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A “RESPONSABILIDADE DE PROTEGER” É UMA MUDANÇA REAL PARA AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS? Liliana Lyra Jubilut* Resumo Um dos mais relevantes choques axiológicos do cenário internacional ocorre entre os conceitos de soberania e direitos humanos. Esse choque apresenta duas dimensões. Por um lado ele envolve a questão da legitimidade e por outro lado, ele envolve a questão da legalidade. Esse conflito é evidenciado na prática de intervenções humanitárias quando uma norma central do cenário internacional – a limitação do uso da força – é questionada à luz da necessidade da proteção de direitos humanos. Como não há norma que autorize as intervenções humanitárias, mas estas têm se mostrado historicamente necessárias em face de graves e generalizadas violações de direitos humanos, as decisões sobre sua realização têm sido tomadas caso a caso. Á luz deste problema, o ex-secretário da ONU Kofi Annan solicitou que se forjasse “um novo consenso sobre respostas a violações massivas de direitos humanos”. Como resposta a tal apelo surgiu, em 2001, a doutrina da “responsabilidade de proteger”, que tem sido trabalhada na ONU desde 2005. Tal doutrina propõe alterações doutrinárias, práticas e étnicas no tratamento das intervenções humanitárias pelo Direito Internacional, trazendo uma abordagem mais holística com a proposta de responsabilidades de reagir, prevenir e reconstruir. O presente trabalho analise esta proposta tanto teoricamente quanto em seu avance dentro da ONU, a fim de verificar se ela implicará em mudanças reais nas intervenções humanitárias. Abstract One of the most relevant axiological clashes in the international arena occurs between the concepts of sovereignty and human rights, which are core values of the current international scenario. This clash is twofold. On the one hand, it involves the question of legitimacy and, on the other hand, it encompasses the question of legality. This clash is highlighted in the practice of humanitarian intervention when a central norm of the international scenario – the limitation on the use of force - is put into question in the face of the necessity of protecting human rights. As there is no norm that authorizes humanitarian interventions, but they have been historically needed in light of gross violations of human rights,

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A “RESPONSABILIDADE DE PROTEGER” É UMA MUDANÇA REAL PARA AS

INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS?

Liliana Lyra Jubilut*

Resumo

Um dos mais relevantes choques axiológicos do cenário internacional ocorre entre os

conceitos de soberania e direitos humanos. Esse choque apresenta duas dimensões. Por um

lado ele envolve a questão da legitimidade e por outro lado, ele envolve a questão da

legalidade. Esse conflito é evidenciado na prática de intervenções humanitárias quando uma

norma central do cenário internacional – a limitação do uso da força – é questionada à luz

da necessidade da proteção de direitos humanos. Como não há norma que autorize as

intervenções humanitárias, mas estas têm se mostrado historicamente necessárias em face

de graves e generalizadas violações de direitos humanos, as decisões sobre sua realização

têm sido tomadas caso a caso. Á luz deste problema, o ex-secretário da ONU Kofi Annan

solicitou que se forjasse “um novo consenso sobre respostas a violações massivas de

direitos humanos”. Como resposta a tal apelo surgiu, em 2001, a doutrina da

“responsabilidade de proteger”, que tem sido trabalhada na ONU desde 2005. Tal doutrina

propõe alterações doutrinárias, práticas e étnicas no tratamento das intervenções

humanitárias pelo Direito Internacional, trazendo uma abordagem mais holística com a

proposta de responsabilidades de reagir, prevenir e reconstruir. O presente trabalho analise

esta proposta tanto teoricamente quanto em seu avance dentro da ONU, a fim de verificar

se ela implicará em mudanças reais nas intervenções humanitárias.

Abstract

One of the most relevant axiological clashes in the international arena occurs between the

concepts of sovereignty and human rights, which are core values of the current international

scenario. This clash is twofold. On the one hand, it involves the question of legitimacy

and, on the other hand, it encompasses the question of legality. This clash is highlighted in

the practice of humanitarian intervention when a central norm of the international scenario

– the limitation on the use of force - is put into question in the face of the necessity of

protecting human rights. As there is no norm that authorizes humanitarian interventions,

but they have been historically needed in light of gross violations of human rights,

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decisions regarding humanitarian interventions have been made in a case by case basis. In

the face of this problem, the former Secretary General of the UN – Kofi Annan – has

requested that a “a new international consensus on responding to massive violations of

human rights and humanitarian law”. As a response to this plea, in 2001, the doctrine of the

“responsibility to protect” emerged, and has been dealt with in the UN since 2005. This

doctrine proposes doctrinal, practical and ethical shifts in the treatment of humanitarian

interventions by International Law, bringing along a more holistic approach with the

proposal of responsibilities to react, to prevent and to rebuild. The present article analyses

this proposal both theoretically and in its advancement inside the UN, aiming to verify

whether or not it will mean real changes in humanitarian interventions.

Introdução

Um dos mais relevantes choques axiológicos do cenário internacional ocorre entre os

conceitos de soberania e direitos humanos, que são valores nucleares do atual cenário

internacional.

Esse choque apresenta duas dimensões. Por um lado ele envolve a questão da legitimidade,

na medida em que a concretização de ambos os conceitos é interligada, uma vez que a

proteção dos direitos humanos requer a minimização da soberania estatal a qual, por sua

vez, evoluiu no sentido de ser considerada não somente um direito mas também uma

responsabilidade (a responsabilidade do Estado para com seus cidadãos)1, ganhando assim

uma dimensão vertical (Estado-cidadão) que se acresce à sua dimensão horizontal (Estado-

Estado)2. E por outro lado, ele envolve a questão da legalidade, uma vez que a proteção da

* Liliana Lyra Jubilut é doutora e mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e tem LL.M. em International Legal Studies pela New York University School of Law. * * Este artigo teve versões anteriores apresentadas nas aulas de Thomas Franck e Miriam Sapiro da matéria Recourse to Force in International Law, na New York University School of Law, em 2005, e como capítulo de minha tese de doutorado (A Legitimidade da Não-Intervenção em face das Resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas ), apresentada à Universidade de São Paulo, em 2007, não tendo, contudo, sido publicado. Meus agradecimentos ao Professor Alberto do Amaral Junior por sua orientação e estímulo para a publicação deste artigo. 1 ANNAN, K.. Two concepts of sovereignty. The Economist, 18 September 1999. Disponível em www.un.org/News/ossg/sg/stories/kaecon.html. Acessado em 20 de abril de 2004. 2 Um conceito relacionado é o de segurança humana, que se acresce à leitura tradicional da Carta da ONU em sua referência à segurança internacional significando apenas segurança estatal. O conceito de segurança humana também enfatiza a necessidade de proteger seres humanos e os colocar em posição axiológica

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soberania aparenta ser muito mais enraizada nas normas fundadoras do Direito

Internacional do que a proteção dos direitos humanos, o que pode levar à inação em face de

graves violações de direitos humanos em função de abordagens legalistas.

