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Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 21-40. 21 A ANTROPOLOGIA E A REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE A VIDA HUMANA Manuel Salvador Cabedo 1 Resumo: A pergunta pelo ser humano foi uma constante universal. Qualquer ser humano deseja saber o máximo possível sobre si mesmo: o que somos, como nos relacionamos com nós mesmos, qual é nosso destino, etc. Nenhuma outra aventu- ra filosófica resulta tão fascinante como aventura do conhecimento da existência humana. O imperativo helênico “conheça-te a ti mesmo” manteve-se como tema principal e também como problema ao longo da história do humanismo. Palavras-chave: Humanismo. Resposta teológica. Resposta racional. Liberdade. A proclamação do humanismo Nenhum outro acontecimento resulta tão fascinante como aventura do conhecimento da realidade humana. O imperativo helênico “conhece-te a ti mesmo” se manteve como desafio, como problema e tema principal ao longo da história da humanidade. As diferentes épocas e contextos históricos foram projetando, com insistência, sua imagem interpretativa do ser humano e, em 1 Professor do departamento de filosofia, sociologia e comunicação social da Universidade Jaume I, Castellón da Plana (Espanha). O texto foi traduzido do espanhol por Jovino Pizzi. ARTIGOS filosofazer_32.indd 21 1/8/2008 14:55:56

A ANTROPOLOGIA E A REFLEXÃO FILOSOFICA SOBRE A VIDA HUMANA na vida do proprio homem

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uma reflexao sobre antropologia numa visao filosofica

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A ANTROPOLOgIA E A REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE A VIDA hUMANA

Manuel Salvador Cabedo1

Resumo: A pergunta pelo ser humano foi uma constante universal. Qualquer ser humano deseja saber o máximo possível sobre si mesmo: o que somos, como nos relacionamos com nós mesmos, qual é nosso destino, etc. Nenhuma outra aventu-ra filosófica resulta tão fascinante como aventura do conhecimento da existência humana. O imperativo helênico “conheça-te a ti mesmo” manteve-se como tema principal e também como problema ao longo da história do humanismo.

Palavras-chave: Humanismo. Resposta teológica. Resposta racional. Liberdade.

A proclamação do humanismo

Nenhum outro acontecimento resulta tão fascinante como aventura do conhecimento da realidade humana. O imperativo helênico “conhece-te a ti mesmo” se manteve como desafio, como problema e tema principal ao longo da história da humanidade. As diferentes épocas e contextos históricos foram projetando, com insistência, sua imagem interpretativa do ser humano e, em

1 Professor do departamento de filosofia, sociologia e comunicação social da Universidade Jaume I, Castellón da Plana (Espanha). O texto foi traduzido do espanhol por Jovino Pizzi.

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consonância, proclamaram os correspondentes códigos de conduta moral. De modo particular, a partir da Modernidade, o humanismo foi proposto como a condição de possibilidade do conhecimento verdadeiro e a referência necessá-ria para a vida social.

Atualmente, no entanto, não faltam vozes que proclamam o “mito do humanismo ilustrado” como o “último ídolo” que deve ser questionado e redu-zido a cinzas. A freqüente desumanização de nosso mundo tecnificado gerou, em muitos filósofos atuais, a recusa da tradição humanista o que em sua opi-nião, indica e pressagia o pronto “desaparecimento e morte do ser humano”.

No entanto, ainda reconhecendo a existência dessas importantes cor-rentes filosóficas, não se pode negar que, no fundo, também nestes pensadores anti-humanistas a vida humana e o problema de sua existência no mundo con-tinua sendo o tema principal de sua reflexão. “Não há problema filosófico cuja solução reclame nosso tempo com mais peculiar urgência – afirma Max Scheler – que o problema de um estudo digno do ser humano”. A pergunta sobre o que é o ser humano constitui, inclusive hoje em dia, o tema mais importante que, de fato, ocupa atenção dos pensadores contemporâneos.

O enigma da existência humana

De onde viemos? Que somos? Para onde vamos? Essas perguntas constituem o título de um quadro pintado por Paul Gauguin (1848-1903), para quem, o problema chave do sentido ou sem-sentido da existência humana, ocupava e pre-ocupava muito mais que as questões freqüentes de índole estética, religiosa ou científica. A pergunta essencial sobre o ser humano não é fácil de ser contesta-da. Quando o artista chegou ao convencimento de que, na sofisticada civilização européia, jamais poderia encontrar a inteligível resposta à pergunta existencial, decidiu romper com os convencionalismos habituais dessa cultura, exilando-se nas ilhas do Tahití. Assim, em terras longínquas e em culturas menos adulte-radas, ele esperava poder encontrar a solução ao enigma da condição humana com mais precisão. Gauguin esquecia que tais indagações são tão antigas quan-to novas como o próprio ser humano e, ainda, o mesmo mistério que as envolve se manifesta em todos e em cada um dos contextos culturais que envolvem o ser humano.

O ser humano busca e necessita perguntar por si mesmo e pelos demais; é a pergunta mais importante. Quando a pessoa se volta sobre si mesma e refle-xiona sobre sua identidade pessoal e a realidade que o rodeia, o problema huma-

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no emerge, espontaneamente, de muitas e distintas formas, em sua consciên-cia, tanto nas experiências cotidianas de amor e felicidade, como nas decepções diante da dor e da desesperança.

É evidente que o significado e o destino da vida humana não sempre são fáceis de entender e de explicar. Como prognosticou um dos humanistas mais insignes da história humana, Erasmo de Rotterdam: “o homem é um ser extra-vagante e complicado”. A vida dos seres humanos está cheia de paradoxos e, conforme seja a perspectiva a partir da qual se analisa, aparecem, na existência humana, indícios de drama e de comédia, de choro e de regozijo, de diversão e de aborrecimento, de finitude e de infinitude. Essa ambivalência semântica deixou amplo eco nas tradições literárias de todos os povos.

