A Anomalia e a Medicina Moderna

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  • 8/6/2019 A Anomalia e a Medicina Moderna

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    A objetividade, a

    anomalia e a medicinamoderna

    CursoOs fenmenos humanos da sade - umaabordagem heideggeriana - Parte I

    Roberto Passos Nogueira

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    Entre 1959 e 1969, em encontros intermitentes commdicos e psiclogos, organizados pelo psiquiatraMedard Boss, professor da Universidade de Zurich,Martin Heidegger exps na cidade sua de Zollikonuma interpretao muito particular dos fenmenoshumanos da sade

    Com base no pensamento de Heidegger, nesta parte docurso estudaremos:

    O que um fenmeno Como a medicina moderna entende o fenmeno da

    doena de acordo com a determinao objetal

    Os seminrios deZollikon

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    A sade no mais tema

    relevante na filosofia moderna A tarefa de formular conceitos sobre sade

    e doena sempre coube aos filsofos -Herclito, Aristteles, Toms de Aquino,Nietzsche e outros

    A filosofia moderna raramente se interessapor refletir sobre o que sade

    Depois de Kant, interessam-se pela sade

    enquanto relacionada a questes ticas ede histria epistemolgica das cincias Por que? Porque querem evitar questes

    metafsicas (Heidegger diz que esto

    presos matriz metafsica objeto x sujeito)

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    Heidegger: a exceo

    Nos Seminrios de Zollikon, Heidegger interpretaque a sade e a doena constituem fenmenosontolgicos que se referem a dois modos de seressenciais do homem que se pertencemmutuamente

    A doena a privao da sade, assim como asombra a privao de luz.

    Para Heidegger a doena uma privao daliberdade com abertura que caracteriza o Daseincomo ser-no-mundo

    Por que nos difcil entender isto? Porque vivemos sob a gide da determinao

    metafsica objetalda sade e da doena

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    O que um fenmeno? A expresso gregaphainmenon deriva do

    verbophainesthai, que significa mostrar-se Phainmenon = o que se mostra, o auto-

    evidente, o patente Phaino = levar luz do dia, pr na claridade

    Phaino vem depha-, luz, claridade, isto ,aquilo em que algo se pode fazer patente,visvel em si mesmo

    Como significado da expresso fenmenodeve reter-se: o que se mostra a si mesmo

    (Ser e Tempo, 7)

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    Os dois tipos de fenmenos Fenmenos nticos o aparecer de tudo o

    que existe, os entes perceptveis (ex: umacama)

    Fenmenos ontolgicos o que admitidoa priori para que os fenmenos nticospossam ser percebidos (ex: a existncia dealgo; a sade)

    A pneumonia um fenmeno ntico

    percebido pelo mdico A pneumonia percebida como um objeto

    anormal porque esta percepo garantidapor fundamentos ontolgicos que pensam adoena a partir da objetividade

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    A determinao histrica dos fenmenos

    ontolgicos da sade e da doena

    Os conceitos de sade e de doena dependem das trsrespostas que foram dadas pelos filsofos questo:o que so os entes do mundo em sua totalidade?

    1. Physis, natureza no sentido grego, aquilo que surge e

    se mostra por si mesmo (pr-socrticos e Aristteles)2. Criatura, tudo que foi criado por Deus e se mantm

    em relao com seu Criador (teologia crist)3. Objeto, algo representado pelo sujeito do

    conhecimento de forma certa e segura (Descartes e

    Kant, estendendo-se filosofia e s cinciasmodernas)4. A compreenso heideggeriana da sade do Dasein

    pretende romper com essas trs vertentes dametafsica

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    A determinao da totalidade dos entescomo objeto

    Existimos sob o imprio da determinaoobjetal que abarca todas as teorias e todasas prticas das chamadas cincias da

    natureza, nas quais a medicina foi includa algo muito simples e que parece muito

    familiar hoje em dia: Tudo o que h de experimentvel no mundo

    so objetos, representados de forma certa esegura pelo sujeito do conhecimento

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    Como a doena e a sade foram

    concebidas a partir da objetividade? Atravs de um par de conceitos

    mutuamente pertinentes: objeto normal /objeto anormal

    esse par de conceitos ontolgicos quepassar a determinar a experincia tericae prtica da sade a partir das origens damedicina clnica no final do sculo XVIII