Esse conflito é evidenciado na prática de intervenções humanitárias3 quando uma norma

central do cenário internacional – a limitação do uso da força – é questionada à luz da

necessidade da proteção de direitos humanos. Em função dessa característica peculiar,

intervenções humanitárias têm sido debatidas e praticadas há anos4, sem que se chegasse a

um consenso em relação à legalidade e à legitimidade do uso da força com propósitos

humanitários5, fazendo com que decisões tivessem que ser tomadas caso a caso.

Essa situação foi questionada doutrinariamente pois retratava o Direito Internacional pela

luz da seletividade. Contudo, foi somente em meados da década de 1990 que fortes razões

práticas em prol do uso da força para propósitos humanitários apareceram.

A combinação de desenvolvimento do regime do Direito Internacional dos Direitos

Humanos6, o fim da Guerra Fria7 e várias crises humanitárias catastróficas (especialmente

em Ruanda em 1994 e em Kosovo em 1999)8, aprimorou o debate relativo às intervenções

humanitárias e destacou a necessidade de reconciliar o conceito de soberania e a proteção

dos direitos humanos no Direito Internacional, e, com isso, resgatar a legitimidade da não-

intervenção, por meio do estabelecimento de regras claras para o uso de intervenções com

propósitos humanitários.

hierarquicamente superior à soberania estatal, dado que essa é vista como servindo aos indivíduos e não vice-versa. Cf. EVANS, G.; SAHNOUN, M. The Responsibility to Protect. Foreign Affairs, v. 81, n. 6, Nov.-Dec. 2002. p. 102. 3 WELSH, J.; Theilking, C.; Macfarlan, N. Op.cit., p. 489. 4 Para uma análise do uso histórico de intervenções humanitárias cf. FRANCK, T. Recourse to Force – State action against threats and armed attacks. Op. cit., p. 135-173. 5 EVANS, G.; SAHNOUN, M. Op. cit., p. 99. 6 FRANCK, T. Collective Security and UN Reform: between the necessary and the possible. Chicago Journal of International Law, v. 6, n. 2, Winter 2006. p. 5. 7 Exemplificado por exemplo na Declaração e Programa de Ação de Viena, Conferência Mundial de Direitos Humanos, UN doc A/Conf.157/24 (Parte I) 1993. 8 Outras crises no período incluem as situações na Somália, Timor Leste e Iraque, cf. EVANS, G.; SAHNOUN, M. Op.cit., p.100.

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Em face disso, em 1999, o ex- Secretário Geral da ONU – Kofi Annan- falando à

Assembléia Geral solicitou “a new international consensus on responding to massive

violations of human rights and humanitarian law”9. Como resultado, uma nova doutrina – a

“responsabilidade de proteger” (“responsibility to protect”) – não somente foi proposta mas

também adotada para implementação por esse órgão10.

Essa aprovação significa que a “responsabilidade de proteger” foi garantida tanto em sua

legalidade – dado que a ONU é a guardiã do uso da força e da manutenção da paz e

segurança internacionais11 – quanto em sua legitimidade- dado que a ONU é a mais

importante organização internacional com representação universal e que, dentro dela, a

Assembléia Geral é o órgão mais representativo12 com cada Estado-membro tento direito a

um voto13. O que falta ser verificado é se a “responsabilidade de proteger” realmente trará

as mudanças necessárias no uso da força para propósitos humanitários solucionando as

questões de legitimidade e legalidade das intervenções humanitárias.

O presente artigo objetiva, assim, tentar prever os possíveis resultados da adoção da

“responsabilidade de proteger” e analisar se a nova doutrina significará, ou não, uma

mudança real para as intervenções humanitárias.

A fim de cumprir tal objetivo, este artigo está dividido em 3 partes principais. A primeira

parte descreve o conceito de intervenção humanitária, as normas internacionais de uso da

força e as possíveis colisões entre eles. A segunda parte descreve a criação da

“responsabilidade de proteger” e seus elementos principais. A última parte analisa as

mudanças que a “responsabilidade de proteger” alega fazer nas intervenções humanitárias,

com o objetivo de tentar prever sua aplicabilidade e efetividade.

9 CHESTERMAN, S. Responsibility to protect. International Peace Academy Report – New York Seminar, 2002. 10 ONU. Assembléia Geral. World Summit Outcome (A/RES/60/1) (2005). Disponível em http:// daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/ N05/487/60/PDF/N0548760.pdf?OpenElement. Acessado em 30 de novembro de 2005. 11 Carta da ONU, 6º parágrafo preambular, artigos 1, 1; 2, 6 e 24. 12 Carta da ONU, artigo 9. 13 Carta da ONU, artigo 18.

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1. Intervenções humanitárias e o uso da força

1.1. A questão da legalidade

Assim como no caso da intervenção em geral, não há definição consensual de intervenção

humanitária. Contudo, a expressão é comumente usada para descrever o uso da força para

proteger vidas humanas. Gareth Evans e Mohamed Sahnoun a definem como sendo uma

“coercive action against a State to protect people within its border from suffering grave

harm”14.

Em se tratando de uma ação coercitiva, as intervenções humanitárias, assim como as

intervenções em geral, como visto, podem abranger vários tipos de ação variando de

sanções econômicas até intervenções militares15, e podem ser realizadas por um único

Estado, por um grupo de Estados, uma organização internacional que não a ONU ou pela

ONU.

Do ponto de vista do exercício da ação, as intervenções mais controversas são as militares,

já que o uso da força é limitado pela Carta da ONU e essa não prevê autorização do uso da

força para propósitos humanitários, o que faz com que haja dúvidas sobre a legalidade das

intervenções humanitárias.

A questão da legalidade é importante por várias razões. Em primeiro lugar, o

estabelecimento do rule of law16 no sistema internacional foi o principal propósito do

Direito Internacional no século XX, o que faz com que regras sejam relevantes no cenário

internacional17. Em segundo lugar, regras são necessárias para minimizar anarquia e para

permitir a co-existência e cooperação entre os Estados no cenário internacional18. Em

terceiro lugar, regras são ainda mais necessárias quando não há objetivos e valores

comuns19 como no atual cenário internacional que é multi-cultural e multi-étnico. E, por

14 EVANS, G.; SAHNOUN, M. Op.cit., p. 99. 15 HENKIN, L. Humanitarian Intervention. Studies in Transnational Legal Policy, 26, 1994. p. 391. 16 Utiliza-se aqui a expressão rule of law e não o equivalente em português mais próximo (Estado de direito) para evitar a percepção de que se está defendendo o estabelecimento de um Estado mundial. 17 GLENNON, M.J. Why the Security Council failed? Op.cit., p. 16 e 24. 18 AMARAL JUNIOR, A. do. O direito de assistência humanitária. Op. cit., p. 47. 19 NARDIN, T. NARDIN, T. Lei, Moralidade e as Relações entre os Estados. Trad. Elcio Gomes de Cerqueira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

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fim, o Direito não somente é considerado na tomada de decisões no cenário internacional20

mas também, como alguns Estados ainda são vinculados a uma postura estritamente

legalista e positivista, em algumas instâncias, somente a existência de regras serve como

argumento convincente para a ação.