No que se refere a nossa civilização ocidental, basta recordar dois textos de beleza excepcional, tirados das duas grandes tradições da cultura européia: o pensamento religioso da Bíblia e o filosófico da Grécia clássica. Nesse sentido, pode-se ler, na passagem bíblica, diante da qual o salmista, frente ao céu estre-lado que gira no universo eterno, anima a consciência da mesquinhez e insig-nificância dos seres humanos, ao mesmo tempo em que reconhece e glorifica a grande dignidade humana: “Que é o homem para que te interessares por ele [...] até o ponto de coroar-lhe de glória e esplendor? Tu o tens feito um pouco inferior que os anjos e o tens coroado com glória e honra” (Salmo 8).

Não menos elogiosa e bela é a tese grega contida no fragmento da Antígona, de Sófocles, quando o segundo coro relata a grandeza da natureza e dedica, ao ser humano, os maiores elogios: “Existem muitas coisas portentosas, mas ne-nhuma tão prodigiosa como o homem” (Antígona, v. 332). O coro transborda de assombro e admiração diante da dignidade do ser humano que, à diferença do resto dos seres naturais, não permite deter-se em um lugar determinado, sendo capaz de dominar os demais seres naturais; no entanto, e ao mesmo tempo, o coro recorda, com pânico, a capacidade que o ser humano tem de realizar o mal, ou seja, de autodestruir-se, sem assumir uma atitude adequada na comu-nidade cidadã. Não menos interessante resulta o mito de Prometeu, tal como relata Platão, no diálogo dedicado a Protágoras (Protágoras, 319c-322d).

Os testemunhos de surpresa e admiração diante a condição humana são encontrados em todos os momentos da história do humanismo. Todavia, eles aparecem com maior força, por assim dizer, nos movimentos filosóficos atuais mais relevantes. Neles, tais aspectos revelam, com enorme radicalidade, a de-ficiente compreensão da condição paradoxal do ser humano e percebe-se o perigo que corre o novo afã da exata interpretação da dignidade humana. Karl

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Marx, um dos pensadores que mais tem influenciado a filosofia de nosso tempo, defendia que todo indivíduo humano é produto da sociedade em que vive. “A natureza concreta do homem não é senão a totalidade das relações sociais”, afirma Marx, em suas Teses sobre Feuerbach. Sartre, outro dos referentes ideo-lógicos do momento, nega que estejamos determinados por nossa sociedade e defende que todo indivíduo é livre para decidir, por si mesmo, sobre o que quer ser e fazer: “o homem está condenado a ser livre”.

Estas duas opiniões de grandes pensadores salientam a idéia do descon-certo e falta de consenso em relação à definição da natureza humana. Como podemos ver, o ser humano é, às vezes, interpretado apenas como necessidade e, outras, somente como liberdade, isto é, como produto e produtor, como na-tureza e história. Não há unanimidade na interpretação e explicação da reali-dade humana.

Atualmente, as relações do ser humano com seu entorno natural parecem desdobrar-se com acentuada violência. Antes, partia-se do convencimento de que a natureza não possuía limites e era inesgotável. O âmbito da natureza era concebido como algo que se devia aproveitar e, ao mesmo tempo, que se podia controlar, pois era algo imensamente rico e poderoso, suscetível de ser explora-do sem limitações. Hoje, no entanto, percebe-se que a natureza se converteu em provisão escassa e frágil, que podemos dominar com nosso conhecimento e disposição, mas que, com todo respeito, devemos proteger e reparar para poder aproveitar-se dela. A revolução científico-técnica, que constitui a base desta mudança de perspectiva, eliminou, em pouco tempo, as formas tradicionais de referência normativa e os critérios válidos para definir nossa realidade pessoal no âmbito natural. Ao mesmo tempo, ela proporciona novas possibilidades de ação ética e política, com os perigos decorrentes. É certo que prestigiosos pen-sadores previnem, com muita freqüência, dos grandes perigos em que a huma-nidade se vê exposta e, inclusive, advertem sobre o risco de sermos obrigados a viver, “por princípio, sem esperança” (CONILL, 1991, p. 99-106).

O ser humano se perde, com freqüência, em muitas áreas: política, cien-tífica, filosófica e religiosa, mas, felizmente, não perde a capacidade de se reen-contrar. De fato, é ele mesmo quem mantém a possibilidade de criar, inventar novas situações e transformar as circunstâncias perversas que o envolvem. Pre-cisamente nisso consiste a enigmática condição do ser humano. Ao converter-se, para si mesmo, em uma questão aberta, evidencia, então, uma divisão. O mesmo sujeito se converte em interrogador e, da mesma forma, em interro-gado. Quanto maior for o número de respostas possíveis, tanto mais parece

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encontrar-se como em um salão de mil espelhos e máscaras, invadindo-lhe uma confusão a respeito de si mesmo, pois se descobre necessitado de orientação e de consistência para explicar o sentido de sua existência. Na verdade, trata-se, em certo sentido, de situações nas quais parece encontrar-se em um vazio e sem justificativa na qual apoiar-se. Em palavras de Franz Kafka, vivemos em um enorme castelo, no qual devemos percorrer inúmeros corredores, sem saber, muitas vezes, para onde nos conduzem. Estamos implicados em um trágico pro-cesso que nos obriga a todo tipo de diligências que, consideradas isoladamente, são razoáveis, mas que, no conjunto, resultam ininteligíveis. Sempre que preten-damos ter experiência do ser humano, o experimentamos como problema, como liberdade e abertura. Como afirma H. Plessner, “somos, mas não nos dispomos”.

Essa situação de confusão e desorientação, no entanto, é tão antiga quão moderna, como o próprio ser humano. Sabiamente recorda Ortega y Gasset: “Trata-se de que o homem perdeu-se outra vez mais no mundo. Mas não é uma casualidade: o homem se perdeu já muitas vezes. Mais ainda: é essencial ao homem perder-se, desorientar-se na selva do existir. É seu trágico destino e seu ilustre privilégio!” (1980, p. 17).

