A Administracao Popular Em Porto Alegre Uma Experiencia Alternativa de Reforma Do Estado

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    A ADMINISTRAO POPULAREM PORTO ALEGRE

    UMA EXPERINCIA ALTERNATIVA DE REFORMADO ESTADO NA AMRICA LATINA

    Luiz Augusto Estrella Faria

    Faculdade de Cincias Econmicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Av. Joo Pessoa, 52, 3 andar, CEP90040-600, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasile-mail: [email protected]

    RESUMO A experincia de reforma do Estado da Administrao Popular de Porto

    Alegre do incio dos anos 90 analisada neste trabalho como uma alternativa s ini-

    ciativas inspiradas na agenda neoliberal. Em contraste com o insulamento burocr-

    tico daquelas, seu resultado foi a criao de um Estado inserido em relao socie-

    dade civil, aqui descrito como embedded autonomy. Depois de serem esclarecidos

    alguns conceitos do referencial terico utilizado, feita uma breve descrio da cri-se em que se encontrava a administrao municipal no incio do governo e das ini-

    ciativas que foram empreendidas tendo em vista sua superao e a criao de con-

    dies de governabilidade. Seus bons resultados foram alcanados atravs de uma

    modificao da agenda pblica e da relao do governo com a sociedade pela insti-

    tuio de mecanismos de participao popular na gesto, do que resultou uma in-

    verso das prioridades das polticas municipais.

    Palavras-chave:reforma do estado; governabilidade; oramento participativo

    POPULAR ADMINISTRATION IN PORTO ALEGRE: AN ALTERNATIVE

    EXPERIENCE OF STATE REFORM IN LATIN AMERICA

    ABSTRACT The state reform experience carried out by Popular Administration in

    Porto Alegre in the early 90s is analyzed in this paper as an alternative to the

    neoliberal agenda. In contrast to the bureaucratic insulation characterizing

    neoliberal reforms, this experience produced an integration of state and society

    herein referred to as embedded autonomy. After some clarification of the theoreti-cal framework adopted, the paper briefly describes the crisis affecting city govern-

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    ment back in those days and the actions taken to handle it and to restore gover-

    nance. Positive results are shown to have been achieved by changing the public

    agenda and the relationship between state and society through a form of participa-

    tory administration that resulted in inverting the priorities of municipal policies.

    Key words:state reform; governance; participatory budget

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    Of Equality as if it harmd me, giving others

    the same chances and rights as myself as if it

    were not indispensible to my own rights that

    others possess the same.Walt Whitman, Thought

    INTRODUO1

    Em janeiro de 1989, uma frente de partidos de esquerda dirigida pelo PTto-

    mou posse na administrao da Prefeitura de Porto Alegre, capital do Rio

    Grande do Sul, o estado mais meridional do Brasil. A palavra de ordem da

    campanha eleitoral vitoriosa fora coragem de mudar, traduzindo a inten-o daquela fora poltica de modificar a agenda pblica e transformar as

    relaes entre Estado e sociedade. O que se seguiu nos primeiros anos de

    Administrao Popular foi um processo de crise de governabilidade resolvi-

    do por uma reforma do Estado cujo contedo diverge radicalmente da

    maior parte das experincias que lhe foram contemporneas na Amrica

    Latina.

    Foi justamente nessa poca do final dos anos 80 e comeo dos anos 90

    que uma srie de processos de reforma do Estado inspirados pelo chamadoConsenso de Washington teve lugar no Continente, representando uma

    verdadeira guinada em direo ao neoliberalismo das polticas pblicas na

    regio. O perodo anterior fora marcado pelas tentativas fracassadas de re-

    formas heterodoxas empreendidas como alternativas de superao da crise

    do regime de crescimento desenvolvimentista. O que se conhece como na-

    cional-desenvolvimentismo foi uma combinao de crescimento por subs-

    tituio de importaes com intervencionismo estatal e vinha dando sinaisde esgotamento desde o final dos anos 70, atravs da confluncia de uma

    srie de crises. Primeiramente, a crise cambial precipitada pelo endivida-

    mento externo, qual se seguiram uma crise fiscal ligada tanto dvida p-

    blica quanto impossibilidade de financiar os gastos, uma crise de cresci-

    mento gerada pela prpria incapacidade de o processo de substituio de

    importaes continuar ampliando seus horizontes diante de um mercado

    interno estagnado pela concentrao da renda e, finalmente, todas essas cri-

    ses confluindo para uma deteriorao das prprias instituies reguladorasdo regime de acumulao de capital, em que a crise da moeda, que se mani-

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    festou numa inflao elevada, aparece como sntese de uma instabilidade

    crescente.

    Aps a leva de fracassados choques heterodoxos,2 as recomendaes do

    Consenso de Washington passaram a ser seguidas por quase todos os pases

    do continente latino-americano, numa combinao de vrias iniciativas de

    poltica econmica que teve quatro componentes principais. Primeiro, um

    acordo com os credores da dvida externa nos moldes do Plano Brady; se-

    gundo, a liberalizao comercial que exps as empresas locais aos padres

    de competitividade do mercado mundial, extinguindo um mecanismo de

    proteo ao investimento produtivo que foi decisivo para o desenvolvimen-

    tismo; terceiro, a desregulamentao e a privatizao, que desmontaram osmecanismos de planejamento do Estado desenvolvimentista; e quarto, a

    mudana do regime cambial para algum tipo de paridade fixa com o dlar,

    desfazendo mais um mecanismo de poltica econmica muito usado at en-

    to, a administrao do cmbio.

    A generalizada adoo desse tipo de poltica pelos governos centrais de

    todos os pases do continente e o interesse dos meios acadmicos por estu-

    d-lo relegou ao ostracismo uma srie de outras experincias de mudana

    de poltica que vm ocorrendo h mais de uma dcada3e que tm comoobjetivos a incluso social, o alargamento da democracia e da participao

    popular e a redistribuio da renda, e que, para tanto, lanam mo da am-

    pliao da capacidade de regulamentao e interveno do Estado so-

    brepondo-se aos mecanismos de mercado como instrumento central da

    mudana. Esse novo tipo de Estado representa uma ruptura com o insu-

    lamento burocrtico que tem sido o modelo de Estado dominante nas ini-

    ciativas neoliberais (Conaghan e Malloy, 1994) e toma forma atravs daconstruo de um tipo de Estado inserido por meio de uma rede de capila-

    ridade que o relaciona com a sociedade civil e que, penso, possa ser com-

    preendido pelo conceito de Evans (1992) de embedded autonomy.

    A experincia da Administrao Popular de Porto Alegre, que j alcan-

    ou quatro mandatos consecutivos, um desses exemplos e vou analis-la

    neste trabalho, o qual est dividido em cinco partes alm desta introduo.

    Na primeira tratarei de esclarecer a forma como vou utilizar alguns concei-

    tos como crise do Estado, governabilidade egovernance, bem como outrosaspectos do referencial terico utilizado. A segunda parte ser mais descriti-

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    va, tendo em vista apresentar os principais componentes da crise em que seencontrava a administrao municipal no incio do governo petista. A ter-ceira parte apresentar as iniciativas que foram empreendidas tendo em vis-

    ta vencer a crise e criar condies de governabilidade, ao mesmo tempo emque se modificava a agenda pblica. Ao final, uma quarta parte vai avaliaralguns dos principais resultados da experincia de reforma do Estado dePorto Alegre, a emergncia de novos interesses, a inverso de prioridadesdas polticas pblicas e seus efeitos na relao entre o poder pblico e a so-

    ciedade, sendo seguida pela concluso do trabalho.

    1. CRISE DO ESTADO, GOVERNABILIDADE E AUTONOMIA INSERIDA

    A crise do Estado e reformas polticas tm sido temas de inmeros trabalhos

    na rea da cincia poltica e outras disciplinas afins j de algum tempo parac. Nesses estudos, a crise tem sido vista como causada pela incapacidade de

    o Estado dar respostas a novas situaes que os acontecimentos socioecon-micos precipitam, o que, por um lado, levou o foco das anlises em direoao tema da reforma do Estado e das polticas pblicas, j que o desdobra-

    mento de uma situao implica, geralmente, a outra e, de outro lado, moti-vou toda uma discusso em torno da problemtica da governabilidade.

    Em uma bem articulada construo terica sobre a questo das refor-mas, Grindle e Thomas (1991) vo identificar dois tipos de circunstnciasque determinam uma agenda de reforma poltica. Em primeiro lugar, as cir-cunstncias da poltica como algo usual, em que as questes micropolticasou da burocracia informam a tomada de decises, como, por exemplo, umareforma do sistema de sade a exemplo da recente criao do programa de

    agentes comunitrios pelo Governo Federal brasileiro. Em segundo lugar,as circunstncias de uma crise, quando a necessidade e a presso por refor-mas e mudanas polticas so incontornveis e, neste caso, as questes en-volvidas so concernentes ao plano da macropoltica, envolvendo os agen-tes decisrios de mais alto nvel e afetando largos setores da sociedade. Essascircunstncias so condicionadas pelo contexto socioeconmico, histricoe internacional e, tambm, pelas caractersticas das elites polticas que diri-gem o processo e se desdobram nas qualidades especficas das polticas

    implementadas. Tais polticas se formam de acordo com as arenas de confli-tos nas quais as decises so tomadas e so moldadas de acordo com os re-

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    cursos disponveis para viabilizar tanto a sua implementao como a sua

    sustentabilidade.