Nesse sentido, a análise de intervenções humanitárias é essencial para solucionar os

dilemas de sua aplicação e deve ser conduzida à luz da norma fundamental do atual cenário

internacional: a Carta da ONU.

A ONU foi criada em um cenário internacional que optou por uma abordagem positivista e

que valorizava a não-intervenção como um reflexo da soberania estatal21. Nesse sentido,

sua principal função era estabelecer um sistema de segurança coletivo para substituir o uso

unilateral da força pelos Estados22. Assim sendo na Carta da ONU existem várias

limitações sérias ao uso da força pelos Estados-membros, os quais concordaram em “evitar

em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial

ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com

os Propósitos das Nações Unidas”23.

Essas limitações iniciais implicam, na prática, que a força somente pode ser legalmente

utilizada em legítima defesa ou pela própria ONU; e mesmo nesses casos algumas

restrições se aplicam.

A legítima defesa segue sendo resguardada pela ordem internacional contemporânea,

sendo, inclusive, uma das poucas restrições à limitação do uso da força no cenário

internacional, de acordo com o artigo 51 da Carta da ONU24. A legítima defesa pode ser

20 SAPIRO, M. SAPIRO, M. Advising the United States government on international law, New York University Journal of International Law and Politics, 27, 3, 1995. p. 619. 21 CHESTERMAN, S. Just war or just peace ? apud WELSH, J., From right to responsibility: humanitarian intervention and international society. Global Governance, 8, 2002. p. 505. 22 FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit., p. 2. 23 Carta da ONU, artigo 2,4. 24 Carta da ONU, artigo 51: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão

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individual ou coletiva mas está limitada pelos requisitos de que (a) um ataque armado deve

existir antes que tal direito possa ser exercitado, (b) o direito não mais será exercido a partir

do momento em que a ONU passar a agir na situação, e (c) toda ação exercida em legítima

defesa deve ser relatada ao Conselho de Segurança 25.

Em relação ao uso da força pela própria ONU, o mesmo só está autorizado com o objetivo

de manter a paz e segurança internacionais26. Tal limitação é reforçada pelo fato de a ONU

não ter a obrigação de exigir forçadamente o respeito ao Direito Internacional27.

Assim, o recurso à força na Carta da ONU é bem limitado, e textualmente não autoriza

ações militares com propósitos humanitários28. Na verdade, nos travaux préparatoires da

Carta da ONU o direito de intervenção humanitária foi debatido, mas não foi incluído no

texto final29.

Essa falta de autorização expressa para intervenções humanitárias encontra-se no centro do

dilema legal que tal prática coloca para o Direito Internacional, pois a necessidade de uso

da força para propósitos humanitários tem aparecido com certa freqüência sem que haja

norma que a autorize.

Em face dessa lacuna entre a necessidade real e a falta de autorização para intervenções

humanitárias na Carta da ONU, os Estados desenvolveram duas interpretações principais

sobre o que a ausência da previsão significa: por um lado, há a abordagem legalista que

defende que a falta de autorização expressa equivale à proibição do uso da força para

propósitos humanitários e por outro lado, há uma abordagem mais holística que defende

que, em função de outras provisões da Carta da ONU e da prática da ONU ao longo dos

anos, a omissão não significa uma proibição e que, portanto, intervenções humanitárias comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.” 25 Carta da ONU, artigo 51. 26 Carta da ONU, artigo 42. 27 FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit., p 110 28 FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit., p. 136; GLENNON, M.J. The new interventionism – the search for a just international law, Op. cit., p. 24. 29 FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit., p. 136.

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podem ocorrer legalmente. A escolha entre uma dessas duas posições sobre o assunto

dividiu, e ainda divide, os Estados hoje30.

O debate é ainda mais complicado no sentido de que a Carta da ONU, apesar de não ter

uma norma sobre intervenção humanitária, impõe obrigações humanitárias aos Estados31 e

claramente tem preocupação com direitos humanos32, o que pode levar não somente a um

conflito axiológico, mas também a um conflito normativo dentro do próprio documento,

ensejando assim uma crise de legitimidade.

Além disso, em relação ao uso da força em geral, apesar de as exceções a ele serem, como

mencionado, bem limitadas, a prática da ONU mostra uma variedade de posicionamentos à

luz de situações que, em sentido estrito, representariam violações às suas normas33.

Combinando-se essa necessidade de uso da força para propósitos humanitários, a falta de

consenso sobre a interpretação da ausência de uma norma sobre intervenção humanitária e

a posição inconstante da ONU em casos de uso da força por Estados, a sugestão de uma

nova interpretação da Carta da ONU que permitiria a reconciliação dos valores dos direitos

humanos e da soberania foi apresentada. Tal interpretação sugere que

1. Article 2 (7) does not ‘prejudice the application of enforcement actions under

Chapter VII;’ 2. Article 2 (7) ‘does not refer to sovereignty as much as to domestic

jurisdiction’; 3. ‘domestic jurisdiction never included the right of a state to violate

human rights at will, or allow such violations by standing idly by’; 4. UN member

states, by signing onto the UN Charter, commit themselves to a collaborative effort

to promote universal enjoyment of human rights by indicating their ‘willingness to

relinquish … in part, the idea that states somehow have the exclusive sovereign

rights to treat their citizens in an arbitrary manner’; 5. ‘the broad mandate given

the UN’ related to human rights have developed a ‘new constitutional principle’

that ‘domestic jurisdiction cannot prevent the United Nations from concerning

30 FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit., p. 167-168; GLENNON, M.J., The UN Security Council in a Unipolar World. Virginia Journal of International Law, 44, 2003-2004. p. 96. 31 FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit., p. 142. 32 Como, por exemplo, no segundo parágrafo preambular da Carta da ONU e no artigo 1 (3) desse documento. 33 Cf. FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit., p. 186.

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itself’ in cases threatening world peace and the realization of the basic purposes

enshrined in the Charter34.