Essas e outras reflexões animam o inquieto M. Foucault ao convenci-mento de que se deve rechaçar o “sonho antropológico” e suspeitar da con-dição privilegiada do ser humano como referência cognitiva do saber. Por que é necessário um discurso em torno ao ser do homem? Essa é a indagação de Foucault, prognosticando o eminente desaparecimento da antropologia, en-quanto núcleo epistêmico do saber, para dar lugar a uma nova fundamentação da ciência, completamente alheia a qualquer relação vinculante com a existên-cia humana. Numa entonação bastante polêmica e provocadora, o pensador francês escreve:

A todos aqueles que ainda querem falar do homem, de seu reino ou de sua liberação, a todos aqueles que ainda desejam elaborar perguntas so-bre o que é o homem em sua essência, a todos aqueles que querem partir dele para ter acesso à verdade [...]; a todas essas formas de reflexão tor-pes e desviadas, não se pode opor outra coisa a não ser um caçoar filosó-fico – ou seja, em certa forma, silenciosa (FOUCAULT, [s.d.], p. 333).

Nesse contexto e sem pretender questionar a tese de Foucault em torno da necessidade de uma nova fundamentação do saber, formulamos a seguinte questão: a pergunta pelo ser humano perde legitimidade e obrigatoriedade pelo simples fato de negar a condição privilegiada do ser humano como entrelaça-mento epistêmico do saber moderno?

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A defesa do humanismo

Sem dúvida, a insistência no caráter enigmático da condição humana oferece uma boa escusa para defender, racionalmente, a excelência do huma-nismo diante de inúmeras e graves humilhações – cosmológicas, biológicas, psi-cológicas e morais – às quais se viu submetido o ser humano, especialmente a partir do desenvolvimento progressivo da ciência. Ele se encontra envolvido, sem apenas dar-se conta, na paradoxal confrontação entre a racionalidade subs-tancial e a irracionalidade funcional, ou seja, ele se descobre em um mundo de-sorientado no qual muitas decisões dos seres racionais funcionam a serviço da sem-razão. A ordem parece colaborar com a destruição e a inteligência dominante nos conduz freqüentemente ao absurdo.

Apesar do desencanto e da frustração que o ser humano experimenta na pretensão de dar explicação de si mesmo e de seu contexto social, é evidente que, de modo algum, podemos renunciar à exigência de interpretar a existência humana e, assim, descobrir-nos a nós mesmos. O mérito de Dilthey está em haver-nos convencido de que toda a vida humana é, diante de tudo, suscetível de ser interpretada; ela é, em si mesma, hermenêutica. Por isso, a tentativa de buscar e ofertar a interpretação da realidade não é algo externo e secundário no ser humano, mas constitui uma de suas características essenciais. No momento em que o ser humano tem, consciente ou inconscientemente, uma primeira intuição interpretada do mundo, não pode deixar de ter, ao mesmo tempo, intuição e interpretação de si mesmo e dos outros. O ser humano, ao mesmo tempo em que se interroga pelo mundo e seu horizonte vital, situa-se diante de si mesmo como tema e problema fundamental. No fundo, a poesia, a religião e toda reflexão filosófica, por menos refinada que seja, respondem, necessaria-mente, a uma determinada imagem do ser humano.

A resposta mítico-religiosa

Porquanto, nas culturas primitivas, o ser humano apenas ocupa lugar rele-vante no conjunto da natureza, é evidente que, na cultura ocidental, o homem possui um lugar preferente no mundo. Na tradição bíblica, todavia, encontra-mos a resposta à importante pergunta sobre a condição humana que continua através dos séculos na civilização ocidental. Nas obras da revelação judaico-cristã, a partir dos primeiros capítulos do Gênesis, aparece a firme convicção

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de que o ser humano é, aos olhos da divindade, o ser mais excelso de toda a criação. Deus não criou o ser humano do mesmo modo que os demais seres, pois reservou, para a sua criação, o dia mais solene, no qual decidiu completar a obra criadora de toda a natureza. Ele reserva para o ser humano um modo especial de criação. Como diz o Gênesis: o criou à Sua “imagem e semelhança” (1, 26). Os demais seres são apenas criaturas de Deus; o ser humano, além de ser criado, foi feito à imagem divina; é imago Dei. Os seres humanos, além de criaturas divinas, são os únicos participantes da dignidade divina. O ser huma-no não é reconhecido apenas como o ser mais nobre da criação, porque, além disso, é criado para dominar sobre o resto da criação e colocar nome nas coisas. De fato, somos seres racionais, com capacidade para amar e manter um diálogo pessoal com Deus. Com isso, adquirimos nossa dignidade sagrada e recebemos a mensagem de esperança para um destino eterno junto a Deus.

Embora seja verdade que os seres humanos, em comparação com os de-mais seres criados, ocupam um lugar eminente e desempenham um papel espe-cial, não se deve esquecer que fazem parte, de modo excepcional, do resto da natureza criada. Somos feitos do “pó da terra” (Gênesis 2, 7), isto é, comparti-lhamos, com toda a natureza, a mesma base material. A distância entre Deus e a natureza, entre Deus e o ser humano, é, certamente, imensa. Por isso, o ser humano, na presença da divindade, deve se reconhecer, a si mesmo, em sua não divindade, em sua inferioridade e gestação terrena.

Sem dúvida, o ponto mais crucial da mensagem bíblica sobre a nature-za humana refere-se ao problema da liberdade humana e, em decorrência, ao problema do bem e do mal, concebido como escolha, por parte do ser huma-no, entre a obediência e a desobediência à vontade de Deus. A necessidade da escolha humana se apresenta já no princípio, no Gênesis (2, 16-17). Dado que o ser humano optou, livremente, pela desobediência diante do mandado divino, caiu prontamente na desgraça e juntou a sua condição de imago Dei à de homo peccator. O Gênesis apresenta certos traços característicos da natureza humana como resultado da desobediência dos primeiros humanos, Adão e Eva (3, 14-19). O ser humano nasce contagiado pelo pecado, como Isaías afirma (59, 2), porque seus primeiros pais abusaram da vontade livre que Deus lhes concedeu.

