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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA FÁBIO SALGADO DE CARVALHO A ANTESSALA DA ARGUMENTAÇÃO POR UMA ABORDAGEM NEGATIVA Brasília, DF (2015)

A ANTESSALA DA ARGUMENTAÇÃO - core.ac.uk · falaciloqüência 1 conferida aos argumentos, a propriedade de um argumento ser falacioso ou não, seria dependente do conceito que temos

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  • DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    FBIO SALGADO DE CARVALHO

    A ANTESSALA DA ARGUM ENTAO

    POR UMA ABORDAGEM NEGATIVA

    Braslia, DF

    (2015)

  • FBIO SALGADO DE CARVALHO

    A ANTESSALA DA ARGUMENTAO

    POR UMA ABORDAGEM NEGATIVA

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de mestre em Filosofia. rea de concentrao: Linguagem, Lgica e Filosofia da Mente.

    ORIENTADOR: Julio Ramn Cabrera Alvarez

    Braslia, DF

    (2015)

  • FBIO SALGADO DE CARVALHO

    A ANTESSALA DA ARGUMENTAO

    POR UMA ABORDAGEM NEGATIVA

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de mestre em Filosofia. rea de concentrao: Linguagem, Lgica e Filosofia da Mente.

    ORIENTADOR: Julio Ramn Cabrera Alvarez

    Aprovada em 8 de abril de 2015.

    _____________________________ Prof. Dr. Julio Cabrera

    (Orientador)

    _____________________________ Prof. Dr. Alexandre Costa Leite

    _____________________________ Prof. Dr. Jorge Molina

    _____________________________ Prof. Dr. Olavo Leopoldino da Silva Filho

    (Suplente)

    Braslia, DF

    (2015)

  • Agradecimentos Em primeiro lugar, e acima de tudo, toda honra, glria e louvor sejam dados a Deus, pois

    por Ele e, sobretudo, nEle vivo, movo-me e existo.

    Ao meu pai, por todo o seu apoio incondicional, pela sua amizade e pelos inmeros

    incentivos.

    Danielle, pela sua onipresena quase divina em todos os momentos da minha vida, pelo

    seu amor e pelas suas palavras de sabedoria em momentos de tenso que s ns sabemos.

    Ao meu orientador, o professor Julio Cabrera, pela sua amizade, pela sua pacincia, pela

    ateno criteriosa dedicada a cada pgina, pelas inmeras trocas de e-mails, por ser um dos

    poucos filsofos de verdade que j conheci em carne e osso.

    Ao professor Hubert Cormier pela gentileza para comigo, suportando as minhas aulas no

    seu curso de Introduo Filosofia no meu estgio docente. Muito obrigado mesmo pela

    pacincia.

    Ao professor Olavo da Silva Filho pelos valiosos comentrios na qualificao e por ter

    aceitado ser membro suplente na banca final.

    Ao professor Alexandre Costa Leite, pela ateno na qualificao e na banca final, pela

    sua amizade e por ter sido o grande responsvel por eu estar na Filosofia hoje trabalhando com

    a Lgica, que aprendi a amar por conta dos seus cursos.

    Ao professor Jorge Molina, cujo livro sobre a lgica intuicionista foi estudado nos meus

    anos de graduao, de forma que nunca imaginaria que teria a honra de t-lo na minha banca

    final. Muito obrigado pela ateno dispensada ao meu texto.

    Ao meu diretor espiritual e confessor, o padre Rafael Stanziona de Moraes, por suportar

    meus desabafos, meus inmeros questionamentos e por sempre ter me orientado com tanta

    sabedoria, alm das suas inspiradas meditaes.

    Ao meu padrinho de Crisma, Alexandre Madruga, pelos almoos filosficos, pela sua

    amizade e pelo seu companheirismo.

    Ndia e ao Herivelton, por sempre terem me ajudado com os pepinos burocrticos na

    secretaria.

    Ao maestro Daniel Kacowicz e aos meus colegas do Coro Filarmnico da Catedral, assim

    como aqueles do extinto coro da parquia So Pedro de Alcntara, pelos inmeros momentos

    de beleza. Nietzsche estava certo: definitivamente, sem a msica, a vida seria um erro!

  • Sayonara Lizton, que, gentilmente, prestou-se a ajudar-me com as referncias

    bibliogrficas peo-lhe desculpas, de antemo, por no ter conseguido deix-las impecveis.

    A todo o pessoal do MIB, especialmente aos amigos Rafael Stoll, Evandro Ferreira e Paulo

    Santos, pelas suas contribuies minha biblioteca. Sem vocs, dificilmente, teria condies

    de ter estudado tudo o que estudei para escrever este texto.

  • Sumrio

    1.0. Introduo ...................................................................................................................... 1

    2.0. Prembulos metodolgicos: lgica formal versus lgica informal ............................ 4

    3.0. A abordagem afirmativa (primeira aproximao) ....................................................... 13

    3.1. Por que afirmativa? ........................................................................................................... 13

    3.2. O que um argumento? ..................................................................................................... 15

    3.2.1. O mtodo dos seis passos ............................................................................................... 17

    3.3. As falcias ......................................................................................................................... 19

    3.3.1. A Pragma-Dialtica ........................................................................................................ 21

    4.0. A abordagem negativa .................................................................................................... 26

    4.1. Os seis dogmas da abordagem afirmativa ......................................................................... 26

    4.1.1. O disjuntivismo excludente ............................................................................................ 27

    4.1.2. A univocidade conceitual ............................................................................................... 33

    4.1.3. O essencialismo semntico ............................................................................................. 37

    4.1.4. A neutralidade metalingstica ....................................................................................... 40

    4.1.5. O trmino das discusses como um procedimento algortmico ..................................... 42

    4.1.6. A aplicabilidade universal das ferramentas lgico-argumentativas ............................... 45

    5.0. O fenmeno da verodependncia ................................................................................... 47

    5.1. Cinco teorias da verdade ................................................................................................... 52

    5.1.1. Teorias da verdade enquanto correspondncia ............................................................... 52

    5.1.2. Teorias lgico-lingsticas: a teoria intuicionista da verdade ........................................ 54

    5.1.3. Teorias da verdade enquanto coerncia .......................................................................... 56

    5.1.4. Teoria pragmtica da verdade......................................................................................... 57

    5.1.5. Teorias intersubjetivas: teoria da verdade enquanto consenso ....................................... 59

    5.2. Estudos de caso .................................................................................................................. 62

    5.2.1. Um estudo de caso em Stuart Mill.................................................................................. 62

    5.2.2. Um estudo de caso em Anselmo de Canturia ............................................................... 69

    5.2.3. Um estudo de caso em Blaise Pascal .............................................................................. 72

    5.2.4 Um estudo de caso em Cludio Costa ............................................................................. 74

    5.3. O pluralismo da falaciloqncia ........................................................................................ 75

  • 6.0. O que fazer do diagnstico negativo? (Por uma metafsica gestltica) ...................... 82

    6.1. O princpio hermenutico da caridade ............................................................................... 90

    6.2. Sobre os sofistas: algumas aproximaes e distanciamentos ............................................ 92

    7.0. Apndice A (Um breve percurso pelo conceito de verdade na Filosofia) ................... 95

    8.0. Apndice B (Novas velhas falcias) .............................................................................. 110

    9.0. Referncias ..................................................................................................................... 114

  • 1

    1.0. Introduo O pr-projeto desta dissertao de mestrado recebeu o ttulo de Verdade e argumentao:

    o relativismo dos argumentos falaciosos. Nele, tnhamos a pretenso de mostrar como a

    falaciloqncia1 conferida aos argumentos, a propriedade de um argumento ser falacioso ou

    no, seria dependente do conceito que temos do que vem a ser verdade. Entretanto, percebemos

    que limitvamos nossas pesquisas a um caso particular de um fenmeno mais geral e

    abrangente. O ttulo atual desta dissertao A antessala da argumentao: por uma abordagem

    negativa. A antessala, ou antecmara, um cmodo de espera, um local que precede a uma sala

    principal. A maior parte dos textos sobre a argumentao costuma entrar no mrito das

    argumentaes sem que seus pressupostos sejam questionados de alguma maneira.

    A Filosofia, quando era pensada entre os gregos da Antigidade, era, freqentemente,

    refletida sob os seus aspectos metalingsticos. Falava-se, por exemplo, sobre o papel da

    Filosofia no enfrentamento da morte ou sobre o papel da Filosofia para ter-se uma vida feliz.

    Embora tais aspectos metafilosficos fossem estudados em toda a histria da prtica filosfica,

    eles s voltariam a ter maior relevncia no sculo XX, quando vrias ferramentas da Lgica, da

    Lingstica e do prprio mbito propriamente filosfico, no que concerne s vrias correntes

    filosficas nenhum sculo viu o florescimento de tantas possibilidades metodolgicas ,

    foram desenvolvidas e descobertas.

    Antes de discutirmos, efetivamente, o que vem a ser esta antessala da argumentao de

    que falamos, so necessrios alguns apontamentos metodolgicos. No contexto brasileiro, a

    Lgica Informal ainda um campo bastante desconhecido e inexplorado que raramente

    estudado nos cursos de Filosofia. bastante provvel, portanto, que o leitor faa, ao longo da

    leitura deste trabalho, uma srie de associaes Lgica Formal que atrapalhar um bom

    entendimento do projeto de abordagem que propomos no presente texto. A fim de dirimir

    possveis desentendimentos, comearemos com uma discusso acerca das distines entre a

    Lgica Informal e a Lgica Formal, esclarecendo que teremos em mente, a todo momento,

    primordialmente, o primeiro tipo de abordagem da Lgica, embora acreditemos que a ciso

    1 O termo que, provavelmente, soaria de modo mais natural seria falaciosidade; entretanto, ele no se encontra registrado no vocabulrio ortogrfico do nosso idioma VOLP. Em busca de um substantivo para referirmo-nos s falcias, encontramos o termo falaciloqncia, que, embora no seja corrente na literatura em Lngua Portuguesa sobre o assunto, encontra-se registrado no referido vocabulrio ortogrfico. Tendo em vista a existncia de um termo que j satisfaz as nossas pretenses, evitaremos um neologismo neste caso.

  • 2

    entre as duas reas seja cada vez mais tnue e que no se possa ser um lgico informal hoje

    ignorando-se completamente o campo formal2.