Apesar de essa abordagem apresentar uma interpretação holística coerente da Carta da

ONU e permitir um novo balanceamento entre os valores dos direitos humanos e da

soberania ao incorporar mudanças nessa que melhoram o posicionamento daqueles, ela

ainda não é consensual e, portanto, não consegue reconciliar legalmente o respeito à

soberania estatal e a proteção dos direitos humanos, deixando o problema em aberto.

1.2. A questão da legitimidade

Da mesma feita que o uso da força impõe questões legais ao sistema internacional, ele traz

consigo questões relativas à legitimidade de ações de intervenção e do próprio sistema legal

internacional. A questão da legitimidade da intervenção humanitária abrange tanto o tema

da coerência interna do sistema internacional quanto o da legitimidade externa do mesmo; e

necessita ser solucionada não apenas para permitir o uso da força para propósitos

humanitários sem questionamento mas também para evitar um enfraquecimento do sistema

internacional como um todo.

A possibilidade de enfraquecimento do sistema internacional deriva do fato de que

coerência e legitimidade são essenciais para qualquer sistema legal e são ainda mais

relevantes para o cenário internacional. Isso porque na falta de (1) um sistema de coerção

similar ao dos ordenamentos internos; (2) centralização dos processos legislativos, dado

que os destinatários da maioria das normas são os próprios legisladores; e (3) hierarquia

entre seus principais atores, o respeito às normas é extremamente dependente da percepção

da legitimidade e da coerência do sistema e de suas regras.

Em relação à coerência, o principal desafio para as intervenções humanitárias se refere à

mencionada reconciliação entre soberania e direitos humanos. Quando da negociação e

estabelecimento da Carta da ONU, a noção clássica de soberania (isto é soberania como um

34 JIVIDEN, D.J. It takes a region: a proposal for an alternative regional approach to UN Collective Force Humanitarian Intervention. United States Air Force Academy Journal of Legal Studies, 10, 1999-2000. p. 109.

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direito absoluto) imperava35. Isso é ilustrado não somente pela menção da soberania em si

nesse documento, como também pela consagração de seus corolários, tais como o respeito

aos assuntos internos dos Estados36 e a segurança internacional37. Apesar disso, como

mencionado, também havia preocupação com os direitos humanos, apesar de que de forma

menos destacada. Nesse sentido, pode-se dizer que naquele momento histórico a

preocupação com a soberania superava a preocupação com os direitos humanos, o que pode

explicar a falta de autorização expressa de intervenções humanitárias na Carta da ONU.

A situação, contudo, se alterou com o passar dos anos, especialmente após o fim da Guerra

Fria quando os direitos humanos passaram a ser elevados na hierarquia axiológica das

relações internacionais e atingiram posição similar à da soberania. Esse equilíbrio entre os

dois conceitos levou ao enfraquecimento do argumento de que a intervenção humanitária

não era possível pelo fato de a soberania estatal estar legalmente protegida pela Carta da

ONU, enquanto o uso da força para propósitos humanitários não contasse com autorização

expressa. Isso se deveu ao fato de que tal argumento não parecia se adequar ao novo

sistema, ou, em outras palavras não parecia auxiliar na coerência interna do sistema. Nesse

sentido, para que o sistema pudesse manter sua coerência interna, havia a necessidade de

reconciliar direitos humanos e soberania autorizando-se intervenções humanitárias.

Em relação à legitimidade externa das intervenções humanitárias, há quatro

questionamentos principais. A primeira questão se refere aos propósitos das intervenções

dado que há o temor de que propósitos humanitários passem a ser utilizados como pretexto

para outros tipos de intervenções, isto é que intervenções humanitárias possam ter motivos

escusos. Tal preocupação não é injustificada dado que desde o século XVII a guerra

apresenta objetivos econômicos38.

A segunda questão versa sobre a legitimidade da utilização de ações coercitivas para

proteger direitos humanos, dado que os fundamentos desses direitos são a tolerância, a paz

35 Como se vê, por exemplo, no artigo 2 (1). 36 Como se vê, por exemplo, no artigo 2 (7). 37 Como se vê, por exemplo, no artigo 1 (1). 38 HELD, D. Op. cit., p. 63.

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e a não-violência. Esse argumento pode ser classificado como uma objeção ética à

intervenção humanitária. De acordo com Jennifer Welsh as críticas éticas à intervenção

humanitária podem ser divididas em dois grupos. O primeiro grupo “claims that sovereign

states provide the protective shell for the process of self-determination. As such, they are

moral entities and should enjoy the presumptive right of non-intervention”39. Já o segundo

grupo é conseqüencialista e defende que “[e]ven if one could overcome concerns about

self-determination, intervention is opposed because of the negative outcomes it can

generate”40.

O contra-argumento ao primeiro grupo tem natureza prática. A história mostra que muitas

vezes é o próprio Estado que viola direitos humanos e, portanto, não pode ser visto como

uma “protective shell”. Além disso, no atual cenário internacional, existem Estados (os

quasi-states ou failed States) que são incapazes de assegurar o núcleo mínimo de direitos

humanos às suas populações, já que não conseguem assegurar um mínimo de governança

apresentando falhas em sua soberania positiva. Em ambas as situações, inação em função

da norma de não-intervenção parece colocar a idéia de auto-determinação em um risco

maior do que se ações coercitivas fossem adotadas.

Em relação à crítica conseqüencialista, a mesma pode ser rebatida pela idéia de que em face

de dois males (isto é violência para proteger direitos humanos ou inação que permite a

continuidade das violações de direitos humanos incluindo a perda de vidas), deve-se

escolher o mal menor, dado que a inação seria o equivalente a concordar com o pior mal41.

Essa crítica tem em sua base a idéia de que a ética mais adequada aos direitos humanos é a

ética de meios pela qual toda ação deve ser considerada em si mesma e também em sua

adequação ao objetivo final42; contudo, isso não significa que a força não deva ser utilizada

para proteger os direitos humanos uma vez que os direitos humanos tratam de limitar o uso

da força. Essa ética significa que ao se utilizar a força, os direitos humanos devem ser 39 WELSH, J. Op. cit., p. 508. 40 Ibid. 41 Até mesmo Gandhi- símbolo do pacifismo e da não-violência- optou pelo mal menor ao apoiar o auxílio da Índia ao Reino Unido na Primeira Guerra Mundial cf. GANDHI, M.K. Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade. Trad. Humberto Mariotti et al. São Paulo: Palas Athena, 1999. 42 PAREHK, B. Ghandi: past masters, 1997. p. 59 apud ALMEIDA, G.A. de. Não violência: Princípio do Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Atlas, 2001.

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respeitados, o que permite intervenções por propósitos humanitários quando não haja outra

opção para prevenir graves e sistemáticas violações daqueles direitos.