A doutrina do pecado original não implica, no entanto, que o homem se converta em um ser depravado; acarreta, simplesmente, que, à sua condição de imagem de Deus, adiciona-se a condição pecadora. No relato bíblico da criação

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encontramos, por certo, um excelente diagnóstico da grandeza humana, mas também uma séria advertência de sua fragilidade. A doutrina da salvação, pro-clamada no Novo Testamento, se relacionará estreitamente com a mensagem contida na tradição bíblica. A análise da natureza humana, contida nos livros do Antigo Testamento receberá as matizes complementárias na mensagem do Salvador e predicada pelo Cristianismo. Segundo o Novo Testamento, a reden-ção das conseqüências do pecado é oferecida, de modo gratuito, a todos os seres humanos e eles podem aceder à salvação mediante o dom da fé em Jesus Cristo, que redime e oferece a salvação aos que crêem Nele.

A resposta a partir da razão

O humanismo propriamente dito tem sua origem no pensamento clás-sico da antiguidade greco-latina. Na Grécia se inicia a pretensão de recorrer à capacidade do pensamento humano para responder à grande pergunta sobre a existência humana: impulsiona-se a passagem do mito ao logos. A partir das contribuições dos grandes mestres da Grécia, o ser humano busca respostas à pergunta sobre a natureza humana em si e por si mesmo, através da reflexão filosófica. Segundo a conhecida frase de Cícero, os filósofos gregos fizeram des-cender à terra a sabedoria divina. Sócrates compreendeu a necessidade de in-terpretar, no sentido antropológico, o profundo epigrama do templo de Apolo, em Delfos: conheça-te a ti mesmo, ou seja, explica-te a ti mesmo quem és, de onde vens e para onde vais. Seus discípulos conservaram a confiança socrática na investigação racional e mantiveram o convencimento de que, mediante a razão, é possível alcançar o conhecimento da realidade humana. A favor dos grandes mestres do pensamento grego, a mensagem socrática se converteu em referência ineludível da cultura ocidental: o ser humano se converte na “me-dida de todas as coisas, as que são, enquanto são, e as que não são, enquanto não são” (Protágoras).

Platão, nos seus Diálogos, descreve e defende as qualidades ou as virtudes que acompanham ou devem acompanhar o ser humano, deixando claro que o núcleo fundamental da natureza humana reside na sua alma, categoria imate-rial que existe a partir de sempre e subsistindo eternamente. A realização plena do ser humano consiste, portanto, na crescente desmaterialização e espiritu-alização da vida corporal. As doutrinas sobre o dualismo da alma e do corpo, sobre o destino transcendente da alma e o excelente dom da racionalidade,

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constituíram-se referências fundamentais no momento de oferecer explicações da realidade humana na filosofia dos gregos. Os sofistas – pensadores também bastante preocupados pela condição humana e suas relações sociais – foram os primeiros que, no mundo antigo, proclamaram explicitamente a igualdade de todos os homens, baseando-se na natureza compartilhada por todos os huma-nos. Isso foi exposto por Hípias com clareza meridiana: “Por natureza, o igual está irmanado com o igual; os costumes, no entanto, o nomos, esse tirano dos homens, força muitas coisas em contra da natureza”.

A interpretação filosófica sobre a natureza em geral, exposta por Platão na Academia, foi revisada no Liceu por Aristóteles, para quem, a respeito do tema concreto da explicação da condição humana, distanciou-se de seu admira-do mestre. Se o ser humano, segundo Platão, apresenta-se, neste mundo, como um forasteiro – pois sua alma existe antes mesmo do nascimento e existirá eter-namente depois da morte –, em Aristóteles, o ser humano tem sua morada neste mundo, no qual toma consciência de si mesmo como um ser natural e a partir do qual deve ser interpretado como um ser corporal e social. Na filosofia aristotélica, o ser humano pertence integralmente ao conjunto da natureza, assume plenamente sua responsabilidade e pretende viver comodamente em seu contexto natural.

Em uma primeira aproximação ao estudo do ser humano, Aristóteles o define como “o ser vivo dotado de razão” (Tópicos, V, 4, 133a). O ser huma-no, ao agir segundo sua natureza, deve comportar-se de maneira racional. Essa definição foi considerada, na cultura ocidental, durante muitos séculos, como referência evidente e inquestionável. Na racionalidade, reproduz-se tanto a condição natural como a função específica do ser humano. Os estudantes do Liceu, e seus discípulos posteriores, acreditaram descobrir, na definição aristo-télica, uma significação altamente exigente: a plena realização do ser humano devia seguir o processo da potenciação da racionalidade até a meta suprema da sabedoria plena, ou seja, “o processo do homem a si mesmo”. A racionalidade se converte em imperativo moral que indica a meta a qual deve voltar-se qual-quer atividade humana.

Não menos famosa e influente foi a segunda definição do ser humano, proporcionada por Aristóteles: “o animal social por natureza” (Política, I, 2, 1253a, 9). Não é o azar ou o puro costume, muito menos o pacto social ou o imperativo divino, mas a própria condição humana que é considerada como a instância que move o homem a unir-se aos outros humanos, para se constituir e

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realizar-se na polis. A dimensão comunitária (a koinonia) no ser humano consti-tui a condição que torna possível sua plena realização. O ser humano é o único ser vivo com capacidade para o sentido do justo e do injusto, do bem e do mal, pois a referência à ordem social constitui o critério da justiça e da injustiça, da bondade e da maldade. Evidentemente, em Aristóteles, a dimensão racional e a dimensão política não constituem duas instâncias que rivalizam entre si, pois devem ser interpretadas como manifestações que complementam e enriquecem a realidade humana. Na Ética a Nicômacos permanecem configurados os traços mais importantes da vida prática do ser humano.

Na filosofia ulterior, o estoicismo manteve firme a tese aristotélica sobre a condição racional do ser humano. Na apatheia, domínio da razão sobre as paixões, a perfeição humana torna-se possível. Além da racionalidade, o es-toicismo reivindica, para a existência humana, a conexão social: o ser humano só pode realizar plenamente sua vida humana na comunidade. Em palavras de Sêneca: “altero vivas oportet, si vis tibi vivere” (De benef., IV, 18). Além disso, é introduzida, na filosofia estóica, a passagem da polis à cosmópolis. O ser humano não deve ser considerado exclusivamente cidadão de uma cidade, mas sentir-se vinculado à humanidade inteira. Para isso, a comunhão de todos os seres humanos no profundo de seu ser é mais decisiva que as diferenças históricas e culturais entre os povos.

