5
Carregou no botão do elevador e desceu até à cave. Ia para dois dedos de conversa com a Sílvia, já que em casa não tinha companhia. Foi a porteira quem lhe abriu a porta: — Entre, entre, Aninhas. A minha Sílvia está lá dentro no quartinho. A casa era pequena, mas muito acolhedora, pelo menos para a Ana, que ali encontrava refúgio nas horas de maior solidão e desespero. O corredor, estreito, tinha a enfeitar as paredes alguns instrumentos musicais africanos, que o pai da Sílvia aprendera a tocar em Angola e que agora, de tem- pos a tempos, retirava cuidadosamente das paredes para animar um serão com compatriotas que o visitavam. — Olá, Ana — cumprimentou-a a amiga. — Senta-te. Estava aqui a arrumar umas tralhas e a ver se encontrava umas meias que encolheram para dar ao meu primo. — Ao Sérgio? — Pois. Coitados, o meu tio Zé está outra vez desempre- gado... — Sentou-se junto da Ana e segredou: — Manda- ram-no embora da obra, lá um sacana de um engenheiro qualquer. 11 1

A Ana Passou-se!

  • Upload
    bdld

  • View
    220

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Ana tem agora 15 anos, mas é uma adolescente que foi obrigada a crescer demasiado cedo, suportando responsabilidades que não são suas. Traumatizada desde a infância pelo alcoolismo da mãe, Ana vive com o pai e a madrasta, e Pipa, a pequena irmã pela qual tem de olhar como uma verdadeira mãe. Mas um dia tudo volta a mudar e a mãe, agora recuperada do seu alcoolismo e com uma nova relação, reclama a custódia da menina. O desgosto e a revolta de Filipa não têm limites e, sem possibilidade de continuar a lutar, recorre a uma solução extrema.

Citation preview

Page 1: A Ana Passou-se!

Carregou no botão do elevador e desceu até à cave. Iapara dois dedos de conversa com a Sílvia, já que em casanão tinha companhia.

Foi a porteira quem lhe abriu a porta:— Entre, entre, Aninhas. A minha Sílvia está lá dentro

no quartinho.A casa era pequena, mas muito acolhedora, pelo menos

para a Ana, que ali encontrava refúgio nas horas de maiorsolidão e desespero. O corredor, estreito, tinha a enfeitar asparedes alguns instrumentos musicais africanos, que o paida Sílvia aprendera a tocar em Angola e que agora, de tem-pos a tempos, retirava cuidadosamente das paredes paraanimar um serão com compatriotas que o visitavam.

— Olá, Ana — cumprimentou-a a amiga. — Senta-te.Estava aqui a arrumar umas tralhas e a ver se encontravaumas meias que encolheram para dar ao meu primo.

— Ao Sérgio?— Pois. Coitados, o meu tio Zé está outra vez desempre-

gado... — Sentou-se junto da Ana e segredou: — Manda-ram-no embora da obra, lá um sacana de um engenheiroqualquer.

11

1

Page 2: A Ana Passou-se!

— Copos?— Hum-hum...— É uma pedra.— E... a tua mãe? Tens sabido alguma coisa?— Já há séculos que não telefona. Está-se nas tintas,

como sempre. Que se lixe...— Tu falas assim, mas não sentes isso, pois não, Ana?— Ai não que não sinto! Estavas à espera de quê?! Mila-

gres? Por causa dela é que viemos parar a esta casa, que éuma treta. Não consigo nunca ter o quarto minimamentedecente. Não cabe lá nada!

— Deixa estar que o meu...A Ana ficou um pouco embaraçada.— Mas eu tenho uma data de livros e discos e essas

cenas! — Olhou a amiga e percebeu que voltara a meter opé na argola: — Desculpa lá, Sílvia, mas eu estava habi-tuada a ter mais espaço, percebes?

— Acho que sim. De qualquer maneira, vocês já se muda-ram para cá há um tempão. Pensei que já estivesses acostumada.

— Não estou.— Isso deve ser porque na outra casa os teus pais esta-

vam juntos.— E não havia a estupidona da Madalena.A Sílvia sorriu. Depois, encheu-se de coragem e inquiriu:— Ouve lá, Ana, a gente nunca falou bem de uma coisa

que me ficou cá no sótão a fazer uma comichão danada...— De quê?— Se não quiseres, não digas nada, que eu não me

chateio... Não quero que te enerves nem nada, estás a ver? — O que é, Sílvia? Pareces uma psicóloga...

12

Page 3: A Ana Passou-se!

— É sobre aquilo do tal fogo lá na tua antiga casa. Nuncapercebi bem como foi isso.