A terceira questão relativa à legitimidade externa das intervenções humanitárias vai na

direção contrária à da segunda já que gira em torno da possibilidade de que mesmo quando

a intervenção humanitária é ilegal, a inação em face de violações de direitos humanos e de

possível grave perda de vidas pode ser legítima. Essa questão se relaciona ao

distanciamento entre legitimidade e legalidade e a resposta a ela depende da escolha entre

esses dois valores em cada situação, já que no estágio atual do Direito Internacional

existem possibilidades de ações não atenderem simultaneamente a ambos os requisitos (de

legalidade e legitimidade) como uma norma ideal deveria fazer43.

A quarta questão deriva, por um lado, do problema de se verificar o que é mais legítimo, a

ação ou a inação em face de grave e generalizada violação de direitos humanos e em face

da norma de não-intervenção e, por outro, do compromisso prático atingido na conduta da

comunidade internacional ao longo dos anos, na medida em que à luz da impossibilidade de

se escolher de modo generalizado entre ação e inação, a comunidade internacional optou

por uma abordagem caso-a-caso que leva à seletividade.

Tal seletividade é apresentada por alguns como sendo a única abordagem possível devido

ao contexto internacional atual44 e por solucionar caso a caso o conflito entre legalidade e

legitimidade e, portanto, entre justiça e paz45, mas tal solução não parece satisfatória do

ponto de vista da legitimidade tratada de modo abrangente. Isso porque, por um lado, ela

permite que decisões continuem sendo tomadas de maneira exclusivamente política e, por

outro lado, não acresce nada à legitimidade do Direito Internacional uma vez que casos

tidos como similares – devido à grave e generalizada violação de direitos humanos – foram

solucionados de maneiras diferentes.

43 Há um debate interessante sobre a legalidade e a legitimidade da intervenção humanitária na discussão do Conselho de Segurança sobre a ação da OTAN em Kosovo (debate completo no draft da resolução S/1999/328- UN/S/PV.3989 de 26 de março de 1999) 44 FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op. cit, p. 145. 45 Ibid., p. 138-139.

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Em face de todos esses questionamentos, é necessário encontrar uma solução para o

problema da legitimidade de intervenções de propósito humanitário.

2. A “responsabilidade de proteger”

2.1. A criação da doutrina da “responsabilidade de proteger”

Devido aos problemas de legalidade e legitimidade das intervenções humanitárias, uma

doutrina legal clara sobre o assunto tornou-se necessária. Assim, Kofi Annan- solicitou aos

Estados na Assembléia Geral em 1999 e 2000 que

try to find, once and for all, a new consensus on how to approach these issues, to

‘forge unity’ around the basic questions of principle and process involved. He

posed the central question starkly and directly: …if humanitarian intervention is,

indeed, an unacceptable assault on sovereignty, how should we respond to a

Rwanda, to a Srebrenica – to gross and systematic violations of human rights that

affect every precept of our common humanity?46.

A fim de responder a essa pergunta, metade dos Estados da Assembléia Geral agiram47,

tendo sido o governo do Canadá o mais eficiente ao estabelecer uma comissão para estudar

o assunto: a International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS), a

qual apresentou um abrangente relatório detalhando uma nova doutrina sobre o uso da força

com propósitos humanitários: a “responsabilidade de proteger”48.

A ICISS era formada por 12 especialistas de diferentes países e realizou 11 mesas-redondas

ao redor do mundo antes de publicar seu relatório. As mesas-redondas foram importantes

por duas razões principais: (1) elas incluíam a sociedade civil – principalmente por meio de

doutrinadores e organizações não-governamentais- nos debates e (2) elas tentaram

encontrar valores compartilhados que fossem refletidos no relatório, a fim de evitar as

críticas comumente feitas aos direitos humanos em geral de estarem ligadas ao modo de

vida e aos valores ocidentais49. Ambas essas razões acrescentaram legitimidade ao relatório

o que, por sua vez, auxiliou a sua aceitação.

46 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op.cit., p.VII. 47 GLENNON, M.J. The UN Security Council in a Unipolar World, Op.cit., p. 96. 48 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op.cit. 49 WELSH, J.; THEILKING, C.; MACFARLAN, N., Op.cit., p. 489.

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A ICISS terminou seu relatório em agosto de 2001 e o apresentou em outubro de 200150,

propondo uma alteração da doutrina de intervenção humanitária para a doutrina da

“responsabilidade de proteger”, sugerindo, que em se adotando tal mudança, a comunidade

internacional eliminaria os dilemas envolvendo as intervenções de caráter humanitário.

2.2. A doutrina da “responsabilidade de proteger”

A “responsabilidade de proteger” proposta pela ICISS objetiva estabelecer diretrizes para o

uso da força para proteger vidas humanas e direitos humanos por meio principalmente da

promoção de duas alterações na retórica das intervenções humanitárias.

A primeira e mais importante alteração é a do conceito de soberania como um direito

absoluto para soberania como responsabilidade. Essa mudança baseia-se no conceito de

soberania do indivíduo em vez de apenas soberania estatal e coloca o seu foco nos limites

do exercício da soberania.

A segunda alteração se relaciona à dicotomia entre direitos e deveres. Por algum tempo a

defesa de intervenções humanitárias era feita com base em um “direito de ingerência”51, o

qual, era por sua vez baseado na idéia de soberania do indivíduo. Essa abordagem usava a

retórica da proteção dos direitos humanos para flexibilizar o conceito de soberania estatal e

a norma de não-intervenção, permitindo, assim, que Estados interviessem em outros

Estados em função de crises humanitárias, dando-lhes não somente permissão mas também

um direito para tal.

A ICISS declarou que 3 benefícios derivariam dessa alteração de um “direito de

ingerência” para uma “responsabilidade de proteger”. Em primeiro lugar, o foco da ação

estaria nos interesses dos beneficiários e não no dos Estados realizando ou conduzindo a

ação. Em segundo lugar, haveria uma ampliação nos tipos de ações necessárias para

50 Essas datas são relevantes pois com os atentados terroristas contra os Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 o clima internacional entre a conclusão do relatório e sua publicação se alterou profundamente, o que pode ter refletido na aceitação e implementação de suas recomendações. 51 JAMART, J. S. Le droit d’ingérence: mythe ou réalité? Actualités Du Droit – Revue de la Faculté de Droit de Liège, n. 2, p. 207-263, 1998.

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solucionar as crises, destacando-se não somente ações em crises já existentes mas também

ações preventivas e após conflitos, como relevantes para resolver efetivamente situações

humanitárias complexas. E, em terceiro lugar, tal alteração preveniria que o debate sobre

situações específicas se iniciasse com o argumento contrário a ações, dado que como a

regra geral na Carta da ONU é a não-intervenção, a prática de intervenções, ainda que com

caráter humanitário, pode ser vista como ilegal52.

