13
A ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES NO BRASIL • 239 A Antropologia da E!o"#$ no Brail Ma%ro G%il&$r!$ Pin&$iro 'o%r( ) Et$ $naio *%+a ,a-$r %! *alan"o d$ a%tor$ +onid$rado +o!o pr$+%ror$ da an.li$ antropol/gi+a0 pro+%rando +o!pr$$nd$r +o $ntira! $ tra*al&ara! a 1%$t o da $!o" o $! %a an.li$ 4ia a $g%ir apr$$ntar o +a!po di+iplinar da Antropologia da E!o"#$ no $tado da art$ at%al da di+iplina0 paando $! r$5ita o $% prin+ipai a%tor$ $ t$ tra*al&ada na antropologia *rail$ira O 1%$ poi*ilitar. %!a +o!p !aior o*r$ a *a$ do pro+$o d$ +ontit%i" o $ d$ +onolida" o da Antropol da E!o"#$ +o!o di+iplina $p$+67+a no +a!po da 8i n+ia So+iai no Bra A Antropologia da $!o"#$0 +o!o +a!po di+iplinar $p$+ %rgi% +on+o!itant$ ao pro+$o d$ +onolida" o da antropologia $!*ora0 $n1%anto $p$+ialidad$ $! *%+a d$ %a pr/pria ,ront$ira t$n&a $% pro+$o ,or!ati5o0 no !%ndo o+id$ntal0 a partir da !$tad$ da d:+ada d$ $t$nta do :+%lo ;; S%a $!$rg n+ia par$+$ o*$d$+$r a %!a :ri$ d$ ,ator$ ad5i +on<%nto d$ +r6ti+a no int$rior do +a!po da +i n+ia o+iai d$d$ o 7nai da d: d$ +in1=$nta $ toda a d:+ada d$ $$nta do :+%lo paado > l/gi+a lin$ar da an.li$ o+iai d$ +%n&o !ai $tr%t%ral 1%$ r$l$ga5a! para o $g%ndo plano a a" o o+ial indi5id%al $0 por +on$g%int$0 o ator$ o+iai $ %a 5ida $!o+ional No d$ %!a r$5iita +r6ti+a0 tai $t%do ti5$ra! a pr$o+%pa" o d$ apontar a%tor$ +l.i+o da o+iologia 1%$ +olo+ara! a 1%$t o da int$r%*<$ti5idad$ +o! $l$!$nto ,%nda!$ntal da an.li$ o+iol/gi+a A Antropologia da E!o"#$ part$0 d$t$ !odo0 do prin+6pio d$ 1 a $?p$ri n+ia $!o+ionai ing%lar$0 $ntida $ 5i5ida por %! o+ial $p$+67+o0 o prod%to r$la+ionai $ntr$ o indi56d%o $ a +%l o+i$dad$ A $!o" o +o!o o*<$to anal6ti+o da 8i n+ia So+iai0 pod$ $r d$ $nt o0 +o!o

A Antropologia Das Emoções No Brasil

Embed Size (px)

DESCRIPTION

antropologia emoções no brasil

Citation preview

A ANTROPOLOGIA DAS EMOES NO BRASIL 239

A ANTROPOLOGIA DAS EMOES NO BRASIL 239

A Antropologia das Emoes no Brasil

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

*

Este ensaio busca fazer um balano de autores considerados como

precursores da anlise antropolgica, procurando compreender como sentiram e

trabalharam a questo da emoo em suas anlises. Visa a seguir, apresentar o

campo disciplinar da Antropologia das Emoes no estado da arte atual da

disciplina, passando em revista os seus principais autores e temticas trabalhadas

na antropologia brasileira. O que possibilitar uma compreenso maior sobre as

bases do processo de constituio e de consolidao da Antropologia das Emoes

como disciplina especfica no campo das Cincias Sociais no Brasil.

