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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
FBIO SALGADO DE CARVALHO
A ANTESSALA DA ARGUM ENTAO
POR UMA ABORDAGEM NEGATIVA
Braslia, DF
(2015)
FBIO SALGADO DE CARVALHO
A ANTESSALA DA ARGUMENTAO
POR UMA ABORDAGEM NEGATIVA
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de mestre em Filosofia. rea de concentrao: Linguagem, Lgica e Filosofia da Mente.
ORIENTADOR: Julio Ramn Cabrera Alvarez
Braslia, DF
(2015)
FBIO SALGADO DE CARVALHO
A ANTESSALA DA ARGUMENTAO
POR UMA ABORDAGEM NEGATIVA
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de mestre em Filosofia. rea de concentrao: Linguagem, Lgica e Filosofia da Mente.
ORIENTADOR: Julio Ramn Cabrera Alvarez
Aprovada em 8 de abril de 2015.
_____________________________ Prof. Dr. Julio Cabrera
(Orientador)
_____________________________ Prof. Dr. Alexandre Costa Leite
_____________________________ Prof. Dr. Jorge Molina
_____________________________ Prof. Dr. Olavo Leopoldino da Silva Filho
(Suplente)
Braslia, DF
(2015)
Agradecimentos Em primeiro lugar, e acima de tudo, toda honra, glria e louvor sejam dados a Deus, pois
por Ele e, sobretudo, nEle vivo, movo-me e existo.
Ao meu pai, por todo o seu apoio incondicional, pela sua amizade e pelos inmeros
incentivos.
Danielle, pela sua onipresena quase divina em todos os momentos da minha vida, pelo
seu amor e pelas suas palavras de sabedoria em momentos de tenso que s ns sabemos.
Ao meu orientador, o professor Julio Cabrera, pela sua amizade, pela sua pacincia, pela
ateno criteriosa dedicada a cada pgina, pelas inmeras trocas de e-mails, por ser um dos
poucos filsofos de verdade que j conheci em carne e osso.
Ao professor Hubert Cormier pela gentileza para comigo, suportando as minhas aulas no
seu curso de Introduo Filosofia no meu estgio docente. Muito obrigado mesmo pela
pacincia.
Ao professor Olavo da Silva Filho pelos valiosos comentrios na qualificao e por ter
aceitado ser membro suplente na banca final.
Ao professor Alexandre Costa Leite, pela ateno na qualificao e na banca final, pela
sua amizade e por ter sido o grande responsvel por eu estar na Filosofia hoje trabalhando com
a Lgica, que aprendi a amar por conta dos seus cursos.
Ao professor Jorge Molina, cujo livro sobre a lgica intuicionista foi estudado nos meus
anos de graduao, de forma que nunca imaginaria que teria a honra de t-lo na minha banca
final. Muito obrigado pela ateno dispensada ao meu texto.
Ao meu diretor espiritual e confessor, o padre Rafael Stanziona de Moraes, por suportar
meus desabafos, meus inmeros questionamentos e por sempre ter me orientado com tanta
sabedoria, alm das suas inspiradas meditaes.
Ao meu padrinho de Crisma, Alexandre Madruga, pelos almoos filosficos, pela sua
amizade e pelo seu companheirismo.
Ndia e ao Herivelton, por sempre terem me ajudado com os pepinos burocrticos na
secretaria.
Ao maestro Daniel Kacowicz e aos meus colegas do Coro Filarmnico da Catedral, assim
como aqueles do extinto coro da parquia So Pedro de Alcntara, pelos inmeros momentos
de beleza. Nietzsche estava certo: definitivamente, sem a msica, a vida seria um erro!
Sayonara Lizton, que, gentilmente, prestou-se a ajudar-me com as referncias
bibliogrficas peo-lhe desculpas, de antemo, por no ter conseguido deix-las impecveis.
A todo o pessoal do MIB, especialmente aos amigos Rafael Stoll, Evandro Ferreira e Paulo
Santos, pelas suas contribuies minha biblioteca. Sem vocs, dificilmente, teria condies
de ter estudado tudo o que estudei para escrever este texto.
Sumrio
1.0. Introduo ...................................................................................................................... 1
2.0. Prembulos metodolgicos: lgica formal versus lgica informal ............................ 4
3.0. A abordagem afirmativa (primeira aproximao) ....................................................... 13
3.1. Por que afirmativa? ........................................................................................................... 13
3.2. O que um argumento? ..................................................................................................... 15
3.2.1. O mtodo dos seis passos ............................................................................................... 17
3.3. As falcias ......................................................................................................................... 19
3.3.1. A Pragma-Dialtica ........................................................................................................ 21
4.0. A abordagem negativa .................................................................................................... 26
4.1. Os seis dogmas da abordagem afirmativa ......................................................................... 26
4.1.1. O disjuntivismo excludente ............................................................................................ 27
4.1.2. A univocidade conceitual ............................................................................................... 33
4.1.3. O essencialismo semntico ............................................................................................. 37
4.1.4. A neutralidade metalingstica ....................................................................................... 40
4.1.5. O trmino das discusses como um procedimento algortmico ..................................... 42
4.1.6. A aplicabilidade universal das ferramentas lgico-argumentativas ............................... 45
5.0. O fenmeno da verodependncia ................................................................................... 47
5.1. Cinco teorias da verdade ................................................................................................... 52
5.1.1. Teorias da verdade enquanto correspondncia ............................................................... 52
5.1.2. Teorias lgico-lingsticas: a teoria intuicionista da verdade ........................................ 54
5.1.3. Teorias da verdade enquanto coerncia .......................................................................... 56
5.1.4. Teoria pragmtica da verdade......................................................................................... 57
5.1.5. Teorias intersubjetivas: teoria da verdade enquanto consenso ....................................... 59
5.2. Estudos de caso .................................................................................................................. 62
5.2.1. Um estudo de caso em Stuart Mill.................................................................................. 62
5.2.2. Um estudo de caso em Anselmo de Canturia ............................................................... 69
5.2.3. Um estudo de caso em Blaise Pascal .............................................................................. 72
5.2.4 Um estudo de caso em Cludio Costa ............................................................................. 74
5.3. O pluralismo da falaciloqncia ........................................................................................ 75
6.0. O que fazer do diagnstico negativo? (Por uma metafsica gestltica) ...................... 82
6.1. O princpio hermenutico da caridade ............................................................................... 90
6.2. Sobre os sofistas: algumas aproximaes e distanciamentos ............................................ 92
7.0. Apndice A (Um breve percurso pelo conceito de verdade na Filosofia) ................... 95
8.0. Apndice B (Novas velhas falcias) .............................................................................. 110
9.0. Referncias ..................................................................................................................... 114
1
1.0. Introduo O pr-projeto desta dissertao de mestrado recebeu o ttulo de Verdade e argumentao:
o relativismo dos argumentos falaciosos. Nele, tnhamos a pretenso de mostrar como a
falaciloqncia1 conferida aos argumentos, a propriedade de um argumento ser falacioso ou
no, seria dependente do conceito que temos do que vem a ser verdade. Entretanto, percebemos
que limitvamos nossas pesquisas a um caso particular de um fenmeno mais geral e
abrangente. O ttulo atual desta dissertao A antessala da argumentao: por uma abordagem
negativa. A antessala, ou antecmara, um cmodo de espera, um local que precede a uma sala
principal. A maior parte dos textos sobre a argumentao costuma entrar no mrito das
argumentaes sem que seus pressupostos sejam questionados de alguma maneira.
A Filosofia, quando era pensada entre os gregos da Antigidade, era, freqentemente,
refletida sob os seus aspectos metalingsticos. Falava-se, por exemplo, sobre o papel da
Filosofia no enfrentamento da morte ou sobre o papel da Filosofia para ter-se uma vida feliz.
Embora tais aspectos metafilosficos fossem estudados em toda a histria da prtica filosfica,
eles s voltariam a ter maior relevncia no sculo XX, quando vrias ferramentas da Lgica, da
Lingstica e do prprio mbito propriamente filosfico, no que concerne s vrias correntes
filosficas nenhum sculo viu o florescimento de tantas possibilidades metodolgicas ,
foram desenvolvidas e descobertas.
Antes de discutirmos, efetivamente, o que vem a ser esta antessala da argumentao de
que falamos, so necessrios alguns apontamentos metodolgicos. No contexto brasileiro, a
Lgica Informal ainda um campo bastante desconhecido e inexplorado que raramente
estudado nos cursos de Filosofia. bastante provvel, portanto, que o leitor faa, ao longo da
leitura deste trabalho, uma srie de associaes Lgica Formal que atrapalhar um bom
entendimento do projeto de abordagem que propomos no presente texto. A fim de dirimir
possveis desentendimentos, comearemos com uma discusso acerca das distines entre a
Lgica Informal e a Lgica Formal, esclarecendo que teremos em mente, a todo momento,
primordialmente, o primeiro tipo de abordagem da Lgica, embora acreditemos que a ciso
1 O termo que, provavelmente, soaria de modo mais natural seria falaciosidade; entretanto, ele no se encontra registrado no vocabulrio ortogrfico do nosso idioma VOLP. Em busca de um substantivo para referirmo-nos s falcias, encontramos o termo falaciloqncia, que, embora no seja corrente na literatura em Lngua Portuguesa sobre o assunto, encontra-se registrado no referido vocabulrio ortogrfico. Tendo em vista a existncia de um termo que j satisfaz as nossas pretenses, evitaremos um neologismo neste caso.
2
entre as duas reas seja cada vez mais tnue e que no se possa ser um lgico informal hoje
ignorando-se completamente o campo formal2.
Aps alumiarmos as bases metodolgicas que usaremos, entraremos no mrito do que
estamos denominando de abordagem afirmativa. Introduziremos alguns conceitos importantes
em Teoria da Argumentao, no intuito de familiarizar o leitor com a terminologia corrente, a
partir da perspectiva usual dada argumentao na literatura. Deter-nos-emos, especialmente,
na teoria desenvolvida por van Eemeren e Grootendorst chamada Pragma-Dialtica. Nossa
escolha deve-se ao fato de ser uma das teorias mais recentes que foi bastante desenvolvida nas
ltimas dcadas, alm de ser bastante claro como ela exemplifica aquilo que estamos chamando
de abordagem afirmativa. Poderamos, em princpio, ter escolhido outra teoria da
argumentao. A exposio desta teoria ter por meta, principalmente, a clareza quanto nossa
proposta de uma nova abordagem.