Sobre o segundo benefício – a ampliação do escopo das ações envolvidas no tratamento de

crises humanitárias – a ICISS estabelece que a “responsabilidade de proteger” abrange 3

tipos diferentes de responsabilidades53: (1) a responsabilidade durante crises humanitárias –

a responsabilidade de reagir54; (2) a responsabilidade antes que uma crise humanitária se

instale – a responsabilidade de prevenir55 e (3) a responsabilidade após uma crise

humanitária, a fim de evitar que uma nova crise ocorra- a responsabilidade de reconstruir56.

Ao estabelecer tais responsabilidades, a ICISS consegue ligar a nova doutrina de

intervenção humanitária com outros dois tópicos relevantes da agenda da ONU –

desenvolvimento e paz -, aumentando, assim, à legitimidade das novas propostas e

aumentando as chances de as mesmas serem aceitas pelos Estados.

A ICISS propõe que a utilização do termo “responsabilidade de proteger” traz ainda uma

outra vantagem: ele traz consigo o reconhecimento de que a responsabilidade primária é do

Estado e que somente caso haja falha ou falta de vontade do Estado em exercer esse papel é

que a responsabilidade passa a ser da comunidade internacional57. Nesse sentido, a ICISS

mostra que recortou sua proposta para agradar aos destinatários da mesma –os Estados – ao

afirmar que a soberania estatal, ainda que limitada, continua sendo uma norma de Direito

Internacional.

52 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op.cit., p. 16. 53 Ibid., p. 17. 54 Ibid., p. 29-37. O nome original da responsabilidade de reagir é “responsibility to react”. 55 Ibid., p. 19-27. O nome original da responsabilidade de reagir é “responsibility to prevent”. 56 Ibid., p. 39-45. O nome original da responsabilidade de reagir é “responsibility to rebuild”. 57 Ibid., p. 17.

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Tendo estabelecido as principais alterações retóricas da nova doutrina, a ICISS passa a

detalhar cada uma das responsabilidades propostas.

A responsabilidade de prevenir destaca a importância de mecanismos de avisos prévios

(early warnings) e análise; os esforços de prevenção focados nas causas das crises; e

esforços em prevenção direta envolvendo qualquer meio disponível de solução pacífica de

disputas. A prevenção é vista como “the single most important dimension of the

responsibility to protect”58.

A responsabilidade de reagir é a que mais se aproxima da idéia clássica de intervenção

humanitária, uma vez que entra em ação quando todas as medidas preventivas falharam e

há a necessidade de reagir a uma situação de “compelling need for human protection”59. Ela

envolve desde o estabelecimento de sanções sem envolver o uso de força armada até

intervenções militares em casos extremos.

No caso de uma intervenção militar, a ICISS estabelece um novo rol de critérios o qual

abrange 1 princípio basilar, 4 princípios de precaucionários, 1 princípio relacionado a

autoridade adequada para intervir e 10 princípios operacionais.

O critério basilar é a justa causa para a ação. Tal critério relaciona-se ao vínculo entre

direito e moral e a avaliação da guerra com base em seus motivos – a doutrina do jus ad

bellum - tentando limitar as possibilidades de recurso à força ao determinar a justiça dos

motivos invocados para justificar tal uso. A ICISS estabelece que justas causas para a

intervenção na “responsabilidade de proteger” são

large scale loss of life, actual or apprehended, with genocidal intent or not, which

is the product either of deliberate state action, or state neglect or inability to act, or

a failed state situation; or large scale ‘ethnic cleansing’, actual or apprehended,

whether carried out by killing, forced expulsion, acts of terror or rape60.

58 Ibid., p. XI. 59 Ibid., p. 29. 60 Ibid., p. 32.

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A isso, Gareth Evans e Mohamed Sahnoun, co-presidentes da ICISS, acrescentam a

possibilidade de ação em face de “overwhelming natural or environmental catastrophes, in

which the state concerned is either unwilling or unable to help and significant loss of life is

occurring or threatened”61.

Relacionada ao critério da justa casa, a ICISS trata da questão da obtenção de provas e

sugere que tal atividade poderia ser realizada por organizações não-governamentais62;

incluindo, assim, a sociedade civil no processo. Essa inclusão pode ser vista como um

reflexo da inerente questão da legitimidade do uso da força por questões humanitárias.

Os 4 princípios precaucionários são: (1) intenção correta; (2) último recurso; (3) medidas

proporcionais e (4) prognóstico razoável. O princípio da intenção correta se relaciona à

idéia de justa causa e à legitimidade da intervenção, baseando-se na prática do sistema

internacional de distinguir entre ações conduzidas altruisticamente63 ou com motivos

escusos64. Os princípios de último recurso e de medidas proporcionais refletem a doutrina

da legítima defesa consagrada no caso Caroline entre Estados Unidos e Reino Unido, pela

qual o uso da força é limitado pelos critérios de necessidade, proporcionalidade e

iminência. O último princípio, qual seja o de prognóstico razoável, pode ser entendido

como relacionado a duas lógicas de legitimidade mencionadas: a legitimidade de propósitos

– evitando que haja segundas intenções ou motivos escusos nas intervenções com propósito

humanitário – e a escolha entre o menor de dois males.

Ao tratar da autoridade adequada65 para intervir, a ICISS declara que, em face da

mencionada responsabilidade da ONU pela manutenção da paz e segurança internacionais,

e da responsabilidade primária do Conselho de Segurança dentro da organização para tratar

61 EVANS; G.; SAHNOUUN, M. Op. cit., p. 103-104. 62 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op.cit., p. 34-35. 63 Para que a intervenção seja considerada altruística basta que o motivo principal da mesma o seja, não sendo necessário que não haja nenhuma intenção egoísta dos interventores. 64 Para uma análise abrangente sobre as diferentes abordagens da comunidade internacional em relação a variadas situações e justificativas de usos da força e sobre a importância do contexto probatório em cada uma delas, vide FRANCK, T. Recourse to force- State action against threats and armed attacks. Op.cit. 65 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op.cit., p. 47-55.

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desses temas66, a autoridade adequada para autorizar intervenções segue sendo o Conselho

de Segurança e que a idéia da “responsabilidade de proteger” é aprimorar a atuação do

Conselho de Segurança e não substituí-lo como fonte de autoridade de intervenções67. A

ICISS, contudo, não estabelece o recurso ao Conselho de Segurança como a última medida

possível para uma intervenção com propósito humanitário. Ela propõe o recurso à

Assembléia Geral sob o procedimento “Unidos pela Paz”; ou, ainda, a ação de organizações

regionais ou sub-regionais em suas áreas de jurisdição desde que se solicite uma

autorização post facto ao Conselho de Segurança 68.