    Possivelmente na maior parte dos trabalhos sobre o tema, a crise do Es-

    tado tem sido vista como um fenmeno de paralisia decisria, o que nos re-

    porta a um desenvolvimento terico muito aqum do trabalho de Grindle e

    Thomas, pois reduz a crise a um problema de governabilidade, o qual, por

    sua vez, resumido falta de iniciativa poltica por parte do Estado. Numa

    reconstituio das origens da discusso sobre governabilidade, Diniz (1996)

    resgata a formulao original de Samuel Huntington quando descreve a go-

    vernabilidade como uma condio de equilbrio entre as demandas da so-

    ciedade e a capacidade do governo de administr-las e atend-las. A crise,ou situao de ingovernabilidade, resultaria quer de uma incapacidade de

    resposta por parte do Estado em razo do baixo nvel de desenvolvimento

    institucional da sociedade, que o caso dos pases em desenvolvimento,

    quer do prprio aprofundamento da democracia que se traduziria numa

    expanso desproporcional das demandas sobre o governo, que o caso das

    sociedades desenvolvidas. Diniz chama ateno para o fato de que um gran-

    de nmero de formulaes tericas sobre esta questo segue essa segunda

    variante de Huntigton. Numa crtica acertada, chama ateno para comoessas formulaes atribuem

    [um] potencial desestabilizador relacionado expanso das franquias e di-reitos democrticos. Acima de um determinado ponto, o exerccio dessesdireitos seria incompatvel com o funcionamento eficaz do governo. Essa li-nha de argumentao cria problemas de difcil tratamento terico, pois ex-ploso de demandas e saturao da agenda expressariam um aspecto para-doxal da dinmica democrtica. (Diniz, 1996, p. 168)

    Uma vez que da natureza da prpria democracia que implique exten-

    so de direitos e maior participao, seu exerccio conduziria ingover-

    nabilidade crescente, solapando as bases das prprias instituies demo-

    crticas.4 A argumentao assim formulada conduz necessariamente

    conteno de demandas, reduo da participao popular e concentrao

    de poder no Estado como alternativas para recuperar a governabilidade.

    A autora lembra inclusive alguns exemplos na literatura em que uma cor-

    relao entre o sucesso de polticas de estabilizao e o autoritarismo doregime poltico proposta. E denuncia nelas um vezo elitista avesso s

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    injunes da dinmica participativa (Diniz, 1996, p. 170).5No mesmo

    sentido, Conagham e Malloy (1994) lembram o temor de Tocqueville di-

    ante do espectro de um novo tipo de opresso que desafiaria a democracia

    moderna, quando analisam as experincias de redemocratizao associa-

    das implementao de reformas de orientao neoliberal nos pases andi-

    nos, todas conduzindo a um grau cada vez maior de insulamento burocr-

    tico das elites dirigentes do Estado e de autoritarismo do Poder Executivo.

    Nessas anlises, vamos encontrar uma contribuio a mais para a cons-

    truo do arcabouo terico com o qual a problemtica da crise a das refor-

    mas pode ser compreendida, aquilo que Diniz (1997) chama de perspecti-

    va integrada e que j recebera a contribuio da economia poltica dareforma das polticas6de Grindle e Thomas (1991). Nesta perspectiva, cri-

    se e reforma sero compreendidas em suas mltiplas determinaes. Em

    primeiro lugar, como uma confluncia de dois processos, um internacional

    e outro interno a cada pas, sendo o internacional derivado da crise do key-

    nesianismo e do advento da ideologia neoliberal que moldaram as atitudes

    dos agentes internacionais no exerccio de presses com o intuito de in-

    fluenciar a poltica interna dos pases em desenvolvimento, agentes estes

    que vo desde os governos do G7 e agncias internacionais e a comunidadefinanceira at as universidades de elite norte-americanas aparentemente

    desprovidas de poder. O processo interno teve origem na crise dos regimes

    autoritrios que se seguiram ao perodo nacional-desenvolvimentista e no

    subseqente movimento de redemocratizao latino-americano, contem-

    porneo de uma crise econmica sem precedentes na histria do continen-

    te. Em segundo lugar, como um problema que se inscreve na relao entre

    Estado e sociedade, em que as determinaes do movimento da sociedadeem direo ao poder pblico cobrando solues de problemas por ela senti-

    dos constri uma relao que pode ser antagnica ou no ao movimento

    endgeno do prprio aparelho de Estado no sentido de propor, implemen-

    tar e sustentar iniciativas polticas.

    O segundo tipo de problema toca mais de perto ao tema deste trabalho e

    tem sua melhor compreenso facilitada com o uso dos conceitos de gover-

    nabilidade e governanceassociados tipologia de formas do Estado em pa-

    ses em desenvolvimento proposta por Evans (1992).7 Conforme Diniz(1997), o conceito de governabilidade refere-se s condies sistmicas

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    mais gerais sob as quais se d o exerccio do poder em uma dada sociedade

    (p. 196), conceito este que engloba trs dimenses, sendo a primeira delas a

    capacidade de o governo identificar corretamente os problemas e responder

    a eles atravs da formulao de polticas, a segunda a capacidade de mobili-

    zar os meios e recursos necessrios execuo de tais polticas e a terceira a

    capacidade de liderana no sentido de levar a sociedade a favorecer a im-

    plementao da poltica decidida (Diniz, 1996, p. 171). Segundo a autora,

    apenas sob essa perspectiva seria possvel compreender a crise de governa-

    bilidade brasileira, que no pode ser explicada por paralisia decisria como

    alguns autores chegaram a afirmar em anlises sobre o perodo da redemo-

    cratizao brasileira, a Nova Repblica, pois, desde ento, a profuso de de-cises e a usurpao da funo legislativa pelo Poder Executivo alcanou n-

    veis sem precedentes.8A deficincia do Estado tem se manifestado atravs

    da incapacidade de implementar as polticas, quer por impossibilidade de

    acionar os meios e recursos necessrios, quer por falta de liderana. Tal difi-

    culdade , em larga medida, funo da opo por uma estratgia impositiva

    de enfrentamento da crise, inspirada pela postura tecnocrtica da opo

    neoliberal (Conagham e Malloy, 1994; Diniz, 1997).

    Isso nos leva a um segundo conceito, complementar ao de governabili-dade, que o de governance, a capacidade de governo do Estado. Segundo

    Diniz (1996, p. 178), uma formulao atualizada deste conceito teria trs

    dimenses. A primeira a capacidade de comando e direo do Estado, tan-

    to sobre a mquina administrativa e em relao sociedade quanto no que

    respeita insero internacional do pas. A segunda dimenso a capacida-

    de de coordenao em relao aos interesses em jogo e coerncia das di-

    versas polticas implementadas; e a terceira a capacidade de implementa-o das propostas escolhidas. Com este conceito, possvel dar conta de um

    aspecto importante da relao entre Estado e sociedade que transcende a

    noo mais restrita de governabilidade.

    Para completar as ferramentas que usarei na anlise que se segue, recor-

    ro tipologia proposta por Evans (1992) para caracterizar as formas do Es-

    tado em pases em desenvolvimento. A primeira forma a do Estado preda-

    dor, analisada no exemplo do Congo (ex-Zaire) sob a ditadura de Mobutu.

    Conforme o autor, esse seria um caso de comportamento rent-seeking porparte da elite dirigente levado ao paroxismo. No lugar do que conhecido

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    na literatura como caracterstico desse comportamento, na busca de auferir

    vantagem da regulao estatal e apropriar-se de uma parte da riqueza pbli-

    ca, toda a sociedade foi transformada em presa potencial, na medida em que

    o exerccio do poder poltico tem por objetivo o uso das prerrogativas de

    Estado para a apropriao no apenas do patrimnio pblico, mas inclusive

    da riqueza privada, esbulhada pela ao de agentes governamentais que, pa-

    ra tanto, se valem de seu poder de polcia. uma forma de patrimonialismo

    exacerbado, de suprimir a diviso entre o pblico e o privado que est na

    formao da ordem poltica moderna desde o fim do feudalismo.

    A segunda forma a do Estado desenvolvimentista, analisada nos exem-

    plos da Coria e demais NICs asiticos, tomados como inspirao para omodelo japons de Estado ativo, an apparently contradictory combination

    of Weberian bureaucratic insulation with intense immersion in the sur-

    rounding social structure[uma combinao aparentemente contraditria

    de insulamento burocrtico weberiano com uma profunda imerso na es-

    trutura social circundante] (Evans, 1992, p. 154). Tal circunstncia o au-

    tor descreve utilizando o conceito de embedded autonomy, que vou traduzir

    aqui por autonomia inserida, um Estado com a iniciativa para propor e pla-

    nejar o desenvolvimento econmico e social aliada capacidade de imple-mentar suas estratgias em funo da slida rede de relaes com os grupos

    sociais envolvidos, notadamente os grandes empresrios nacionais.9Em

    outras palavras, uma burocracia estatal consolidada e com controle sobre o

    aparelho governamental que se alia a uma elite social com uma posio eco-

    nmica hegemnica e que responde s diretrizes advindas das iniciativas

    governamentais fazendo de suas estratgias empresariais um complemento

    necessrio ao planejamento governamental.Um terceiro tipo descrito como intermedirio, exemplificado pela n-

    dia e pelo Brasil, pois combina alguns aspectos do Estado predador (pa-

    trimonialismo e clientelismo) com outros de um Estado com autonomia

    inserida (planejamento, liderana estatal do processo de desenvolvimento).