A Antropologia das emoes, como campo disciplinar especfico, surgiu

concomitante ao processo de consolidao da antropologia geral, embora, enquanto

especialidade em busca de suas prprias fronteiras tenha seu processo formativo,

no mundo ocidental, a partir da metade da dcada de setenta do sculo XX. Sua

emergncia parece obedecer a uma srie de fatores advindos do conjunto de crticas

no interior do campo das cincias sociais desde os finais da dcada de cinqenta e

toda a dcada de sessenta do sculo passado lgica linear das anlises sociais de

cunho mais estrutural que relegavam para o segundo plano a ao social individual

e, por conseguinte, os atores sociais e sua vida emocional. No esforo de uma

revisita crtica, tais estudos tiveram a preocupao de apontar os autores clssicos

da sociologia que colocaram a questo da intersubjetividade como elemento

fundamental da anlise sociolgica.

A Antropologia das Emoes parte, deste modo, do princpio de que as

experincias emocionais singulares, sentidas e vividas por um ator social

especfico, so produtos relacionais entre os indivduos e a cultura e sociedade. A

emoo como objeto analtico das Cincias Sociais, pode ser definida, ento, como

uma teia de sentimentos dirigidos diretamente a outros e causado pela interao

com outros em um contexto e situao social e cultural determinados (KOURY,

2004). Em sua fundamentao analtica vai alm do que um ator social sente em

certas circunstncias ou com relao s histrias de vida estritamente pessoal.

* Professor de Antropologia e Coordenador do GREM Grupo de Pesquisa em

Antropologia e Sociologia da Emoo e do GREI Grupo Interdisciplinar de Estudos em

Imagem, na Universidade Federal da Paraba. RBSE Vol. 4 n 12 dezembro de 2005 ISSN 1676-8965 240

A considerao, a compreenso e a definio da situao dos atores sociais

imersos em uma sociabilidade e em cultura emocional particular, desde ento,

parecem fazer parte, cada vez com mais vigor compreensivo, da anlise

antropolgica. A preocupao terico-metodolgica que norteia os debates desde

os primeiros indcios e sinais formadores da Antropologia das Emoes diz

respeito, assim, aos fatores sociais que influenciam a esfera emocional, como se

conformam e at onde vai esta influncia.

A Antropologia das Emoes busca, deste modo, investigar os fatores

sociais, culturais e psicolgicos que encontram expresso em sentimentos e

emoes particulares, compreendendo como esses sentimentos e emoes

interatuam e se encontram relacionados com o desenvolvimento de repertrios

culturais distintivos nas diferentes sociedades. A percepo da singularidade dos

sujeitos, social e historicamente determinados, que embora pertencentes a um

mesmo e global processo civilizador e com valores universais da sociabilidade

ocidental, mantm caractersticas, princpios e ethos particulares da cultura em que

esto imersos, parece ser uma das tarefas que a Antropologia das Emoes est

envolvida e se propem como base analtica.

A Antropologia das Emoes, assim, um campo de reflexo que busca

revigorar a anlise antropolgica introduzindo perspectivas novas e importantes da

grande questo interna da antropologia em geral, como disciplina, que a da

intersubjetividade.

A Antropologia das Emoes no Brasil

A Antropologia das Emoes no Brasil tem uma vida bem recente. Surge

como uma tendncia afirmativa de um campo disciplinar, principalmente, a partir

dos anos noventa do sculo passado. A discusso e as anlises sobre a emoo

social, porm, tem uma vida mais longa e pode ser conectada, inclusive, com os

estudos e estudiosos fundadores do pensamento das Cincias Sociais brasileiro.

Apesar da problemtica sobre a emoo ter sido importante para as

pesquisas antropolgicas nas Cincias Sociais brasileira desde o seu nascimento,

ela no foi usada, porm, como objeto de pesquisa prprio, funcionando no

mximo, como uma varivel interveniente na anlise do social.