Com a chegada da estoa romana, incrementa-se o valor de qualquer hu-mano, a humanitas. O ser humano é considerado como uma coisa sagrada para o homem. Ao ideário romano antigo do homo romanus, Cícero, a partir de sua perspectiva estóica, lhe acrescenta o ideal novo e mais apreciado do homo hu-manus. Para ele, a diferença decisiva entre os seres humanos não consiste na condição de romano ou bárbaro, mas na humanidade ou na inumanidade dos romanos e dos bárbaros.

Na paideia grega e nos studia humaniora de Roma, é possível encontrar, portanto, as bases do modelo humanista que, posteriormente, se consolidará a partir do Renascimento.

O humanismo do Renascimento

Na filosofia greco-latina e na cultura medieval, a reflexão sobre o ser huma-no é concebida principalmente como tema, ou seja, como um modelo inflexível e permanente. Nesse sentido, é suficiente recordar, por exemplo, a famosa de-

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finição de Boécio (480-524): “a pessoa é uma substância individual de natureza racional”. Sua resposta à pergunta sobre a natureza da pessoa humana, como a de outros eminentes filósofos da época, resulta firme e abstrata, encerrada em si mes-ma, sem apenas possibilidade de avanço e relação com o mundo circundante.

A partir do Renascimento, a realidade humana e seu estudo se configu-ram mais como problema: a existência humana não é uma realidade inalterável, mas um processo e um problema (Cf. GARCIA BACCA, 1982, p. 31). O con-ceito humanitas não é apenas uma designação objetiva da espécie humana, mas se interpreta, principalmente, como uma designação ética que interpela o ser humano e o induz ao cumprimento, embora insatisfatoriamente, de seus com-promissos e esperanças. O ser humano se experimenta como um dom e como uma tarefa. Com isso, pode-se afirmar, então, que se inicia o genuíno “giro an-tropológico”. Na verdade, pretende-se compreender o ser humano não apenas dentro do marco da natureza imutável e no âmbito religioso, mas como realida-de essencialmente histórica e autônoma. O ser humano existe “aqui e agora”; sua existência é muito importante para determinar sua essência, de modo que sua realidade é condicionada por fatores históricos e ambientais. A partir desse convencimento, o humanismo renascentista não se limita ao estudo do que os seres humanos sempre foram e do que sempre significaram, mas também naquilo que os seres humanos, por sua vontade, estão se convertendo, de seus desejos, intenções e conquistas históricas.

Os ensinamentos contidos na tradição bíblica e na filosofia grega atribuíam ao ser humano uma atitude singular no contexto dos seres naturais; e mais, os demais seres naturais eram considerados e classificados em relação à realidade humana, ex analogia hominis. Outra coisa bem diferente é que de fato houves-se consenso no momento de justificar e interpretar, com detalhe, a excelência da condição humana e coerência ao aplicá-la à vida em geral. Cedo podemos constatar que, na tradição ocidental, se impôs, de modo geral, a tendência a su-pervalorizar, egoistamente, a própria existência, infra-valorizando e, inclusive, desprezando a realidade humana diferente e estranha. Tanto em Israel como na Grécia, a defesa da própria classe e os privilégios do próprio povo foram quali-ficados como valores primordiais. Os estrangeiros valiam menos e, freqüente-mente, eram considerados como culpáveis dos próprios males e da sociedade como um todo. O estrangeiro é o bárbaro, considerado de menor categoria humana e ao qual se lhe reduzia em teoria – também muitas vezes na prática – à condição de escravo. As perversas distinções incorporadas na interpretação

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da dignidade humana, assim como as paradoxais conclusões justificadas nas condutas sociais, conduziram facilmente à desorientação e à decepcionante constatação de que o ser humano teria receio dos argumentos em defesa de sua dignidade e questiona seus direitos e deveres. Claro exemplo da desorientação existente é a desoladora censura do humanista Francesco Petrarca (1304-1374): “Os homens percorrem seus caminhos, admiram os picos das montanhas, o des-locamento das grandes correntes do mar e o movimento orbicular das estrelas; no entanto, cada vez se afastam mais e mais de si mesmos” (De fam.,VI).

Os humanistas do Renascimento se propuseram, como objetivo imedia-to, a liberação do ser humano das amarras religiosas e dos arcaicos elos que a cultura medieval lhes havia imposto, ou seja, pretenderam conseguir o abando-no da tirania eclesiástica e da metafísica escolástica. Na tentativa de buscar a afirmação plena da realidade humana, essa mudança reiterou que a verdadeira autonomia do ser humano consistia na sua emancipação em relação a toda espécie de escravidão cultural e social, recusando, portanto, o autoritarismo religioso e filosófico. É o momento de reconsiderar outra vez o problema funda-mental subjacente em todo o humanismo, ou seja, que é o ser humano e como torná-lo conhecido envolto nas formas inumanas de sua existência. Nicolas Malebranche (1638-1715), o mais importante entre os seguidores da filosofia cartesiana, escreve no prólogo de seu texto da Recherche da verité:

Entre todas as ciências humanas, a do homem é a mais digna dele. No entanto, entre todas as que possuímos, ela não é a mais cultivada, nem a mais desenvolvida. A maioria dos homens a descuida por completo e, ainda, entre aqueles que se dão às ciências, poucos se dedicam a ela e menos, no entanto, quem as cultiva com êxito.2

É o momento de delinear a empírica heterogeneidade da condição hu-mana e contribuir com o estudo do problema humano na sua realidade concre-ta frente às pretendidas e enganosas abstrações. “Não é coisa que nos importe demasiado saber que é a alma, embora sem saber como seja e quais são suas operações”, afirmava Luis Vives, a quem preocupava, acima de tudo, a felici-dade dos seres humanos (De Anima, II, 1175). Neste mesmo sentido, é impor-tante interpretar as propostas filosóficas e as exigências políticas de Maquiavel, de Thomas Morus, de Erasmo de Rotterdam e de outros pensadores contempo-

2 Um século antes, o ilustre M. de Montaigne já havia proclamado, com força e clareza, a tese fundamental do humanismo renascentista: “o estudo do próprio homem constitui a ciência verdadeira” (Essais III, 3).