Por fim, ao tratar da responsabilidade de reagir, a ICISS estabelece os princípios

operacionais que devem balizar as ações, que são: (1) objetivos claros; (2) mandatos

objetivos e não ambíguos; (3) recursos condizentes com os objetivos e os mandatos; (4)

abordagem militar comum; (5) unidade de comando; (6) limitação, incrementalismo e

gradação no uso da força; (7) regras de engajamento; (8) respeito ao Direito Internacional

Humanitário; (9) aceitação da idéia de que a proteção das forças armadas não pode ser o

objetivo principal e (10) coordenação máxima com organizações humanitárias69.

A responsabilidade de reconstruir é a última responsabilidade abrangida pela

“responsabilidade de proteger” e envolve obrigações de construção da paz; esforços de

justiça e reconciliação; e desenvolvimento. A fim de atingir esses objetivos, o

estabelecimento de uma administração de território sob a supervisão da ONU pode ser

necessário, como nos casos de Kosovo e do Timor Leste.

Ao estabelecer essas alterações na retórica do debate sobre intervenção humanitária; as três

faces (ou tipos) de responsabilidade da “responsabilidade de proteger” e os critérios para o

uso da força para proteção de vidas humanas e direitos humanos, a ICISS objetivou atingir

4 objetivos qualificados por ela mesma como fundamentais a qualquer nova abordagem de

intervenções com propósitos humanitários. Esses objetivos são

66 Carta da ONU, artigo 24. 67 EVANS, G.; SAHNOUUN, M. Op.cit., p. 106. 68 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op.cit., p 53-55. 69 Ibid., p. 57-67.

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(1) to establish clear rules, procedures and criteria for determining whether, when

and how to intervene; (2) to establish the legitimacy of military intervention when

necessary and after all other approaches have failed; (3) to ensure that military

intervention when it occurs, is carried out only for the purposes proposed, is

effective, and is undertaken with proper concern to minimize the human costs and

institutional damage that will result; and (4) to help eliminate, where possible, the

causes of conflict while enhancing the prospects for durable and sustainable

peace70.

Além disso, a ICISS solicita o estabelecimento de uma “Doctrine for Human Protection

Operations” no âmbito da ONU, recomendando ao Secretário Geral que inicie o

desenvolvimento de tal doutrina. Além dessa recomendação, a ICISS recomenda à

Assembléia Geral que “adopt a draft declaratory resolution embodying the basic principles

of the responsibility to protect”71 e ao Conselho de Segurança que

seek to reach agreement on a set of guidelines, embracing the ‘Principles for

Military Intervention’ […] to govern their responses to claims for military

intervention for human protection purposes” e que “[…] the Permanent Five

members of the Security Council should consider and see to reach agreement not to

apply their veto power, in matters where their vital interests are not involved, to

obstruct the passage of resolutions authorizing military intervention for human

protection purposes for which there is otherwise majority support72 .

Da lista de propósitos e das recomendações pode-se verificar que os objetivos da ICISS

eram ambiciosos e abrangentes; o que pode pesar contra ela no que tange à análise de sua

real eficácia.

3. A “responsabilidade de proteger” traz realmente mudanças para as intervenções

humanitárias?

A análise da efetividade da “responsabilidade de proteger” deve ser feita a partir de 3

perspectivas: (1) a perspectiva doutrinária; (2) a perspectiva prática e (3) a perspectiva

70 Ibid., p. 11. 71 Ibid., p. 74. 72 Ibid. p. 74-75.

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ética; em função de a doutrina proposta objetivar solucionar tanto as questões de

legitimidade e de legalidade das intervenções humanitárias.

A análise será feita a partir dos objetivos propostos pela própria doutrina da

“responsabilidade de proteger” e das questões em aberto quanto as intervenções

humanitárias.

O foco da análise será, sobretudo, as propostas relativas ao uso da força, ou seja a

responsabilidade de reagir, uma vez que essa é a ligação entre a “responsabilidade de

proteger” e as intervenções humanitárias em seu aspecto mais controverso – intervenções

militares para proteger direitos humanos.

3.1 Análise dos aspectos doutrinários da “responsabilidade de proteger”

No que tange aos aspectos doutrinários, a faceta principal da “responsabilidade de

proteger” se relaciona as alterações retóricas propostas (alterando a soberania como um

direito absoluto para um direito limitado e alterando o “direito de ingerência” para a

“responsabilidade de proteger”) no debate sobre intervenções humanitárias e no

estabelecimento de critérios para ação, uma vez que eles formam o cerne na nova doutrina

sendo proposta.

Em relação às alterações retóricas, a “responsabilidade de proteger” tem sido elogiada73

pela “conceptual move from a ‘right to intervene’ to a ‘responsibility to protect’”74, dado

73 Existem autores, contudo, que têm criticado tal alteração, entre os quais Jose E. Alvarez, que entende que essa redefinição do conceito de soberania analisada em face das demais propostas da doutrina da “responsabilidade de proteger” fazem com que a mesma seja dotada de “esquizofrênia”, em face do que seria preferível manter o conceito de intervenção humanitária. ALVAREZ, J.E. The Schizophrenias of R2P. Asil Newsletter, v. 23, 3, Summer 2007, e ALVAREZ, J. E. The Schizophrenias of R2P. Panel presentantion at the 2007 Hague Joint Conference on Contemporary Issues of International law: Criminal Jurisdiction 1000 After the 1907 Hague Peace Conference, Haia, 30 de junho de 2007.

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que isso significaria a solução do conflito entre soberania e direitos humanos já que

soberania não mais seria “conceived as undisputed control over territory, but rather as a

conditional right dependent upon respect for a minimum standard of human rights”75.

Além dessa subordinação da soberania aos direitos humanos, a limitação do conceito de

soberania também é relevante por questões práticas dado que a maioria das crises

internacionais nos últimos anos tem sido de conflitos internos e não internacionais76. Esse

fato auxilia a compreensão tanto da inadequação das regras da Carta da ONU para tratar do

assunto – uma vez que foram criadas para organizar um sistema de segurança baseado em

relações entre Estados e no qual a maior ameaça à paz e segurança internacionais era a

agressão entre Estados o que não é mais o caso77 - quanto da necessidade de novas regras

que adaptem a noção clássica de soberania para que os Estados não possam mais manipular

esse princípio do Direito Internacional a fim de violar o próprio Direito Internacional (e

especialmente o Direito Internacional dos Direitos Humanos).

Apesar disso, essas alterações retóricas podem não ser a solução ideal que aparentam ser à

primeira vista pois, apesar de o “direito de ingerência” não ter sido nunca consensual no

direito e nas relações internacionais, uma “responsabilidade de proteger” o que implica um

“dever de agir”, pode conseguir ainda menos apoio.