    Esse terceiro tipo, entretanto, em funo de um insuficiente desenvolvi-

    mento de suas capacidades, tem dificuldade em eleger prioridades e acaba

    prisioneiro de uma relativa paralisia, em larga medida em funo de com-

    promissos gerados pelo tipo de relao com a sociedade em que predominao patrimonialismo e se faz sentir o peso de oligarquias contrrias ao desen-

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    volvimento, as quais sempre vero com desconfiana e tendero a negar

    apoio s iniciativas de modernizao que necessariamente precisam ser im-

    plementadas para dar suporte ao crescimento econmico. Por outro lado,

    encontraro limites ao haver tried to do too many things; it has been

    unable to strategically selct a set of activities commensurate to its capacity

    [tentado fazer cosias demais; tendo sido incapaz de selecionar um conjunto

    de atividades de acordo com sua capacidade] (Evans, 1992, p. 176). O hori-

    zonte de possibilidades que se descortina enorme em razo da imensido

    de recursos que tem potencial de ser mobilizada para o projeto de desenvol-

    vimento, o qual, entretanto, s pode dar conta de uma frao desse manan-

    cial, cuja eleio no prescinde de uma capacidade de arbtrio presente ape-nas em alguns momentos de maior concentrao de poder em mos da

    burocracia estatal.

    importante salientar que o autor qualifica a capacidade do Estado fa-

    zendo uma crtica do tipo de anlise referido mais acima que associa capaci-

    dade com insulamento burocrtico dizendo:

    this analysis challanges the tendency to equate capacity with insulation. Itsuggests instead that tarnsformative capacity requires a combination of in-ternal coherence and external conectedness that can be called embedded au-tonomy [esta anlise desafia a tendncia a relacionar capacidade com insula-mento. Sugere ao contrrio que a capacidade transformadora requer umacombinao entre coerncia interna e conexo externa a qual pode ser cha-mada de autonomia inserida]. (Evans, 1992, p. 176)

    neste sentido que, como ser visto adiante, mesmo que originalmente

    o conceito de autonomia inserida tenha sido criado como explicativo do

    caso asitico, considero seja aplicvel ao exemplo de Porto Alegre, que semostrou um governo local com capacidade de ter iniciativa para propor

    mudanas polticas e condies de viabiliz-las em funo da aptido para

    estabelecer relaes com os setores sociais interessados atravs de um regi-

    me democrtico de participao popular. diferena dos casos originais

    asiticos, um padro de autonomia inserida que privilegia no apenas as

    elites empresariais, mas sobretudo as organizaes das classes populares.

    Neste sentido, foge da dicotomia usual presente nas discusses sobre o ta-

    manho do Estado, que ope mercado e participao popular, pois fica dis-tante tanto do liberalismo quanto do espontanesmo.

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    Assim, a autonomia inserida de corte popular, como o caso de Porto

    Alegre, se caracterizaria pela consolidao de um mecanismo de identifica-

    o e incorporao dos interesses e demandas da sociedade que recebem

    um tratamento e adaptao por parte dos agentes da administrao pblica

    e so incorporados aos objetivos perseguidos pelo planejamento. Seus pres-

    supostos so a construo de mecanismos de identificao das demandas

    (como o Oramento Participativo), o que faz parte da construo da gover-

    nabilidade, e o desenvolvimento da capacidade de executar polticas pbli-

    cas que contemplem a ateno das demandas e sejam capazes de incorpor-

    las a uma agenda coerente, cuja factibilidade depende das condies de

    governancealcanadas.Esta abordagem terica faz um recorte que deixa de lado todo um outro

    enfoque sobre a problemtica do governo local que a rica literatura sobre

    o federalismo, muito presente no debate brasileiro (e.g. Affonso e Silva,

    1995; Afonso, 1989; Afonso e Lobo, 1996; Faria, 1994; Lopreato, 1997; Silva,

    1997). A problemtica do governo local compreende tanto suas especifi-

    cidades quanto os condicionantes advindos de sua insero na estrutura fe-

    derativa, que definem a relao com a sociedade e suas demandas e a distri-

    buio de encargos e competncias, seja para tributar, seja para realizarpolticas pblicas. Em outras palavras, o arranjo institucional que define seu

    espao de ao e os meios desta.

    Assim, a anlise focada sobre um governo local se completa ao levar em

    considerao a dimenso das relaes intergovernamentais, tanto no que

    respeita diviso do trabalho no mbito do setor pblico quanto inter-

    ferncia que as trajetrias dos governos estadual e nacional tm sobre a ad-

    ministrao municipal. Embora este trabalho tenha foco em caractersticasque se fazem presentes nas trs esferas da administrao estatal, os fenme-

    nos aqui analisados no deixaram de sofrer essas influncias. Para citar ape-

    nas dois aspectos, em larga medida a reforma tributria que viabilizou fi-

    nanceiramente a prefeitura porto-alegrense s foi possvel a partir da nova

    configurao do pacto federativo surgido da Constituinte de 1988, da mes-

    ma forma que os gastos sociais foram afetados pelo processo de descentrali-

    zao operado pelas demais esferas de governo em direo aos municpios

    ao longo da dcada de 1990, especialmente nas reas de sade, educao eassistncia.

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    2. A CRISE E A AGENDA DEMOCRTICA

    O ano de 1989 foi marcado por uma conjuntura de agudizao da crise na

    qual estava mergulhado o Brasil desde o comeo daquela dcada. Aps su-cessivos fracassos da poltica econmica e com uma postura amesquinhada

    de persistir no clientelismo e no patrimonialismo que reforava a desagre-

    gao do quadro poltico-partidrio, o governo Sarney chegava a seu me-

    lanclico final atestando uma completa incapacidade para fazer frente ins-

    tabilidade econmica que se manifestava numa ascenso desenfreada da

    inflao, com o ndice de preos ao consumidor atingindo 1.764,5% ao ano,

    ou de avanar no sentido de consolidar as instituies democrticas do pas

    apenas esboadas pala Constituio de 1988. Um dos desdobramentos des-sa conjuntura crtica vinha sendo a crise fiscal, agravada pelo custo financei-

    ro da dvida pblica, pela perda de receita derivada da prpria recesso, do

    efeito Tanzi da inflao e da renncia fiscal em funo da reduo de im-

    postos e do aumento de subsdios.10

    A esse ambiente se somaram circunstncias especficas do governo local

    que provocaram uma grave crise de governabilidade naquele ano. Quando

    Olvio Dutra assumiu a Prefeitura de Porto Alegre em 1 de janeiro, encon-trou, alm do oramento deixado por seu antecessor uma imposio da

    legislao brasileira ,11o qual gerou um quadro extremamente difcil de

    desequilbrio fiscal, uma situao muito aguda de crise administrativa e de

    degradao da prestao dos servios pblicos, um confronto aberto com os

    empresrios concessionrios dos servios de transporte coletivo e uma cres-

    cente presso dos movimentos reivindicatrios da sociedade civil organiza-

    da por investimentos, expanso e melhoria dos servios municipais.

    Com certeza, o quadro mais dramtico era o financeiro, para o qual umatendncia histrica de perda de receita tributria representava o maior de-

    safio. Em 1970, a arrecadao de Porto Alegre alcanou pouco mais de 5%

    da renda interna do municpio e em 1985 havia cado para 3,2%. A receita

    do principal tributo municipal, o IPTU, alcanou em 1989 apenas 42% do

    valor de 1980, segundo Verle e Mzell (1994), enquanto as transferncias

    intergovernamentais, uma fonte importante de receita para os municpios,

    tambm foram reduzidas, tendo o ndice de retorno do ICMScado de 23%

    nos anos 70 para 12,3% em 1989 (Cassel e Verle, 1994). A essa tendncia demais longo prazo de perda de receita somou-se o verdadeiro desastre que

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    63Luiz A. E. Faria A administrao popular em Porto Alegre...

    fora a gesto anterior, de Alceu Collares do PDT, o qual imprimira um pa-dro de total descontrole na Secretaria da Fazenda, cuja situao no inciodo governo foi assim descrita por dois protagonistas importantes do drama,

    o ento secretrio e seu diretor-geral:

    O descontrole era absoluto, a sensao era de se estar navegando no escuro.Nada registrado (...) Logo, informaes imprecisas esboaram o cenrio es-tarrecedor: os pagamentos dos fornecedores estavam seis meses atrasados;os das empreiteiras, oito meses; um emprstimo de curto prazo no valorequivalente a 35% da receita tributria do ms estava por vencer; o almoxa-rifado estava vazio; os funcionrios reclamavam uma parcela atrasada deseus salrios, relativa ao ltimo ms do governo anterior; a folha de paga-

    mentos do funcionalismo em janeiro consumiria praticamente toda a recei-ta desse ms. (Cassel e Verle, 1994, p. 28 -29)

    Alis, essa questo dos funcionrios iria atormentar a administrao du-

    rante todo o ano de 1989, quando a folha de pagamentos consumiu cerca de98% da receita corrente, e foi como uma bomba de retardo deixada pelagesto Collares. Numa prtica bastante comum aos administradores pbli-cos brasileiros em poca de inflao, a Prefeitura financiara seus gastos du-

    rante aquela gesto com o salrio dos servidores, desvalorizados pela faltade correo, o que compensava a reduo da receita oriunda de uma gestofazendria desastrosa.12Nos ltimos dias em palcio, uma correo abruptafoi sancionada, triplicando o gasto com pessoal e indexando os salriosbimestralmente j no ms de janeiro, primeiro da gesto Olvio Dutra.