    Sob o predomnio da determinao objetal

    do ser dos entes, toda doena estlocalizada no corpo mediante a presenade um objeto anormal, uma anomalia

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    A doena da physis

    Na medicina grega dos tempos de Hipcrates, adoena era entendida como o modo de ser danatureza que surge e se mostra por si mesmo

    Sob a influncia dos filsofos pr-socrticos e,posteriormente, de Aristteles, a doenahumana era tida como uma manifestao da

    physis, da natureza, aquilo que est emconstante mudana atravs do seu aparecer,desaparecer e reaparecer por si mesma

    Os humores envolviam uma dinmica que se

    dava mediante fluxos, misturas, retenes eeliminaes. As doenas resultavam de umacomposio desequilibrada e nociva entre oshumores, cujas caractersticas correspondiamaos quatro elementos naturais

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    Trecho inicial do livro hipocrtico

    Sobre os Lugares no Homemy Em minha opinio, nada no corpo somente

    comeo, mas tudo igualmente comeo e fim. Defato, depois de um crculo ser traado, o comeo

    no pode ser identificado. De maneirasemelhante, o incio das doenas encontra-se nocorpo inteiro. O que mais seco naturalmentemais suscetvel de contrair as doenas e depassar por sofrimentos. O que mido menossuscetvel. Porque a doena numa parte seca sefixa e no apresenta intermisso. Mas, numaparte mida, a doena flutuante, ocupa ora umponto do corpo, ora outro, e, mudandoconstantemente, produz intermisses, mas logocessa, pois no est fixada.

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    A doena como objeto

    Decorreu um longo perodo da histria ocidental antesque as doutrinas mdicas chegassem ao ponto de suporque toda doena um objeto, mais especificamente, umobjeto anormal

    a partir da segunda metade do sculo XVIII, com ogradual surgimento da medicina antomo-clnica, que adoena passa a ser determinada dessa maneira (ver ONascimento da Clnica de Foucault)

    A concepo antomo-clnica (Bichat, Corvisart,Laennec) impe-se na primeira metade do sculo XIX

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    O objeto anormal

    Normalidade e anormalidade so os conceitosmodernos que redefinem a sade e a doena dentro dadeterminao objetal do ser dos entes como fenmenos

    ontolgicos A doena objetal entendida a partir de duasdeterminaes complementares que tm origem nafilosofia, ou melhor, na metafsica:

    a) a privao ou falta de uma propriedade, elemento oufuno

    b) a perturbao ou distrbio de uma estrutura (rgo,tecido, clula, gene) ou do prprio comportamentohumano

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    somente no sculo XVIII quea medicina comea a observar ohomem como objeto natural.

    Um pioneiro desse modo deobservar foi o mdico austracoAuenbrugger.

    (Frontispcio da traduo dolivro de Auenbrugger sobre omtodo de percusso torcica)

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    O som natural do trax humano, e como

    reconhec-lo em vrias regies (Auenbrugger)

    . I - O trax de um homem saudvelressoa, se for percutido.

    II. - O som que o trax emite comparvel quele que usualmente se obtmsobre os tambores quando estes so cobertos por

    um pano ou outro tecidofeitos de l grossa.

    IV. - O peito deve ser percutido,ou melhor, batido, devagar e suavemente com aspontas dos dedos mantidas prximas umas das

    outras e alongadas.

    XIII. - Se em qualquer parte sonora do traxpercutida com a mesma fora, o som mais obscurodo que o usual, h neste local uma doenaprovocando o som mais obscuro.