    Aps alumiarmos as bases metodolgicas que usaremos, entraremos no mrito do que

    estamos denominando de abordagem afirmativa. Introduziremos alguns conceitos importantes

    em Teoria da Argumentao, no intuito de familiarizar o leitor com a terminologia corrente, a

    partir da perspectiva usual dada argumentao na literatura. Deter-nos-emos, especialmente,

    na teoria desenvolvida por van Eemeren e Grootendorst chamada Pragma-Dialtica. Nossa

    escolha deve-se ao fato de ser uma das teorias mais recentes que foi bastante desenvolvida nas

    ltimas dcadas, alm de ser bastante claro como ela exemplifica aquilo que estamos chamando

    de abordagem afirmativa. Poderamos, em princpio, ter escolhido outra teoria da

    argumentao. A exposio desta teoria ter por meta, principalmente, a clareza quanto nossa

    proposta de uma nova abordagem.

    A abordagem que estamos chamando de negativa foi inspirada por aquilo que Julio

    Cabrera chama de lgica negativa, que j vinha sendo prenunciada por diversas idias presentes

    em cursos e em seus escritos sobre Lgica e Filosofia da Linguagem, alguns deles publicados,

    como Margens das filosofias da linguagem (2009), sendo outros inditos. Recentemente, de

    maneira mais explcita, podemos encontr-la em seu artigo Problemas bioticos persistentes

    entre la lgica y la tica: contribuicin para un abordaje negativo de la argumentacin en

    Biotica (2014). Buscaremos desenvolver esta abordagem neste trabalho, indo alm daquilo

    que Cabrera j caracterizou sobre a abordagem.

    Se, nas abordagens afirmativas, h o pressuposto de que os argumentadores enfrentam-se

    e que um argumento predomina sobre o outro, na abordagem negativa, ter-se- o entendimento

    de que todos argumentos apresentam as suas fraquezas e que sempre h a possibilidade de

    contra-argumentao. A existncia desta, portanto, no implicar a refutao categrica do

    argumento.

    Percorrendo a histria da Filosofia, j poderamos desconfiar do entendimento afirmativo.

    No raro que vrias escolas filosficas tidas por ultrapassadas ou refutadas ganhem fora em

    momentos futuros, embora seja verdadeiro que, muitas vezes, tais resgates acabem dando outra

    roupagem aos pensamentos filosficos do passado. Quanto a esta recuperao de escolas

    filosficas, discutiremos em que medida a abordagem negativa recuperaria o pensamento dos

    2 Quanto a isto, Mark Weinstein e Hunter College (1981) j falavam sobre a importncia da Lgica Formal em cursos de Lgica Informal. Girle (1988) d exemplos que mostram que possvel raciocinar usando os dois mbitos e Donald Hatcher (1999) chega a defender que a Lgica Formal uma ferramenta essencial ao pensamento crtico.

  • 3

    sofistas, que, ao longo da histria do Ocidente, em geral, desde Scrates, sempre foram vistos

    com maus olhos.

    Esta perspectiva negativa, como veremos, mudar uma srie de pontos que esto,

    aparentemente, bem estabelecidos pelas abordagens afirmativas. Isto ficar claro quando

    tratarmos dos dogmas da abordagem afirmativa, que sero os pressupostos comumente

    adotados nela sem qualquer aprofundamento crtico sobre eles.

    Uma vez que tenhamos discutido as diferenas entre uma abordagem afirmativa da

    argumentao e uma abordagem negativa, iremos focar-nos no fenmeno que estamos

    chamando de verodependncia, que seria, como diz a prpria aglutinao na palavra, a

    dependncia que as argumentaes tm do conceito de verdade.

    Os filsofos tm concebido o conceito de verdade das maneiras mais diversas possveis.

    O tema tem sido recorrente entre eles, tendo um papel crucial nas argumentaes. Escolheremos

    cinco teorias representativas a fim de exemplificarmos como as argumentaes dependem, na

    prtica, tanto em argumentaes filosficas quanto na conferncia de falaciloqncia, do

    conceito de verdade que for assumido.

    Aps termos desenvolvido o que j explanamos at o momento, poderemos questionar-

    nos sobre quais seriam os tratamentos, curas ou posturas diante do diagnstico apresentado.

    Embora haja muitas posturas possveis a serem tomadas, at por conta da prpria abordagem

    negativa, que no excludente, forneceremos as bases daquilo que chamamos de metafsica

    gestltica. Discutiremos, ainda, como a abordagem negativa pode oferecer uma justificativa

    natural para o uso do princpio hermenutico da caridade, eliminando-se, assim, o carter ad

    hoc freqentemente denunciado na literatura em contextos de abordagens afirmativas.

    Veremos, ainda, como as alternativas de posturas que apresentamos inibem, so indiferentes ou

    propiciam o uso do princpio de caridade.

    Por ltimo, apresentaremos dois apndices. No primeiro, fazemos um breve percurso

    histrico no que tange ao conceito de verdade na Filosofia; no segundo, apresentaremos

    algumas falcias que pudemos encontrar nas argumentaes, mas que no vimos sendo

    adequadamente expostas na literatura.

  • 4

    2.0. Prembulos metodolgicos: lgica formal versus lgica informal

    So quatro as principais motivaes que nos levam a tecer algumas consideraes de

    cunho metodolgico antes de comearmos nossas discusses efetivamente. A primeira delas

    diz respeito ao atual quadro referente aos estudos de Lgica Informal no Brasil. A rea muito

    pouco estudada neste pas, principalmente quando temos em vista os departamentos de

    Filosofia. Quando se encontra algum estudo sobre o assunto, geralmente, ele est atrelado a

    estudiosos de Letras, especialmente aqueles que estudam a Anlise do Discurso ou a

    Pragmtica, de Direito, particularmente na rea de Hermenutica Jurdica, ou, ainda, de

    Comunicao. Mesmo nestas trs reas, o enfoque costuma ser dado Nova Retrica de Cham

    Perelman3 (2005).

    A segunda motivao no se restringe apenas ao fato de que a Lgica Informal um campo

    pouco estudado entre os filsofos brasileiros, mas ao prprio mercado editorial no nosso

    idioma. A ttulo de exemplo, citemos os nomes dos autores associados fundao do

    movimento da Lgica Informal no fim da dcada de 704 na Amrica do Norte (EEMEREN et

    al., 2014, p.373), a saber, Michael Scriven, Trudy Govier, David Hitchcock, Perry Weddle,

    John Woods, Ralph Johnson e Anthony Blair. Nenhum destes autores possui textos da rea

    traduzidos para o Portugus.

    Douglas Walton, que pode ser considerado um dos nomes mais importantes do campo

    hoje, que possui mais de 40 livros publicados, s tem apenas um livro traduzido para o nosso

    idioma, a saber, o livro Lgica Informal (2006), publicado pela Martins Fontes. Poderamos

    mencionar, ainda, uma das principais teorias da argumentao, que a Pragma-Dialtica, que,

    embora tenha sido criada em meados da dcada de 80 por van Eemeren e Grootendorst (2004),

    no teve nenhum dos seus textos traduzidos para o Portugus.

    3 Luis Vega Ren (2007, p. 297) trata a retrica como sendo uma das perspectivas possveis de estudar-se a Teoria da Argumentao, sendo a Lgica Informal, ramo que Ren chama, tambm, de perspectiva dialtica, uma das possibilidades, ao lado da perspectiva lgica e daquela promovida pela Anlise do Discurso, na linha de Oswald Ducrot, Jean Claude Anscombe, Teun A. van Dijk, entre outros esta ltima linha no est no livro mencionado de Ren, mas foi acrescida em uma lista de indicaes bibliogrficas compilada pelo autor como extenso atualizada da bibliografia que ele oferece ao final do livro de 2007. 4 importante destacar que houve precursores como Toulmin, na dcada de 60, ou Hamblin, na dcada de 70, e que se pode encontrar desenvolvimentos que seriam escopo deste movimento norte-americano ao longo de toda a histria, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Quando lemos os dois volumes de Stcherbatsky (2008) dedicados lgica budista, por exemplo, podemos encontrar uma srie de abordagens que seriam tidas hoje por informais. O prprio Aristteles (2010) dedicou um volume inteiro s Refutaes sofsticas.

  • 5

    A terceira diz respeito ao fato de que a disciplina de Lgica costuma fazer parte dos

    currculos dos cursos universitrios de Filosofia; contudo, ela, habitualmente, abrange apenas

    a Lgica Formal ou, quando apresenta discusses sobre o que seria abarcado pela Lgica

    Informal como a entendemos hoje, breves discusses sobre as falcias do ponto de vista

    tradicional, pr-Hamblin5 (1970). Por conta disto, bastante provvel que o leitor treinado em

    Lgica Formal traga consigo uma srie de pressupostos que poder dificultar o entendimento

    daquilo que propomos nesta dissertao.

    De fato, e aqui expomos a quarta e ltima motivao, no processo de qualificao de uma

    verso preliminar e parcial do presente texto, a banca avaliadora fez uma srie de

    questionamentos que seriam perfeitamente evitados se houvesse uma introduo como esta que

    esclarecesse que temos em vista aqui sempre a perspectiva da Lgica Informal, embora seja

    inevitvel que dialoguemos com a Lgica Formal veremos que, embora, na sua origem, a

    Lgica Informal tenha surgido como uma alternativa quela Formal6, no h uma excluso

    completa do mbito formal.

    Se, contudo, pretendemos comparar a Lgica Formal Lgica Informal, cabe-nos saber o

    que cada um desses tipos de Lgica . Comecemos com o primeiro tipo. Poderamos pensar

    que, por ser uma rea mais ou menos bem estabelecida, e que remonta, tradicionalmente, a

    Aristteles (sc. IV a.C.), embora acreditemos que esta atribuio deve-se a uma cegueira dos

    ocidentais em acreditarem em um milagre grego a despeito de tudo aquilo que ocorria no resto

    do mundo cremos que o chins Mozi (sc V a.C.) ocuparia este papel , haveria clareza

    sobre o que vem a ser a Lgica Formal. Na verdade, a expresso bastante recente na histria

    quando se tem em vista que a rea remonta, pelo menos, ao sculo IV antes de Cristo.

    Jean-Yves Bziau (2008) lembra-nos, apelando ao Abriss der Geschichte der Logik, de

    Heinrich Scholz, datado de 1931, de que a expresso surgiu, ironicamente, com Kant, na sua

    Crtica da Razo Pura (2001). O carter irnico estaria no fato de que o filsofo alemo

    decretou, categoricamente, no prefcio segunda edio da referida obra (1787), que a lgica

    de sua poca j estaria acabada e perfeita, sendo que, um sculo depois, aps Boole e Frege, a

    lgica observaria um desenvolvimento de enormes propores nunca vistas antes na histria e

    a expresso Lgica Formal seria atribuda, muitas vezes, precisamente, a estes

    desenvolvimentos contemporneos.

    5 Falaremos melhor sobre o assunto quando dissertarmos sobre as falcias ao apresentarmos a abordagem afirmativa. 6 Scriven (1980) chega a dizer que A emergncia da Lgica Informal indica o fim do reino da Lgica Formal (traduo nossa).