    Essa situao requereu, como ser visto adiante, um penoso processo denegociaes em vrias frentes, com os credores, com os servidores, com oGoverno do Estado em funo do ICMSe com o sistema financeiro que pre-

    cisou refinanciar as posies devedoras do errio municipal. Outras dificul-dades, entretanto, somaram-se ao problema financeiro para compor o qua-dro da crise, como a desorganizao administrativa j mencionada, a qualteve dois componentes. De um lado, o temor e a desconfiana por parte dosservidores de que, em face da crise financeira, sua recomposio salarial nofosse paga ou que a indexao no se mantivesse e, de outro, a ausncia decontroles e demais prticas gerenciais e o abandono a que estavam relega-dos vrios servios. A superao desses problemas foi dificultada pela falta

    de uma cultura de gesto da maior parte dos dirigentes recm-nomeados,pois o partido enfrentava sua primeira experincia executiva em Porto Ale-

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    64 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 6(2): 51-83, jul./dez. 2002

    gre. Alm disso, a direo do sindicato dos municiprios, composta em sua

    maioria por militantes do prprio PT, assumiu uma postura combativa no

    intuito de legitimar-se e demonstrar independncia em relao ao gover-

    no.13Por outro lado, diante de seus laos histricos com o movimento sin-

    dical, os dirigentes partidrios e da administrao tiveram grande dificulda-

    de em encontrar-se do outro lado, negociando como patres. Resultaram

    disso alguns episdios de greve e paralisao de servios e uma operao

    tartaruga quase permanente em alguns rgos e departamentos ao longo do

    ano. Diante dessa circunstncia, mesmo o que no dependida de recursos

    financeiros acabava por no se realizar completamente.

    Se a relao do governo com seu pblico interno foi crtica, com a so-ciedade as coisas no foram mais fceis. Durante o ms de fevereiro, um

    episdio veio desafiar a autoridade da Prefeitura: os empresrios concessio-

    nrios do transporte coletivo deram um ultimato ao prefeito ao reivindica-

    rem um reajuste no valor das tarifas e, em seguida, realizaram um lock out

    que praticamente paralisou os servios na cidade (apenas 20% do transpor-

    te era controlado diretamente pela Prefeitura) e foi respondido com uma

    interveno nas empresas. De um dia para o outro, foi necessrio pr em

    funcionamento todo um sistema do qual a administrao municipal nodetinha quase nenhum conhecimento, com empresas que no tinham mais

    estrutura gerencial ou sequer contabilidade14e se encontravam em dificul-

    dades econmicas em razo da defasagem das tarifas e do descrdito dos

    prprios donos, os quais desviavam seu interesse para outras atividades.

    E isso precisou ser feito por funcionrios pblicos sem conhecimento da

    vida de uma empresa e contando com a m vontade dos empregados, que

    temiam represlias dos patres. Durante todo o primeiro semestre, a popu-lao sofreu com um sistema que, j no sendo bom originalmente pois a

    frota era muito velha e as tabelas horrias eram rotineiramente descumpri-

    das , funcionou muito abaixo de sua capacidade.

    Alm do transporte, trs outras reas de extrema visibilidade nos servi-

    os municipais eram crticas: a limpeza urbana, a iluminao pblica e a

    conservao do sistema virio. Em todos os casos, a parte do servio que era

    de responsabilidade direta do poder pblico estava precarizada por insufi-

    cincia material, com a usina de asfalto desativada por falta de manuteno,carncia de ferramentas e material de consumo em funo dos atrasos de

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    65Luiz A. E. Faria A administrao popular em Porto Alegre...

    pagamentos a fornecedores e falta de pessoal no caso da limpeza e da ilumi-

    nao. J a parcela contratada pela iniciativa privada estava quase completa-

    mente paralisada em vista dos atrasos de pagamentos s empreiteiras.15

    Ao mesmo tempo, um fator a mais veio contribuir para a crise de gover-

    nabilidade: a dificuldade de lidar com um movimento reivindicatrio da

    sociedade civil cujo crescimento fora um dos prprios fatores da vitria

    eleitoral. A fora mais importante desse movimento eram as organizaes

    comunitrias e de vizinhana, uma base poltica to importante para o PT

    da capital quanto o movimento sindical, as quais passaram a assediar insis-

    tentemente o governo, participando ativamente das primeiras reunies do

    Oramento Participativo e cobrando realizaes da administrao nas re-gies de moradia popular da cidade e em diversos temas. Como descreveu

    Tarso Genro:

    Mas todos queriam tudo ao mesmo tempo. Exigiam que o governo resgatas-se aspromessaseleitorais e iniciasse imediatamenteas obras destinadas a me-lhorar a qualidade de vida naquelas regies, historicamente abandonadaspelo poder pblico municipal. O governo, porm, no tinha recursos nemprojetos. (Genro, 1997, p. 24-25, grifos no original)

    Em razo do quadro crtico acima referido, tais demandas tiveram escas-sa resposta, o que levou a proposta de participao popular a um consider-vel descrdito. Ele relata mais adiante: A intensa participao das comuni-dades, que ocorreu em 1989, caiu consideravelmente no ano seguinte, nasreunies do Oramento Participativo destinadas a discutir a receita e pro-gramar as obras. A decepo era grande (Genro, 1997, p. 26).16A preser-vao da capacidade de iniciativa, a superao de controvrsias internas e a

    insistncia na realizao de um regime de democracia participativa e volta-do para os interesses da maioria conseguiram proporcionar uma sada para

    essa crise.

    3. A RETOMADA DA INICIATIVA ATRAVS DA DEMOCRACIA

    E DA PARTICIPAO

    O debate interno no governo e no PTdurante os primeiros meses tinha dois

    eixos, o primeiro dos quais era a prpria avaliao da profundidade da crisee da factibilidade da manuteno dos compromissos eleitorais de inverso

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    66 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 6(2): 51-83, jul./dez. 2002

    de prioridades e participao popular nesse quadro. Num segundo eixo de

    discusses, talvez por uma das ltimas vezes no Brasil, foi travado o debate

    j fora de poca entre um governo para toda a sociedade ou um governo

    dos trabalhadores (Utzig, 1996), cujo desdobramento dava-se em termos

    de eleio de iniciativas de interesse de toda a cidade ou de confronto

    com as classes dominantes.17O amadurecimento das discusses revelou a

    extemporaneidade desse corte ideolgico, pois a estratgia participativa e

    negociada que foi implementada tanto abriu espao para que os trabalha-

    dores, enquanto maioria da sociedade, vissem seus interesses predominar

    quanto estabeleceu acordos e concesses com as classes dominantes.

    A alternativa de superao da crise pode ser descrita atravs da idia deconcertao, um enfoque em que, segundo Diniz,

    a administrao da crise deve ser concebida como parte de uma estratgiadeliberada de reforo da institucionalidade democrtica pela abertura de es-paos de negociao sistemtica envolvendo as principais foras polticas esociais. (...) Assim, a alternativa da concertao destaca-se pelo estreitamen-to dos nexos entre o governo e a sociedade, configurando-se uma estratgiaem que os principais atores somam esforos em prol do prevalecimento de

    prticas cooperativas. (Diniz, 1997, p. 186-187).

    Vou discutir a seguir, sem inteno de esgotar todos os tpicos, algumas

    iniciativas representativas das caractersticas do tipo de mudana poltica

    implementado.

    A primeira delas foi no plano interno, e envolveu duas frentes: a reestru-

    turao dos sistemas de controle e gerenciamento da Prefeitura, especial-

    mente na rea financeira, e a implementao de uma reforma administrati-

    va que criou o Gabinete de Planejamento (GAPLAN), ligado diretamente aoprefeito e responsvel pela elaborao e execuo do oramento ficando

    a antiga Secretaria de Planejamento responsvel unicamente pela gesto ur-

    bana , e realizou alguns outros rearranjos na rea de obras pblicas, sa-

    de e outros setores operacionais importantes. Alm disso, foi encaminhado

    um processo de negociao com os funcionrios envolvendo tambm o Le-

    gislativo e representantes do movimento sindical e comunitrio da cidade, o

    qual criou um sistema de reajuste salarial para os servidores com um regime

    de indexao que limitava o ndice do custo de vida pela variao da receitamunicipal.

