sangue todo? Tem certeza de que está tudo bem?— Há sempre sangue em nascimento meu amor. Aliás, há sangue

em suas roupas também. Ele se olhou e explicou:— Montross e alguns de seus mercenários, a maioria, suponho,

estão mortos. Mas Barden também está, bem como alguns de meus homens.

— Sinto por eles, mas não por Montross e sua, turba. — Foi Cadmus quem matou Montross. Caso isso não tivesse

acontecido, seria enforcado por traição.— Cadmus o matou?! — ela se espantou.Raymond assentiu e acrescentou, aborrecido:— E ele matou Camus.— Oh, Raymond, fui eu quem o mandou ficar enquanto saía pela

passagem secreta…— Não se culpe. Muitas atrocidades são cometidas em batalhas.

Mas, mesmo tendo perdido meu fiel cachorro e muitos dos meus melhores homens, fico feliz por tudo ter terminado assim, pois, se Montross tivesse chegado até você, as coisas teriam sido bem piores.

— Raymond, quero voltar para casa. — ela pediu, com lágrimas no rosto.

— Imediatamente, meu amor. Estou com meu cavalo.— Mas acho que não posso cavalgar…Raymond pensou por instante.— Talvez o fazendeiro tenha deixado uma carroça ponderou. — Vou

verificar. Quanto antes voltarmos a Donhallow, melhor.— Mas já estamos em segurança, meu querido. Em especial agora,

que você está aqui, conosco.

Poucas semanas depois, Elizabeth estava à porta de seu quarto, segurando uma cesta de vime. Observava seu marido, o qual, inclinado sobre o berço, admirava, mais uma vez seu filho, Brennon.

Raymond acabara de retomar de Chesney, onde explicara ao conde o que acontecera em suas terras e entregara os mercenários para serem julgados pela corte real.

O conde ficou horrorizado e indignado com a atitude de Montross. Além do mais, agora que Raymond tinha poderosos aliados, estes poderiam alegar que o conde não soubera controlar seu vassalo poderoso. E isso poderia criar-lhe grandes problemas.

E, já que Montross não deixara herdeiros, o conde passou suas propriedades em nome de Raymond, o qual decidiu fazer de Aiken o

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zelador legal delas, numa justa recompensa por seus serviços durante o ataque a Donhallow e por tudo que já fizera para beneficiar aquela propriedade.

— Achei que fosse deixá-o dormir desta vez — Elizabeth repreendeu-lhe, com um sorriso.

Raymond se endireitou de imediato, como se tivesse sido pego em uma atitude errada.

— Ele ainda está dormindo — defendeu-se.— Que bom. Porque não quero que acorde por algum tempo. —

Elizabeth respondeu, entrando no quarto. — Johannes disse-me em outro dia, que podem ouvir o choro de nosso filho lá na vila, de tão forte ele que é. Espero, porém, que ele esteja apenas brincando… Sabe, meu amor, Brennon ainda é muito pequeno para ter uma harpa, mesmo a pequena, que pediu a Johannes para fazer.

Ela se sentou na poltrona que usava quando estava amamentando Brennon, tendo a cesta no colo.

— Talvez eu tenha sido um tanto apressado… Mas é que…— Sim?— Andei pensando que, talvez, quando ele crescer e tornar-se

homem, bem, talvez possa cantar como eu costumava fazer.Elizabeth sorriu, percebendo que Raymond ainda se ressentia por

ter perdido a bela voz.— Gosto de sua voz do jeito que ela é, sabia? — consolou-o, embora

estivesse sendo sincera.— Gosta?— Sim. Acho-a… excitante. Na primeira vez em que o ouvi falar,

bem… fiquei um tanto temerosa, mas agora não mais.Ele a olhou com uma expressão sensual que era muito mais

excitante do que a voz a que se referira.— Verdade? — insistiu.— Verdade. — Sabe de uma coisa, lady Kirkheathe? Acho que jamais vou

entendê-la.— Bem, mas um homem jamais deve entender sua esposa, meu.

senhor. Imagine como seria aborrecido… Um pequeno mistério é sempre e bem-vindo…

— Um mistério… Como esse que traz na cesta? O que há aí dentro? Fraldas limpas?