  • 6

    O filsofo e lgico franco-suo alerta-nos para o fato de que, longe de haver um consenso

    sobre a expresso, h muita ambigidade e confuso no tocante ao seu significado e que tal

    expresso estaria hoje, inclusive, antiquada afirmao da qual discordamos: bastaria

    observar os ttulos de artigos, de livros e de nomes de disciplinas ministradas nos diversos

    departamentos de Filosofia. A despeito desta discusso, ignoraremos os embates sobre uma

    definio precisa acerca da expresso Lgica Formal apelando s motivaes que apresentamos

    no incio: o fato de que a literatura em Lngua Portuguesa sobre Lgica seja, majoritariamente,

    de natureza formal e o fato de que os estudantes, na sua formao, estudem a lgica de Frege,

    posteriormente sistematizada por Russell e Whitehead nos volumes do Principia (1910, 1912,

    1913), em detrimento de todos os autores associados Lgica Informal, permite-nos pressupor

    que o leitor ter uma noo razovel sobre o que vem a ser a Lgica Formal. Passemos, portanto,

    definio do que vem a ser a Lgica Informal.

    Ralph H. Johnson, em seu artigo The relation between formal and informal logic (1999),

    apresenta um quadro catico no tocante ao entendimento do que viria a ser a Lgica Informal,

    a ponto de o lgico Jaako Hintikka (1989), simplesmente, negar a existncia de uma teoria dos

    raciocnios informais. Johnson apresenta-nos uma srie de sete definies distintas que

    poderamos encontrar na literatura especializada. Ryle (1954) diria que a Lgica Informal

    refere-se lgica de conceitos substantivos, como tempo e prazer, em oposio lgica de

    conceitos como conjuno e disjuno, tratando, portanto, daquilo que Wittgenstein (2009)

    chamaria de gramtica profunda, ou seja, o uso prtico de uma expresso em um dado jogo de

    linguagem.

    Uma segunda definio possvel relacionaria a Lgica Informal ao estudo de falcias

    informais (CARNEY; SHEER, 1964; KAHANE, 1971; WOODS, 1980). Uma terceira diria

    que a rea trata da Lgica Formal sem o seu formalismo (COPI, 1996); uma quarta, que a tarefa

    da Lgica Informal seria a de ser uma mediadora entre a Lgica Formal e o raciocnio em

    linguagem natural (GOLDMAN, 1986; WOODS, 1995). Uma quinta concepo, encontrada

    em McPeck (1981), Siegel (1988) e Weinstein (1994), diria que a Lgica Informal uma

    epistemologia aplicada; uma sexta, encontrada em Finocchiaro (2005), que a Lgica Informal

    uma teoria do raciocnio e, finalmente, Scriven (1993) dir que a Lgica Informal uma

    metateoria do Pensamento Crtico7.

    7 Em vrios dos seus textos, Ralph Johnson insiste que a Lgica Informal e o Pensamento Crtico no so, embora muitos tracem uma relao de sinonmia entre os dois nomes, a mesma coisa. Ele explica que a Lgica Informal um campo de investigao, enquanto o Pensamento Crtico denotaria uma virtude intelectual ou moral, um ideal educacional que pode ser enriquecido pela Lgica Informal para mais detalhes, ver (JOHNSON, 1996, p.213).

  • 7

    No tocante s definies, Johnson comenta que h certa incompatibilidade entre elas,

    dizendo: Se Ryle est certo, ento, fica difcil ver como as outras vises estariam corretas. Se

    McPeck, Siegel e Weinstein esto certos, fica difcil ver como Goldman poderia estar certo.

    (JOHNSON, 1999, p. 267) (traduo nossa).

    Johnson no pra nestas definies. Para piorar a situao, Johnson comenta, ainda, duas

    outras definies. Govier (1987) diria que a Lgica Informal seria a arte da avaliao de

    argumentos, enquanto Walton (1990) defenderia que a Lgica Informal o campo que lida com

    os aspectos pragmticos da argumentao.

    O prprio Johnson, em um artigo escrito em parceria com Blair (2000), em um texto mais

    recente que os citados at aqui, define o campo a partir da anlise tripartite de Barth e Krabbe

    (1982) do conceito de forma lgica8: A Lgica Informal designa o ramo da Lgica cuja tarefa

    desenvolver padres no formais, critrios e procedimentos para a anlise, interpretao,

    avaliao, crtica e construo da argumentao na linguagem do dia a dia (JOHNSON;

    BLAIR, 2000, p. 94) (traduo nossa).

    O leitor, neste momento, tendo-se por base a variedade de definies apresentada, pode

    estar mais confuso do que antes de ler este texto. Em vez de discutirmos cada uma das

    definies acima, optaremos pelo mtodo dialtico. Olavo de Carvalho (2006 , p. 34) explica

    que Quando no possumos os princpios, a nica maneira de busc-los a investigao

    dialtica que, pelo confronto das hipteses contraditrias, leva a uma espcie de iluminao

    intuitiva que pe em evidncia esses princpios.. Seguindo esta metodologia, buscaremos

    esclarecer o que, realmente, vem a ser a Lgica Informal a partir da discusso de quatro tenses.

    ( i ) Linguagens formais versus linguagens naturais

    Para compreendermos a proposta da Lgica Informal, crucial que entendamos a distino

    entre linguagens formais e linguagens naturais. As linguagens formais tambm so chamadas

    de linguagens artificiais. Elas so assim chamadas por serem criaes humanas, contrastando

    com idiomas como o Portugus ou o Ingls. Chomsky diria que possumos algum tipo de

    mecanismo inato que instanciado nos diversos idiomas. Por exemplo, nascemos com uma

    habilidade lingstica que ser desenvolvida de acordo com o ambiente social em que eu estiver.

    8 Sem entrarmos no mrito da distino de Krabbe e de Barth, Johnson e Blair querem dizer, meramente, que no-formal est em oposio viso logicista, via Russell, de que a forma lgica conteria a chave para o entendimento da estrutura de todos os argumentos.

  • 8

    Se eu nascer em uma famlia de falantes da Lngua Portuguesa, ser este idioma que

    desenvolverei em detrimento do Chins e outros idiomas e vice-versa.

    A aproximao ou o distanciamento entre as lnguas naturais e as linguagens formais a

    distino entre lngua e linguagem, que pode ser bastante importante em certos contextos da

    Lingstica, no to importante aqui dependente de certos pressupostos tericos. A ttulo

    de exemplo, Richard Montague dizia que no h nenhuma diferena essencial entre as lnguas

    naturais e as linguagens formais (PEREIRA, 2001). Para Montague, a principal diferena que

    existiria seria referente ambigidade: as linguagens formais seriam precisas e claras, enquanto

    as linguagens naturais seriam intrinsecamente ambguas.

    Na Lingstica, as diferentes abordagens da gramtica dependero da relao existente

    entre os dois tipos de linguagem. Os funcionalistas, por exemplo, defendero uma ciso entre

    os dois mbitos que um gerativista ou um adepto da Semntica Formal crer ser inexistente.

    importante que situemos historicamente, neste momento, o surgimento da Lgica

    Informal. As lgicas temporais comearam a ser trabalhadas na dcada de 60 a partir dos

    trabalhos de Prior9. As chamadas lgicas fuzzy, nebulosas ou difusas, surgiram, primeiramente,

    na forma de um tipo de teoria dos conjuntos. A conhecida Teoria da Possibilidade de Zadeh s

    foi ser desenvolvida no final da dcada de 70. A Lgica Linear de Girard foi construda no fim

    da dcada de 80; a Lgica Relevante de Belnap e Anderson surgiu em 1975 e as lgicas no-

    monotnicas, que aproximam bastante os raciocnios formais daqueles que empreendemos no

    cotidiano, s comearam a receber ateno no final da dcada de 80. Lembremos, tambm, que

    o tratamento formal dado aos argumentos feito por Dung foi empreendido apenas em 1995.

    Podemos ver, portanto, que muitos desenvolvimentos da Lgica Formal que poderiam atenuar

    as crticas dos lgicos informais por procurarem aproximar-se das linguagens naturais esto

    ocorrendo no mesmo momento em que os lgicos informais propunham-se a desenvolver uma

    nova metodologia.

    Trazemos os fatos histricos lembrana do leitor para dizer que o quadro insatisfatrio

    que aquele conjunto de investigadores norte-americanos observou na Lgica Formal

    modificou-se bastante com o passar do tempo. Os prprios mtodos formais que passaram a ser

    aplicados por linguistas estavam comeando a surgir na dcada de 70.

    9 Quando temos em vista este desenvolvimento em particular, o que Ryle afirma, como vimos na pgina 6, sobre os conceitos substantivos perde totalmente o sentido.

  • 9

    ( ii ) Mau raciocnio versus bom raciocnio

    Nesta tenso, diferentemente da anterior, no estamos abordando algo que seja

    contemplado pela Lgica Formal em detrimento de algo que seja ignorado ou que receba menor

    ateno na Lgica Informal. O ponto aqui que a distino entre um mau raciocnio e um bom

    raciocnio algo que tambm problematizado no mbito Informal, enquanto se trata de algo

    bastante claro quando estamos no ambiente formal.

    A Lgica Formal, de modo geral, preocupa-se com a noo de validade e de demonstrao.

    bastante fcil reconhecer quando um raciocnio possui algum erro formal. A noo de falcia

    ganha interesses tericos, gerando inmeras discusses, quando estamos falando de argumentos

    reais, como diria Alec Fisher (2008).

    Um contraste evidente que os estudantes de Lgica notam nos seus cursos est nos

    exemplos que os livros didticos introdutrios costumam oferecer por sinal, uma das

    caractersticas marcante do movimento surgido na dcada de 70 foi a de fazer uso de exemplos

    concretos encontrados nas discusses polticas e nos diversos contextos do dia a dia10. Enquanto

    os argumentos apresentados em livros de Lgica Formal so quase que infantis o estudante

    logo percebe que nunca ir deparar-se com aqueles exemplos na realidade , os argumentos

    reais, muitas vezes, esto incompletos, perpassados por figuras de linguagem, precisando passar

    por um processo de reconstruo.

    verdade que, no mbito formal, poderamos apontar a existncia dos entimemas, que

    seriam argumentos com premissas ocultas, mas a relao entre implcitos e explcitos no mbito

    formal e no mbito informal parece ser bastante distinta. Podemos ter vrias apresentaes de

    um sistema formal. Podemos apresent-lo ao estilo de Hilbert, por meio de sistemas

    axiomticos, podemos optar pelo estilo Gentzen, por meio da deduo natural ou do clculo de

    seqentes, podemos escolher a resoluo de Robinson ou outro mtodo do ponto de vista da

    Teoria da Prova. Qualquer que seja o modo de apresentao escolhido, as regras que so usadas

    nas demonstraes so claramente explicitadas e as frmulas consideradas bem formadas na

    sua linguagem so definidas de maneira recursiva. O mbito informal, por sua vez, est sujeito

    a todo tipo de imprevisto.