O conceito de emoo est presente nos estudos de Gilberto Freyre (1966,

1990, 1990a) com o ensaio inovador sobre a cultura e as relaes sociais durante o

processo de colonizao brasileira, tanto quanto nos trabalhos realizados por Srgio

Buarque de Holanda (1994) com a sua teoria do homem cordial. Envolve, tambm,

o universo de pesquisas de autores vrios como Roger Bastide (1983), em sua

estada no Brasil, e os importantes estudos de Oracy Nogueira (1942 e 1945), entre

tantos outros. Em todos estes autores as questes das emoes e das relaes A ANTROPOLOGIA DAS EMOES NO BRASIL 241

intersubjetivas no construto social foram sempre uma das problemticas

definidoras da busca de identificao de bases compreensivas para a realidade

brasileira, porm, ainda, sendo conjeturadas atravs de outros objetos e no a partir

da categoria analtica das emoes.

Nos anos setenta do sculo XX, os estudos de Roberto DaMatta convocam

mais uma vez os estudiosos para prestarem uma ateno especial a questo da

emoo. Na discusso sobre o Brasil por ele travada, embora sem estabelecer um

parmetro prprio para a emoo enquanto categoria analtica em suas anlises,

levanta hipteses onde o sentimento e sua forma de expresso no social perpassa a

constituio do pblico e do privado brasileiro.

Em A Casa e a Rua discute o conceito de sociedades relacionais versus

sociedades individualistas (DaMATTA, 1987), opondo os dois tipos de

organizao social delas oriundas e conectando lgica brasileira lgica inerente

ao primeiro conceito de sociedade. Este parmetro analtico o acompanhar por

quase toda sua obra (DaMATTA, 1979, 1994 1999), onde buscar entender o

cotidiano brasileiro, seus rituais e modelos de ao dentro de um mtodo estrutural

baseado, em amplos termos, na leitura de Marcel Mauss (1974) e, sobretudo, Louis

Dumont (1985) sobre o problema do individualismo e da diferenciao analtica

entre indivduo e pessoa no social.

Parte de uma anlise do cotidiano e dos rituais e modelos de ao social, no

esforo de compreenso da realidade, atravs de uma costura analtica que tenciona

indivduo e pessoa, como categorias que se articulam de modo peculiar na

formao de um social e de uma sociabilidade especfica. Elabora, desta maneira,

uma leitura antropolgica da realidade brasileira dentro de um modelo dual de

anlise que contrape pessoa e indivduo.

Os modelos de ao e rituais cotidianos no Brasil, para ele, envolve uma

oposio entre duas lgicas presentes na sociabilidade brasileira. A primeira, seria

uma lgica institucional. Lgica esta visvel e superficial, onde o indivduo

emergiria como sujeito estatstico e submetido a leis impessoais do social. A

segunda, por sua vez, seria uma lgica culturalista, estruturante do imaginrio e

inconsciente brasileiro, onde a pessoa emerge como ser relacional, submetido a

esferas hierrquicas do sistema social.

Este oposio sempre tensa resolvida atravs da dominncia do elemento

pessoa sobre o individualizante e abstrato, que restaura a harmonia dos conflitos

entre casa e rua pela lgica hierrquica inerente a atitude relacional com referncia

ao sistema social presente no conceito de pessoa. A compreenso da realidade

social brasileira, da cultura e da trama das emoes dela emergida, para DaMatta,

deste modo, se do atravs de uma leitura estrutural da sociedade. atravs das

leis, normas e valores de um sistema social que se pode compreender o

comportamento dos sujeitos individuais nele presentes. Rejeita, assim, uma anlise RBSE Vol. 4 n 12 dezembro de 2005 ISSN 1676-8965 242

que valorize as relaes subjetivas entre os indivduos e que parta de uma troca

entre indivduos e sociedade para compreenso de um social determinado.

Outro autor importante na configurao de uma sociologia e de uma

Antropologia das Emoes no Brasil Gilberto Velho. Velho (1981, 1985, 1986,

1988, 1999) em seus estudos e pesquisas enfatiza a cultura emocional,

principalmente das classes mdias no Brasil urbano contemporneo. Como

DaMatta, parte de uma dualidade estruturante da realidade brasileira entre sistemas

hierrquicos e individualistas, baseando-se a sua viso de hierarquia na anlise

dumoniana entre sistemas individualistas e holistas.