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    67Luiz A. E. Faria A administrao popular em Porto Alegre...

    importante chamar ateno para a natureza da reforma do Estado em-

    preendida, pois tal expresso usualmente associada a alguma forma de re-

    duo de seu tamanho, seja pala demisso de servidores, seja pelas privati-

    zaes e concesses de servios iniciativa privada. Em Porto Alegre, ao

    contrrio, o governo no s no demitiu, como fez crescer o tamanho do

    Estado, crescimento este financiado por um concomitante aumento da ar-

    recadao tributria. O nmero de funcionrios foi ampliado em vrios mi-

    lhares no apenas nos servios j existentes, como em funo da criao de

    novos, em larga medida transferidos das outras esferas de governo, estadual

    ou federal, como a fiscalizao do trnsito, assistncia sade ou obras con-

    tra as cheias.18

    Uma segunda iniciativa decisiva para a superao da crise e a recupera-

    o da governabilidade e da governancefoi a implementao do Oramento

    Participativo. O processo teve incio com a diviso do territrio municipal

    em 16 regies, em cada uma das quais as entidades comunitrias e de vizi-

    nhana ali sediadas foram convidadas a se fazerem presentes em reunies

    plenrias onde, com base no princpio da representatividade proporcional

    ao nmero de cidados participantes, as prioridades do plano de governo e

    a composio do oramento foram debatidas e foram eleitos delegados paraum conselho de representantes de cada regio, num processo que teve trs

    rodadas de discusso, e que inclua tambm a prestao de contas do ora-

    mento anterior. Dois representantes de cada uma das regies passaram a

    compor o Conselho do Oramento Participativo, o qual, em funo de um

    critrio de necessidades e carncias, desde ento, define uma hierarquia das

    demandas de todas as regies e faz a distribuio das destinaes dos recur-

    sos oramentrios. Uma reunio desse conselho decide a proposta que oprefeito encaminha ao Legislativo, a qual inclui no apenas investimentos e

    obras, mas todaa estrutura da despesa, inclusive gastos de pessoal, assim

    como a definio da receita e das propostas de alteraes da legislao tri-

    butria necessrias. Alm disso, esses conselheiros passaram a ter uma ativi-

    dade permanente, acompanhando as votaes na Cmara Municipal que

    dizem respeito ao oramento e s obras e demais projetos escolhidos e, pos-

    teriormente, fiscalizando a execuo do gasto orado e das obras e dos pro-

    jetos definidos e seu cronograma, juntamente com os representantes decada regio.

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    68 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 6(2): 51-83, jul./dez. 2002

    Inicialmente, o interesse ficava restrito definio e ao acompanhamen-to dos investimentos em novas obras, mas, ao longo dos anos, todas as ati-vidades da administrao municipal foram sendo acompanhadas e sub-

    metidas aprovao das instncias do Oramento Participativo, como aprestao dos servios de educao, sade, limpeza urbana ou abastecimen-to de gua, bem como a poltica de nomeaes de pessoal e a arrecadao deimpostos pela Prefeitura.19

    A crise financeira do primeiro ano de governo causou, como j foi refe-

    rido, uma grande frustrao na populao que participou da primeira ela-borao do oramento e no viu sua execuo comear seno no segundo

    semestre de 1990. Nesse segundo ano, as reunies para a elaborao do or-amento foram bastante esvaziadas. Entretanto, to logo a situao finan-ceira melhorou e as obras e os projetos decididos pela comunidade passa-ram a ser realizados, a credibilidade do processo se firmou (Augustin Filho,1994; Genro, 1997).

    Alis, a inaugurao desse processo de participao popular em torno dooramento foi decisiva para a viabilizao da terceira iniciativa importantepara a recuperao da governabilidade, a reforma tributria concebida e

    proposta pela Secretaria da Fazenda durante o ano de 1989. A proposta deuma nova estrutura tributria progressiva e baseada nas receitas prprias doMunicpio, especialmente num acrscimo escalonado do imposto sobre apropriedade (IPTU)20e na mudana tambm progressiva do imposto sobreservios (ISSQN), foi acolhida pelos representantes da comunidade nas ins-tncias do Oramento Participativo, que trataram de pressionar os vereado-res pela sua aprovao, a qual, apesar da minoria governista em plenrio,acabou sendo acolhida em seus pontos mais importantes.21Como resulta-

    do, no ano de 1990 as receitas correntes cresceram 38,7%, mais 8,7% em1991 e 8,3% em 1992, quando as medidas acabaram de ser implementadas,o que se somou a um crescimento j obtido em 1989 de 22,1%, em funodo aumento da quota parte dos municpios no ICMSdecidido pela Consti-tuinte e da negociao com o Governo do Estado para a reviso do ndice dePorto Alegre no rateio do retorno daquele imposto. Outra decorrncia im-portante foi a reduo da dependncia financeira de transferncias, que re-

    presentavam 52,1% das receitas em 1989, caram para 46,9% em 1990 e,

    mais ainda, at 40,9% em 1992, ltimo ano da gesto Olvio Dutra (Cassel eVerle, 1994).

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    69Luiz A. E. Faria A administrao popular em Porto Alegre...

    Uma quarta mudana de poltica relevante foi na rea do transporte co-

    letivo, cuja situao j era crtica pela qualidade dos servios e foi agravada

    pelo episdio da interveno do poder pblico nas empresas do sistema. No

    incio do governo, a viso predominante apontava para a necessidade de re-

    duzir o custo do servio para a populao, da o confronto com os donos

    das empresas em torno do valor da tarifa, o que provocou a interveno. No

    desdobramento do processo, ganhou fora dentro da administrao uma

    viso que via na estatizao a sada para garantir uma tarifa baixa.22Entre-

    tanto, nas reunies do Oramento Participativo ficou evidenciado que o in-

    teresse majoritrio da populao no era pelo custo, mas sim pela qualidade

    dos servios, que se refletia em horrios descumpridos e nibus em circula-o muito velhos e sem manuteno. Essa informao acabou provocando

    um giro de 180 graus na poltica, que deu incio a uma negociao com os

    empresrios para a sada pactuada da interveno, resultando num acordo

    em torno de um valor a ser preservado para a tarifa em troca de uma reno-

    vao acelerada da frota e do estabelecimento de controles gerenciais e cer-

    tas metas para a operao do sistema, tudo sob uma fiscalizao bem mais

    efetiva da Secretaria Municipal dos Transportes, a qual foi viabilizada tam-

    bm pela prpria interveno, que dera aos funcionrios condies de co-nhecer as empresas por dentro. Em pouco mais de um ano, o transporte

    deixou de ser apontado como problema em praticamente todas as regies

    da cidade.

    Um quinto aspecto das mudanas polticas da Administrao Popular

    para o qual quero chamar ateno foi o processo sistemtico de ampliao

    da participao popular e o aumento da accountabilitydo governo. A face

    mais conhecida do alargamento da democracia participativa , sem dvida,o oramento. Entretanto, antes de um episdio, a participao foi instituda

    como um modo de governar, e se desdobrou tanto no resgate e na reorgani-

    zao dos conselhos municipais gestores das polticas pblicas, os quais ti-

    veram sua representatividade ampliada com a mudana de sua composio

    e passaram a ser instncias de formulao e deciso das polticas,23quanto

    em outras iniciativas de deciso de polticas e formulao de planos e estra-

    tgias, como o projeto Cidade Constituinte, a discusso do Plano Diretor de

    Desenvolvimento Urbano ou o Plano de Desenvolvimento Econmico, quetiveram continuidade nos governos subseqentes (Alonso, 1997). A contra-

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    partida dessa maior participao foi a sistemtica de prestao de contas

    que se criou, em primeiro lugar com o gesto simblico de o prefeito ir pra-

    a logo aps o final do ano dar conta de seus atos no exerccio findo, acom-

    panhado de uma exposio mural dos relatrios de todos os rgos, bem

    como do balano contbil. E teve seqncia na rotina de dar publicidade s

    atividades que acompanha desde ento a prtica das diversas instncias de

    discusso e deliberao da administrao, na qual as reunies dos conselhos

    e do Oramento Participativo sempre tm rodadas de prestao de contas

    que ampliam a transparncia dos atos de governo.

    Um ltimo aspecto a mencionar foi a atitude da Cmara Municipal

    diante das iniciativas de participao popular, num primeiro momento vis-tas com grande reserva, pois eram tidas como uma manobra do Executivo

    para angariar apoio para suas propostas e assim contornar sua condio de

    minoria em plenrio. Entretanto, assim como no caso j referido da refor-

    ma tributria, por presso dos representantes populares nas diversas instn-

    cias, os vereadores acabaram por acatar tais iniciativas, inclusive tratando

    de regulament-las com uma legislao apropriada e inscrevendo o princ-

    pio da participao na Lei Orgnica Municipal. O ponto mais controverso

    dessa institucionalizao refere-se ao Oramento Participativo. Uma parce-la do partido, seguindo Genro e Souza (1997), via tais iniciativas como uma

    tentativa de retirar do processo uma de suas virtudes, a auto-organizao

    tida como definidora de uma esfera pblica no estatal que seria a novi-

    dade do processo e teria a capacidade de criar uma nova relao Estado-so-

    ciedade (Utzig, 1996), ao mesmo tempo que outros, como o ento vereador

    Clvis Ilgenfritz, propunham sua institucionalizao por projeto de lei. Essa

    discusso foi vencida pelos defensores do princpio da auto-organizao,que vem orientando a regulamentao do Oramento Participativo em Por-

    to Alegre e nas demais experincias municipais no Rio Grande do Sul, in-

    clusive em sua verso estadual, introduzida em 1999.