    10 Nesse sentido, o livro de Ralph Johnson e Blair, chamado Logical Self-Defense, de 1977, costuma ser apontado como sendo pioneiro.

  • 10

    Poderamos mencionar, ainda, o fato de que sistemas formais lidam, em grande parte, com

    dedues11.

    ( iii ) Sintaxe e semntica versus pragmtica e retrica

    Charles Morris (1985), inspirado nos trabalhos de Charles Peirce, cunhou o termo

    pragmtica, dividindo o estudo da linguagem nos mbitos sinttico, semntico e pragmtico.

    Sabemos, por meio das inmeras discusses em Filosofia da Linguagem, Filosofia da

    Lingstica, e nas prprias reas da Lgica e da Lingstica, que no h critrios muito bem

    estabelecidos que forneam uma fronteira ntida entre estes mbitos temos aqui o que se

    costuma chamar de problema da interface entre os mbitos da linguagem.

    John Langshaw Austin (1990) define os conhecidos atos de fala, dividindo-os em atos

    locucionrios, ilocucionrios e perlocucionrios. Os primeiros, dialogando com a subdiviso de

    Morris, estariam relacionados sintaxe e semntica. Os atos ilocucionrios estariam

    relacionados s intenes dos falantes, enquanto os atos perlocucionrios diriam respeito aos

    efeitos nos falantes.

    O desenvolvimento da Lgica Moderna12 deu-se, primeiramente, no mbito sinttico. O

    programa de Hilbert, que promoveu uma srie de avanos do ponto de vista da Teoria da Prova,

    era de base sinttica. Os estudos semnticos na Lgica ganharam impulso com o trabalho de

    Tarski e, principalmente, com o trabalho de Kripke na Lgica Modal. Temos, hoje, os campos

    da Teoria da Prova e da Teoria dos Modelos, abarcando, respectivamente, sintaxe e semntica,

    como reas muito bem estabelecidas.

    Os vrios resultados de metalgica, que foi outro campo desenvolvido no sculo XX, como

    os famosos teoremas de completude e de corretude, tratam dos aspectos sintticos e semnticos

    de sistemas lgicos. A relao de conseqncia lgica, a partir da diviso de Morris, possui

    uma contraparte sinttica e uma semntica, mas no h uma contraparte pragmtica.

    Quando falamos dos atos de fala de Austin, Searle e Vanderveken (1985) tentaram uma

    formalizao dos atos ilocucionrios; contudo, sua tentativa foi alvo de muitas crticas. Outros

    11 H tratamentos formais de inferncias que no sejam dedutivas, como a que Atocha Aliseda-Llera (1997) faz das abdues, por exemplo, contudo, em geral, a deduo costuma ser o maior enfoque dos lgicos formais. 12 interessante notar que o que se costuma chamar de Lgica Moderna nada tem a ver com o perodo Moderno, mas, na verdade, diz respeito lgica desenvolvida contemporaneamente a partir de Frege, Boole e de De Morgan. A Lgica na Modernidade ainda menos conhecida do que aquela praticada no medievo. A prpria terminologia sugeriria que, aps a escolstica medieval, a Lgica teria entrado na Modernidade com os lgicos supracitados.

  • 11

    autores como Dalla Pozza (1995) tm tentado aproximar a pragmtica das linguagens formais,

    assim como estudiosos da chamada Pragmtica Formal tm tentado aproximar os mtodos

    formais da Pragmtica.

    A despeito dessas tentativas de aproximao, parece-nos que Walton estava certo ao

    perceber que a Lgica Informal teria por escopo o uso que os falantes fazem dos argumentos.

    ( iv ) Forma versus contedo

    Vimos, a partir da definio fornecida por Johnson e Blair, que a Lgica Informal seria

    no formal no sentido de negar que a mera estrutura dos argumentos, uma herana aristotlica,

    forneceria a principal informao para avali-los.

    A Lgica Informal, embora, de fato, grosso modo, d mais importncia aos contedos,

    busca estabelecer critrios gerais, como, por exemplo, o tratamento de esquemas

    argumentativos.

    Alguns crticos da Lgica Informal afirmam que a Lgica tem a misso de procurar a maior

    generalidade possvel e que tal ramo contemporneo escaparia desta meta. Quando temos em

    vista, contudo, as possibilidades de inferncias, poderamos defender que, ao focar-se na

    deduo, esquecendo-se dos outros tipos de inferncia, o lgico formal estaria lidando com um

    caso particular de algo que, de fato, mais geral, a saber, a relao de conseqncia lgica entre

    um conjunto de premissas e um conjunto de concluses.

    Por outro lado, poderamos argumentar, ainda, que vrios itens que, ao longo da histria,

    foram considerados como sendo meros contedos que deveriam ser abstrados no trabalho do

    lgico passaram a ganhar destaque em contextos de lgicas no clssicas. As lgicas temporais

    ou a lgica da relevncia que j mencionamos seriam exemplos clssicos.

    Em todas as tenses que vimos at aqui, pudemos observar que no h uma linha divisria

    ntida de separao entre a Lgica Formal e a Informal. Embora, como dissemos anteriormente,

    mencionando uma fala de Scriven, na sua origem, a Lgica Informal tenha surgido em

    permanente desacordo com a Lgica Formal, cremos que h uma crescente aproximao entre

    as reas.

    Boa parte da histria da Filosofia Analtica confunde-se com a histria da prpria Lgica

    Moderna. Russell, que foi um dos primeiros representantes desta metodologia filosfica, tinha

    formao em Filosofia e Lgica e foi responsvel tanto pela criao da famosa anlise, a partir

  • 12

    dos seus trabalhos sobre a teoria das descries definidas, quanto pela sistematizao da Lgica

    Moderna com Whitehead.

    Wittgenstein foi um divisor de guas na histria da Filosofia Analtica: o primeiro, do

    Tractatus, influenciou enormemente o Positivismo Lgico do Crculo de Viena; o segundo, das

    Investigaes, a chamada Escola de Oxford. Enquanto o primeiro era formalista, o segundo

    focava-se na linguagem ordinria. Durante muito tempo, ao dizer-se que se era um filsofo

    analtico, perguntava-se a sua procedncia, sobre se era de ordem formalista ou da linguagem

    ordinria. Com o passar do tempo, a distino enfraqueceu-se a ponto de, hoje, no fazer mais

    sentido no meio analtico.

    Cremos que os diversos desenvolvimentos da Lgica, com a proliferao de diversos

    sistemas no clssicos, foram um fato determinante para que a distino desaparecesse. A

    mesma tendncia parece existir entre os adeptos da Lgica Formal e da Informal.

  • 13

    3.0. A abordagem afirmativa (primeira aproximao)

    3.1. Por que afirmativa? Julio Cabrera, com a sua tica Negativa, afirma que as ticas, antes da sua abordagem, de

    modo geral, tiveram o costume de partir do pressuposto de que a vida possui um valor e que o

    papel da tica , portanto, indicar o que deve ser feito com a vida partindo-se dessa

    pressuposio. Para citarmos como exemplo trs tipos de sistemas ticos, assim como trs

    autores representantes destes sistemas, tenhamos em mente a tica das virtudes aristotlica, a

    tica deontolgica de Kant e a tica conseqencialista utilitarista de Stuart Mill.

    Quando Aristteles, por meio da aplicao da sua epistemologia, em que a forma do objeto

    conhecido modifica a forma de quem conhece, discute a aquisio das virtudes por meio do

    hbito, ele no discute, em nenhum momento, o valor da vida que ser ou no virtuosa. Kant,

    ao definir as vrias formulaes do seu imperativo categrico, procurando tornar a ao tica

    semelhante s leis da fsica, sendo, portanto, universalizveis, no se pergunta sobre os

    fundamentos valorativos da vida que autnoma por meio do fazimento de leis para si mesma.

    Nada ser diferente no pensamento de Mill, que fala sobre a maximizao do prazer humano

    sem problematizar a vida em si que poder ou no ser prazerosa. Para Cabrera, o valor da vida

    deve ser discutido no mbito de um sistema tico antes mesmo que se forneam critrios sobre

    como se deve viver.

    O mesmo movimento dar-se- aqui, mas no campo da Lgica Informal. Se, na tica, o

    valor da vida nunca era questionado, buscando-se apenas se saber o que deveria ser feito com

    ela, na argumentao, haver uma srie de pressupostos, que chamaremos, mais adiante, de

    dogmas, que sero tidos como uma espcie de axiomas nas diversas teorias argumentativas,

    sem nenhuma reflexo sobre eles.

    No seu artigo intitulado Problemas bioticos persistentes entre la lgica y la tica:

    contribuicin para un abordaje negativo de la argumentacin en Biotica, Julio Cabrera afirma

    que, na concepo afirmativa, cada parte da disputa apresenta os seus argumentos e supe que

    existem mtodos lgicos disponveis que permitem determinar o resultado objetivo e imparcial

    da disputa, estabelecendo um ganhador e um perdedor. (CABRERA, 2014, p. 4) (traduo

    nossa). Na abordagem negativa, por sua vez,

  • 14

    para cada argumentao, existe sempre pelo menos uma contra-argumentao razovel, o que torna a argumentao virtualmente interminvel. De tal modo, nunca ganhamos ou perdemos uma argumentao em termos absolutos, mas to-somente situamos o nosso argumento em uma rede holstica de argumentos, com a pretenso de que ele seja considerado plausvel ou no eliminvel. (CABRERA, 2014, p. 4) (traduo minha)

    Cabrera (2014, p. 5) aponta Leibniz como sendo aquele que talvez tenha inaugurado a

    abordagem afirmativa na lgica. Em 1685, no seu The art of discovery, Leibniz (1989) fala

    sobre uma linguagem que seria o maior instrumento da razo e que, quando houver disputas

    entre as pessoas, poderemos, simplesmente, dizer: calculemos, sem perda de tempo, e vejamos

    quem est correto. (The Art of Discovery (1685); C, 176 (W, 51))13.

    Na verdade, em primeiro lugar, cremos que, historicamente, Scrates, ou Plato14, poderia

    ser apontado como sendo o primeiro afirmativo ao contrapor-se aos sofistas. A crtica feita aos

    sofistas era a de que eles preferiam a doxa em detrimento da aletheia, apresentando como

    verdadeiro aquilo que apenas verossmil, sendo o conhecimento distinto da mera promoo

    de uma opinio15.