Diferente de DaMatta, porm, que busca uma espcie de um padro nico

para interpretao do ser social e cultural brasileiro, parte do pressuposto de uma

diversidade de padres comportamentais e de sistemas individualistas e holistas na

sociedade nacional e enfatiza que procura compreender o social brasileiro das

classes mdias urbanas atravs da lgica individualista. Discute a emergncia do

indivduo psicolgico no Brasil urbano e o individualismo crescente das camadas

mdias urbanas das grandes metrpoles, especialmente da zona sul da cidade do

Rio de Janeiro.

Enfatiza os modos de vida e comportamentos no urbano, re-arranjos

familiares e de amizade, a lgica individualista dos projetos de vida em

contraponto com os projetos sociais dentro de uma leitura terico-metodolgica de

grande influncia simmeliana, que mistura a anlise fenomenolgica com a anlise

interacionista da Escola de Chicago, principalmente de autores como Robert Park,

George Mead, Herbert Blumer, Erving Goffman e Howard Becker, sem desprezar

contudo a leitura atenta de autores como Marcel Mauss, Claude Levi-Strauss e

Louis Dumont. Elabora uma anlise profunda sobre as questes ligada relao

entre subjetividade e objetividade na anlise do social, bem como sobre a

problemtica das emoes e da cultura emocional urbana na contemporaneidade

brasileira.

A problemtica da relao tencional entre indivduo e cultura um tema

recorrente na obra de Gilberto Velho. As relaes entre indivduo e cultura marcam

uma dualidade que parece se manifestar e se expressar de diferentes formas em

outras relaes como as entre o grupo e seus membros, entre os projetos

individuais e os campos de possibilidades oferecidos para seu aparecimento e

realizao, entre a questo da unidade individual e social e da fragmentao nas

sociedades complexas, da tenso entre consenso e conflito, norma e desvio, na

busca de demonstrar o carter heterogneo do urbano onde diferentes projetos,

individuais e coletivos, se chocam e se interpenetram.

Um dos conceitos fundamentais em Gilberto Velho para tratar desta

heterogeneidade e das tenses relacionais entre indivduo e cultura em uma

sociedade complexa o de projeto. Para ele, seguindo de perto a anlise feita por A ANTROPOLOGIA DAS EMOES NO BRASIL 243

Alfred Schutz (1970), a noo de projeto implica uma avaliao de meios e fins

estando, portanto, fortemente vinculada a uma realidade objetiva e externa.

Implica, tambm, claro, uma avaliao consciente de condies subjetivas. A

noo de projeto individual para Velho, deste modo, no um fenmeno

puramente interno e subjetivo, mas formulado e elaborado dentro de um campo de

possibilidades, e circunscrito histrica e culturalmente, tanto em termos da prpria

noo de indivduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes.

Para ele, cada indivduo um lcus de tenso entre os constrangimentos da

cultura que pedem o enquadramento a padres, e outros constrangimentos de

cultura que pedem ao indivduo autonomia e singularidade. O equilbrio entre estes

pedidos contraditrios uma das tarefas dirias dos indivduos nas sociedades

ocidentais contemporneas.

O que o leva a desenvolver as temticas do ser no mundo, das ideologias

individualistas, das alianas, das diferenas individuais, da questo geracional, da

problemtica da famlia, da psicologizao das sociedades urbanas

contemporneas, da relao entre racionalidade e emoo, das relaes entre

cultura objetiva e subjetiva, cara a anlise simmeliana, onde a questo da paixo

ascende como um elemento compreensivo fundamental no jogo ambivalente de

formao dos sujeitos sociais e individuais na sociabilidade urbana contempornea

e, principalmente, para o entendimento da emergncia, fundao, modos de agir e

significar dos indivduos pertencentes s camadas mdias urbanas, sobretudo, na

sociabilidade brasileira e carioca, de modo particular.

Gilberto Velho, deste modo, um dos autores fundamentais para a

compreenso da questo das relaes entre subjetividade e sociabilidade que

movimenta os quadros tericos e do suporte interpretativo ao pensamento recente

e estruturador de uma Antropologia das Emoes no Brasil.