A abordagem que estamos chamando de negativa foi inspirada por aquilo que Julio
Cabrera chama de lgica negativa, que j vinha sendo prenunciada por diversas idias presentes
em cursos e em seus escritos sobre Lgica e Filosofia da Linguagem, alguns deles publicados,
como Margens das filosofias da linguagem (2009), sendo outros inditos. Recentemente, de
maneira mais explcita, podemos encontr-la em seu artigo Problemas bioticos persistentes
entre la lgica y la tica: contribuicin para un abordaje negativo de la argumentacin en
Biotica (2014). Buscaremos desenvolver esta abordagem neste trabalho, indo alm daquilo
que Cabrera j caracterizou sobre a abordagem.
Se, nas abordagens afirmativas, h o pressuposto de que os argumentadores enfrentam-se
e que um argumento predomina sobre o outro, na abordagem negativa, ter-se- o entendimento
de que todos argumentos apresentam as suas fraquezas e que sempre h a possibilidade de
contra-argumentao. A existncia desta, portanto, no implicar a refutao categrica do
argumento.
Percorrendo a histria da Filosofia, j poderamos desconfiar do entendimento afirmativo.
No raro que vrias escolas filosficas tidas por ultrapassadas ou refutadas ganhem fora em
momentos futuros, embora seja verdadeiro que, muitas vezes, tais resgates acabem dando outra
roupagem aos pensamentos filosficos do passado. Quanto a esta recuperao de escolas
filosficas, discutiremos em que medida a abordagem negativa recuperaria o pensamento dos
2 Quanto a isto, Mark Weinstein e Hunter College (1981) j falavam sobre a importncia da Lgica Formal em cursos de Lgica Informal. Girle (1988) d exemplos que mostram que possvel raciocinar usando os dois mbitos e Donald Hatcher (1999) chega a defender que a Lgica Formal uma ferramenta essencial ao pensamento crtico.
3
sofistas, que, ao longo da histria do Ocidente, em geral, desde Scrates, sempre foram vistos
com maus olhos.
Esta perspectiva negativa, como veremos, mudar uma srie de pontos que esto,
aparentemente, bem estabelecidos pelas abordagens afirmativas. Isto ficar claro quando
tratarmos dos dogmas da abordagem afirmativa, que sero os pressupostos comumente
adotados nela sem qualquer aprofundamento crtico sobre eles.
Uma vez que tenhamos discutido as diferenas entre uma abordagem afirmativa da
argumentao e uma abordagem negativa, iremos focar-nos no fenmeno que estamos
chamando de verodependncia, que seria, como diz a prpria aglutinao na palavra, a
dependncia que as argumentaes tm do conceito de verdade.
Os filsofos tm concebido o conceito de verdade das maneiras mais diversas possveis.
O tema tem sido recorrente entre eles, tendo um papel crucial nas argumentaes. Escolheremos
cinco teorias representativas a fim de exemplificarmos como as argumentaes dependem, na
prtica, tanto em argumentaes filosficas quanto na conferncia de falaciloqncia, do
conceito de verdade que for assumido.
Aps termos desenvolvido o que j explanamos at o momento, poderemos questionar-
nos sobre quais seriam os tratamentos, curas ou posturas diante do diagnstico apresentado.
Embora haja muitas posturas possveis a serem tomadas, at por conta da prpria abordagem
negativa, que no excludente, forneceremos as bases daquilo que chamamos de metafsica
gestltica. Discutiremos, ainda, como a abordagem negativa pode oferecer uma justificativa
natural para o uso do princpio hermenutico da caridade, eliminando-se, assim, o carter ad
hoc freqentemente denunciado na literatura em contextos de abordagens afirmativas.
Veremos, ainda, como as alternativas de posturas que apresentamos inibem, so indiferentes ou
propiciam o uso do princpio de caridade.
Por ltimo, apresentaremos dois apndices. No primeiro, fazemos um breve percurso
histrico no que tange ao conceito de verdade na Filosofia; no segundo, apresentaremos
algumas falcias que pudemos encontrar nas argumentaes, mas que no vimos sendo
adequadamente expostas na literatura.
4
2.0. Prembulos metodolgicos: lgica formal versus lgica informal
So quatro as principais motivaes que nos levam a tecer algumas consideraes de
cunho metodolgico antes de comearmos nossas discusses efetivamente. A primeira delas
diz respeito ao atual quadro referente aos estudos de Lgica Informal no Brasil. A rea muito
pouco estudada neste pas, principalmente quando temos em vista os departamentos de
Filosofia. Quando se encontra algum estudo sobre o assunto, geralmente, ele est atrelado a
estudiosos de Letras, especialmente aqueles que estudam a Anlise do Discurso ou a
Pragmtica, de Direito, particularmente na rea de Hermenutica Jurdica, ou, ainda, de
Comunicao. Mesmo nestas trs reas, o enfoque costuma ser dado Nova Retrica de Cham
Perelman3 (2005).
A segunda motivao no se restringe apenas ao fato de que a Lgica Informal um campo
pouco estudado entre os filsofos brasileiros, mas ao prprio mercado editorial no nosso
idioma. A ttulo de exemplo, citemos os nomes dos autores associados fundao do
movimento da Lgica Informal no fim da dcada de 704 na Amrica do Norte (EEMEREN et
al., 2014, p.373), a saber, Michael Scriven, Trudy Govier, David Hitchcock, Perry Weddle,
John Woods, Ralph Johnson e Anthony Blair. Nenhum destes autores possui textos da rea
traduzidos para o Portugus.
Douglas Walton, que pode ser considerado um dos nomes mais importantes do campo
hoje, que possui mais de 40 livros publicados, s tem apenas um livro traduzido para o nosso
idioma, a saber, o livro Lgica Informal (2006), publicado pela Martins Fontes. Poderamos
mencionar, ainda, uma das principais teorias da argumentao, que a Pragma-Dialtica, que,
embora tenha sido criada em meados da dcada de 80 por van Eemeren e Grootendorst (2004),
no teve nenhum dos seus textos traduzidos para o Portugus.
3 Luis Vega Ren (2007, p. 297) trata a retrica como sendo uma das perspectivas possveis de estudar-se a Teoria da Argumentao, sendo a Lgica Informal, ramo que Ren chama, tambm, de perspectiva dialtica, uma das possibilidades, ao lado da perspectiva lgica e daquela promovida pela Anlise do Discurso, na linha de Oswald Ducrot, Jean Claude Anscombe, Teun A. van Dijk, entre outros esta ltima linha no est no livro mencionado de Ren, mas foi acrescida em uma lista de indicaes bibliogrficas compilada pelo autor como extenso atualizada da bibliografia que ele oferece ao final do livro de 2007. 4 importante destacar que houve precursores como Toulmin, na dcada de 60, ou Hamblin, na dcada de 70, e que se pode encontrar desenvolvimentos que seriam escopo deste movimento norte-americano ao longo de toda a histria, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Quando lemos os dois volumes de Stcherbatsky (2008) dedicados lgica budista, por exemplo, podemos encontrar uma srie de abordagens que seriam tidas hoje por informais. O prprio Aristteles (2010) dedicou um volume inteiro s Refutaes sofsticas.
5
A terceira diz respeito ao fato de que a disciplina de Lgica costuma fazer parte dos
currculos dos cursos universitrios de Filosofia; contudo, ela, habitualmente, abrange apenas
a Lgica Formal ou, quando apresenta discusses sobre o que seria abarcado pela Lgica
Informal como a entendemos hoje, breves discusses sobre as falcias do ponto de vista
tradicional, pr-Hamblin5 (1970). Por conta disto, bastante provvel que o leitor treinado em
Lgica Formal traga consigo uma srie de pressupostos que poder dificultar o entendimento
daquilo que propomos nesta dissertao.
De fato, e aqui expomos a quarta e ltima motivao, no processo de qualificao de uma
verso preliminar e parcial do presente texto, a banca avaliadora fez uma srie de
questionamentos que seriam perfeitamente evitados se houvesse uma introduo como esta que
esclarecesse que temos em vista aqui sempre a perspectiva da Lgica Informal, embora seja
inevitvel que dialoguemos com a Lgica Formal veremos que, embora, na sua origem, a
Lgica Informal tenha surgido como uma alternativa quela Formal6, no h uma excluso
completa do mbito formal.
Se, contudo, pretendemos comparar a Lgica Formal Lgica Informal, cabe-nos saber o
que cada um desses tipos de Lgica . Comecemos com o primeiro tipo. Poderamos pensar
que, por ser uma rea mais ou menos bem estabelecida, e que remonta, tradicionalmente, a
Aristteles (sc. IV a.C.), embora acreditemos que esta atribuio deve-se a uma cegueira dos
ocidentais em acreditarem em um milagre grego a despeito de tudo aquilo que ocorria no resto
do mundo cremos que o chins Mozi (sc V a.C.) ocuparia este papel , haveria clareza
sobre o que vem a ser a Lgica Formal. Na verdade, a expresso bastante recente na histria
quando se tem em vista que a rea remonta, pelo menos, ao sculo IV antes de Cristo.
Jean-Yves Bziau (2008) lembra-nos, apelando ao Abriss der Geschichte der Logik, de
Heinrich Scholz, datado de 1931, de que a expresso surgiu, ironicamente, com Kant, na sua
Crtica da Razo Pura (2001). O carter irnico estaria no fato de que o filsofo alemo
decretou, categoricamente, no prefcio segunda edio da referida obra (1787), que a lgica
de sua poca j estaria acabada e perfeita, sendo que, um sculo depois, aps Boole e Frege, a
lgica observaria um desenvolvimento de enormes propores nunca vistas antes na histria e
a expresso Lgica Formal seria atribuda, muitas vezes, precisamente, a estes
desenvolvimentos contemporneos.
5 Falaremos melhor sobre o assunto quando dissertarmos sobre as falcias ao apresentarmos a abordagem afirmativa. 6 Scriven (1980) chega a dizer que A emergncia da Lgica Informal indica o fim do reino da Lgica Formal (traduo nossa).