    4. GOVERNABILIDADE COM PARTICIPAO E DEMOCRACIA

    O primeiro mandato do PTem Porto Alegre, particularmente nos dois pri-

    meiros anos, precisou enfrentar um processo de crise do Estado, respondi-do com um conjunto de reformas que logrou restaurar as condies de go-

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    vernabilidade e permitiu a continuidade do processo de mudana poltica

    desencadeado. O tipo de transformao desenvolvido possibilitou a criao

    das circunstncias de uma boa governanceatravs de um processo de con-

    certao, o que alcanou a instituio de um tipo novo de Estado local, ao

    qual estou aqui atribuindo a caracterizao de autonomia inserida proposta

    por Evans. Uma anlise dos resultados alcanados vai elucidar melhor esta

    minha interpretao.

    Como j referi acima, a conduo das reformas em Porto Alegre adotou

    uma estratgia de concertao. O exemplo clssico na literatura desse tipo

    de estratgia pactuada a Espanha dos acordos de Moncloa. Seguindo a

    descrio que deles fez Diniz (1997), o leitor ver como, guardadas as pro-pores entre poltica local e nacional j mencionadas anteriormente,24

    o caso de Porto Alegre se configura como do mesmo tipo. Um primeiro as-

    pecto ressaltado pela autora que a estratgia visa alcanar um equilbrio

    entre viabilidade econmica e exeqibilidade poltica e para tanto busca o

    consentimento ativo dos agentes relevantes. A realizao da reforma tribu-

    tria e do Oramento Participativo so exemplos de como a conduo das

    reformas em Porto Alegre seguiu precisamente esses passos.

    O segundo aspecto a maleabilidade do programa, em que a estratgiaprocura estar em sintonia com os movimentos das foras sociais e polticas

    na conjuntura. Novamente, o Oramento Participativo em suas diversas ro-

    dadas e mudanas de prioridades ano a ano, bem como a conduo da crise

    do transporte coletivo so exemplos dessa postura de reformulao e adap-

    tao permanente das iniciativas.

    Um terceiro elemento importante o equilbrio entre ganhos e perdas

    para os diversos grupos sociais envolvidos. Os resultados obtidos com aconduo da questo tributria, bem como o oramento e a sistemtica dos

    conselhos gestores de polticas pblicas alcanaram equilibrar o princpio

    da progressividade tanto na distribuio do esforo contribuinte quanto na

    destinao dos benefcios das aes de governo.

    O ltimo aspecto referido por Diniz que a alternativa de concertao

    cria condies definio de um consenso mnimo para a elaborao de um

    projeto novo de sociedade. Esse esforo para a definio de um caminho

    para o desenvolvimento futuro da sociedade foi realizado em Porto Alegreatravs da elaborao dos planos plurianuais, do Plano de Desenvolvimento

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    72 R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 6(2): 51-83, jul./dez. 2002

    Econmico, do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e do projeto Ci-

    dade Constituinte.

    A recuperao da governabilidade foi obtida em diversos episdios em

    que se destacaram o enfrentamento da crise financeira e a reforma tribu-

    tria, a reforma administrativa que criou o Gabinete de Planejamento e as

    diversas oportunidades em que as proposies do governo vieram ao en-

    contro das demandas de grupos significativos da populao. Em tais cir-

    cunstncias, a Administrao Popular mostrou no apenas capacidade de

    identificar corretamente os problemas a serem enfrentados, mas tambm de

    mobilizar os meios necessrios sua soluo e de liderar os setores sociais

    interessados no sentido de, atravs de sua participao, concorrer para aconsecuo dos objetivos propostos.

    Um outro predicado poltico alcanado foram as condies de gover-

    nance, entendidas quer em seus aspectos de comando sobre os agentes en-

    volvidos e na capacidade de implementao das propostas, quer, principal-

    mente, no que diz respeito coordenao de interesses diversos e ao

    encaminhamento de solues para as contradies e os conflitos da socie-

    dade. O mtodo de tratamento dos conflitos de interesse por meio da par-

    ticipao e da concertao mostrou sua efetividade no Oramento Partici-pativo. Um outro exemplo dessa prtica foi o projeto Porto Alegre Mais

    Cidade Constituinte, onde, aps um longo processo preparatrio de dis-

    cusses, um congresso da cidade estabeleceu um conjunto de diretrizes,

    aes de governo e projetos, entre os quais o plano de desenvolvimento da

    cidade, que se desdobraram em torno de nove eixos que sintetizam o tipo

    de cidade que a cidadania de Porto Alegre quer para o futuro25(Alonso,

    1997, p. 58).Fez parte dessa nova governancea efetiva inverso de prioridades levada

    a cabo pela participao popular na deciso das polticas pblicas do muni-

    cpio, em que se destaca, em primeiro lugar, um crescimento considervel

    dos investimentos em infra-estrutura urbana, principalmente atravs do

    Plano de Pavimentao Comunitria, por meio do qual o calamento, a

    drenagem e o saneamento bsico foram aos poucos alcanando quase todas

    as vias de acesso e vias secundrias nas vilas populares, como so chamadas

    as favelas de Porto Alegre. Em segundo lugar, a universalizao do abasteci-mento de gua e a ampliao da cobertura de esgoto sanitrio tambm em

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    direo s vilas, bem como a instalao nessas regies de alguns equipamen-

    tos urbanos como praas, parques, escolas e postos de sade.

    Um terceiro aspecto representativo dessa nova relao do governo com a

    sociedade foi a poltica habitacional implementada seguindo dois princ-

    pios: a regularizao fundiria e a urbanizao das vilas com vistas manu-

    teno da populao nos mesmos locais de moradia ou a negociao da re-

    moo quando se tratavam de reas de risco, como encostas e margens do

    rio, ou de preservao ambiental, como o Parque do Delta do Jacu ou os

    Morros.26Desde o ano de 1997, a habitao passou a ser eleita como a pri-

    meira prioridade do oramento, deslocando o que fora a menina dos

    olhos at ento, a pavimentao comunitria.A tabela 1 a seguir exemplifica a evoluo da prestao de alguns servios

    pblicos municipais, em que se pode constatar a expanso do atendimento

    das necessidades da comunidade: a coleta de lixo ampliada aps a reforma

    do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), a melhoria na

    iluminao pblica aps a regularizao da relao com fornecedores e em-

    preiteiros e a reestruturao da Secretaria Municipal de Obras e Viao,

    tambm responsvel pelo programa de pavimentao comunitria, que es-

    tendeu a cobertura de asfalto nas zonas populares da cidade.A administrao municipal teve tambm um papel ativo na implemen-

    tao de polticas de desenvolvimento econmico, nas quais se sobressaem

    aquelas voltadas para a antes esquecida rea rural do municpio, que tem

    sua base no segmento de hortifrutigranjeiros. Esse setor apresentou um no-

    Tabela 1: Evoluo de alguns servios pblicos em Porto Alegre (1982-1998)

    Coleta de lixo (ton.) Iluminao pblica Asfalto (m2)

    (novos pontos)

    1982 157.213 845 121.979

    1986 126.188 925 177.827

    1988 147.258 736 290.454

    1990 186.118 1.371 235.122

    1991 220.247 2.537 396.686

    1992 171.130 5.843 519.151

    1994 189.516 2.848 444.758

    1995 215.674 2.247 502.565

    1997 263.744 1.725 871.809

    1998 279.582 2.758

    Fonte: PMPA/GAPLAN

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    Tabela 2: Despesa por funo da PMPA em perodos selecionados

    Funo 1984-1988 1990-2000

    Administrao e planejamento 25,0 16,6

    Educao 13,2 19,1

    Cultura 0,6 1,3

    Habitao e urbanismo 18,8 19,4

    Habitao 3,7 3,7

    Urbanismo 8,4 7,1

    Vias urbanas 6,9 6,4

    Servios de utilidade pblica 5,1 5,4

    Indstria, comrcio e servios 1,1 1,3

    Sade e saneamento 14,0 18,8

    Sade 6,4 11,6Saneamento 2,0 2,9

    Fonte: PMPA/GAPLAN

    tvel desempenho, crescendo sua participao no PIBda agropecuria de

    0,43% em 1985 para 0,94% em 1990 e 2,45% do total estadual em 1995.

    A mudana no perfil do gasto pblico municipal um reflexo das trans-

    formaes polticas implementadas. A tabela 2 apresenta dados em que po-

    de ser percebido o crescimento da proporo dos gastos em educao, cul-

    tura, sade e saneamento, funes que tendem a beneficiar as camadas de

    menor renda da sociedade, e a reduo daqueles com administrao e pla-

    nejamento, funes-meio.

    No mesmo trabalho onde esses dados forma sistematizados, Marquetti

    (2002) realizou uma mensurao da redistribuio geogrfica dos investi-

    mentos da Prefeitura. Esse autor realizou um cruzamento das regies da ci-dade ordenadas pela rendaper capita contra um ordenamento pelo investi-

    mentoper capitae um segundo cruzamento da mesma ordem pela renda

    contra uma ordem pelo nmero de obrasper capita para o perodo de 1989

    a 2000. As duas curvas surgidas das regresses dos pontos definidos por es-

    ses dois pares de coordenadas so negativamente inclinadas, o que indica

    serem maiores os investimentos e mais numerosas as obras nas regies de

    menor renda da cidade (Marquetti, 2002). Como ilustrao, apresento no

    grfico 1 a primeira dessas relaes, a da distribuio entre a renda per

    capitados chefes de domiclio e o investimentoper capitada Prefeitura nas

    16 regies da cidade no perodo.