    De qualquer modo, mesmo ficando com Leibniz, o filsofo escreveu, com vinte anos de

    idade, o seu Dissertatio de arte combinatria que inspirado no catalo Raimundo Llio (c.

    1232 1316) de maneira explcita. Umberto Eco (2002, p. 77) explica o projeto luliano da Ars

    magna, por meio do qual o Beato concebia uma linguagem perfeita que converteria os infiis16.

    Reza a lenda que Raimundo Llio teria morrido martirizado pelos sarracenos, aos quais ele

    apresentava-se provido apenas da sua Ars magna, crendo que seria um meio de persuaso

    infalvel. Em um sentido mais explcito, seria Llio, muito provavelmente, o primeiro

    afirmativo.

    Hegelianamente, entretanto, cremos que a motivao de chamarmos as abordagens

    correntes de afirmativas s ser compreendida de maneira mais clara quando falarmos da

    prpria abordagem negativa. Antes de faz-lo, contudo, faremos uma exposio de alguns

    conceitos bsicos que so necessrios para que se possa adentrar o campo da Argumentao.

    13 Citao retirada de (KULSTAD; CARLIN, 2013). 14 No se sabe, ao certo, em que medida o Scrates de Plato fiel ao Scrates histrico; por isto, fazemos uso do ou excludente aqui. 15 Discutiremos melhor sobre os sofistas quando apresentarmos a abordagem negativa. 16 Paolo Rossi (2004) remonta a linguagem perfeita de Llio tradio da arte de memorizao a partir de um mtodo mecnico que j estaria em Ccero, Quintiliano e Aristteles.

  • 15

    importante destacarmos que, embora os conceitos e definies apresentados nesta seo

    no sejam, em si mesmos, afirmativos ou negativos, eles sero apresentados aqui pela simples

    razo de que eles estaro sendo tratados e expressos em termos da abordagem afirmativa, ou

    seja, eles poderiam ser expressos, tambm, em termos negativos.

    Esclareceremos, aos poucos, o que os faz enquadrarem-se em um determinado tipo de

    abordagem. Por enquanto, tenhamos em mente que uma abordagem ser afirmativa diz respeito

    assuno de certos pressupostos que no so questionados no mbito da argumentao.

    3.2. O que um argumento?

    O conceito mais evidente que merece ser analisado no mbito da Teoria da Argumentao

    , obviamente, o prprio conceito de argumento. Existe, na literatura lgico-filosfica, uma

    ampla discusso sobre o que vem a ser um argumento. Encontramos exposies desta

    discusso, por exemplo, em textos como The nature of argument, de Karel Lambert e William

    Ulrich, ou The concept of argument: a philosophical foundation, de Harald Wohlrapp.

    Entretanto, apelaremos aqui ao entendimento tradicional17 sem grandes aprofundamentos sobre

    o assunto.

    Um argumento, de maneira simplificada, uma inferncia. Inferncias sempre envolvem

    um conjunto de premissas, um conjunto de concluses, assim como uma relao entre estes

    dois conjuntos. Quando o conjunto vazio, temos demonstraes. Quando ele no vazio,

    temos dedues. Demonstraes so, portanto, casos particulares de dedues (HEGENBERG,

    2012, p.108).

    No caso do conjunto de concluses, classicamente, costuma-se ter apenas uma

    concluso18. Este conjunto, particularmente, no pode ser vazio, pois, do contrrio, no haveria

    o passo inferencial. Um argumento, portanto, trata-se de uma tripla < , , >, com . A

    17 O leitor mais atento e afeito literatura sobre Lgica Informal talvez estranhe a nossa adoo do conceito tradicional. Stephen E. Toulmin (2006), por exemplo, famoso pelos seus layouts, por meio dos quais ele tece crticas viso de que, na argumentao, os conjuntos de proposies cumpram apenas as duas funes de serem premissas ou concluses. Ele introduz os conceitos de dados, garantias, qualificadores modais, condies de exceo ou de refutao e alegaes como alternativa concepo tradicional. Charles Arthur Willard (1989) outro autor que tece crticas conceitualizao tradicional, dizendo que ela s apropriada no mbito formal, que considera os argumentos como objetos puramente abstratos. A dimenso esttica e social no seria, portanto, abarcada. 18 Nos anos 70, D. J. Shoesmith e Timothy Smiley (1978) desenvolveram a lgica das concluses mltiplas no mbito da lgica formal para trabalharem com conjuntos de concluses. Classicamente, a relao de conseqncia lgica d-se entre um conjunto de frmulas e uma frmula particular, mas estamos procurando ser abrangentes na nossa formulao.

  • 16

    relao entre e , que ser dada por , pode ser dada de diversas maneiras. Elas podem ser

    lexicais, abdutivas, retrodutivas, condutivas, dedutivas, indutivas, retricas, analgicas,

    associativas, emotivas ou afetivas, que so bastante comuns na Psicanlise por exemplo, etc. .

    Assim como a natureza da relao de inferncia pode ser diversa, o mesmo fenmeno d-

    se com o conjunto de premissas e com o conjunto de concluses, embora, tradicionalmente, as

    abordagens, tanto formais quanto informais, restrinjam-se a proposies lingsticas. Groarke

    (2002), por exemplo, fala de argumentos musicais; Pietarinen (2011) fala sobre argumentos que

    fazem uso de diagramas e Hill & Helmers (2008), sobre argumentos visuais em geral.

    Argumentar, no fim das contas, justificar aquilo que afirmamos. Se isto ser feito por

    palavras, por cores, por canes ou at por danas, como exemplifica Cabrera (2014, p. 4), no

    importa. Embora estejamos falando aqui sobre conceitos complexos como, por exemplo,

    quando apresentamos as possibilidades de inferncias, a argumentao comea muito cedo nas

    nossas vidas. Quando um pai diz ao seu filho que ele no pode nadar logo aps ao almoo

    porque ele tem de esperar um tempo para que a digesto dos alimentos seja feita ou quando ele

    manda o seu filho dormir cedo para que consiga acordar no dia seguinte, ele est argumentando:

    ele est fornecendo justificativas daquilo que est afirmando.

    A argumentao, por vezes, no o procedimento mais racional ou eficaz. Quando voc

    v que um motorista est aproximando-se da sua faixa, voc buzina em vez de abrir a janela do

    carro para convenc-lo de que ele no deveria estar agindo daquela maneira. Bermejo-Luque

    (2014, p. 18) afirma que a argumentao , principalmente, uma atividade prpria da razo

    terica: por meio dela, tratamos de estabelecer que as coisas so como dizemos que so.

    (traduo nossa). Mesmo que a argumentao no seja o melhor meio em todas as

    circunstncias, talvez o pluralismo contemporneo aliado formao das democracias aps a

    II Guerra Mundial e ao crescente globalismo impulsionado pelas tecnologias recentes que

    favorecem os meios de comunicao tenha motivado o crescente interesse pela argumentao

    a partir da segunda metade do sculo XX19.

    Finalmente, lembrando aquilo que dissemos sobre as argumentaes reais e sobre a nfase

    na Pragmtica por parte da Lgica Infomal, introduziremos uma distino feita por Toulmin

    (2006, p. 179) entre argumentos analticos e argumentos substantivos posteriormente,

    Toulmin cham-los-, respectivamente, de tericos e de prticos (1989, p.34). Argumentos

    analticos, ou tericos, sero aqueles que procuraro estabelecer as suas concluses a partir de

    princpios universais. Argumentos substantivos, ou prticos, sero, por sua vez, aqueles que

    19 Veremos como este contexto parecido quele que possibilitou o surgimento dos sofistas.

  • 17

    buscaro estabelecer concluses mediante o apelo ao contexto em que apaream, observando-

    se situaes especficas. Os argumentos que teremos por escopo neste texto sero aqueles

    substantivos ou prticos, seguindo a terminologia de Toulmin.

    3.2.1. O mtodo dos seis passos

    Aps termos visto o que seria um argumento e uma argumentao, cabe-nos questionar-

    nos sobre as suas condies de possibilidade. Julio Cabrera (2014), apoiado em trabalhos de

    autores como Alec Fischer, Robert Fogelin, Walter Sinnott-Armstrong, Howard Kahane, Irving

    Copi, entre outros, apresenta o que ele chama de Mtodo em seis passos para a avaliao de

    argumentos informais.

    Antes de entrarmos no mrito das argumentaes em si mesmas, temos de avaliar os

    seguintes quesitos:

    ( 1 ) a existncia do argumento;

    Antes de qualquer considerao, temos de saber se, de fato, estamos diante de um

    argumento. H a possibilidade de que o interlocutor no queira estabelecer um vnculo entre

    premissas e concluses, fornecendo, portanto, uma justificativa, mas que queira, simplesmente,

    fazer uma afirmao, um desabafo ou uma mera descrio. O aspecto pragmtico das

    argumentaes torna-se bastante importante aqui, pois um texto que possua o aspecto de uma

    simples descrio, por exemplo, pode ter a pretenso de causar no leitor uma srie de emoes.

    Neste caso, haveria um argumento exposto na forma de uma descrio.

    ( 2 ) a determinao do argidor;

    A existncia de um argumento, embora seja necessria, no suficiente para que uma

    argumentao seja empreendida. necessrio que haja quem esteja disposto a defender um

    ponto de vista, que aceite o nus da prova e que, portanto, aceite ser responsabilizado pela

    argumentao. Cabrera (2014, p. 5) aponta o carter anti-intuitivo como sendo um possvel

    critrio a ser considerado na deciso do portador do nus da prova. Se algum pretende mostrar

    um ponto que vai de encontro aos valores vigentes, seria razovel supor que seria ele o

    responsvel a delinear a argumentao.

  • 18

    ( 3 ) a reconstruo do argumento;

    Havendo um argumento passo 1 e havendo um responsvel por empreender a

    argumentao passo 2 , o argumento tem de ser apresentado de maneira que ele possa ser

    adequadamente avaliado. Perguntas sobre qual , efetivamente, o argumento, sobre se h apenas

    um argumento ou se, havendo mais de um, h relaes entre linhas argumentativas que levam

    a um mesmo ponto, sobre quais so as premissas e as concluses e sobre quais so os

    subargumentos so cruciais neste passo. Por vezes, h argumentos implcitos que precisam ser

    explicitados. Diferentemente das argumentaes meramente formais, os argumentos reais no

    costumam ser apresentados de maneira que possam ser adequadamente tratados em uma

    disputa.