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râneos preocupados, de modo especial, com o conhecimento da vida real dos seres humanos, suas virtudes e seus defeitos.

Antes, na Antigüidade e ao longo da Idade Média, a vida humana era analisada, de modo geral, a partir da perspectiva filosófico-religiosa. No Renas-cimento, o problema humano e questionado imanentemente buscando “o con-teúdo intrínseco próprio da natureza humana” (Dilthey). Acima de tudo, pro-cura-se explicitar o valor do humano concreto. O jovem Pico della Mirandola (1463-1494) será o primeiro a formular, de modo formidável, o sentir dos tem-pos novos. Em sua célebre alocução De hominis dignitate exalta, com grande eloqüência e confiança, a ilimitada capacidade de autoprojeção do ser humano. O ser humano não apenas está no mundo, mas deve enfrentar-se com ele. O homem deve fazer sua vida e viver em dignidade.

A filosofia da liberdade

A época moderna se caracteriza por ser um período de muitos progressos no estudo do mundo natural e também no campo concreto da compreensão da natureza humana. Os métodos modernos se aplicaram principalmente ao campo da ciência, mas tiveram incidência também na análise da condição hu-mana. Esta tendência aparece claramente nos escritos de Hobbes, Spinoza e muitos outros pensadores. Com a dessacralização do humano, reabilita-se o espaço epistêmico-antropológico, que prevalece sobre os dogmatismos do obs-curantismo religioso. O humano se apresenta como fundamento da realidade e como valor em si, digno de ser considerado e implantado no mundo. “A ciência do homem é a única fundamentação sólida para todas as demais ciências [...] Eu haverei feito bastante se contribuo a colocá-la um pouco mais de moda”, escreve Hume (1711-1776) no Tratado sobre a natureza humana. A filosofia ra-cionalista propunha a razão como única instância clarificadora da vida e da história, analisada e criticada por Hume, para quem não é somente a razão, mas também e, principalmente, as paixões humanas que devem ser levadas em con-sideração, pois, de fato, adquirem grande relevância. Apenas se as levamos em conta conseguiremos explicar, com objetividade, nossas interações no mundo e nossas relações sociais com os demais. A razão, que deriva do pensamento, não é mais “a escrava das paixões”, pois ela não pode ditar nossos fins, mas somente indicar-nos como conseguir o que já desejamos.

Com as contribuições da filosofia do Iluminismo, o humanismo recebe

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um novo impulso. A grande esperança do movimento ilustrado reside na apli-cação adequada dos métodos da pesquisa científica aos assuntos humanos. A humanidade deve abandonar o obscurantismo das crenças tradicionais e me-lhorar as condições da vida humana mediante o exercício da racionalidade hu-manista. A liberdade, a igualdade e a fraternidade se apresentam como valores fundamentais e desejados para a nova configuração social.

A orientação marcadamente racionalista do pensamento ilustrado fran-cês foi enriquecida pelo classicismo e o romanticismo da filosofia alemã: Her-der, Schiller, Goethe, Humbolt e outros. Todavia, foi Kant (1724-1804) quem soube delinear, como ninguém, a questão antropológica em si mesma e em sua relação com o mundo. Ele foi o primeiro a compreender e formular criticamen-te a necessidade de responder à pergunta pelo ser humano como núcleo central da filosofia. Embora tenha passado toda sua vida em Königsberg, Kant recebeu uma formação ampla e universal que lhe permitiu conectar-se perfeitamente com a investigação científica e os problemas de seu tempo.

Na introdução a Lições de Lógica, Kant agrupa o campo da filosofia nas quatro conhecidas perguntas: Que posso saber? Que devo fazer? Que me está permitido esperar? Que é o homem? As três primeiras perguntas, nas quais se articula seu projeto filosófico e nas que se questionam as dimensões consti-tutivas da razão humana, resumem-se na quarta: a resposta a essa pergunta devia ser a conseqüência lógica das contestações dadas às questões anteriores. A filosofia, segundo Kant, só é viável se, e somente se, desenvolve a partir da e para a justificação da existência humana. A partir do magistério kantiano proclama-se a indubitável vocação antropológica da filosofia moderna. O giro copernicano introduzido por Kant na filosofia moderna proporciona uma nova forma de pensar, uma nova postura diante do mundo e propõe a prioridade da consciência humana, promovendo a afirmação da liberdade. A condição hu-mana e sua felicidade se convertem em condição de possibilidade do sentido ou sem-sentido do mundo. A razão, em palavras de Kant, deve ir além do fe-nomênico para afirmar a ordem da liberdade, condição necessária para poder interpretar a realidade humana com sentido. Os objetos devem conformar-se às nossas possibilidades de conhecer e a liberdade deve ser reconhecida como a instância suprema da dignidade humana.

Para Kant, a dignidade do ser humano se ergue no centro de todos os valo-res. “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vonta-

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de” (Fundamentação, 27). Só uma boa vontade humana pode ser tida como um valor absoluto, nunca suscetível de ser submetida e subordinada a interesses. O ser humano é um fim em si mesmo e, portanto, não deve ser utilizado como instrumento ou meio para outros objetivos externos a ele. A pessoa não tem preço, seja ele comercial ou de afeto, pois possui valor por si mesma: o “valor da dignidade”. O ser humano existe como fim em si mesmo; não deve ser utili-zado como meio para qualquer uso desta ou daquela vontade. Todo ser humano pode e deve representar-se como autônomo, como autolegislador no “reino dos fins” (Fundamentação, 90). Na autonomia exibe-se a condição essencial da na-tureza humana e de qualquer natureza racional.