— Não… É um presente.— Para Brennon?— Não, meu amor. Para você. — Ela depositou a cesta no chão. De

imediato a tampa se levantou e um pequeno focinho negro apareceu.

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-Um cão?!Elizabeth riu diante da expressão admirada no rosto do marido.

Abriu, então, a tampa por completo, para revelar um belo filhote de cachorro, marrom, com uma das orelhas torta, a cabeça grande e as patas enormes e desajeitadas.

O bichinho latiu, saltando para fora da cesta, seguindo diretamente em direção às pernas de Raymond, para depois começara farejando o quarto todo, até chegar a uma das pernas da cama, diante da qual ergueu uma pata traseira.

— Oh, Deus! — Elizabeth exclamou, levantando-se para pegar um pano e limpar a sujeira.

— Os pequenos costumam fazer muito disso — Raymond comentou, sorrindo, tirando-lhe o pano das mãos. — Deixe que eu limpo a sujeira.

— Eu tive um bebê, Raymond, não uma doença que me deixou inválida! — Elizabeth protestou.

— É, mas perdeu muito sangue.— Não mais do que o normal num parto.Assim que terminou de limpar o chão, Raymond, sem maiores

preocupações lançou o tecido pela janela.— Raymond! — ela repreendeu.— E o que mais queria que eu fizesse?— Que o lavasse…— Mas havia urina de cachorro nele!— Eu sei! Meu Deus! Brennon não teria mais fraldas se fizéssemos

isso o tempo todo.— Mas ele é diferente!— Sim, e você não lava suas fraldas!Raymond encarou-a, sorrindo.— Nem você, minha senhora — observou.— E verdade, mas acho que já lavei muitas roupas em minha vida

antes de vir para cá, e muito chão, também! Mas, mudando de assunto: você não disse o que achou do meu presente.

Ele ergueu as sobrancelhas e olhou para o cãozinho, que continuava a cheirar tudo por onde passava e que, de repente, voltou-se, para começar a morder-lhe a bota direita.

— Oh, não! — Elizabeth apressou-se em afastar o animalzinho, mas Raymond segurou-a pelos ombros e abraçou-a.

— É apenas uma bota velha — murmurou.— Gostou do meu presente? — ela repetiu, entregando-se ao prazer

de recostar-se a seu corpo.— Muito. Não poderia ter escolhido melhor. Como o encontrou?

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— Ah, foi só procurar pelo maior e mais feio filhote de cachorro da vila… — Tarefa difícil, então, já que todos os cachorrinhos são sempre tão engraçadinhos…

— Bem, eu não iria gostar de um cachorro… engraçadinho.— Foi o que pensei.— Você é muito esperta, sabia?Elizabeth sorriu.— É por isso que me ama tanto, não é? — indagou, caprichosa.Raymond apertou os braços que a prendiam.— Exatamente. E sabe que a amo com todo meu co ração, não?— E com todo seu corpo também? Porque… sabe, já estou

completamente curada, Raymond, e a parteira disse que…— Agora? — ele a interrompeu sorrindo.— Brennon vai dormir um pouco ainda… Eu o amamentei há alguns

minutos…Raymond olhou para baixo e acrescentou às palavras dela:— E o pequeno Cadmus II acabou de adormecer sobre minha bota.

— Ela riu.— Vai conseguir tirá-la sem que ele acorde, meu senhor?— Com certeza! O que eu não faria por uns minutos com minha

esposa? — Então, está perfeito, porque Cadmus parece-me perfeitamente

adaptado e em casa.Raymond sorriu de leve e acrescentou sério:— Eu também me, sinto em casa, minha querida, como não me

sentia há muito tempo.— Vai continuar falando, ou vai levar-me para a cama, senhor?

Porque, se me lembro bem sou eu quem costuma falar demais… Ele tirou a bota com extremo cuidado, sem despertar o

cachorrinho, e, depois, ergueu Elizabeth nos braços, levando-a para a cama.

— Venha, meu amor — sussurrou, então na voz rouca que ela adorava. — Não temos tempo a perder.

Fim