    ( 4 ) a clareza dos termos e o valor de verdade das premissas;

    Aps a reconstruo feita no passo anterior, h a necessidade de questionarmos sobre a

    clareza dos termos envolvidos na argumentao e sobre se h significados relevantes que devem

    ser esclarecidos. Neste momento, conveniente explicitar os pressupostos da argumentao

    que esto sendo assumidos. A verdade das premissas deve ser aceita ou, pelo menos,

    considerada plausvel ou aceitvel. Quando falamos sobre a plausibilidade ou aceitabilidade

    das premissas, em vez da mera aceitao, estamos prevendo aqui que no haja, necessariamente,

    a anuncia s premissas, mas que se escolha, provisoriamente, aceit-las como verdadeiras para

    que se possa ver o rendimento20 da discusso. A clareza dos termos e a verdade das premissas

    relacionam-se na medida em que a avaliao dos termos pode afetar a verdade das premissas.

    ( 5 ) a correo do argumento;

    Este passo o cerne do mtodo. Aqui, questionamo-nos sobre se as concluses seguem-se

    das premissas a partir dos pressupostos aceitos. A natureza do passo inferencial deve ser

    explicitada: est-se fazendo uma deduo, uma induo, uma abduo? Que tipo de inferncia

    leva-nos s concluses a partir das premissas? O argumento convincente, contundente,

    cogente, estabelecendo as suas concluses?

    20 Este um conceito que Cabrera introduz para abranger essa possibilidade.

  • 19

    ( 6 ) o propsito do argumento.

    Mesmo que verifiquemos que todos os passos anteriores foram satisfeitos, um argumento

    pode falhar em satisfazer os propsitos em questo. Uma vez que seja exposta a inteno do

    argumentador se havia o intuito de dar-se uma explicao, oferecer algum tipo de prova,

    uma refutao ou, puramente, chocar um pblico, escandaliz-lo, confundi-lo ou consol-lo

    , deve-se verificar se ela foi satisfeita. Se o propsito inicial no foi satisfeito, o argumento

    fracassou, mesmo sendo considerado um bom argumento.

    Dentro dos seis passos explanados acima, podemos encontrar, a partir da definio de

    argumento que adotamos, as seguintes possibilidades de contra-argumentao:

    I. Questionamento da definio ou o significado de algum termo envolvido na argumentao

    (passo 4);

    II. Questiona-se a verdade de alguma premissa (passo 4);

    III. Questiona-se o vnculo entre o conjunto de concluses e o conjunto de premissas

    afirmando-se que aquele no decorre deste (passo 5).

    A segunda possibilidade de contra-argumentao deixa muito claro que estamos no mbito

    da Lgica Informal, pois o ponto da Lgica Formal, pelo menos em termos clssicos, como j

    vimos, no derivar o falso do verdadeiro, sendo irrelevante em termos de dedutibilidade se o

    antecedente falso. Nesta possibilidade, por vacuidade, a implicao sempre verdadeira.

    Reiteramos que os conceitos apresentados nesta seo no so exclusividades da

    abordagem afirmativa. De fato, o mtodo dos seis passos acima pode ser visto a partir da

    perspectiva da abordagem negativa, como veremos mais tarde.

    3.3. As falcias

    Apesar da pluralidade de inferncias que mencionamos, de maneira geral, os raciocnios21

    podem ser divididos em dedutivos e indutivos a partir da definio de que aqueles so

    21 Cabe ressaltar que nem todo raciocnio possui a forma de um argumento como o definimos. Por esta razo, muitas vezes, o passo de reconstruo do argumento precisa ser efetuado. Esta discusso relaciona-se com a discusso no mbito formal das chamadas sentenas declarativas, que seriam aquelas que podem ser tidas por verdadeiras ou falsas.

  • 20

    raciocnios nos quais h uma relao de nexo de implicao necessrio entre o conjunto de

    premissas e o conjunto de concluses, enquanto estes so raciocnios nos quais h apenas uma

    relao de possibilidade ou de probabilidade entre os dois conjuntos. Tendo em vista essa

    classificao mais geral, os textos que tratam sobre as falcias costumam classific-las em

    falcias formais e informais.

    As falcias so falhas ou defeitos no raciocnio. Tradicionalmente, elas possuem duas

    dimenses: uma lgica e uma psicolgica. A primeira dimenso envolve um caso de non

    sequitur no qual aquilo que se pretende justificar no suficientemente justificado pelo

    raciocnio, enquanto a segunda dimenso envolve o aspecto da iluso, na medida em que as

    falcias aparentam ser raciocnios sem defeitos, ou mesmo da ardileza, na medida em que, por

    vezes, h a inteno de ludibriar o adversrio quando promovemos discusses e debates.

    No h uma classificao das falcias que seja amplamente aceita. Pirie (2006) fornece a

    seguinte proposta de classificao das falcias:

    As falcias formais possuiriam erros estruturais lgicos, enquanto as falcias informais

    ocorreriam quando aplicamos raciocnios vlidos a termos que no podem receber tal

    qualificao. Estas so lingsticas quando admitem ambigidades de linguagem que permitem

    erros ou so de relevncia quando omitem algo necessrio para sustentar o argumento,

    permitem a influncia de fatores irrelevantes na concluso ou a alterao desta por meio de

    suposies injustificadas.

    A concepo tradicional que apresentamos at o momento comeou a ser problematizada

    com Hamblin (1970). Segundo o autor, a verdade das premissas ou a validade no daria conta

    das falcias tradicionais como a pergunta complexa ou a transferncia do nus da prova. As

  • 21

    abordagens tradicionais primariam por uma concepo dedutivista e nomolgica da

    argumentao. Precisamos de critrios dialticos em vez daqueles alticos ou epistmicos.

    Desde Hamblin, houve vrias propostas de tratamento das falcias. Bermejo Luque22

    (2014) classifica-as em propostas continustas e revisionistas. As primeiras teriam a pretenso

    de remeterem-se ao catlogo tradicional de falcias como uma classificao de primeira ordem

    e, em princpio, no partiriam de definies alternativas do conceito de falcia. As teorias

    revisionistas, por sua vez, procurariam uma definio tcnica do conceito de falcia que

    prescinda do catlogo tradicional.

    Dentro do primeiro tipo de proposta, Bermejo Luque menciona o enfoque retrico de

    Charles Arthur Willard, a anlise de Walton-Woods, a Pragma-Dialtica e o segundo Walton

    e, por ltimo, o terceiro Walton, com o seu modelo de esquemas argumentativos. Entre os

    revisionistas, a autora menciona Finocchiaro, com seus seis tipos de falcia, e Ralph Johnson,

    com o seu enfoque na Lgica Informal.

    Para as finalidades especficas deste texto, iremos contentar-nos com a teoria Pragma-

    Dialtica.

    3.3.1. A Pragma-Dialtica

    A Pragma-Dialtica uma das teorias da argumentao mais conhecidas e relevantes

    contemporaneamente. Frans van Eemeren e Grootendorst iniciaram a sua pesquisa na dcada

    de 70, publicando o primeiro texto que explicava seus pressupostos filosficos e tericos em

    Lngua Inglesa em 1984, com Speech acts in argumentative discussions.

    O nome Pragma-Dialtica deve-se ao fato de que a viso argumentativa, nesta teoria,

    sempre parte de um discurso argumentativo que toma lugar entre as pessoas envolvidas

    lembrando que, em geral, a Lgica Formal, como vimos nos prembulos metodolgicos, trata

    apenas da sintaxe e da semntica, o que, em um sentido lingstico estruturalista, poderia ser

    entendido como os mbitos paradigmtico e sintagmtico da linguagem a despeito dos seus

    usos funcionais e pela razo de ela primar pela resoluo de uma diferena de opinio por

    meio de mtodos crticos de razoabilidade aqui, justificar-se-ia o termo dialtica. Visa-se,

    portanto, uma conexo entre a dimenso normativa da Dialtica com a descritiva da Pragmtica.

    22 A autora no aborda a corrente que Breton & Gauthier (2011) chamam de pesquisa francfona, que abrange autores como Grize e a sua lgica natural; Vignaux e a sua teoria da lgica discursiva; Plantin e a sua teoria lingstica; Windisch e a sua teoria sociolgica; Meyer e a sua argumentao e filosofia da problematicidade; Reboul; Breton; Declercq & Robrieux; Olron e outros.

  • 22

    Nesta teoria,

    a argumentao vista a partir de uma perspectiva que combina um ngulo comunicativo inspirado por insights pragmticos da teoria dos atos de fala e da anlise do discurso com um ngulo crtico inspirado por insights dialticos do racionalismo crtico23 e de abordagens dialticas formais. (EEMEREN et al., 2014, p.518) (traduo nossa)

    A argumentao vista, ainda, a partir do objetivo de resoluo de uma diferena de

    opinio por meio de trocas de movimentos argumentativos entre um protagonista que defenda

    um determinado ponto e um antagonista que tenha dvidas sobre a aceitao desse

    posicionamento ou que, simplesmente, rejeite-o (Eemeren et al., 2014, p.520).

    H uma combinao de uma descrio emprica com uma normatividade crtica a partir de

    um vis interdisciplinar, aliando Filosofia, Lgica, Comunicao Social, Lingstica,

    Psicologia e outras reas do conhecimento. Tendo-se em vista esta pluralidade, a teoria foi

    bastante desenvolvida ao longo dos anos. Uma extenso foi feita por van Eemeren, juntamente

    com Peter Houtlosser, com a noo de manobra estratgica no intuito de levar em conta o fato

    de que, no discurso argumentativo, os arguidores podem estar atentos combinao da sua

    efetividade retrica com a sua razoabilidade24 a fim de manter a sua razoabilidade dialtica em

    cada passo da argumentao.

    No entraremos no mrito de todos os desenvolvimentos promovidos no contexto desta

    teoria. Por exemplo, a noo de manobra estratgica que mencionamos no ser importante

    para os nossos propsitos.

    A argumentao, na Pragma-Dialtica, ser subdividida em quatro estgios: confrontao,

    abertura, argumentao e concluso. Estes estgios correspondero s diferentes etapas pelas

    quais o argumentador tem de passar, embora no estejam explcitas muitas vezes, a fim de

    resolver uma diferena de opinio por uma via razovel.

    A discusso seria iniciada no estgio de confrontao. Aqui, h uma diferena de opinio

    que manifesta por meio de uma oposio entre um ou mais pontos de vista, assim como a sua

    no aceitao. Segundo van Eemeren e Grootendorst, se no houver esta etapa, no h a

    necessidade de que exista uma discusso porque no haver diferenas a serem resolvidas.

    Na abertura, os papis de protagonista e de antagonista so acordados, assim como os

    procedimentos da argumentao. O protagonista assume o compromisso de defender os seus

    23 Por racionalismo crtico, entendamos como sendo o favorecimento do propsito metdico de trocas argumentativas em acordo com procedimentos reguladores. 24 Frans van Eemeren (2010, p. 29) faz uma distino entre ser racional e ser razovel. A racionalidade diz respeito ao uso da razo, enquanto a razoabilidade concerne ao uso apropriado da razo.