6
O filsofo e lgico franco-suo alerta-nos para o fato de que, longe de haver um consenso
sobre a expresso, h muita ambigidade e confuso no tocante ao seu significado e que tal
expresso estaria hoje, inclusive, antiquada afirmao da qual discordamos: bastaria
observar os ttulos de artigos, de livros e de nomes de disciplinas ministradas nos diversos
departamentos de Filosofia. A despeito desta discusso, ignoraremos os embates sobre uma
definio precisa acerca da expresso Lgica Formal apelando s motivaes que apresentamos
no incio: o fato de que a literatura em Lngua Portuguesa sobre Lgica seja, majoritariamente,
de natureza formal e o fato de que os estudantes, na sua formao, estudem a lgica de Frege,
posteriormente sistematizada por Russell e Whitehead nos volumes do Principia (1910, 1912,
1913), em detrimento de todos os autores associados Lgica Informal, permite-nos pressupor
que o leitor ter uma noo razovel sobre o que vem a ser a Lgica Formal. Passemos, portanto,
definio do que vem a ser a Lgica Informal.
Ralph H. Johnson, em seu artigo The relation between formal and informal logic (1999),
apresenta um quadro catico no tocante ao entendimento do que viria a ser a Lgica Informal,
a ponto de o lgico Jaako Hintikka (1989), simplesmente, negar a existncia de uma teoria dos
raciocnios informais. Johnson apresenta-nos uma srie de sete definies distintas que
poderamos encontrar na literatura especializada. Ryle (1954) diria que a Lgica Informal
refere-se lgica de conceitos substantivos, como tempo e prazer, em oposio lgica de
conceitos como conjuno e disjuno, tratando, portanto, daquilo que Wittgenstein (2009)
chamaria de gramtica profunda, ou seja, o uso prtico de uma expresso em um dado jogo de
linguagem.
Uma segunda definio possvel relacionaria a Lgica Informal ao estudo de falcias
informais (CARNEY; SHEER, 1964; KAHANE, 1971; WOODS, 1980). Uma terceira diria
que a rea trata da Lgica Formal sem o seu formalismo (COPI, 1996); uma quarta, que a tarefa
da Lgica Informal seria a de ser uma mediadora entre a Lgica Formal e o raciocnio em
linguagem natural (GOLDMAN, 1986; WOODS, 1995). Uma quinta concepo, encontrada
em McPeck (1981), Siegel (1988) e Weinstein (1994), diria que a Lgica Informal uma
epistemologia aplicada; uma sexta, encontrada em Finocchiaro (2005), que a Lgica Informal
uma teoria do raciocnio e, finalmente, Scriven (1993) dir que a Lgica Informal uma
metateoria do Pensamento Crtico7.
7 Em vrios dos seus textos, Ralph Johnson insiste que a Lgica Informal e o Pensamento Crtico no so, embora muitos tracem uma relao de sinonmia entre os dois nomes, a mesma coisa. Ele explica que a Lgica Informal um campo de investigao, enquanto o Pensamento Crtico denotaria uma virtude intelectual ou moral, um ideal educacional que pode ser enriquecido pela Lgica Informal para mais detalhes, ver (JOHNSON, 1996, p.213).
7
No tocante s definies, Johnson comenta que h certa incompatibilidade entre elas,
dizendo: Se Ryle est certo, ento, fica difcil ver como as outras vises estariam corretas. Se
McPeck, Siegel e Weinstein esto certos, fica difcil ver como Goldman poderia estar certo.
(JOHNSON, 1999, p. 267) (traduo nossa).
Johnson no pra nestas definies. Para piorar a situao, Johnson comenta, ainda, duas
outras definies. Govier (1987) diria que a Lgica Informal seria a arte da avaliao de
argumentos, enquanto Walton (1990) defenderia que a Lgica Informal o campo que lida com
os aspectos pragmticos da argumentao.
O prprio Johnson, em um artigo escrito em parceria com Blair (2000), em um texto mais
recente que os citados at aqui, define o campo a partir da anlise tripartite de Barth e Krabbe
(1982) do conceito de forma lgica8: A Lgica Informal designa o ramo da Lgica cuja tarefa
desenvolver padres no formais, critrios e procedimentos para a anlise, interpretao,
avaliao, crtica e construo da argumentao na linguagem do dia a dia (JOHNSON;
BLAIR, 2000, p. 94) (traduo nossa).
O leitor, neste momento, tendo-se por base a variedade de definies apresentada, pode
estar mais confuso do que antes de ler este texto. Em vez de discutirmos cada uma das
definies acima, optaremos pelo mtodo dialtico. Olavo de Carvalho (2006 , p. 34) explica
que Quando no possumos os princpios, a nica maneira de busc-los a investigao
dialtica que, pelo confronto das hipteses contraditrias, leva a uma espcie de iluminao
intuitiva que pe em evidncia esses princpios.. Seguindo esta metodologia, buscaremos
esclarecer o que, realmente, vem a ser a Lgica Informal a partir da discusso de quatro tenses.
( i ) Linguagens formais versus linguagens naturais
Para compreendermos a proposta da Lgica Informal, crucial que entendamos a distino
entre linguagens formais e linguagens naturais. As linguagens formais tambm so chamadas
de linguagens artificiais. Elas so assim chamadas por serem criaes humanas, contrastando
com idiomas como o Portugus ou o Ingls. Chomsky diria que possumos algum tipo de
mecanismo inato que instanciado nos diversos idiomas. Por exemplo, nascemos com uma
habilidade lingstica que ser desenvolvida de acordo com o ambiente social em que eu estiver.
8 Sem entrarmos no mrito da distino de Krabbe e de Barth, Johnson e Blair querem dizer, meramente, que no-formal est em oposio viso logicista, via Russell, de que a forma lgica conteria a chave para o entendimento da estrutura de todos os argumentos.
8
Se eu nascer em uma famlia de falantes da Lngua Portuguesa, ser este idioma que
desenvolverei em detrimento do Chins e outros idiomas e vice-versa.
A aproximao ou o distanciamento entre as lnguas naturais e as linguagens formais a
distino entre lngua e linguagem, que pode ser bastante importante em certos contextos da
Lingstica, no to importante aqui dependente de certos pressupostos tericos. A ttulo
de exemplo, Richard Montague dizia que no h nenhuma diferena essencial entre as lnguas
naturais e as linguagens formais (PEREIRA, 2001). Para Montague, a principal diferena que
existiria seria referente ambigidade: as linguagens formais seriam precisas e claras, enquanto
as linguagens naturais seriam intrinsecamente ambguas.
Na Lingstica, as diferentes abordagens da gramtica dependero da relao existente
entre os dois tipos de linguagem. Os funcionalistas, por exemplo, defendero uma ciso entre
os dois mbitos que um gerativista ou um adepto da Semntica Formal crer ser inexistente.
importante que situemos historicamente, neste momento, o surgimento da Lgica
Informal. As lgicas temporais comearam a ser trabalhadas na dcada de 60 a partir dos
trabalhos de Prior9. As chamadas lgicas fuzzy, nebulosas ou difusas, surgiram, primeiramente,
na forma de um tipo de teoria dos conjuntos. A conhecida Teoria da Possibilidade de Zadeh s
foi ser desenvolvida no final da dcada de 70. A Lgica Linear de Girard foi construda no fim
da dcada de 80; a Lgica Relevante de Belnap e Anderson surgiu em 1975 e as lgicas no-
monotnicas, que aproximam bastante os raciocnios formais daqueles que empreendemos no
cotidiano, s comearam a receber ateno no final da dcada de 80. Lembremos, tambm, que
o tratamento formal dado aos argumentos feito por Dung foi empreendido apenas em 1995.
Podemos ver, portanto, que muitos desenvolvimentos da Lgica Formal que poderiam atenuar
as crticas dos lgicos informais por procurarem aproximar-se das linguagens naturais esto
ocorrendo no mesmo momento em que os lgicos informais propunham-se a desenvolver uma
nova metodologia.
Trazemos os fatos histricos lembrana do leitor para dizer que o quadro insatisfatrio
que aquele conjunto de investigadores norte-americanos observou na Lgica Formal
modificou-se bastante com o passar do tempo. Os prprios mtodos formais que passaram a ser
aplicados por linguistas estavam comeando a surgir na dcada de 70.
9 Quando temos em vista este desenvolvimento em particular, o que Ryle afirma, como vimos na pgina 6, sobre os conceitos substantivos perde totalmente o sentido.
9
( ii ) Mau raciocnio versus bom raciocnio
Nesta tenso, diferentemente da anterior, no estamos abordando algo que seja
contemplado pela Lgica Formal em detrimento de algo que seja ignorado ou que receba menor
ateno na Lgica Informal. O ponto aqui que a distino entre um mau raciocnio e um bom
raciocnio algo que tambm problematizado no mbito Informal, enquanto se trata de algo
bastante claro quando estamos no ambiente formal.
A Lgica Formal, de modo geral, preocupa-se com a noo de validade e de demonstrao.
bastante fcil reconhecer quando um raciocnio possui algum erro formal. A noo de falcia
ganha interesses tericos, gerando inmeras discusses, quando estamos falando de argumentos
reais, como diria Alec Fisher (2008).
Um contraste evidente que os estudantes de Lgica notam nos seus cursos est nos
exemplos que os livros didticos introdutrios costumam oferecer por sinal, uma das
caractersticas marcante do movimento surgido na dcada de 70 foi a de fazer uso de exemplos
concretos encontrados nas discusses polticas e nos diversos contextos do dia a dia10. Enquanto
os argumentos apresentados em livros de Lgica Formal so quase que infantis o estudante
logo percebe que nunca ir deparar-se com aqueles exemplos na realidade , os argumentos
reais, muitas vezes, esto incompletos, perpassados por figuras de linguagem, precisando passar
por um processo de reconstruo.
verdade que, no mbito formal, poderamos apontar a existncia dos entimemas, que
seriam argumentos com premissas ocultas, mas a relao entre implcitos e explcitos no mbito
formal e no mbito informal parece ser bastante distinta. Podemos ter vrias apresentaes de
um sistema formal. Podemos apresent-lo ao estilo de Hilbert, por meio de sistemas
axiomticos, podemos optar pelo estilo Gentzen, por meio da deduo natural ou do clculo de
seqentes, podemos escolher a resoluo de Robinson ou outro mtodo do ponto de vista da
Teoria da Prova. Qualquer que seja o modo de apresentao escolhido, as regras que so usadas
nas demonstraes so claramente explicitadas e as frmulas consideradas bem formadas na
sua linguagem so definidas de maneira recursiva. O mbito informal, por sua vez, est sujeito
a todo tipo de imprevisto.