Luis Fernando Dias Duarte (1981, 1983, 1986 e 1987) um outro

pesquisador importante para a construo de um pano de fundo terico onde se

assenta a emergncia e fundamento de uma Antropologia das Emoes no Brasil. O

seu trabalho tem uma preocupao com a questo da relao entre subjetividade e

cultura, com uma elegante e importante discusso sobre a emergncia do indivduo

na sociabilidade ocidental e brasileira em particular.

Investigou as noes de pessoa e modernidade na sociedade ocidental

contempornea (1983) e a questo da identidade e sistemas de representao,

indivduo e pessoa entre as classes trabalhadoras urbanas, discutindo a questo da

emoo e sua importncia para a anlise social e cultural, seja atravs da

religiosidade (1983) agressividade verbal (1981) vergonha (1987) sade mental e

sofrimento psquico, atravs da categoria do nervoso (1986) entre trabalhadores

urbanos. Atualmente tem se preocupado com a questo do sofrimento social nas

classes populares e mdias no Brasil urbano. RBSE Vol. 4 n 12 dezembro de 2005 ISSN 1676-8965 244

importante destacar, aqui, o crescimento, desde o final dos anos oitenta do

sculo passado na anlise antropolgica brasileira de estudos ligados

problemtica da sade e do sofrimento social entre trabalhadores no Brasil, bem

como a questo da emergncia do indivduo psicolgico entre as camadas mdias

urbanas brasileiras. Estes estudos e pesquisas tm como centros produtores, os

grupos de pesquisa em antropologia social no Rio de Janeiro, no Rio Grande do

Sul, na Bahia e no Paran.

Uma outra srie de estudos importantes para a construo da Antropologia

das Emoes no Brasil tem sido desenvolvida por pesquisadores que correlacionam

as temticas de gnero e envelhecimento. Myriam Moraes Lins de Barros (1987 e

1989), Cornelia Eckert (2003), Clarice Peixoto (1993 e1994), Alda Britto da Motta

(1996 e 2002) entre outros, tm se dedicado discusso da identidade, das vises

de mundo, da memria, dos re-arranjos sociais, dos modos de vida e esferas

afetivas, a partir de uma tica das emoes correlacionando gnero e

envelhecimento.

Maria Claudia Coelho (2003) faz uma importante contribuio ao estudo da

ddiva, discutindo a relao ddiva e emoo. Claudia Rezende (2002, 2002a,

2003), a partir do final dos anos noventa do sculo passado, adota a antropologia

das emoes enquanto linha de pesquisa especfica para estudar a questo da

amizade. Faz uma anlise comparativa da emoo amizade entre cariocas e

londrinos tentando comparar e identificar modos de vida e organizao emocional e

social no Brasil e na Inglaterra.

Os Significados da Amizade (2002) um estudo comparativo sobre a

amizade em dois contextos culturais bastante diversos: as cidades do Rio de Janeiro

e de Londres, neles a autora procura compreender como a linguagem da amizade

lana luz sobre o modo de construir e reforar hierarquias sociais. Aprofunda os

tipos de sociabilidade que serviram como suporte formativo e imaginrio para as

noes de amizade existentes em cada uma das culturas estudadas e realiza, para

tal, uma incurso no campo terico da antropologia da emoo, produzindo uma

etnografia sobre os significados e prticas sociais e culturais da amizade e suas

relaes de classe, gnero e, no caso brasileiro, alm, sobre a problemtica racial.

Os estudos realizados por Rezende so contribuies importantes para a

consolidao de uma antropologia das emoes no Brasil. Mostra afinidade com

autores como Simmel, Weber, Elias e Foucault, e discute precursores brasileiros

com DaMatta e Gilberto Velho, entre outros, que procuram explicitar a emergncia

de uma subjetividade singular vinculada s mudanas histricas e culturais no

mundo ocidental. Elabora, por fim, uma sntese importante dos pressupostos

terico-metodolgicos que norteiam a configurao analtica dentro das cincias

sociais da emoo no Brasil. Atualmente vem trabalhando com a problemtica dos A ANTROPOLOGIA DAS EMOES NO BRASIL 245

sentidos da amizade e da cordialidade presentes no pensamento social brasileiro

dos ltimos cem anos.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury tambm vem pesquisando desde 1993 no

interior da antropologia da emoo. Busca trabalhar com as imagens e suas

representaes imaginrias e simblicas na conformao do homem comum urbano

brasileiro, as redundncias, ambivalncias e ambigidades do ato executado ou

expresso, os silncios, os discursos e narrativas fragmentados, os gestos e tiques

que invariavelmente acompanham um dilogo ou informao e, s vezes, ampliam,

modificam ou contextuam alm da prpria frase os sentidos do que se quer

expressar.