  • 23

    pontos e o antagonista o de responder de maneira crtica ao seu interlocutor. Assim como no

    pode haver um jogo entre algum que queira jogar xadrez e outro que queira jogar damas, a

    argumentao s poder ocorrer a partir do consenso de regras preliminares.

    No estgio da argumentao, o protagonista defende o seu ponto de maneira metdica

    contra as respostas crticas do antagonista. Se este ainda no estiver plenamente convencido, a

    argumentao deve prosseguir.

    Finalmente, no estgio de concluso, o protagonista e o antagonista determinam se o ponto

    do primeiro foi defendido adequadamente. Se o protagonista teve de retratar-se do seu ponto, a

    diferena foi resolvida em favor do antagonista e vice-versa. Se nenhuma das partes aceita

    retratar-se do seu ponto, o trmino no foi alcanado.

    Grootendorst e van Eemeren (2004, p. 190) apresentam aquilo que chamam de os 10

    mandamentos para discutidores razoveis. Eles so os seguintes:

    Mandamento 1 (Regra da liberdade)

    Os discutidores no devem inibir um ao outro de fazer avanar o seu ponto de vista ou de

    lanar questionamentos sobre um determinado ponto de vista.

    Mandamento 2 (Regra da obrigao defesa)

    Os discutidores que fazem avanar um dado ponto de vista no devem recusar-se a

    defend-lo quando requisitado.

    Mandamento 3 (Regra do ponto de vista)

    Os ataques aos pontos de vista no devem ater-se a um ponto que no tenha sido realmente

    posto pela outra parte.

    Mandamento 4 (Regra da relevncia)

    Os pontos de vista no devem ser defendidos de modo que no seja argumentativo ou por

    argumentaes que no sejam relevantes ao ponto.

    Mandamento 5 (Regra da premissa no expressa)

    Os discutidores no devem atribuir com falsidade premissas no expressas outra parte,

    nem negar a sua responsabilidade pelas suas prprias premissas no expressas.

  • 24

    Mandamento 6 (Regra do ponto de partida)

    Os discutidores no podem apresentar com falsidade algo como tendo sido aceito no ponto

    de partida ou negar com falsidade que algo foi aceito no ponto de partida.

    Mandamento 7 (Regra da validade)

    O raciocnio que, em uma argumentao, apresentado como sendo conclusivo

    formalmente no deve ser invalidado em um sentido lgico.

    Mandamento 8 (Regra do esquema de argumentao)

    Os pontos de vista no devem ser vistos como defendidos conclusivamente por uma

    argumentao que no esteja apresentada em bases de um raciocnio formalmente conclusivo

    se a defesa no toma lugar por meios de esquemas de argumentos apropriados que sejam

    aplicados corretamente.

    Mandamento 9 (Regra conclusiva)

    Defesas inconclusivas de pontos de vista no devem levar sustentao destes pontos e

    defesas conclusivas de pontos de vista no devem conduzir sustentao de expresses de

    dvida concernentes a estes pontos de vista.

    Mandamento 10 (Regra do uso da linguagem)

    Os discutidores no devem usar quaisquer formulaes que no sejam suficientemente

    claras ou que sejam ambguas de maneira confusa e eles no devem interpretar mal

    deliberadamente as formulaes da outra parte.

    As falcias, a partir da Pragma-Dialtica, no sero mais vistas a partir do aspecto

    psicolgico tradicional que mencionamos, associando-as a algum tipo de ardileza detectada no

    argumentador, mas a partir da violao de pelo menos uma das regras acima. A falcia ,

    portanto, aquilo que obstaculiza a resoluo de uma diferena de opinio em termos dos seus

    mritos.

    A primeira regra seria violada nos casos, por exemplo, do argumentum ad baculum, do

    argumentum ad misericordiam e do argumentum ad hominem. A violao da segunda regra

    seria efetuada pela transferncia do nus da prova, por variaes do argumentum ad

  • 25

    verecundiam e do argumentum ad ignorantiam. A falcia do espantalho violaria a regra trs. O

    quarto mandamento seria violado pelo ignoratio elenchi e pelo argumentum ad populum. A

    quinta regra seria violada quando se nega uma premissa que no foi expressa ou por meio da

    distoro de uma premissa que no foi expressa. A regra seis seria violada pelo pensamento

    circular. A stima, pela afirmao do consequente ou negao do antecedente. A oitava, pela

    generalizao apressada, pela falsa analogia e pelo argumentum ad consequentiam. A nona,

    pelo argumentum ad ignorantiam e a dcima pela falcia da anfibologia.

    Os exemplos acima no so, obviamente, exaustivos, mas apenas ilustram exemplos de

    violaes das regras. Os criadores da Pragma-Dialtica apontam como sendo uma vantagem

    da sua teoria o fato de que a violao de um conjunto de regras diferentes em estgios diferentes

    poderia caracterizar melhor variaes de certas falcias, sendo mais fcil classific-las.

    Cremos que a caracterizao que fizemos da Pragma-Dialtica suficiente para que

    possamos discutir apropriadamente o que vem a ser a abordagem negativa. Passemos, portanto,

    a ela.

  • 26

    4.0. A abordagem negativa

    At o presente momento, adotamos, por diversas vezes, a metodologia dialtica de

    comparar oposies a fim de que possamos ter um melhor entendimento daquilo que

    expusemos. No ser diferente nesta seo em que nos deteremos com maior profundidade no

    conceito de abordagem negativa da argumentao, aps a sua breve e provisria introduo na

    seo anterior.

    Restringimo-nos, naquela ocasio, tese de que as argumentaes so interminveis, a

    partir da pretenso de que nossos argumentos sejam plausveis e no eliminveis; entretanto, a

    abordagem negativa abrange um conjunto muito maior de teses que procuraremos explanar por

    meio daquilo que denominaremos de dogmas da abordagem afirmativa.

    4.1. Os seis dogmas da abordagem afirmativa Willard van Orman Quine tornou-se famoso pelo seu texto Dois dogmas do empirismo

    (QUINE, 2011, p. 37), no qual critica a distino entre analtico e sinttico e apresenta o seu

    holismo em detrimento do reducionismo pelo qual se acredita que todo enunciado significativo

    pode ser traduzido em enunciados referentes experincia imediata. Inspirados pelo texto de

    Quine, cremos que todas as teorias da argumentao de que temos conhecimento pressupem

    os dogmas que discutiremos.

    importante destacarmos que a abordagem negativa, mais do que uma teoria da

    argumentao propriamente, uma metateoria da argumentao. Dito isto, vrios dos dogmas

    que apresentaremos, por vezes em verdade, na maior parte das vezes , apenas esto

    subentendidos nas teorias argumentativas em vez de estarem explcitos nelas. Esta uma das

    razes pelas quais, por exemplo, optamos pela teoria Pragma-Dialtica, pois ela bastante

    peremptria ao contrapor-se primeira caracterizao que fornecemos da abordagem negativa,

    a saber, o fato de que as argumentaes so teoricamente interminveis lembremo-nos de

    que ela estabelece como um dos estgios da argumentao, precisamente, um estgio de

    concluso.

    Passemos, portanto, exposio dos seis dogmas.

  • 27

    4.1.1. O disjuntivismo excludente

    A semntica da disjuno na Lgica Clssica sugere que tratamos de uma disjuno

    inclusiva: afinal, pode ser o caso de os dois disjunctos serem verdadeiros, o que no poderia

    ocorrer no caso de uma disjuno que fosse exclusiva. A despeito disto, por conta do princpio

    de no contradio, quando h a disjuno de proposies tidas por contraditrias, no

    possvel que os dois disjunctos tenham o mesmo valor de verdade e que, especialmente, para

    fins de nossos interesses aqui, sejam simultaneamente verdadeiros.

    Falamos, especificamente, do caso de proposies contraditrias porque, correntemente,

    nas argumentaes, o oponente tem de levantar objees que possuam alguma relevncia com

    o ponto do proponente. Em outras palavras, se eu afirmo que Todo filsofo brasileiro um

    comentador (A), alegar que Algum filsofo brasileiro um comentador (I), em particular,

    no refutaria25 em absolutamente nada a afirmao inicial, pois sabemos, pelo famoso quadrado

    das oposies de Aristteles, que h uma relao de subalternao entre (A) e (I), ou seja, se

    (A) verdadeira, ento, (I) verdadeira. No toa que van Eemeren d um destaque para as

    divergncias de opinio como condio necessria para as argumentaes: se no h nenhuma

    discordncia com o meu interlocutor, parece, em princpio, no haver motivo para que se

    argumente.

    verdade, entretanto, que as proposies do antagonista no precisam ser apenas

    contraditrias com relao quelas do protagonista. A ttulo de exemplificao, pensemos, por

    exemplo, no caso em que este retome a tese (A), mas, em contrapartida, aquele afirme que

    Nenhum filsofo brasileiro um comentador (E). Sabemos, novamente, pelo quadrado das

    oposies, que as duas teses so contrrias e que, embora no possam ser, simultaneamente,

    verdadeiras, podem ser ambas falsas.

    Assim como a relao de subalternao irrelevante para uma argumentao, a relao de

    subcontrariedade parece ser, igualmente, irrelevante. Suponhamos que o protagonista afirme

    que Algum homem mortal (I). Se o antagonista afirma que Algum homem no mortal

    (O), as duas proposies podem ser, simultaneamente, verdadeiras, mas no podem ser

    simultaneamente falsas. Isto ocorre porque, sendo falso que Algum homem mortal (I),

    sabemos, pela relao de contraditoriedade, que verdadeiro que Nenhum homem mortal

    (E). Pela relao de subalternao, por sua vez, sabemos que seria verdadeiro que Algum

    25 Em breve, ficar claro o uso do itlico aqui.

  • 28

    homem no mortal (O); entretanto, supusemos, inicialmente, que (O) e (I) eram falsas, o

    que uma contradio.

    Parece, portanto, que as relaes de oposio entre as proposies dos argumentadores

    tm de ser de contraditoriedade ou de contrariedade, pois no parece haver relevncia na

    discusso de pontos que possam ser simultaneamente verdadeiros. Classicamente, e

    tradicionalmente, a relevncia dos pontos dos debatedores em uma argumentao seria tratada

    desta maneira, a partir de um embate entre pontos que no possam ser simultaneamente

    verdadeiros; entretanto, a abordagem negativa problematiza esta concepo excludente nas

    argumentaes.

    H vrias discusses, tanto na Lgica quanto na Filosofia, acerca do conceito de

    contradio. Stanisaw Jakowski (1999), com a sua Lgica Discussiva, dizia que duas pessoas

    no se contradizem. S haveria a contradio entre os proferimentos de uma mesma pessoa.