10 Nesse sentido, o livro de Ralph Johnson e Blair, chamado Logical Self-Defense, de 1977, costuma ser apontado como sendo pioneiro.
10
Poderamos mencionar, ainda, o fato de que sistemas formais lidam, em grande parte, com
dedues11.
( iii ) Sintaxe e semntica versus pragmtica e retrica
Charles Morris (1985), inspirado nos trabalhos de Charles Peirce, cunhou o termo
pragmtica, dividindo o estudo da linguagem nos mbitos sinttico, semntico e pragmtico.
Sabemos, por meio das inmeras discusses em Filosofia da Linguagem, Filosofia da
Lingstica, e nas prprias reas da Lgica e da Lingstica, que no h critrios muito bem
estabelecidos que forneam uma fronteira ntida entre estes mbitos temos aqui o que se
costuma chamar de problema da interface entre os mbitos da linguagem.
John Langshaw Austin (1990) define os conhecidos atos de fala, dividindo-os em atos
locucionrios, ilocucionrios e perlocucionrios. Os primeiros, dialogando com a subdiviso de
Morris, estariam relacionados sintaxe e semntica. Os atos ilocucionrios estariam
relacionados s intenes dos falantes, enquanto os atos perlocucionrios diriam respeito aos
efeitos nos falantes.
O desenvolvimento da Lgica Moderna12 deu-se, primeiramente, no mbito sinttico. O
programa de Hilbert, que promoveu uma srie de avanos do ponto de vista da Teoria da Prova,
era de base sinttica. Os estudos semnticos na Lgica ganharam impulso com o trabalho de
Tarski e, principalmente, com o trabalho de Kripke na Lgica Modal. Temos, hoje, os campos
da Teoria da Prova e da Teoria dos Modelos, abarcando, respectivamente, sintaxe e semntica,
como reas muito bem estabelecidas.
Os vrios resultados de metalgica, que foi outro campo desenvolvido no sculo XX, como
os famosos teoremas de completude e de corretude, tratam dos aspectos sintticos e semnticos
de sistemas lgicos. A relao de conseqncia lgica, a partir da diviso de Morris, possui
uma contraparte sinttica e uma semntica, mas no h uma contraparte pragmtica.
Quando falamos dos atos de fala de Austin, Searle e Vanderveken (1985) tentaram uma
formalizao dos atos ilocucionrios; contudo, sua tentativa foi alvo de muitas crticas. Outros
11 H tratamentos formais de inferncias que no sejam dedutivas, como a que Atocha Aliseda-Llera (1997) faz das abdues, por exemplo, contudo, em geral, a deduo costuma ser o maior enfoque dos lgicos formais. 12 interessante notar que o que se costuma chamar de Lgica Moderna nada tem a ver com o perodo Moderno, mas, na verdade, diz respeito lgica desenvolvida contemporaneamente a partir de Frege, Boole e de De Morgan. A Lgica na Modernidade ainda menos conhecida do que aquela praticada no medievo. A prpria terminologia sugeriria que, aps a escolstica medieval, a Lgica teria entrado na Modernidade com os lgicos supracitados.
11
autores como Dalla Pozza (1995) tm tentado aproximar a pragmtica das linguagens formais,
assim como estudiosos da chamada Pragmtica Formal tm tentado aproximar os mtodos
formais da Pragmtica.
A despeito dessas tentativas de aproximao, parece-nos que Walton estava certo ao
perceber que a Lgica Informal teria por escopo o uso que os falantes fazem dos argumentos.
( iv ) Forma versus contedo
Vimos, a partir da definio fornecida por Johnson e Blair, que a Lgica Informal seria
no formal no sentido de negar que a mera estrutura dos argumentos, uma herana aristotlica,
forneceria a principal informao para avali-los.
A Lgica Informal, embora, de fato, grosso modo, d mais importncia aos contedos,
busca estabelecer critrios gerais, como, por exemplo, o tratamento de esquemas
argumentativos.
Alguns crticos da Lgica Informal afirmam que a Lgica tem a misso de procurar a maior
generalidade possvel e que tal ramo contemporneo escaparia desta meta. Quando temos em
vista, contudo, as possibilidades de inferncias, poderamos defender que, ao focar-se na
deduo, esquecendo-se dos outros tipos de inferncia, o lgico formal estaria lidando com um
caso particular de algo que, de fato, mais geral, a saber, a relao de conseqncia lgica entre
um conjunto de premissas e um conjunto de concluses.
Por outro lado, poderamos argumentar, ainda, que vrios itens que, ao longo da histria,
foram considerados como sendo meros contedos que deveriam ser abstrados no trabalho do
lgico passaram a ganhar destaque em contextos de lgicas no clssicas. As lgicas temporais
ou a lgica da relevncia que j mencionamos seriam exemplos clssicos.
Em todas as tenses que vimos at aqui, pudemos observar que no h uma linha divisria
ntida de separao entre a Lgica Formal e a Informal. Embora, como dissemos anteriormente,
mencionando uma fala de Scriven, na sua origem, a Lgica Informal tenha surgido em
permanente desacordo com a Lgica Formal, cremos que h uma crescente aproximao entre
as reas.
Boa parte da histria da Filosofia Analtica confunde-se com a histria da prpria Lgica
Moderna. Russell, que foi um dos primeiros representantes desta metodologia filosfica, tinha
formao em Filosofia e Lgica e foi responsvel tanto pela criao da famosa anlise, a partir
12
dos seus trabalhos sobre a teoria das descries definidas, quanto pela sistematizao da Lgica
Moderna com Whitehead.
Wittgenstein foi um divisor de guas na histria da Filosofia Analtica: o primeiro, do
Tractatus, influenciou enormemente o Positivismo Lgico do Crculo de Viena; o segundo, das
Investigaes, a chamada Escola de Oxford. Enquanto o primeiro era formalista, o segundo
focava-se na linguagem ordinria. Durante muito tempo, ao dizer-se que se era um filsofo
analtico, perguntava-se a sua procedncia, sobre se era de ordem formalista ou da linguagem
ordinria. Com o passar do tempo, a distino enfraqueceu-se a ponto de, hoje, no fazer mais
sentido no meio analtico.
Cremos que os diversos desenvolvimentos da Lgica, com a proliferao de diversos
sistemas no clssicos, foram um fato determinante para que a distino desaparecesse. A
mesma tendncia parece existir entre os adeptos da Lgica Formal e da Informal.
13
3.0. A abordagem afirmativa (primeira aproximao)
3.1. Por que afirmativa? Julio Cabrera, com a sua tica Negativa, afirma que as ticas, antes da sua abordagem, de
modo geral, tiveram o costume de partir do pressuposto de que a vida possui um valor e que o
papel da tica , portanto, indicar o que deve ser feito com a vida partindo-se dessa
pressuposio. Para citarmos como exemplo trs tipos de sistemas ticos, assim como trs
autores representantes destes sistemas, tenhamos em mente a tica das virtudes aristotlica, a
tica deontolgica de Kant e a tica conseqencialista utilitarista de Stuart Mill.
Quando Aristteles, por meio da aplicao da sua epistemologia, em que a forma do objeto
conhecido modifica a forma de quem conhece, discute a aquisio das virtudes por meio do
hbito, ele no discute, em nenhum momento, o valor da vida que ser ou no virtuosa. Kant,
ao definir as vrias formulaes do seu imperativo categrico, procurando tornar a ao tica
semelhante s leis da fsica, sendo, portanto, universalizveis, no se pergunta sobre os
fundamentos valorativos da vida que autnoma por meio do fazimento de leis para si mesma.
Nada ser diferente no pensamento de Mill, que fala sobre a maximizao do prazer humano
sem problematizar a vida em si que poder ou no ser prazerosa. Para Cabrera, o valor da vida
deve ser discutido no mbito de um sistema tico antes mesmo que se forneam critrios sobre
como se deve viver.
O mesmo movimento dar-se- aqui, mas no campo da Lgica Informal. Se, na tica, o
valor da vida nunca era questionado, buscando-se apenas se saber o que deveria ser feito com
ela, na argumentao, haver uma srie de pressupostos, que chamaremos, mais adiante, de
dogmas, que sero tidos como uma espcie de axiomas nas diversas teorias argumentativas,
sem nenhuma reflexo sobre eles.
No seu artigo intitulado Problemas bioticos persistentes entre la lgica y la tica:
contribuicin para un abordaje negativo de la argumentacin en Biotica, Julio Cabrera afirma
que, na concepo afirmativa, cada parte da disputa apresenta os seus argumentos e supe que
existem mtodos lgicos disponveis que permitem determinar o resultado objetivo e imparcial
da disputa, estabelecendo um ganhador e um perdedor. (CABRERA, 2014, p. 4) (traduo
nossa). Na abordagem negativa, por sua vez,
14
para cada argumentao, existe sempre pelo menos uma contra-argumentao razovel, o que torna a argumentao virtualmente interminvel. De tal modo, nunca ganhamos ou perdemos uma argumentao em termos absolutos, mas to-somente situamos o nosso argumento em uma rede holstica de argumentos, com a pretenso de que ele seja considerado plausvel ou no eliminvel. (CABRERA, 2014, p. 4) (traduo minha)
Cabrera (2014, p. 5) aponta Leibniz como sendo aquele que talvez tenha inaugurado a
abordagem afirmativa na lgica. Em 1685, no seu The art of discovery, Leibniz (1989) fala
sobre uma linguagem que seria o maior instrumento da razo e que, quando houver disputas
entre as pessoas, poderemos, simplesmente, dizer: calculemos, sem perda de tempo, e vejamos
quem est correto. (The Art of Discovery (1685); C, 176 (W, 51))13.
Na verdade, em primeiro lugar, cremos que, historicamente, Scrates, ou Plato14, poderia
ser apontado como sendo o primeiro afirmativo ao contrapor-se aos sofistas. A crtica feita aos
sofistas era a de que eles preferiam a doxa em detrimento da aletheia, apresentando como
verdadeiro aquilo que apenas verossmil, sendo o conhecimento distinto da mera promoo
de uma opinio15.
De qualquer modo, mesmo ficando com Leibniz, o filsofo escreveu, com vinte anos de
idade, o seu Dissertatio de arte combinatria que inspirado no catalo Raimundo Llio (c.