— Ora! Não tem nada de especial. Se queres assim tantosaber, esquece o suspense. A história é banal. Estúpida,mas banal. A minha mãe, bêbeda como sempre, deixoua cozinha pegar fogo e ardeu tudo até ao quarto onde estavaa Pipa. Por azar, eu não estava em casa.

— Chi! E a tua irmã ficou queimada? Devia ter quê? Umano? Ano e meio?

— Não poderíamos mudar de assunto? Esse, realmente,não é dos meus temas favoritos...

— Desculpa. É que eu ainda não tinha compreendidobem...

— Se não te importas, não quero voltar a mexer nessaporcaria, Sílvia. Fico até enjoada só de pensar nessa treta.

— Okay. Juro que não torno a falar disso. — Depois,abriu muito os olhos escuros, atirou as trancinhas para ascostas e abriu o jogo: — Ontem ia contar-te uma coisa, masnão deu.

A Ana pressentiu que se tratava da paixão da amiga peloDinis, um colega de turma.

— Despeja!— Ele já não me liga nenhuma. Eu devia ter imagi-

nado.— Porquê?!— Porque é sempre a mesma cena. A minha mãe bem

me disse.— Olha lá, Sílvia, e desde quando é que tu acreditas nes-

sas alarvices de um branco não poder gostar de uma pessoade outra cor? O Dinis até parecia gramar-te à brava!

13

Page 4: A Ana Passou-se!

— Pois, mas isso foi só no princípio. Devia achar umaexperiência gira para a colecção dele. Depois, começou a de-sistir, claro. Não faças essa cara, Ana. Há miúdos brancos queadoram curtir com uma preta só para ver como é. Não sabias?Eu sabia, só que, mesmo assim, caí... Burra! Sou uma monga.

— O Tomás também desistiu de mim e eu sou brancacomo a cal, caso ainda não tenhas reparado.

Sorriram ambas.— Vê lá as horas, Ana!A Ana olhou para o relógio.— Já são quase cinco...— E a mulher do teu pai odeia que a gente se dê, já

sabes. Olha que ela, às vezes, chega a casa mais cedo.— ’Tou-me nas tintas. Observa a minha cara de preo-

cupada — e fez uma careta.— Débil mental, é o que tu és — comentou a Sílvia, com

um sorriso carinhoso.— Bem, miúda, tenho de ir, mas é por causa da minha

irmã. A Carolina deve estar a sair e a Pipa está quase a che-gar da escola. Tenho de a ajudar com os deveres. Não estáa achar grande piada ao primeiro ano... Realmente, aquiloé um bocado seca... Tchau, Sílvia. A gente vê-se amanhãna escola.

Pouco depois de entrar em casa, tocaram à porta. Era aFilipa. A Ana deu-lhe um beijo repenicado na bochechagorducha e disse, tentando fazer uma voz autoritária:

— Vossa Excelência prepare-se, que, depois de lavar essasmãos cheias de micróbios, vírus, bactérias e fungos, vai-sesentar comigo a fazer o têpêcê. E nada de refilanços! Tocaa andar para a casa de banho. Um, dois; um, dois; marche!

14

Page 5: A Ana Passou-se!

A Filipa riu-se e voltou para junto da irmã com cara demimo.

— Vamos lá sentar esse rabo gordo aqui nesta cadeira,dona Pipa. Que é que temos para hoje, hã?

— Os is... — respondeu a irmã com cara infeliz.— Pois muito bem. Os is. Os is são fáceis, Pipa. Duas

pernitas tortas que se encontram aqui... espirram... e saltaum perdigoto aqui para cima. Pronto. Viste como eu fiz?

A Filipa riu-se muito e adiantou:— Também tenho de fazer um desenho, mas não me

apetece.— Isso fica para depois dos is.— Tu fazes?— O quê? — perguntou a Ana, fazendo-se de desen-

tendida.— O meu desenho...— Hum... deixa cá ver... É um desenho sobre o quê?— Uma sala... Não, não, não! É uma... parte da casa.— Uma parte da casa.— Pois. E eu já sei o que eu quero: a casa de banho!— Parece-me boa ideia, sim senhora. Mas só depois dos

is. Quando acabares esta linha, chamas-me para eu ver,ouviste? E nada de aldrabices. É só copiares o primeiro, vá.Tenho de ir tratar do jantar. Vá lá, Pipa, pega no lápis ecomeça.

— Só faço até ao meio...— Não senhora!— ’Tá bem, pronto.Quando o pai e a madrasta chegaram a casa já passava

das oito.

15