Os seus trabalhos abrem-se em trs vertentes de preocupao. De um lado,

discusso da relao entre o sentimento de luto e a problemtica da formao do

indivduo e da individualidade no Brasil urbano contemporneo, do outro, s

questes sobre imagem e sentimento e, por fim, a da relao entre medo e cidade

na contemporaneidade brasileira.

A primeira vertente de preocupao de Koury sobre a relao entre luto e

sociabilidade (1993, 1999, 2002, 2003, 2005), procura compreender as mudanas e

permanncias, conflitos e ambivalncias, nos modos de vida e imaginrio urbano

brasileiro a partir dos anos setenta do sculo XX. Tem por referncia o processo de

individualismo que vem se processando a passos largos no Brasil atual.

Faz um balano do processo de formao e reestruturao vivida pela

sociedade brasileira, desde o sculo XIX aos dias atuais, se detendo,

particularmente, nos ltimos trinta anos do sculo XX. A partir de uma releitura

aproximativa das obras de Norbert Elias, Georg Simmel e Marcel Mauss, busca

pensar a relao entre as alteraes na estrutura social e as mudanas nas emoes

dos indivduos e os processos sociais envoltos na difuso e recriao contnua de

novos modelos comportamentais que refluem sobre formas originais de expresso

do sentimento na sociabilidade urbana brasileira.

Os seus estudos buscam compreender os novos e velhos suportes que

parecem debater-se nas atitudes e modos de vida atual do homem comum de classe

mdia brasileiro, de forma ambivalente e ambgua e que o permite viver a crise

atravs de um sentimento moral em processo de fragmentao, tornando-os mais

solitrios e em processo de crescente individualizao. Que formas pessoais e

sociais so experimentadas na situao limiar do luto e que instncias e debates

internos e externos asseguram aos atores envolvidos o ajustarem-se aos ritmos da

cultura e da organizao social local e nacional? Quais os mecanismos que se

delineiam como fomentadores e realimentadores dos processos cultural e social na

nova reconfigurao da relao indivduo e sociedade no pas? At que ponto eles

permitem compreender os movimentos de reafirmao do societrio institudo,

como lugar de pertena, e desiluso, isto , sempre se movendo sob novas RBSE Vol. 4 n 12 dezembro de 2005 ISSN 1676-8965 246

roupagens e significados e, ao mesmo tempo, em contnua instituio? Estas so

questes compreensivas que perpassam as anlises e indagaes do autor sobre a

fundao e formulao de novas etiquetas e agendas comportamentais e sobre a

continuidade a elas simultneas, de uma mesma lgica de estruturao

tradicionalmente satisfeita no pas, embora vivida como descontinuidade e com

grande sofrimento social e pessoal no cotidiano das interaes.

A segunda vertente trabalhada por Koury (1998, 2001, 2002b, 2003, 2003a,

2003b, 2005), busca um aprofundamento das relaes entre imagem e

sociabilidade, principalmente atravs de uma anlise crtica da fotografia e suas

relaes com a problemtica dos sentimentos, da memria, dos estados liminares e

da questo sempre tensa entre subjetividade e objetividade na anlise do social. Os

seus trabalhos, junto com autores como Moreira Leite (2001), Feldman-Bianco e

Moreira Leite (1998) e Titus Riedl (2002), entre outros, visam construir pontes

importantes entre as cincias sociais da emoo e a antropologia visual e da

imagem, discutindo e contribuindo para um aprofundamento da anlise das

emoes e da imagem nas cincias sociais.

importante frisar, tambm, que as discusses levadas pela antropologia

visual e da imagem no Brasil, sem dvida, tem dado nfase e um suporte

fundamental ao aprofundamento da relao entre subjetividade e sociabilidade no

Brasil contemporneo, e para a anlise das emoes, ajudando a traar as tnues

fronteiras existentes entre as duas especialidades e entre as disciplinas sociologia e

antropologia em geral no Brasil, bem como assegurar um quadro de

interdisciplinaridade como fundamento bsico de ampliao e suporte nas reas em

questo.