1232 1316) de maneira explcita. Umberto Eco (2002, p. 77) explica o projeto luliano da Ars
magna, por meio do qual o Beato concebia uma linguagem perfeita que converteria os infiis16.
Reza a lenda que Raimundo Llio teria morrido martirizado pelos sarracenos, aos quais ele
apresentava-se provido apenas da sua Ars magna, crendo que seria um meio de persuaso
infalvel. Em um sentido mais explcito, seria Llio, muito provavelmente, o primeiro
afirmativo.
Hegelianamente, entretanto, cremos que a motivao de chamarmos as abordagens
correntes de afirmativas s ser compreendida de maneira mais clara quando falarmos da
prpria abordagem negativa. Antes de faz-lo, contudo, faremos uma exposio de alguns
conceitos bsicos que so necessrios para que se possa adentrar o campo da Argumentao.
13 Citao retirada de (KULSTAD; CARLIN, 2013). 14 No se sabe, ao certo, em que medida o Scrates de Plato fiel ao Scrates histrico; por isto, fazemos uso do ou excludente aqui. 15 Discutiremos melhor sobre os sofistas quando apresentarmos a abordagem negativa. 16 Paolo Rossi (2004) remonta a linguagem perfeita de Llio tradio da arte de memorizao a partir de um mtodo mecnico que j estaria em Ccero, Quintiliano e Aristteles.
15
importante destacarmos que, embora os conceitos e definies apresentados nesta seo
no sejam, em si mesmos, afirmativos ou negativos, eles sero apresentados aqui pela simples
razo de que eles estaro sendo tratados e expressos em termos da abordagem afirmativa, ou
seja, eles poderiam ser expressos, tambm, em termos negativos.
Esclareceremos, aos poucos, o que os faz enquadrarem-se em um determinado tipo de
abordagem. Por enquanto, tenhamos em mente que uma abordagem ser afirmativa diz respeito
assuno de certos pressupostos que no so questionados no mbito da argumentao.
3.2. O que um argumento?
O conceito mais evidente que merece ser analisado no mbito da Teoria da Argumentao
, obviamente, o prprio conceito de argumento. Existe, na literatura lgico-filosfica, uma
ampla discusso sobre o que vem a ser um argumento. Encontramos exposies desta
discusso, por exemplo, em textos como The nature of argument, de Karel Lambert e William
Ulrich, ou The concept of argument: a philosophical foundation, de Harald Wohlrapp.
Entretanto, apelaremos aqui ao entendimento tradicional17 sem grandes aprofundamentos sobre
o assunto.
Um argumento, de maneira simplificada, uma inferncia. Inferncias sempre envolvem
um conjunto de premissas, um conjunto de concluses, assim como uma relao entre estes
dois conjuntos. Quando o conjunto vazio, temos demonstraes. Quando ele no vazio,
temos dedues. Demonstraes so, portanto, casos particulares de dedues (HEGENBERG,
2012, p.108).
No caso do conjunto de concluses, classicamente, costuma-se ter apenas uma
concluso18. Este conjunto, particularmente, no pode ser vazio, pois, do contrrio, no haveria
o passo inferencial. Um argumento, portanto, trata-se de uma tripla < , , >, com . A
17 O leitor mais atento e afeito literatura sobre Lgica Informal talvez estranhe a nossa adoo do conceito tradicional. Stephen E. Toulmin (2006), por exemplo, famoso pelos seus layouts, por meio dos quais ele tece crticas viso de que, na argumentao, os conjuntos de proposies cumpram apenas as duas funes de serem premissas ou concluses. Ele introduz os conceitos de dados, garantias, qualificadores modais, condies de exceo ou de refutao e alegaes como alternativa concepo tradicional. Charles Arthur Willard (1989) outro autor que tece crticas conceitualizao tradicional, dizendo que ela s apropriada no mbito formal, que considera os argumentos como objetos puramente abstratos. A dimenso esttica e social no seria, portanto, abarcada. 18 Nos anos 70, D. J. Shoesmith e Timothy Smiley (1978) desenvolveram a lgica das concluses mltiplas no mbito da lgica formal para trabalharem com conjuntos de concluses. Classicamente, a relao de conseqncia lgica d-se entre um conjunto de frmulas e uma frmula particular, mas estamos procurando ser abrangentes na nossa formulao.
16
relao entre e , que ser dada por , pode ser dada de diversas maneiras. Elas podem ser
lexicais, abdutivas, retrodutivas, condutivas, dedutivas, indutivas, retricas, analgicas,
associativas, emotivas ou afetivas, que so bastante comuns na Psicanlise por exemplo, etc. .
Assim como a natureza da relao de inferncia pode ser diversa, o mesmo fenmeno d-
se com o conjunto de premissas e com o conjunto de concluses, embora, tradicionalmente, as
abordagens, tanto formais quanto informais, restrinjam-se a proposies lingsticas. Groarke
(2002), por exemplo, fala de argumentos musicais; Pietarinen (2011) fala sobre argumentos que
fazem uso de diagramas e Hill & Helmers (2008), sobre argumentos visuais em geral.
Argumentar, no fim das contas, justificar aquilo que afirmamos. Se isto ser feito por
palavras, por cores, por canes ou at por danas, como exemplifica Cabrera (2014, p. 4), no
importa. Embora estejamos falando aqui sobre conceitos complexos como, por exemplo,
quando apresentamos as possibilidades de inferncias, a argumentao comea muito cedo nas
nossas vidas. Quando um pai diz ao seu filho que ele no pode nadar logo aps ao almoo
porque ele tem de esperar um tempo para que a digesto dos alimentos seja feita ou quando ele
manda o seu filho dormir cedo para que consiga acordar no dia seguinte, ele est argumentando:
ele est fornecendo justificativas daquilo que est afirmando.
A argumentao, por vezes, no o procedimento mais racional ou eficaz. Quando voc
v que um motorista est aproximando-se da sua faixa, voc buzina em vez de abrir a janela do
carro para convenc-lo de que ele no deveria estar agindo daquela maneira. Bermejo-Luque
(2014, p. 18) afirma que a argumentao , principalmente, uma atividade prpria da razo
terica: por meio dela, tratamos de estabelecer que as coisas so como dizemos que so.
(traduo nossa). Mesmo que a argumentao no seja o melhor meio em todas as
circunstncias, talvez o pluralismo contemporneo aliado formao das democracias aps a
II Guerra Mundial e ao crescente globalismo impulsionado pelas tecnologias recentes que
favorecem os meios de comunicao tenha motivado o crescente interesse pela argumentao
a partir da segunda metade do sculo XX19.
Finalmente, lembrando aquilo que dissemos sobre as argumentaes reais e sobre a nfase
na Pragmtica por parte da Lgica Infomal, introduziremos uma distino feita por Toulmin
(2006, p. 179) entre argumentos analticos e argumentos substantivos posteriormente,
Toulmin cham-los-, respectivamente, de tericos e de prticos (1989, p.34). Argumentos
analticos, ou tericos, sero aqueles que procuraro estabelecer as suas concluses a partir de
princpios universais. Argumentos substantivos, ou prticos, sero, por sua vez, aqueles que
19 Veremos como este contexto parecido quele que possibilitou o surgimento dos sofistas.
17
buscaro estabelecer concluses mediante o apelo ao contexto em que apaream, observando-
se situaes especficas. Os argumentos que teremos por escopo neste texto sero aqueles
substantivos ou prticos, seguindo a terminologia de Toulmin.
3.2.1. O mtodo dos seis passos
Aps termos visto o que seria um argumento e uma argumentao, cabe-nos questionar-
nos sobre as suas condies de possibilidade. Julio Cabrera (2014), apoiado em trabalhos de
autores como Alec Fischer, Robert Fogelin, Walter Sinnott-Armstrong, Howard Kahane, Irving
Copi, entre outros, apresenta o que ele chama de Mtodo em seis passos para a avaliao de
argumentos informais.
Antes de entrarmos no mrito das argumentaes em si mesmas, temos de avaliar os
seguintes quesitos:
( 1 ) a existncia do argumento;
Antes de qualquer considerao, temos de saber se, de fato, estamos diante de um
argumento. H a possibilidade de que o interlocutor no queira estabelecer um vnculo entre
premissas e concluses, fornecendo, portanto, uma justificativa, mas que queira, simplesmente,
fazer uma afirmao, um desabafo ou uma mera descrio. O aspecto pragmtico das
argumentaes torna-se bastante importante aqui, pois um texto que possua o aspecto de uma
simples descrio, por exemplo, pode ter a pretenso de causar no leitor uma srie de emoes.
Neste caso, haveria um argumento exposto na forma de uma descrio.
( 2 ) a determinao do argidor;
A existncia de um argumento, embora seja necessria, no suficiente para que uma
argumentao seja empreendida. necessrio que haja quem esteja disposto a defender um
ponto de vista, que aceite o nus da prova e que, portanto, aceite ser responsabilizado pela
argumentao. Cabrera (2014, p. 5) aponta o carter anti-intuitivo como sendo um possvel
critrio a ser considerado na deciso do portador do nus da prova. Se algum pretende mostrar
um ponto que vai de encontro aos valores vigentes, seria razovel supor que seria ele o
responsvel a delinear a argumentao.
18
( 3 ) a reconstruo do argumento;
Havendo um argumento passo 1 e havendo um responsvel por empreender a
argumentao passo 2 , o argumento tem de ser apresentado de maneira que ele possa ser
adequadamente avaliado. Perguntas sobre qual , efetivamente, o argumento, sobre se h apenas
um argumento ou se, havendo mais de um, h relaes entre linhas argumentativas que levam
a um mesmo ponto, sobre quais so as premissas e as concluses e sobre quais so os
subargumentos so cruciais neste passo. Por vezes, h argumentos implcitos que precisam ser
explicitados. Diferentemente das argumentaes meramente formais, os argumentos reais no
costumam ser apresentados de maneira que possam ser adequadamente tratados em uma
disputa.