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    E

    m 1819, Laennec publica seufamoso tratado sobre o mtodode auscultao mediata docorao

    (Modelos de estetoscpios doincio do sculo XIX, incluindo ode Laennec)

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    Caricatura do sculoXIX, acerca daauscultao imediata

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    Sculo XX: a determinao objetal dadoena mental

    Descrio da ansiedade generalizada (F41.1, CID-10)

    Deve ter havido um perodo de pelo menos 6 meses deproeminente tenso, preocupao e sentimentos de

    apreenso acerca de eventos e problemas cotidianos. Devem estar presentes pelo menos quatro dos sintomas

    listados a seguir [segue uma lista de vinte e dois sintomasdistribudos em tipos fsicos e mentais, por exemplo,sintomas envolvendo trax e abdmen: dificuldade derespirar; sentimento de choque; desconforto ou dortorcica; nusea ou mal-estar abdominal].

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    Normalidade - funes pessoais

    como objetoClassificao Internacional de Funcionalidade,

    Incapacidade e Sade (OMS)

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    O no-humano da doena

    O que h de essencialmente equivocado com adeterminao objetal da doena? que ela d aentender que o homem um ente natural de fato, amedicina o toma assim. Perde-se de vista a essncia dohomem

    A partir dessa projeo das cincias naturais, spodemos ver o ser humano como um ente da natureza,ou seja, temos a pretenso de determinar a essncia

    particular do homem com a ajuda de um mtodo queno foi concebido para tal(Heidegger)

    A determinao objetal da doena expressa umavontade de poder: conhecer para poder controlar, econtrolar para poder intervir, e intervir atravs demudanas nos objetos identificados.

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    Alcance histrico da determinao objetalda sade e da doena

    A determinao objetal funda todo um perodo histrico emque o homem se comporta em relao doena como sefosse um mero portador de objetos

    portador de tuberculose pulmonar, de AIDS ou de doenamental. Ou seja, algum que carrega sua doena. Esta igualmente a linguagem politicamente correta

    No se pergunta mais como est sua sade?, mas como vaio seu colesterol?

    Essas expresses demonstram a capacidade da determinaoobjetal de gradativamente ir eliminando qualquer sentidoexistencial na experincia humana da sade e da doena

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    Exerccio em grupos

    Que experincias pessoais eprofissionais vocs tm com a

    determinao objetal da sade e dadoena?

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    Quero ver minha doena

    E-mail recebido em 24 de junho de 2007 pelo Observatrio de RecursosHumanos do NESP-UnB:

    Gostaria de ver uma imagem ou foto do adenocarcinoma de reto, j

    estou curada, mas gostaria de v-lo. Obrigada

    Esta pessoa queria ver sua doena comoobjeto, como algo sensvel, no lhe bastava

    saber o que sofreu na experincia de ser umdoente

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    Adeno-carcinoma de reto imagemde retossigmoidoscopia

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    A doena como objeto anormalsegundo a concepo da medicina

    moderna

    Toda doena um distrbio das propriedades deum dado objeto corporalou do comportamentohumano, tomado como objeto de observao

    Neste objeto, algo falta e/ou algo est perturbado Doena anomalia, aquilo que foge ao padro

    de normalidade e que aparece como alteraopatolgica de um dado objeto (do corpo ou docomportamento)

    Como objeto, a anomalia pode ser observada emensurada (s o mensurvel real)

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    Definio de linfocitopenia (Manual

    Merck)

    Linfocitopenia a contagem total de

    linfcitos de < 1000/L em adultos ou< 3000/L em crianas < 2 anos

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    Valores normais no sangue

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    Anomalia pneumonia do lobo mdio

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    Anomalia antomo-patolgica,adenocarcinoma de colon

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    Anomalia do tecido sanguneo malria(Plasmodium vivax)

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    A determinao objetal caracteriza aanormalidade como uma privao ou

    um distrbio de um dado objeto

    Privao Distrbio

    Anemia Discrasia sanginea

    Deficincia de ... Distonia

    Atrofia Distrbio esquizofrnico

    Amnsia Parto distcico

    Agenesia Displasia

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    O Dasein e seu fardo