Outra problemtica tratada por Koury, a da relao entre medo e cidade.

Esta nova problemtica investigativa se d a partir de 2001, quando retoma

discusses que j vinha realizando desde a segunda metade da dcada de oitenta do

sculo passado sobre a formao do homem comum no Brasil e a construo de um

discurso modernizador e disciplinador da cidade (KOURY, 1986, 1988), sobre a

questo da pobreza, da violncia e cidadania no Brasil (1994 e 2003d), e sobre os

sentidos de pertena e sua relao com as noes de confiana, lealdade, medo da

traio, ou da insegurana individual e as redes vinculares que do sustentculo e

base de apoio sociabilidade (2002a e 2003c).

Koury (2002a, 2002b, 2005a, 2005b, 2005c), desde ento, vem organizando

uma srie de investigaes sobre a emoo medo no urbano brasileiro

contemporneo. Nos seus estudos parte da hiptese de que a emoo medo uma

construo social significativa, atravs de uma leitura simmeliana do segredo e das

formas de sociabilidade e construo do indivduo na modernidade ocidental.

Para Koury, em toda e qualquer forma de sociabilidade o medo encontra-se

presente como uma das principais foras organizadoras do social. O fenmeno do A ANTROPOLOGIA DAS EMOES NO BRASIL 247

medo, para ele, se coloca ento como fundamental para se pensar os embates de

configurao e processos de sociabilidades e de formao dos instrumentos da

ordem e da desordem que desenham dialeticamente a ao dos sujeitos e grupos em

relao. Processos que compreendem um jogo permanente de manuteno,

conformao e transformao de ensaios sociais e individuais realizados enquanto

redes de conflito que informam e formulam um social historicamente determinado.

Uma outra temtica emergente nos estudos de Antropologia das Emoes

a anlise do sofrimento social. Koury (1999, 2003b, 2004) e Barreto (2001, 2002)

tm desenvolvido trabalhos que abordam o discurso de naturalizao e banalizao

do sofrimento na sociedade brasileira, e a expresso dos sentimentos de

inevitabilidade e indiferena nos discursos e narrativas sobre a problemtica da

violncia e de situaes limites, principalmente no urbano, no imaginrio social do

Brasil contemporneo.

Cornelia Eckert (2000, 2003) junto com Ana Luiza Carvalho da Rocha

(2000, 2000a, 2000b, 2000c, 2001 e 2002), bem como Maria Cristina Gonalves

Giacomazzi (1997), vem trabalhando a temtica da relao entre medo e cidade,

privilegiando a regio sul do pas. As duas primeiras autoras tratam do sentimento

medo atravs das experincias narradas por indivduos pertencentes s camadas

mdias na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a partir de estudos

etnogrficos desenvolvidos entre os anos de 1997 a 2000. Giacomazzi, por sua vez,

trabalha a problemtica dos medos no urbano atravs de um estudo etnogrfico de

moradores pobres da periferia de Porto Alegre. As preocupaes deste ncleo

referem-se questo da violncia urbana e da cultura do medo, vividos de forma

real ou imaginria, e que inferem transformaes estticas no ethos, nas estratgias

cotidianas e nos estilos de vida das populaes estudadas, face ao sentimento de

vulnerabilidade e insegurana dimensionadas nas experincias singulares dos

entrevistados.

Este um panorama breve, por fim, dos trabalhos, temticas e autores que,

de uma forma direta ou indireta, vem contribuindo para a consolidao da

Antropologia das Emoes no Brasil, como campo disciplinar de expanso recente

e em processo de consolidao.