( 4 ) a clareza dos termos e o valor de verdade das premissas;
Aps a reconstruo feita no passo anterior, h a necessidade de questionarmos sobre a
clareza dos termos envolvidos na argumentao e sobre se h significados relevantes que devem
ser esclarecidos. Neste momento, conveniente explicitar os pressupostos da argumentao
que esto sendo assumidos. A verdade das premissas deve ser aceita ou, pelo menos,
considerada plausvel ou aceitvel. Quando falamos sobre a plausibilidade ou aceitabilidade
das premissas, em vez da mera aceitao, estamos prevendo aqui que no haja, necessariamente,
a anuncia s premissas, mas que se escolha, provisoriamente, aceit-las como verdadeiras para
que se possa ver o rendimento20 da discusso. A clareza dos termos e a verdade das premissas
relacionam-se na medida em que a avaliao dos termos pode afetar a verdade das premissas.
( 5 ) a correo do argumento;
Este passo o cerne do mtodo. Aqui, questionamo-nos sobre se as concluses seguem-se
das premissas a partir dos pressupostos aceitos. A natureza do passo inferencial deve ser
explicitada: est-se fazendo uma deduo, uma induo, uma abduo? Que tipo de inferncia
leva-nos s concluses a partir das premissas? O argumento convincente, contundente,
cogente, estabelecendo as suas concluses?
20 Este um conceito que Cabrera introduz para abranger essa possibilidade.
19
( 6 ) o propsito do argumento.
Mesmo que verifiquemos que todos os passos anteriores foram satisfeitos, um argumento
pode falhar em satisfazer os propsitos em questo. Uma vez que seja exposta a inteno do
argumentador se havia o intuito de dar-se uma explicao, oferecer algum tipo de prova,
uma refutao ou, puramente, chocar um pblico, escandaliz-lo, confundi-lo ou consol-lo
, deve-se verificar se ela foi satisfeita. Se o propsito inicial no foi satisfeito, o argumento
fracassou, mesmo sendo considerado um bom argumento.
Dentro dos seis passos explanados acima, podemos encontrar, a partir da definio de
argumento que adotamos, as seguintes possibilidades de contra-argumentao:
I. Questionamento da definio ou o significado de algum termo envolvido na argumentao
(passo 4);
II. Questiona-se a verdade de alguma premissa (passo 4);
III. Questiona-se o vnculo entre o conjunto de concluses e o conjunto de premissas
afirmando-se que aquele no decorre deste (passo 5).
A segunda possibilidade de contra-argumentao deixa muito claro que estamos no mbito
da Lgica Informal, pois o ponto da Lgica Formal, pelo menos em termos clssicos, como j
vimos, no derivar o falso do verdadeiro, sendo irrelevante em termos de dedutibilidade se o
antecedente falso. Nesta possibilidade, por vacuidade, a implicao sempre verdadeira.
Reiteramos que os conceitos apresentados nesta seo no so exclusividades da
abordagem afirmativa. De fato, o mtodo dos seis passos acima pode ser visto a partir da
perspectiva da abordagem negativa, como veremos mais tarde.
3.3. As falcias
Apesar da pluralidade de inferncias que mencionamos, de maneira geral, os raciocnios21
podem ser divididos em dedutivos e indutivos a partir da definio de que aqueles so
21 Cabe ressaltar que nem todo raciocnio possui a forma de um argumento como o definimos. Por esta razo, muitas vezes, o passo de reconstruo do argumento precisa ser efetuado. Esta discusso relaciona-se com a discusso no mbito formal das chamadas sentenas declarativas, que seriam aquelas que podem ser tidas por verdadeiras ou falsas.
20
raciocnios nos quais h uma relao de nexo de implicao necessrio entre o conjunto de
premissas e o conjunto de concluses, enquanto estes so raciocnios nos quais h apenas uma
relao de possibilidade ou de probabilidade entre os dois conjuntos. Tendo em vista essa
classificao mais geral, os textos que tratam sobre as falcias costumam classific-las em
falcias formais e informais.
As falcias so falhas ou defeitos no raciocnio. Tradicionalmente, elas possuem duas
dimenses: uma lgica e uma psicolgica. A primeira dimenso envolve um caso de non
sequitur no qual aquilo que se pretende justificar no suficientemente justificado pelo
raciocnio, enquanto a segunda dimenso envolve o aspecto da iluso, na medida em que as
falcias aparentam ser raciocnios sem defeitos, ou mesmo da ardileza, na medida em que, por
vezes, h a inteno de ludibriar o adversrio quando promovemos discusses e debates.
No h uma classificao das falcias que seja amplamente aceita. Pirie (2006) fornece a
seguinte proposta de classificao das falcias:
As falcias formais possuiriam erros estruturais lgicos, enquanto as falcias informais
ocorreriam quando aplicamos raciocnios vlidos a termos que no podem receber tal
qualificao. Estas so lingsticas quando admitem ambigidades de linguagem que permitem
erros ou so de relevncia quando omitem algo necessrio para sustentar o argumento,
permitem a influncia de fatores irrelevantes na concluso ou a alterao desta por meio de
suposies injustificadas.
A concepo tradicional que apresentamos at o momento comeou a ser problematizada
com Hamblin (1970). Segundo o autor, a verdade das premissas ou a validade no daria conta
das falcias tradicionais como a pergunta complexa ou a transferncia do nus da prova. As
21
abordagens tradicionais primariam por uma concepo dedutivista e nomolgica da
argumentao. Precisamos de critrios dialticos em vez daqueles alticos ou epistmicos.
Desde Hamblin, houve vrias propostas de tratamento das falcias. Bermejo Luque22
(2014) classifica-as em propostas continustas e revisionistas. As primeiras teriam a pretenso
de remeterem-se ao catlogo tradicional de falcias como uma classificao de primeira ordem
e, em princpio, no partiriam de definies alternativas do conceito de falcia. As teorias
revisionistas, por sua vez, procurariam uma definio tcnica do conceito de falcia que
prescinda do catlogo tradicional.
Dentro do primeiro tipo de proposta, Bermejo Luque menciona o enfoque retrico de
Charles Arthur Willard, a anlise de Walton-Woods, a Pragma-Dialtica e o segundo Walton
e, por ltimo, o terceiro Walton, com o seu modelo de esquemas argumentativos. Entre os
revisionistas, a autora menciona Finocchiaro, com seus seis tipos de falcia, e Ralph Johnson,
com o seu enfoque na Lgica Informal.
Para as finalidades especficas deste texto, iremos contentar-nos com a teoria Pragma-
Dialtica.
3.3.1. A Pragma-Dialtica
A Pragma-Dialtica uma das teorias da argumentao mais conhecidas e relevantes
contemporaneamente. Frans van Eemeren e Grootendorst iniciaram a sua pesquisa na dcada
de 70, publicando o primeiro texto que explicava seus pressupostos filosficos e tericos em
Lngua Inglesa em 1984, com Speech acts in argumentative discussions.
O nome Pragma-Dialtica deve-se ao fato de que a viso argumentativa, nesta teoria,
sempre parte de um discurso argumentativo que toma lugar entre as pessoas envolvidas
lembrando que, em geral, a Lgica Formal, como vimos nos prembulos metodolgicos, trata
apenas da sintaxe e da semntica, o que, em um sentido lingstico estruturalista, poderia ser
entendido como os mbitos paradigmtico e sintagmtico da linguagem a despeito dos seus
usos funcionais e pela razo de ela primar pela resoluo de uma diferena de opinio por
meio de mtodos crticos de razoabilidade aqui, justificar-se-ia o termo dialtica. Visa-se,
portanto, uma conexo entre a dimenso normativa da Dialtica com a descritiva da Pragmtica.
22 A autora no aborda a corrente que Breton & Gauthier (2011) chamam de pesquisa francfona, que abrange autores como Grize e a sua lgica natural; Vignaux e a sua teoria da lgica discursiva; Plantin e a sua teoria lingstica; Windisch e a sua teoria sociolgica; Meyer e a sua argumentao e filosofia da problematicidade; Reboul; Breton; Declercq & Robrieux; Olron e outros.
22
Nesta teoria,
a argumentao vista a partir de uma perspectiva que combina um ngulo comunicativo inspirado por insights pragmticos da teoria dos atos de fala e da anlise do discurso com um ngulo crtico inspirado por insights dialticos do racionalismo crtico23 e de abordagens dialticas formais. (EEMEREN et al., 2014, p.518) (traduo nossa)
A argumentao vista, ainda, a partir do objetivo de resoluo de uma diferena de
opinio por meio de trocas de movimentos argumentativos entre um protagonista que defenda
um determinado ponto e um antagonista que tenha dvidas sobre a aceitao desse
posicionamento ou que, simplesmente, rejeite-o (Eemeren et al., 2014, p.520).
H uma combinao de uma descrio emprica com uma normatividade crtica a partir de
um vis interdisciplinar, aliando Filosofia, Lgica, Comunicao Social, Lingstica,
Psicologia e outras reas do conhecimento. Tendo-se em vista esta pluralidade, a teoria foi
bastante desenvolvida ao longo dos anos. Uma extenso foi feita por van Eemeren, juntamente
com Peter Houtlosser, com a noo de manobra estratgica no intuito de levar em conta o fato
de que, no discurso argumentativo, os arguidores podem estar atentos combinao da sua
efetividade retrica com a sua razoabilidade24 a fim de manter a sua razoabilidade dialtica em
cada passo da argumentao.
No entraremos no mrito de todos os desenvolvimentos promovidos no contexto desta
teoria. Por exemplo, a noo de manobra estratgica que mencionamos no ser importante
para os nossos propsitos.
A argumentao, na Pragma-Dialtica, ser subdividida em quatro estgios: confrontao,
abertura, argumentao e concluso. Estes estgios correspondero s diferentes etapas pelas
quais o argumentador tem de passar, embora no estejam explcitas muitas vezes, a fim de
resolver uma diferena de opinio por uma via razovel.
A discusso seria iniciada no estgio de confrontao. Aqui, h uma diferena de opinio
que manifesta por meio de uma oposio entre um ou mais pontos de vista, assim como a sua
no aceitao. Segundo van Eemeren e Grootendorst, se no houver esta etapa, no h a
necessidade de que exista uma discusso porque no haver diferenas a serem resolvidas.
Na abertura, os papis de protagonista e de antagonista so acordados, assim como os
procedimentos da argumentao. O protagonista assume o compromisso de defender os seus
23 Por racionalismo crtico, entendamos como sendo o favorecimento do propsito metdico de trocas argumentativas em acordo com procedimentos reguladores. 24 Frans van Eemeren (2010, p. 29) faz uma distino entre ser racional e ser razovel. A racionalidade diz respeito ao uso da razo, enquanto a razoabilidade concerne ao uso apropriado da razo.