    Cremos que, se levarmos em conta certas abordagens da Psicologia e da Psicanlise,

    dificilmente conseguiramos at mesmo afirmar que as contradies ocorrem entre

    proferimentos de uma mesma pessoa.

    Em uma perspectiva heraclitiana, se um homem no atravessa o mesmo rio porque ele

    mesmo j no ser o mesmo homem, assim como o rio no ser o mesmo rio, de modo anlogo,

    um homem no percorre o mesmo argumento pelo fato de ele no ser o mesmo homem e o

    argumento no ser o mesmo argumento.

    Um modo bastante intuitivo de entender o que Jakowski tem em mente pensarmos nas

    rvores de refutao ou nos tableaux. S h contradio em uma mesma haste, mas nunca em

    hastes distintas. Poderamos transportar o que dizemos para o caso das argumentaes: quando

    exijo que o meu proferimento tenha uma relao de contraditoriedade com aquilo que o meu

    interlocutor afirma, estaria exigindo que proposies em hastes distintas26 em um tableau

    contradigam-se.

    A idia mesma de contradio j est contaminada. Graham Priest (2010) faz referncia a

    um texto cannico budista chamado Mijjhima-Nikaya. Neste texto, encontramos o seguinte

    dilogo27:

    E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado existe aps a morte e que esta viso, isoladamente, verdadeira e todo o resto falso?

    No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado existe aps a morte, e que esta viso, isoladamente, seja verdadeira e todo o resto seja falso.

    26 A nossa comparao tornar-se- mais clara adiante. 27 Traduo nossa.

  • 29

    E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado no existe aps a morte que esta viso, isoladamente, verdadeira e o resto falso?

    No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado no existe aps a morte, e que esta viso seja verdadeira e todo o resto falso.

    E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado tanto existe como no existe aps a morte e que esta viso, isoladamente, verdadeira, e todo o resto falso?

    No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado tanto exista como no exista aps a morte, e que esta viso seja, isoladamente, verdadeira, e todo o resto falso.

    E a, Gautama? Voc acredita que o iluminado nem exista e que tampouco no exista aps a morte e que esta viso seja, isoladamente, verdadeira e todo o resto seja falso?

    No, Vacca. Eu no sustento que o iluminado nem exista e que tampouco no exista aps a morte, e que esta viso seja, isoladamente, verdadeira e todo o resto falso. (2010, p. 25)

    Vemos, no dilogo acima, que Buda, ao ser questionado sobre a existncia dos iluminados

    aps a morte, prev quatro possibilidades lgicas: ( i ) os iluminados existem aps a morte; ( ii

    ) os iluminados no existem aps a morte; ( iii ) os iluminados existem e no existem aps a

    morte; ( iv ) os iluminados nem existem e nem no existem aps a morte. Para ns, ocidentais,

    as duas nicas possibilidades lgicas possveis frente ao questionamento feito a Buda seriam os

    casos ( i ) e ( ii ).

    O exemplo encontrado na cultura oriental no restrito ao contexto do Budismo. O lgico

    nigeriano Jonathan Okeke, em um texto intitulado Construindo a lgica africana como um

    algoritmo para o desenvolvimento da frica28, sugere, tambm, que a lgica africana funciona

    com bases diferentes daquela ocidental, pautada em princpios lgicos como o princpio da

    bivalncia, o princpio da no contradio e o princpio do terceiro excluso.

    Outra maneira fcil de verificarmos o que dizemos comparar as lnguas naturais. Em

    Lingstica, h discusses sobre lnguas nas quais a sua estrutura sinttica no tocante

    contagem no funciona como no Portugus ou nos idiomas mais conhecidos no Ocidente, como

    o Alemo, o Ingls, o Italiano, o Espanhol e o Francs. Sabe-se que, em certas tribos indgenas,

    os quantificadores generalizados ou modulados, que dizem respeito a expresses como, por

    exemplo, muitos funcionam a partir da quantidade dois. No Portugus, diferenciamos, no

    mbito do sintagma, um de muitos a partir de dois elementos. Em muitos idiomas, no h esta

    28 Texto ainda no publicado cuja traduo foi feita por mim.

  • 30

    dicotomia. Mudando-se a semntica dos termos, as inferncias mudam e, assim, os raciocnios

    modificam-se.

    No sculo XX, vimos o desenvolvimento de inmeros sistemas lgicos. Entretanto,

    enquanto no Ocidente os inmeros sistemas no clssicos so vistos como sendo meras

    curiosidades formais que, no mximo, servem para resolver alguns problemas tcnicos em reas

    como a computao, vemos que o pensamento de civilizaes distintas, de fato, funciona de

    maneiras diferentes. O fato que, a despeito dos elementos culturais, temos perspectivas sobre

    a realidade, o que abrange nossas perspectivas sobre conceitos e termos, divergentes entre si.

    Poderamos dizer que vivemos, hoje, em uma situao que poderia ser descrita como sendo

    um pluralismo de pluralismos. Quando falamos de metodologias filosficas, temos as cincias

    do esprito; as vrias fenomenologias e existencialismos; a Gestalt e as vrias correntes da

    psicanlise e da psicologia profunda; o marxismo, com suas inmeras variaes; a nova retrica

    de Cham Perelman; a metodologia dialtica de Louis Lavelle; a lgica da filosofia de ric

    Weil; o neopragmatismo; o estruturalismo; o desconstrucionismo; os estudos de simbolismo e

    de religies comparadas; a tcnica histrico-meditativa de Eric Voegelin; a historiografia

    simblica de Modris Eksteins; a neuro-histria da arte de Baxandall; a filosofia analtica alm

    de muitas outras escolas filosficas29.

    O pluralismo de metodologias filosficas pode ser visto em todas as reas da Filosofia: na

    tica, na Epistemologia, na Filosofia da Matemtica, na Filosofia da Cincia, na Esttica, na

    Metafsica, na Filosofia da Linguagem, na Filosofia Poltica etc. . O interessante que a

    pluralidade no ocorre apenas por conta das diversas maneiras de enxergar-se e praticar-se a

    Filosofia, mas at mesmo em uma mesma escola pode-se encontrar o pluralismo aqui descrito.

    O telogo suo Hans Urs von Balthasar em seu livro Truth is Symphonic faz uso de uma

    bela imagem para falar sobre a verdade. A palavra sinfonia significa soar junto. Em uma

    orquestra, temos vrios instrumentos com partituras distintas. Seus timbres so diferentes. O

    modo de serem tocados no o mesmo. As claves nas pautas que sistematizam as notas que so

    representadas costumam diferir de instrumento para instrumento, de acordo com a regio aguda

    ou grave. Quando tocados isoladamente, por vezes, suas melodias no parecem fazer sentido;

    contudo, quando a orquestra pe-se a tocar junta, pode-se ouvir a obra musical em toda a sua

    beleza. A teoria negativa da argumentao convida-nos a termos uma atitude semelhante

    perante o divergente.

    29 Ver CARVALHO (2014).

  • 31

    Um caso exemplar do uso da perspectiva argumentativa a partir do uso da disjuno

    excludente o caso de Kierkegaard. Em seu livro Either/Or: a fragment of life que, em

    alguns idiomas, como no Francs e no Italiano, recebeu o ttulo de Aut-Aut, recorrendo

    expresso latina, o original, no Dinamarqus, chama-se Enten-Eller , fala de trs estgios ou

    fases da existncia: a esttica, a tica e a religiosa. A primeira seria hedonista e seria relacionada

    msica, seduo, ao teatro e beleza. A segunda estaria relacionada obedincia ao dever.

    A moral constituiria o primeiro princpio e o fim ltimo da existncia, sendo o matrimnio uma

    situao prpria a este estgio. A fase religiosa seria aquela vivenciada por J e por Abrao.

    Apesar da preponderncia da viso excludente no decorrer da histria da filosofia,

    podemos encontrar uma rara exceo em terras brasileiras. Mrio Ferreira dos Santos afirmava

    que a Lgica Formal era uma lgica do aut aut, enquanto a Dialtica seria uma lgica do

    tambm, do etiam. Dizia dos Santos que A Lgica Formal esttica; a dialtica dinmica,

    como dinmico o esprito humano. A dialtica ultrapassa a si mesma graas ao aumento do

    seu campo de ao. (2001, p.185). Mrio dos Santos, em detrimento da dialtica marxista, faz

    uso da dialtica de Proudhon, que aquela na qual tese e anttese afirmam-se alternadamente e

    no chegam a uma sntese, mas a uma conexio, uma conexo, uma unidade de contrrios.

    Posio e oposio seriam complementares e cooperativas.

    Lembremo-nos, entretanto, de que destacamos nos prembulos metodolgicos que h uma

    tendncia de aproximao entre Lgica Formal e Informal. Apesar da crtica de dos Santos com

    relao Lgica Formal, atenuaes de uma relao de oposio como aquela encontrada em

    proposies contraditrias segundo a Lgica Clssica j existem em sistemas no clssicos,

    como, por exemplo, em sistemas paraconsistentes. A negao paraconsistente uma negao

    enfraquecida. De forma semelhante, nas lgicas fuzzy, ou difusas ou nebulosas, pode-se criar

    uma hierarquia de negaes enfraquecidas. Mrio dos Santos, apesar da sua crtica, chega a

    afirmar, aproximando a Dialtica de raciocnios no clssicos, que o raciocnio dialtico

    predominantemente polivalente e que toda lgica polivalente uma espcie de dialtica.

    Curiosamente, em contrapartida aos tratamentos no clssicos que mencionamos na

    Lgica Formal, as teorias da argumentao tradicionais, ou at mesmo aquelas que surgiram

    posteriormente, aps os trabalhos de Toulmin e Perelman na dcada de 50, e de Hamblin na

    dcada de 70, aquelas que chamamos de afirmativas, costumam adotar a nfase excludente

    presente na Lgica Formal Clssica. A despeito da preferncia por uma disjuno

    semanticamente inclusiva, em detrimento de uma excludente, a nfase dada pelas teorias

    afirmativas tem sido a da excluso, estando alheias aos desenvolvimentos formais no clssicos.

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    A tentativa da abordagem negativa de procurar enxergar a argumentao de maneira no

    excludente e puramente conflitiva remonta a uma das solues de um antigo problema

    filosfico. Os antigos cticos, por meio do que ficou conhecido por cinco tropos de Agripa, e

    que, posteriormente, Hans Albert (1976, p. 24) chamou de trilema de Mnchhausen,

    apresentavam uma argumentao que mostrava que as demonstraes no so passveis de uma

    fundamentao.

    Sexto Emprico partia de um contexto de deciso tica, no qual se tinha de optar entre os

    modelos epicurista e estico, que seriam incompatveis. Um