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    Se as razes desse resultado decorrem em parte dos critrios de carncia

    fixados pela sistemtica do Oramento Participativo municipal para hie-

    rarquizar as demandas, preciso ressaltar tambm o papel da maior partici-

    pao de pessoas de baixa renda nas assemblias deliberativas. Neste senti-

    do, um levantamento realizado entre os participantes das assemblias

    populares em 1998 citado por aquele autor (Baierle apud Marquetti, 2002)

    mostra que a faixa at dois salrios-mnimos de renda, que representava

    11,4% da populao de Porto Alegre segundo a PNADdo IBGEdaquele ano,

    alcanou 30,3% dos presentes, enquanto na faixa seguinte, entre 2 e 4 sal-

    rios-mnimos, 19,4% da populao na PNAD, os presentes foram 25,5% do

    total e na camada acima de 4 salrios-mnimos, que representava 64,1% dapopulao, contavam-se 42% dos participantes nas assemblias. Os mais

    pobres so a maioria entre os que se mobilizam para decidir a respeito da

    receita e da despesa pblicas.

    Aps a superao da crise e a efetivao das primeiras reformas, um no-

    vo tipo de Estado emergiu, no apenas no sentido de que a agregao de di-

    versas transformaes de aspectos micro produzem uma mudana de quali-

    Grfico 1: Distribuio das regies da cidade em funo do rendimento

    per capita e do investimento municipal

    Fonte: Marquetti (2002)

    2.000

    1.600

    1.200

    800

    400

    0 0 2 4 6 8 10 12

    Investimentopercapita

    porregio,R$

    /2001

    Rendimento nominal mdio dos chefes de domiclios

    em salrios mnimos por regio em 1991

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    dade no sistema como um todo, o que pode ser descrito atravs do conceito

    de emergncia(Hodgson, 1997), mas tambm de que o sentido dessas mu-

    danas fora pensado articuladamente com a intencionalidade de transfor-

    mar profundamente o Estado e sua relao com a sociedade.27Desse pro-

    cesso nasceu uma nova forma de Estado, um Estado com autonomia

    inserida. Duas caractersticas so definidoras dessa nova forma: em primei-

    ro lugar, a capacidade de ter iniciativa poltica, de exercer criatividade sobre

    a realidade percebida em suas determinaes fundamentais, e, em segundo

    lugar, a insero no tecido social, a capacidade de estabelecer vnculos sli-

    dos com a sociedade civil e construir relaes duradouras com os grupos

    sociais afetados e interessados pelos atos do governo.

    5. CONCLUSO: A ALTERNATIVA DEMOCRTICA

    Em seu dcimo quarto ano de mandato, obtido com resultados eleitorais

    expressivos e com um grau de aprovao da opinio pblica elevado, a ad-

    ministrao do PTem Porto Alegre um caso bem-sucedido. E esse sucesso

    prova da viabilidade da forma e do sentido da mudana implementada, de

    que no h uma via nica para resolver a crise do Estado como quer fazercrer o discurso triunfalista do neoliberalismo. Mais democracia e participa-

    o popular, bem como a predominncia dos interesses da maioria pobre e

    trabalhadora da populao so possveis e esto ao alcance da iniciativa po-

    ltica que tenha por fim lev-las adiante. E mais ainda, uma outra lio do

    caso de Porto Alegre a estabilidade alcanada, tambm em contraste com a

    fragilidade, especialmente financeira, que acompanha todas as experincias

    neoliberais. Se esta instabilidade se expressa de forma mais contundente noplano nacional, em razo do padro de relaes externas estabelecido, cau-

    sador de um dficit em conta corrente insustentvel, ela tambm est pre-

    sente no plano estadual e municipal, na forma de uma crescente perda de

    governabilidade, resultado da drstica reduo das fontes de financiamento

    para a qual a poltica monetria e o novo arranjo institucional adotado im-

    puseram uma condio de constrangimento das contas pblicas sem pre-

    cedentes.28

    Ao inverso do que tem sido predominante na Amrica Latina, submeti-da de norte a sul a um vendaval neoliberal que vem desmontando o Estado,

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    privatizando e desregulamentando, no af de impor a lei do valor como

    norma social nica como se fosse possvel reduzir todas as relaes so-

    ciais a relaes mercantis e todas as dimenses do ser humano s qualidades

    de um vendedor ou comprador, como querem fazer crer as fantasias dos

    economistas , e levando tal tarefa a cabo atravs do recurso autoritrio ao

    insulamento burocrtico e da via coercitiva de impor decises sociedade,

    a experincia de Porto Alegre demonstra a viabilidade de um caminho al-

    ternativo de reforma democrtica. E curioso que essa experincia tenha

    antecedido a reforma de corte neoliberal que se iniciou no Brasil a partir de

    1990 com a eleio de Collor, se consolidou aps a implantao do Plano

    Real em 1994 e ficou completa nas duas administraes de Fernando Hen-rique Cardoso.

    Como procurei demonstrar neste trabalho, a caracterstica central da re-

    forma implementada foi a democratizao do Estado atravs da participa-

    o popular nas diversas instncias de deciso da administrao pblica

    municipal, cuja expresso maior o Oramento Participativo. A nova for-

    ma de Estado surgida diverge radicalmente da forma intermediria (Evans,

    1992) implementada no plano federal, definida pela combinao do insula-

    mento burocrtico caracterstico do neoliberalismo latino-americano doqual a soberba da equipe econmica exemplar com o patrimonialismo

    e o clientelismo do tipo predador, que teve no processo de privatizao seu

    instrumento mais importante.

    O novo Estado com autonomia inserida recuperou a governabilidade e a

    governana por meio de uma estratgia de negociao realizada atravs da

    democracia participativa e implementou uma agenda de reformas onde se

    sobressaram a reestruturao administrativa, a mudana no perfil da recei-ta e da despesa pblicas e a reforma das polticas pblicas de transporte co-

    letivo, saneamento, urbanizao, habitao, sade, educao e cultura. Os

    resultados alcanados foram claramente redistributivos, quer na progres-

    sividade da carga tributria implantada, quer na eleio dos beneficirios

    das polticas pblicas, as camadas de menor renda e as regies mais carentes

    da cidade.

    A possibilidade do desdobramento para uma esfera alm do poder local

    desse tipo de experincia cobra uma srie de novas mediaes que se fazempresentes nas esferas polticas estadual e nacional. Nas eleies de 1998, sob

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    a liderana do mesmo Olvio Dutra que, como prefeito, dera incio a essa

    experincia bem-sucedida em Porto Alegre, uma frente de esquerda dirigi-

    da pelo PT, e qual se agregou o PDTno segundo turno, venceu as eleies e

    assumiu o governo do Rio Grande do Sul. Seus resultados ainda esto por se

    conhecer melhor e analisar.

    Na passagem a outro plano da poltica, no qual se manifestam com mais

    fora interesses de classe antagnicos da sociedade, ocorre inevitavelmente

    a emerso de novas determinaes, uma vez que as atribuies das adminis-

    traes estaduais no Brasil dizem menos respeito a problemas comunit-

    rios, os quais afetam mais indistintamente diferentes camadas sociais, pois

    envolvem, de um lado, impostos sobre a produo e, de outro, polticas dedesenvolvimento, subsdios, crdito, infra-estrutura e polticas sociais.

    Conforme revelou o episdio da reviso da transferncia de fundos pbli-

    cos para indstrias automobilsiticas decidido pelo novo governo, o contin-

    gente de foras polticas mobilizadas muitas vezes superior e o grau de

    enfrentamento bem mais duro.

    De qualquer forma, este um captulo da Histria que ainda est sendo

    escrito. Apenas quis mostrar aqui que a experincia de Porto Alegre o

    exemplo de uma proposta de esquerda possvel, que resgata os valores hu-manos da generosidade e da solidariedade e lana um pouco de luz sobre

    esses tempos sombrios em que episdios como os da crise argentina ou da

    guerra no Afeganisto revelam a face mais obscura e fria da sociedade cons-

    tituda sob o fetiche da mercadoria, o imprio do dinheiro e das armas.

    NOTAS

    1. Agradeo a Eli Diniz pelas sugestes bibliogrficas e pela leitura e comentrios a uma

    primeira verso deste texto, bem como a Jos Ricardo Tauile pela provocao ao temaem um seminrio de que participamos no Rio de Janeiro (Tauile e Faria, 1997). Devo

    mencionar tambm Olvio Dutra, que me proporcionou a vivncia prtica da gesto

    pblica durante aqueles difceis dois primeiros anos de seu governo na Prefeitura de

    Porto Alegre. Agradeo por fim as sugestes dos pareceristas annimos desta revista, a

    partir das quais elaborei a verso final do trabalho. A responsabilidade pelos equvocos

    remanescentes, entretanto, exclusivamente minha.

    2. Alguns autores como Dornbusch e Edwards (1991) ou Sachs (1990) rotularam as expe-

    rincias heterodoxas dos anos 80 como populismo econmico. No gosto deste con-

    ceito, em primeiro lugar por ser uma generalizao apressada os episdios heterodo-xos so bastante diferentes uns dos outros e, em segundo lugar, porque cria confuso

    com as experincias de regimes polticos populistas dos anos 50 e 60, poca de ouro do

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    nacional-desenvolvimentismo e da substituio de importaes, para a qual os anos 80tiveram o significado no de continuao, mas de ruptura e crise terminal.