23
pontos e o antagonista o de responder de maneira crtica ao seu interlocutor. Assim como no
pode haver um jogo entre algum que queira jogar xadrez e outro que queira jogar damas, a
argumentao s poder ocorrer a partir do consenso de regras preliminares.
No estgio da argumentao, o protagonista defende o seu ponto de maneira metdica
contra as respostas crticas do antagonista. Se este ainda no estiver plenamente convencido, a
argumentao deve prosseguir.
Finalmente, no estgio de concluso, o protagonista e o antagonista determinam se o ponto
do primeiro foi defendido adequadamente. Se o protagonista teve de retratar-se do seu ponto, a
diferena foi resolvida em favor do antagonista e vice-versa. Se nenhuma das partes aceita
retratar-se do seu ponto, o trmino no foi alcanado.
Grootendorst e van Eemeren (2004, p. 190) apresentam aquilo que chamam de os 10
mandamentos para discutidores razoveis. Eles so os seguintes:
Mandamento 1 (Regra da liberdade)
Os discutidores no devem inibir um ao outro de fazer avanar o seu ponto de vista ou de
lanar questionamentos sobre um determinado ponto de vista.
Mandamento 2 (Regra da obrigao defesa)
Os discutidores que fazem avanar um dado ponto de vista no devem recusar-se a
defend-lo quando requisitado.
Mandamento 3 (Regra do ponto de vista)
Os ataques aos pontos de vista no devem ater-se a um ponto que no tenha sido realmente
posto pela outra parte.
Mandamento 4 (Regra da relevncia)
Os pontos de vista no devem ser defendidos de modo que no seja argumentativo ou por
argumentaes que no sejam relevantes ao ponto.
Mandamento 5 (Regra da premissa no expressa)
Os discutidores no devem atribuir com falsidade premissas no expressas outra parte,
nem negar a sua responsabilidade pelas suas prprias premissas no expressas.
24
Mandamento 6 (Regra do ponto de partida)
Os discutidores no podem apresentar com falsidade algo como tendo sido aceito no ponto
de partida ou negar com falsidade que algo foi aceito no ponto de partida.
Mandamento 7 (Regra da validade)
O raciocnio que, em uma argumentao, apresentado como sendo conclusivo
formalmente no deve ser invalidado em um sentido lgico.
Mandamento 8 (Regra do esquema de argumentao)
Os pontos de vista no devem ser vistos como defendidos conclusivamente por uma
argumentao que no esteja apresentada em bases de um raciocnio formalmente conclusivo
se a defesa no toma lugar por meios de esquemas de argumentos apropriados que sejam
aplicados corretamente.
Mandamento 9 (Regra conclusiva)
Defesas inconclusivas de pontos de vista no devem levar sustentao destes pontos e
defesas conclusivas de pontos de vista no devem conduzir sustentao de expresses de
dvida concernentes a estes pontos de vista.
Mandamento 10 (Regra do uso da linguagem)
Os discutidores no devem usar quaisquer formulaes que no sejam suficientemente
claras ou que sejam ambguas de maneira confusa e eles no devem interpretar mal
deliberadamente as formulaes da outra parte.
As falcias, a partir da Pragma-Dialtica, no sero mais vistas a partir do aspecto
psicolgico tradicional que mencionamos, associando-as a algum tipo de ardileza detectada no
argumentador, mas a partir da violao de pelo menos uma das regras acima. A falcia ,
portanto, aquilo que obstaculiza a resoluo de uma diferena de opinio em termos dos seus
mritos.
A primeira regra seria violada nos casos, por exemplo, do argumentum ad baculum, do
argumentum ad misericordiam e do argumentum ad hominem. A violao da segunda regra
seria efetuada pela transferncia do nus da prova, por variaes do argumentum ad
25
verecundiam e do argumentum ad ignorantiam. A falcia do espantalho violaria a regra trs. O
quarto mandamento seria violado pelo ignoratio elenchi e pelo argumentum ad populum. A
quinta regra seria violada quando se nega uma premissa que no foi expressa ou por meio da
distoro de uma premissa que no foi expressa. A regra seis seria violada pelo pensamento
circular. A stima, pela afirmao do consequente ou negao do antecedente. A oitava, pela
generalizao apressada, pela falsa analogia e pelo argumentum ad consequentiam. A nona,
pelo argumentum ad ignorantiam e a dcima pela falcia da anfibologia.
Os exemplos acima no so, obviamente, exaustivos, mas apenas ilustram exemplos de
violaes das regras. Os criadores da Pragma-Dialtica apontam como sendo uma vantagem
da sua teoria o fato de que a violao de um conjunto de regras diferentes em estgios diferentes
poderia caracterizar melhor variaes de certas falcias, sendo mais fcil classific-las.
Cremos que a caracterizao que fizemos da Pragma-Dialtica suficiente para que
possamos discutir apropriadamente o que vem a ser a abordagem negativa. Passemos, portanto,
a ela.
26
4.0. A abordagem negativa
At o presente momento, adotamos, por diversas vezes, a metodologia dialtica de
comparar oposies a fim de que possamos ter um melhor entendimento daquilo que
expusemos. No ser diferente nesta seo em que nos deteremos com maior profundidade no
conceito de abordagem negativa da argumentao, aps a sua breve e provisria introduo na
seo anterior.
Restringimo-nos, naquela ocasio, tese de que as argumentaes so interminveis, a
partir da pretenso de que nossos argumentos sejam plausveis e no eliminveis; entretanto, a
abordagem negativa abrange um conjunto muito maior de teses que procuraremos explanar por
meio daquilo que denominaremos de dogmas da abordagem afirmativa.
4.1. Os seis dogmas da abordagem afirmativa Willard van Orman Quine tornou-se famoso pelo seu texto Dois dogmas do empirismo
(QUINE, 2011, p. 37), no qual critica a distino entre analtico e sinttico e apresenta o seu
holismo em detrimento do reducionismo pelo qual se acredita que todo enunciado significativo
pode ser traduzido em enunciados referentes experincia imediata. Inspirados pelo texto de
Quine, cremos que todas as teorias da argumentao de que temos conhecimento pressupem
os dogmas que discutiremos.
importante destacarmos que a abordagem negativa, mais do que uma teoria da
argumentao propriamente, uma metateoria da argumentao. Dito isto, vrios dos dogmas
que apresentaremos, por vezes em verdade, na maior parte das vezes , apenas esto
subentendidos nas teorias argumentativas em vez de estarem explcitos nelas. Esta uma das
razes pelas quais, por exemplo, optamos pela teoria Pragma-Dialtica, pois ela bastante
peremptria ao contrapor-se primeira caracterizao que fornecemos da abordagem negativa,
a saber, o fato de que as argumentaes so teoricamente interminveis lembremo-nos de
que ela estabelece como um dos estgios da argumentao, precisamente, um estgio de
concluso.
Passemos, portanto, exposio dos seis dogmas.
27
4.1.1. O disjuntivismo excludente
A semntica da disjuno na Lgica Clssica sugere que tratamos de uma disjuno
inclusiva: afinal, pode ser o caso de os dois disjunctos serem verdadeiros, o que no poderia
ocorrer no caso de uma disjuno que fosse exclusiva. A despeito disto, por conta do princpio
de no contradio, quando h a disjuno de proposies tidas por contraditrias, no
possvel que os dois disjunctos tenham o mesmo valor de verdade e que, especialmente, para
fins de nossos interesses aqui, sejam simultaneamente verdadeiros.
Falamos, especificamente, do caso de proposies contraditrias porque, correntemente,
nas argumentaes, o oponente tem de levantar objees que possuam alguma relevncia com
o ponto do proponente. Em outras palavras, se eu afirmo que Todo filsofo brasileiro um
comentador (A), alegar que Algum filsofo brasileiro um comentador (I), em particular,
no refutaria25 em absolutamente nada a afirmao inicial, pois sabemos, pelo famoso quadrado
das oposies de Aristteles, que h uma relao de subalternao entre (A) e (I), ou seja, se
(A) verdadeira, ento, (I) verdadeira. No toa que van Eemeren d um destaque para as
divergncias de opinio como condio necessria para as argumentaes: se no h nenhuma
discordncia com o meu interlocutor, parece, em princpio, no haver motivo para que se
argumente.
verdade, entretanto, que as proposies do antagonista no precisam ser apenas
contraditrias com relao quelas do protagonista. A ttulo de exemplificao, pensemos, por
exemplo, no caso em que este retome a tese (A), mas, em contrapartida, aquele afirme que
Nenhum filsofo brasileiro um comentador (E). Sabemos, novamente, pelo quadrado das
oposies, que as duas teses so contrrias e que, embora no possam ser, simultaneamente,
verdadeiras, podem ser ambas falsas.
Assim como a relao de subalternao irrelevante para uma argumentao, a relao de
subcontrariedade parece ser, igualmente, irrelevante. Suponhamos que o protagonista afirme
que Algum homem mortal (I). Se o antagonista afirma que Algum homem no mortal
(O), as duas proposies podem ser, simultaneamente, verdadeiras, mas no podem ser
simultaneamente falsas. Isto ocorre porque, sendo falso que Algum homem mortal (I),
sabemos, pela relao de contraditoriedade, que verdadeiro que Nenhum homem mortal
(E). Pela relao de subalternao, por sua vez, sabemos que seria verdadeiro que Algum
25 Em breve, ficar claro o uso do itlico aqui.
28
homem no mortal (O); entretanto, supusemos, inicialmente, que (O) e (I) eram falsas, o
que uma contradio.
Parece, portanto, que as relaes de oposio entre as proposies dos argumentadores
tm de ser de contraditoriedade ou de contrariedade, pois no parece haver relevncia na
discusso de pontos que possam ser simultaneamente verdadeiros. Classicamente, e
tradicionalmente, a relevncia dos pontos dos debatedores em uma argumentao seria tratada
desta maneira, a partir de um embate entre pontos que no possam ser simultaneamente
verdadeiros; entretanto, a abordagem negativa problematiza esta concepo excludente nas
argumentaes.
H vrias discusses, tanto na Lgica quanto na Filosofia, acerca do conceito de
contradio. Stanisaw Jakowski (1999), com a sua Lgica Discussiva, dizia que duas pessoas
no se contradizem. S haveria a contradio entre os proferimentos de uma mesma pessoa.