Na última das perguntas delineadas nas Lições de Lógica pode-se reparar pretensão de reduzir todo o saber filosófico à antropologia. No entanto, Kant se detém em explicar e dar respostas às três primeiras perguntas, simplesmente demorando-se em dar resposta à pergunta pelo ser humano. Como se Kant – nos diz M. Buber – houvesse tido reparos a enfrentar, com determinação, a questão que considera fundamental. M. Morell insiste em reconhecer, em Kant, o mé-rito de haver sugerido a genuína resposta sobre o ser humano, embora admita que ela nunca esteve à altura do empenho kantiano e proporciona a seguinte justificação:

A grande dificuldade que ronda o problema do ser do homem deve ser buscada, para Kant, nessa irremediável distância de um ser que é, às ve-zes, sujeito e objeto, sujeito determinante da condição de possibilidade de conhecimento e sujeito determinado como eu, objeto de representa-ção – nessa fratura abre o ser que afirma ‘sou’, entre um eu que é sujeito e um eu que é predicado (MORELL, 1987, p. 29).

Se o giro antropocentrista iniciou propriamente no Renascimento, em Kant o encontramos plenamente consolidado, a ponto de que a filosofia kantiana reivindica, para o ser humano, o direito à plena autonomia.

No itinerário que conduz à genuína resposta à pergunta sobre o ser humano resultam relevantes as contribuições de L. Feuerbach. Sua análise da condição humana tem indícios diferentes do proposto por Kant e centra sua obstinação em liberar o ser humano da sujeição ou da subordinação tanto teológica como filosófica, que, em sua opinião, permanecia justaposta à reflexão antropológica dos pensadores anteriores. Na análise do ser humano, tal como a concebe Feu-erbach, deve-se abandonar o horizonte idealista que defende não só o mestre do idealismo, Hegel, mas também Kant e os filósofos anteriores. A razão do

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mundo, que os idealistas defendiam, na opinião de Feuerbach, não é mais que um novo conceito que encobre o deus da teologia e a razão absoluta do ide-alismo. Assim como a teologia, quando explica a natureza não faz mais que transladar a realidade celeste à concreção terrestre, também quando a filosofia fala da razão do mundo não faz mais que transladar a existência humana real e concreta à ideal e celestial. A filosofia não deve simplesmente filosofar sobre o ser humano junto a outras muitas coisas, mas analisar a realidade humana em sua realidade existencial e material. A nova filosofia deve ter “como princípio de conhecimento e como sujeito não o Eu, nem o espírito absoluto, ou seja, abstrato, ou, em poucas palavras, não a razão in abstrato, mas o ser real e total do homem” (Grundsätze, 50). É preciso, pois, reorientar o estudo do ser hu-mano. Na nova filosofia, o ser humano real deve se converter em objeto único e universal. Com isso, pretende-se levar a cabo, na existência real humana, a redução de toda a perspectiva ideal e sobrenatural.

Não deve passar inadvertido que, quando Feuerbach alude ao ser huma-no como objeto supremo da filosofia, não o entende como ser individual, mas como comunidade que inclui a relação do eu e do tu. A essência completa do ser humano se encontra apenas na relação intersubjetiva, na unidade do homem com o homem, uma unidade que se apóia na realidade da complementaridade e a diferença entre eu e tu. O delineamento filosófico que Feuerbach propõe em seus escritos é digno de ser considerado, em palavras de M. Buber, como a revolução copernicana do pensamento antropológico da Modernidade.

A antropologia filosófica

Com o auge e o prestígio das ciências empíricas, inicia-se, a mediados do século XVIII, um novo método para o estudo da realidade humana, dando lugar à área científica denominada Antropologia. As duas vertentes básicas – a física e a cultural – em que se desenvolverá a metodologia científica aplicada ao es-tudo da realidade humana, dão lugar a duas grandes ramos da Antropologia: a físico-biológica e a sócio-cultural. Os pesquisadores e filósofos interessados no estudo complexo da condição humana prontamente advertiram que, embora a filosofia idealista, desconhecedora do que as ciências podem contribuir com a realidade humana, corre o perigo de se converter em pura especulação em tor-no do ser humano. Da mesma forma, a Antropologia, supostamente elaborada com rigor científico, tem o perigo de permanecer em um positivismo acrítico

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de curto alcance. A reflexão filosófica sobre o ser humano tem certamente que conceder mais atenção à realidade corporal como integrante da condição humana e apoiar-se, necessariamente, na investigação científica. No entanto, diante da potenciação exclusiva do biológico na realidade humana, deve-se garantir também a presença da reflexão filosófica e aproveitar as contribuições das demais ciências humanas como a Sociologia a Psicologia a História, a Filo-logia etc. É preciso construir pontes e tender a sínteses inovadoras, sem esque-cer que a reflexão filosófica tem muito a contribuir com a reflexão científica sobre o ser humano.

Diante dos delineamentos antropológicos tradicionais, Max Scheler foi, segundo Ortega y Gasset, “a mente melhor que a Europa possuía”. Ele se propôs a realizar um estudo sobre a realidade humana capaz de renunciar ao contorno metafísico e a qualquer princípio filosófico que não seja verificável, incorporan-do os métodos científicos das ciências do homem nos quais apóia a reflexão filosófica. Max Scheler deseja elaborar uma antropologia filosófica, com plena base científica, central e básica ao pensamento contemporâneo.

Segundo Max Scheler, a antropologia filosófica é inevitável como funda-mento unitário para as distintas ciências humanas e como resposta integral às perguntas sobre o sentido da existência humana. Embora sejam muitos os escri-tos de Max Scheler nos quais se alude à necessidade desta ciência fundamen-tal, o escrito O lugar do homem no cosmos, publicado em 1928, pouco depois de sua morte, é reconhecido como a carta fundacional da antropologia filosófica. Nele, o autor pretende unificar e superar os delineamentos filosóficos anterio-res com os resultados das diversas antropologias científicas de seu tempo.