    3. Quando referidas na maior parte da literatura, essas experincias so tratadas com a

    rotulao de populismo econmico ou analisadas em seus fracassos, como no caso dogoverno sandinista na Nicargua.

    4. interessante como essa noo guarda uma grande semelhana com o conceito de criserevolucionria do marxismo-lenininsmo tradicional, caracterizada como a incapacida-de da classe dominante de continuar governando diante da ascenso do movimento demassas das classes populares organizadas.

    5. Como ser visto no decorrer deste trabalho, a experincia de Porto Alegre um des-mentido factual dessas teses, pois demonstra como a governabilidade pode ser restaura-da atravs do aumento e no da reduo da participao popular.

    6. Sei que no fica muito elegante em portugus falar em reforma das polticas, mas procu-rei preservar a distino do ingls entrepolicy reform epolitical reform.

    7. Em outra oportunidade (Faria e Winckler, 1994) havia estudado as polticas pblicassob a perspectiva proposta por Offe (1984) atravs do conceito de seletividade, emque as decises polticas so vistas como resultantes de um conjunto de regras de exclu-so. Essa proposio foi integrada na construo terica da escola da regulao que in-terpreta o Estado como uma das cinco formas institucionais (as outras so a moeda, anorma de concorrncia, a relao salarial e a adeso ao regime internacional) que confi-guram a teia de relaes que estabilizam o funcionamento de um determinado regime

    de acumulao de capital, denominado modo de regulao e encarregado de garantir areproduo do sistema como um todo. O tratamento de questes propriamente polti-cas, entretanto, requer um enfoque terico diverso, como fao aqui.

    8. Segundo Diniz (1997), entre 1985 e 1995 o Governo Federal Brasileiro emitiu nada me-nos do que 1.548 diplomas legais, entre decretos-lei e medidas provisrias.

    9. No caso japons, a conhecida relao entre o MITIe os keiretsue, no caso coreano, entreo Conselho de Planejamento Econmico e os chaebol.

    10. Uma componente importante da crise fiscal estava do lado das despesas e tinha a vercom dois fenmenos distintos. Um primeiro afetou apenas o GovernoFederal e foi de-

    corrente da nova Constituio, o aumento de gastos da Previdncia Social em funo dauniversalizao dos benefcios, enquanto o segundo, um aumento dos gastos com pes-soal e outras despesas correntes e de investimento, foi decorrente do tipo de reao dosexecutivos federal, de estados e municpios s demandas da sociedade, tudo com umforte tempero de clientelismo e eleitoralismo (Faria e Winckler, 1994).

    11. No Brasil, o ano fiscal comea em 1 de janeiro, bem como os mandatos de prefeitos,governadores e dos membros do Legislativo, o que necessariamente obriga o novogovernante a, em seu primeiro ano de gesto, ter que cumprir um oramento propostopelo governante que saiu, votado por um Legislativo que j encerrou seu mandato.

    12. Ao longo da gesto do PDT, a receita corrente da Prefeitura em relao populao domunicpio caiu de US$ 120per capita em 1986, seu primeiro ano de gesto, para apenasUS$ 100 em 1988, trmino do mandato.

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    13. O que, alis, teve escasso resultado, pois antes do final de 1989 um grupo de oposioidentificado politicamente com o PPBassumiu a direo do sindicato. Apenas em 1991uma chapa ligada CUTretomou a direo do Sindicato dos Municiprios de PortoAlegre, o que, no por acaso, coincidiu com a superao da crise de governabilidade e oestabelecimento de uma boa governance.

    14. Na vspera da interveno, os responsveis pelas empresas destruram os registros con-tbeis e os prprios esquemas operacionais, como escalas de horrios e rotinas de ma-nuteno. Nessa circunstncia, pr os nibus na rua foi um desafio quase impossvel.

    15. Um dos poucos setores que manteve um nvel de desempenho regular foi o Departa-mento Municipal de gua e Esgoto, um nicho de insulamento burocrtico que se pre-servou por vrias gestes sucessivas. Em 1990, como parte do processo de recuperaoda governabilidade, essa situao foi quebrada com o remanejamento da maior partedos cargos de direo do departamento.

    16. Em 1990, como assessor economista do prefeito e responsvel pela elaborao da pro-posta oramentria, pude sentir o desencanto da populao, que, antes de pensar nonovo oramento, queria saber da execuo do anterior, do qual quase nada havia sidofeito at meados do ano.

    17. Essa discusso refletia, em larga medida, as divises internas do partido, entre as corren-tes de direita e de esquerda, numa repetio da clivagem histrica da esquerda in-ternacional entre a socialdemocracia reformista e o marxismo-leninismo revolucio-nrio.

    18. Em 1989, havia 16.553 servidores nas administraes direta, indireta e no Legislativo,nmero que passou para 19.887 em 1992, ltimo da gesto Olvio Dutra, e continuou acrescer nos anos subseqentes, atingindo 20.906 servidores em 1998.

    19. Para uma avaliao do processo, ver Augustin Filho (1994) e Genro e Souza (1997).Uma descrio mais pormenorizada da sistemtica, bem como uma discusso que opedemocracia e cidadania ao patrimonialismo histrico do Estado brasileiro, encontra-seem Fedozzi (1997). Um trabalho mais recente e que faz uma avaliao dos resultadosredistributivos do Oramento Participativo foi realizado por Marquetti (2002).

    20. Esse imposto representava apenas 8,9% da receita em 1989 e passou a 13,8% em 1992.

    21. Nessa primeira gesto do PT, a bancada de apoio ao governo contava apenas com umtero das cadeiras da Cmara Municipal; os dois teros restantes faziam oposio quaseque sistematicamente

    22. A maior empresa da cidade chegou a ser desapropriada, tendo a Prefeitura alegado que,em funo de suas dvidas, o patrimnio era negativo, portanto, o valor da indenizaoseria apenas simblico. Na medida em que o Poder Judicirio no acolheu essa tese, teveincio um difcil processo de negociao com a entidade representativa dos concession-rios, que atuava como um slido cartel, para devoluo da empresa e que foi, ao final,bem-sucedido e justificado pela constatao de que um custo elevado da estatizaocontrariava o compromisso de inverso das prioridades do gasto pblico.

    23. guisa de exemplo, Castro e Jaeger mostram como a atuao do Conselho Municipalde Sade foi decisiva na implantao do SUSem Porto Alegre e demais definies da po-

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    ltica de sade pblica, como o Plano Municipal de Sade, o modelo tcnico-assis-tencial, as polticas de sade especficas, a organizao dos servios na cidade, a localiza-o de novos servios e, principalmente, a deliberao sobre a utilizao de recursos fi-nanceiros (Castro e Jaeger, 1994, p. 91).

    24. Em seu trabalho, Diniz (1997) tambm buscou traar algum paralelismo entre o casoespanhol e o brasileiro, no qual faz a crtica da opo por uma via impositiva, emborareconhea a inexistncia de condies para a viabilidade de pactos de ampla envergadu-ra. Se no plano nacional segue sendo assim, o exemplo de Porto Alegre indica que essascondies podem ser construdas, ao menos por enquanto, no plano local.

    25. Embora o ICongresso da Cidade tenha sido realizado em 1993, j no segundo mandatodo PT frente da Prefeitura, a viabilizao desse tipo de discusso comeou, como fcilver dada a sua envergadura, muito antes.

    26. Um caso ilustrativo foi o da Vila Planetrio, um conjunto de sub-habitaes nas proxi-midades do planetrio de uma universidade (a UFRGS), num bairro de classe mdia, queocupavam uma rea de terras do Municpio. Na letra fria da legislao urbanstica, a po-pulao deveria ser removida e os terrenos alienados para a construo residencial deacordo com o padro do bairro. Embora houvesse outras localidades em que conjuntoshabitacionais estavam em construo que poderiam receber aqueles moradores emcondies bem melhores, a populao no queria sair e os representantes do Oramen-to Participativo apoiaram essa vontade. Aps muita negociao entre 1990 e 1991, foiobtida autorizao legislativa para construir no mesmo local um conjunto habitacionalpara cuja viabilidade a criatividade dos arquitetos da Prefeitura foi desafiada, e que teve

    ao final uma soluo tcnica na forma de um conjunto de edificaes com o aspecto desobradinhos comportando pequenos apartamentos em cada um, com o que a popula-o pde permanecer no local.

    27. O prefeito Olvio Dutra, no prefcio a Horn (1994), revela claramente essa intencio-nalidade consciente quando faz referncia ao objetivo ousado de construir uma novareferncia entre o poder pblico e a sociedade, a qual tambm facilmente verificvelnos documentos que subsidiaram as decises de governo e nos debates internos do PTque se veicularam na imprensa partidria.

    28. O festejado supervit primrio, adotado como meta pelo FMI, na verdade esconde um

    dficit operacional que leva ao crescimento explosivo da dvida pblica em todas as esfe-ras de governo, agravado pela reduo da capacidade de responder s demandas da so-ciedade em razo dessa mesma fragilidade financeira.

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