Cremos que, se levarmos em conta certas abordagens da Psicologia e da Psicanlise,
dificilmente conseguiramos at mesmo afirmar que as contradies ocorrem entre
proferimentos de uma mesma pessoa.
Em uma perspectiva heraclitiana, se um homem no atravessa o mesmo rio porque ele
mesmo j no ser o mesmo homem, assim como o rio no ser o mesmo rio, de modo anlogo,
um homem no percorre o mesmo argumento pelo fato de ele no ser o mesmo homem e o
argumento no ser o mesmo argumento.
Um modo bastante intuitivo de entender o que Jakowski tem em mente pensarmos nas
rvores de refutao ou nos tableaux. S h contradio em uma mesma haste, mas nunca em
hastes distintas. Poderamos transportar o que dizemos para o caso das argumentaes: quando
exijo que o meu proferimento tenha uma relao de contraditoriedade com aquilo que o meu
interlocutor afirma, estaria exigindo que proposies em hastes distintas26 em um tableau
contradigam-se.
A idia mesma de contradio j est contaminada. Graham Priest (2010) faz referncia a
um texto cannico budista chamado Mijjhima-Nikaya. Neste texto, encontramos o seguinte
dilogo27:
E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado existe aps a morte e que esta viso, isoladamente, verdadeira e todo o resto falso?
No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado existe aps a morte, e que esta viso, isoladamente, seja verdadeira e todo o resto seja falso.
26 A nossa comparao tornar-se- mais clara adiante. 27 Traduo nossa.
29
E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado no existe aps a morte que esta viso, isoladamente, verdadeira e o resto falso?
No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado no existe aps a morte, e que esta viso seja verdadeira e todo o resto falso.
E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado tanto existe como no existe aps a morte e que esta viso, isoladamente, verdadeira, e todo o resto falso?
No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado tanto exista como no exista aps a morte, e que esta viso seja, isoladamente, verdadeira, e todo o resto falso.
E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado nem exista e que tampouco no exista aps a morte e que esta viso seja, isoladamente, verdadeira e todo o resto seja falso?
No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado nem exista e que tampouco no exista aps a morte, e que esta viso seja, isoladamente, verdadeira e todo o resto falso. (2010, p. 25)
Vemos, no dilogo acima, que Buda, ao ser questionado sobre a existncia dos iluminados
aps a morte, prev quatro possibilidades lgicas: ( i ) os iluminados existem aps a morte; ( ii
) os iluminados no existem aps a morte; ( iii ) os iluminados existem e no existem aps a
morte; ( iv ) os iluminados nem existem e nem no existem aps a morte. Para ns, ocidentais,
as duas nicas possibilidades lgicas possveis frente ao questionamento feito a Buda seriam os
casos ( i ) e ( ii ).
O exemplo encontrado na cultura oriental no restrito ao contexto do Budismo. O lgico
nigeriano Jonathan Okeke, em um texto intitulado Construindo a lgica africana como um
algoritmo para o desenvolvimento da frica28, sugere, tambm, que a lgica africana funciona
com bases diferentes daquela ocidental, pautada em princpios lgicos como o princpio da
bivalncia, o princpio da no contradio e o princpio do terceiro excluso.
Outra maneira fcil de verificarmos o que dizemos comparar as lnguas naturais. Em
Lingstica, h discusses sobre lnguas nas quais a sua estrutura sinttica no tocante
contagem no funciona como no Portugus ou nos idiomas mais conhecidos no Ocidente, como
o Alemo, o Ingls, o Italiano, o Espanhol e o Francs. Sabe-se que, em certas tribos indgenas,
os quantificadores generalizados ou modulados, que dizem respeito a expresses como, por
exemplo, muitos funcionam a partir da quantidade dois. No Portugus, diferenciamos, no
mbito do sintagma, um de muitos a partir de dois elementos. Em muitos idiomas, no h esta
28 Texto ainda no publicado cuja traduo foi feita por mim.
30
dicotomia. Mudando-se a semntica dos termos, as inferncias mudam e, assim, os raciocnios
modificam-se.
No sculo XX, vimos o desenvolvimento de inmeros sistemas lgicos. Entretanto,
enquanto no Ocidente os inmeros sistemas no clssicos so vistos como sendo meras
curiosidades formais que, no mximo, servem para resolver alguns problemas tcnicos em reas
como a computao, vemos que o pensamento de civilizaes distintas, de fato, funciona de
maneiras diferentes. O fato que, a despeito dos elementos culturais, temos perspectivas sobre
a realidade, o que abrange nossas perspectivas sobre conceitos e termos, divergentes entre si.
Poderamos dizer que vivemos, hoje, em uma situao que poderia ser descrita como sendo
um pluralismo de pluralismos. Quando falamos de metodologias filosficas, temos as cincias
do esprito; as vrias fenomenologias e existencialismos; a Gestalt e as vrias correntes da
psicanlise e da psicologia profunda; o marxismo, com suas inmeras variaes; a nova retrica
de Cham Perelman; a metodologia dialtica de Louis Lavelle; a lgica da filosofia de ric
Weil; o neopragmatismo; o estruturalismo; o desconstrucionismo; os estudos de simbolismo e
de religies comparadas; a tcnica histrico-meditativa de Eric Voegelin; a historiografia
simblica de Modris Eksteins; a neuro-histria da arte de Baxandall; a filosofia analtica alm
de muitas outras escolas filosficas29.
O pluralismo de metodologias filosficas pode ser visto em todas as reas da Filosofia: na
tica, na Epistemologia, na Filosofia da Matemtica, na Filosofia da Cincia, na Esttica, na
Metafsica, na Filosofia da Linguagem, na Filosofia Poltica etc. . O interessante que a
pluralidade no ocorre apenas por conta das diversas maneiras de enxergar-se e praticar-se a
Filosofia, mas at mesmo em uma mesma escola pode-se encontrar o pluralismo aqui descrito.
O telogo suo Hans Urs von Balthasar em seu livro Truth is Symphonic faz uso de uma
bela imagem para falar sobre a verdade. A palavra sinfonia significa soar junto. Em uma
orquestra, temos vrios instrumentos com partituras distintas. Seus timbres so diferentes. O
modo de serem tocados no o mesmo. As claves nas pautas que sistematizam as notas que so
representadas costumam diferir de instrumento para instrumento, de acordo com a regio aguda
ou grave. Quando tocados isoladamente, por vezes, suas melodias no parecem fazer sentido;
contudo, quando a orquestra pe-se a tocar junta, pode-se ouvir a obra musical em toda a sua
beleza. A teoria negativa da argumentao convida-nos a termos uma atitude semelhante
perante o divergente.
29 Ver CARVALHO (2014).
31
Um caso exemplar do uso da perspectiva argumentativa a partir do uso da disjuno
excludente o caso de Kierkegaard. Em seu livro Either/Or: a fragment of life que, em
alguns idiomas, como no Francs e no Italiano, recebeu o ttulo de Aut-Aut, recorrendo
expresso latina, o original, no Dinamarqus, chama-se Enten-Eller , fala de trs estgios ou
fases da existncia: a esttica, a tica e a religiosa. A primeira seria hedonista e seria relacionada
msica, seduo, ao teatro e beleza. A segunda estaria relacionada obedincia ao dever.
A moral constituiria o primeiro princpio e o fim ltimo da existncia, sendo o matrimnio uma
situao prpria a este estgio. A fase religiosa seria aquela vivenciada por J e por Abrao.
Apesar da preponderncia da viso excludente no decorrer da histria da filosofia,
podemos encontrar uma rara exceo em terras brasileiras. Mrio Ferreira dos Santos afirmava
que a Lgica Formal era uma lgica do aut aut, enquanto a Dialtica seria uma lgica do
tambm, do etiam. Dizia dos Santos que A Lgica Formal esttica; a dialtica dinmica,
como dinmico o esprito humano. A dialtica ultrapassa a si mesma graas ao aumento do
seu campo de ao. (2001, p.185). Mrio dos Santos, em detrimento da dialtica marxista, faz
uso da dialtica de Proudhon, que aquela na qual tese e anttese afirmam-se alternadamente e
no chegam a uma sntese, mas a uma conexio, uma conexo, uma unidade de contrrios.
Posio e oposio seriam complementares e cooperativas.
Lembremo-nos, entretanto, de que destacamos nos prembulos metodolgicos que h uma
tendncia de aproximao entre Lgica Formal e Informal. Apesar da crtica de dos Santos com
relao Lgica Formal, atenuaes de uma relao de oposio como aquela encontrada em
proposies contraditrias segundo a Lgica Clssica j existem em sistemas no clssicos,
como, por exemplo, em sistemas paraconsistentes. A negao paraconsistente uma negao
enfraquecida. De forma semelhante, nas lgicas fuzzy, ou difusas ou nebulosas, pode-se criar
uma hierarquia de negaes enfraquecidas. Mrio dos Santos, apesar da sua crtica, chega a
afirmar, aproximando a Dialtica de raciocnios no clssicos, que o raciocnio dialtico
predominantemente polivalente e que toda lgica polivalente uma espcie de dialtica.
Curiosamente, em contrapartida aos tratamentos no clssicos que mencionamos na
Lgica Formal, as teorias da argumentao tradicionais, ou at mesmo aquelas que surgiram
posteriormente, aps os trabalhos de Toulmin e Perelman na dcada de 50, e de Hamblin na
dcada de 70, aquelas que chamamos de afirmativas, costumam adotar a nfase excludente
presente na Lgica Formal Clssica. A despeito da preferncia por uma disjuno
semanticamente inclusiva, em detrimento de uma excludente, a nfase dada pelas teorias
afirmativas tem sido a da excluso, estando alheias aos desenvolvimentos formais no clssicos.
32
A tentativa da abordagem negativa de procurar enxergar a argumentao de maneira no
excludente e puramente conflitiva remonta a uma das solues de um antigo problema
filosfico. Os antigos cticos, por meio do que ficou conhecido por cinco tropos de Agripa, e
que, posteriormente, Hans Albert (1976, p. 24) chamou de trilema de Mnchhausen,
apresentavam uma argumentao que mostrava que as demonstraes no so passveis de uma
fundamentao.
Sexto Emprico partia de um contexto de deciso tica, no qual se tinha de optar entre os
modelos epicurista e estico, que seriam incompatveis. Um