Em palavras de Scheler, o conjunto das antropologias de seu tempo se encontrava dividido em três grandes orientações e tendências: antropologia te-ológica, em primeiro lugar, que analisa o ser humano a partir da perspectiva bíblico-religiosa; em segundo lugar, a antropologia filosófica, tal como foi de-senvolvida a partir dos gregos até os tempos recentes, que não deixou de ser mais uma filosofia do ser humano de corte especulativo; e, por último, as antro-pologias científicas, que definem o ser humano como

[...] um produto final e muito tardio da evolução do planeta Terra, um ser que só se distinguirá de seus predecessores no reino animal pelo grau de complicação com que nele se combinariam energia e faculdades que, em si, já existem na natureza infra-humana (SCHELER, 1938, p. 24).

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Para Scheler, as três orientações na antropologia de seu tempo “carecem de unidade entre si”, com insuficiente envolvimento para poder constituir-se em um saber integral sobre a realidade humana. As três compartilham o mesmo equívoco ao reduzir a condição humana a um de seus componentes, esquecendo as pretensões válidas das demais. Cada uma delas se apresenta como única e ex-cludente. Ele pretende superar o delineamento idealista tradicional que somen-te reconhece o humano na razão, esquecendo ou desprezando os sentimentos, o biológico e o corporal. Para ele, a solução consiste em procolocar “o ensaio de uma nova antropologia filosófica sobre base mais ampla”, deixando de estudar a existência humana somente a partir de um enfoque puramente especulativo e incorporando também a dimensão sócio-cultural do ser humano, assim como as implicações e as contribuições do campo das ciências biológicas.

Na orientação científica da nova antropologia, deve estar um marcado acento filosófico. A perspectiva teórica, ainda que não especulativa, da antro-pologia filosófica arraiga-se no processo reflexivo mediante o qual os dados cien-tíficos da existência humana são melhor entendidos e explicados. Esta teoria filosófica contribuirá, de modo decisivo, para encontrar o sentido dos dados humanos e facilitará, ao mesmo tempo, uma normativa para o comportamento específico da pessoa humana.

A pessoa humana “é um valor por si mesma”. Dotado de autoconsciência e de liberdade, o ser humano é um valor único frente ao conjunto das outras espécies de seres naturais. A sua dignidade ocupa o grau supremo na hierarquia dos valores: é como o vértice da pirâmide ao qual convergem todas as aristas do mundo natural. A pessoa humana é um valor em si mesma e por si mesma, não só a partir da perspectiva pessoal, mas também social. Max Scheler alude à “pessoa total”: ela é a referência obrigatória, a partir da qual se determina a natureza total. A relação da pessoa com o mundo que a rodeia reverte no descobrimento de sua dignidade humana e da consistência dos demais valores. A genuína relação interpessoal está selada pelo amor e advém solidária nas re-lações humanas.

Os delineamentos próprios do humanismo adquirem, em Scheler, uma importância sem precedentes. Nas questões “que é o homem e qual o seu lugar e sua posição dentro da totalidade do ser e do mundo?”, podem-se sintetizar os problemas centrais da filosofia contemporânea. O ser humano é o único ser que tem espaço, e não simplesmente lugar no mundo. Na filosofia de Scheler, pode-mos encontrar as instâncias programáticas, embora não plenamente desenvol-

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vidas que, segundo as palavras de A. Edel, devem ser o pensamento humanista de nossos tempos. Segundo Morell:

[...] o termo humanismo remete a um anverso familiar de atitudes, valores e crenças, que incluem pelo menos as seguintes: a igualdade e a dignida-de do homem, uma fé na racionalidade dos seres humanos, um processo democrático na ação social, esperança no progresso humano de alguma medida graças à planificação humana, uma aceitação do falibilismo do conhecimento humano e uma confiança na ciência para a solução dos problemas humanos (1987, p. 107).

humanismo ou barbárie

Graças às mudanças socioculturais de princípios do novo milênio, a ins-tância humanista parece adquirir um papel decisivo. Frente ao deficiente hu-manismo, parcial e às vezes perverso, que freqüentemente gerou pessimismo e conduziu à desesperança, deve-se reivindicar o genuíno humanismo, alicer-çado na defesa universal da dignidade humana, apresentado como alternativa convincente diante a desumanização que, com freqüência, nos ronda.

O objetivo do presente estudo foi reconstruir, numa breve síntese, alguns dos momentos mais relevantes da reflexão filosófica sobre a condição humana. Intencionalmente, as referências às últimas fontes do humanismo do século XX foram omitidas, por razões óbvias de espaço, mas convém aproveitar todas as tendências e insinuações para impulsionar um novo humanismo, porque hoje, mais do que nunca, estamos diante do nefasto dilema, retoricamente formula-do, do humanismo ou barbárie.

De fato, acreditamos que um dos signos mais esperançadores de nossa época é a afirmação do valor do humanismo nos distintos ideários culturais. O humanismo, ou seja, a crença na unidade da espécie humana e no potencial do ser humano para se realizar e se aperfeiçoar mediante seus próprios esforços, tem uma larga tradição que remonta, como vimos, aos profetas bíblicos e aos primeiros filósofos. A famosa máxima de Terêncio: Homo sum, nihil a me alie-num puto (“Nada do humano me é alheio”), representou a expressão clássica do pensamento humanista, ratificada, posteriormente, na filosofia ocidental, brilhantemente descrita no pensamento de Goethe: “o homem carrega em si não só sua individualidade, mas toda a humanidade, com todas as suas possibili-dades, mas as limitações externas que operam sobre sua existência individual de-terminam que apenas possa materializar essas possibilidades em escala restrita”.

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Os pensadores humanistas impulsionaram constantemente a necessidade de desenvolver, ao máximo, as capacidades humanas para descobrir, no mun-do, a maior harmonia e universalidade. Todos compartilharam a crença na per-fectibilidade da existência humana e manifestaram que é necessário o esforço pessoal para a eficaz afirmação da dignidade humana. Sem dúvida, foi possível constatar que, ao longo da história, o humanismo sempre surgiu com força como reação diante ameaça que recaía sobre a existência do ser humano. A atual revitalização do humanismo pretende ser uma firme resposta diante do perigo de que o ser humano se converta em escravo de suas obras e frente à ameaça de que o uso perverso das novas tecnologias contribua para convertê-lo em algo a mais ou, então, em algo a menos que um ser humano, degradando, desse modo, a genuína dignidade humana.

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