O “direito de ingerência” foi recebido com desconforto pelos Estados, inclusive por aqueles

que estavam dispostos a limitar o conceito de soberania, já que claramente eles não estavam

prontos para aceitar a total substituição da soberania estatal pela soberania do indivíduo. O

desconforto existia em função do fato de que essa nova abordagem não somente lia uma

autorização para o uso da força na Carta da ONU que não estava textualmente explícita,

sendo, portanto, estritamente uma violação das normas do uso da força, como também

prejudicava a proteção contra interferências nos assuntos internos dos Estados assegurada

por esse documento. Essa última preocupação não era infundada pois, como mencionado,

74 WELSH, J.; THIELKING, C; MACFARLANE, T. Op.cit., p. 492. 75 Ibid., p. 493. 76 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op. cit., p. 13. 77 FRANCK, T. Collective Security and UN Reform: between the necessary and the possible. Op. cit., p. 4-5.

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havia medo de abuso dos propósitos humanitários das intervenções humanitárias. Além

disso, um “direito de ingerência” poderia significar que qualquer Estado não apenas poderia

mas deveria agir, mesmo que unilateralmente, para prevenir crises humanitárias, o que

poderia prejudicar seriamente todo o sistema de segurança coletiva estabelecido com a

ONU.

A idéia de um “direito de ingerência”, assim, ao invés de auxiliar a causa das intervenções

de propósito humanitário serviu ao seu oposto: colocou os Estados na defensiva contra a

adoção de qualquer doutrina formal de intervenção humanitária. Em face disso, e a fim de

remediar tal situação, a ICISS propôs a alteração da terminologia de “direito de ingerência”

para a “responsabilidade de proteger”78.

Na verdade, o que estava sendo proposto era uma alteração de um “direito” para um

“dever” de intervir dado que uma responsabilidade, na prática, implica um dever. Contudo,

tal alteração parecer trazer mais problemas do que soluções79.

Por um lado, a mudança de um direito para um dever traria, na verdade, mais limites às

ações dos Estados do que eles estão dispostos a aceitar, o que poderia significar que a

doutrina seria ignorada ou abandonada. Isso se deve ao fato de que quando se fala de um

“direito” existe uma margem de escolha sobra exercer ou não tal direito, ao passo que

quando se fala em um “dever” tal discrição deixa de existir dado que caso se esteja sob um

dever se está obrigado a exercê-lo. Nesse sentido, a mudança sugerida significaria que a

falta de autorização expressa na Carta da ONU seria lida de forma mais radical do que se

verifica na mencionada prática dos Estados, pois significaria uma obrigação de conduzir

intervenções com propósito humanitário.

Por outro lado, a mudança imporia a necessidade do estabelecimento de mecanismos de

apuração de responsabilidade pela falha no exercício do dever, isto é, um mecanismo de

78 Os termos originais utilizados pela ICISS são “right to intervene” e “responsibility to protect”, respectivamente. 79 A própria noção de se apresentar o debate sobre o uso da força com base na dicotomia direito-dever tem sido questionada e há quem diga que até mesmo Hugo Grotius tentou evitar o uso dessa terminologia. Cf. WELSH, J; THIELKING, C; MACFARLANE, N. Op. cit., p. 501.

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accountability. Em face do atual sistema internacional isso significaria uma enorme

transformação na medida em que, de acordo com a ICISS, o órgão dotado da

“responsabilidade de proteger” quando está passa para a comunidade internacional é

primariamente o Conselho de Segurança, um órgão contra o qual judicial review80 tem sido

muito limitada.

Nesse sentido, em se adotando a alteração proposta, a “responsabilidade de proteger” pode

criar novas questões de legitimidade e legalidade ao invés de desfazer os problemas

existentes relacionadas às intervenções de propósito humanitário.

Em relação ao estabelecimento de critérios para a ação pela “responsabilidade de

proteger”, houve celebração da nova doutrina e até mesmo a afirmação de que esse é “the

more significant contribution of the Commission’s report”81já que cria “a spectrum of

action for the international community - prevention, non-military coercion, military action,

and post-conflict rebuilding”82.

A necessidade de critérios pode ser justificada à luz da natureza da sociedade internacional

na qual os Estados atuam na maioria das vezes com seus interesses em mente, o que pode

levar a posições contrárias em face das mesmas circunstâncias. Nesse cenário, o

estabelecimento de critérios é relevante tanto quando a comunidade internacional está

disposta a agir – como um meio de limitar possíveis abusos – quanto quando ela não está

disposta a atuar – como um padrão que pressione para a ação83. Em face disso, o

estabelecimento de critérios pela “responsabilidade de proteger” pode também ser elogiado

pois pode levar à diminuição da seletividade no tratamento de crises humanitárias.

Contudo, uma vez mais, a doutrina proposta apresenta alguns problemas.

80 Utiliza-se aqui a expressão judicial review e não o seu equivalente em português (revisão judicial) a fim de denotar tanto a prática de revisão de atos pelo Poder Judiciário quanto o controle de constitucionalidade de modo mais abrangente. 81 WELSH, J; THIELKING, C; MACFARLANE, N. Op. cit., p 492. 82 Ibid. p. 492. 83 ALSTON, P. ALSTON, P. Aula proferida no curso International Human Rights, na New York University School of Law no segundo semestre de 2005, em 28 de outubro de 2005.

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Em primeiro lugar, há a questão dos critérios sendo propostos como justificativa para ações

envolvendo o uso da força, isto é, o princípio da justa causa; o que nas palavras da ICISS

significaria “outright killing or ethnic cleansing”84, mas que pode ser visto como

problemático por ser ao mesmo tempo muito limitado e muito vago.

Está claro que a opção da ICISS foi pelo mínimo denominador comum, o que pode ser

explicado pela combinação de dois fatores: (1) a opção pela manutenção das restrições do

uso da força a fim de se manter de acordo com o sistema geral da ONU, limitando assim o

uso da “responsabilidade de proteger” e (2) a preocupação uma vez mais da ICISS em

recortar o seu relatório aos destinatários dos mesmos – os Estados – o que leva à

necessidade de barganhas a fim de obter consenso ao menos nas crises humanitárias mais

graves.

Contudo, os critérios propostos não são adequados pois, por um lado, os termos vagos da

“responsabilidade de proteger” podem causar problemas, dado que não permitem padrões

claros e precisos de aplicação e, assim, podem levar à seletividade85. Por exemplo, a ICISS

não define o que é “large scale loss of life”86 ou “a failed state”87 que são termos essenciais

em seu critério de justa causa e, nesse sentido, não auxilia no estabelecimento de critérios

práticos como se propôs a fazer. E, por outro lado, parece ter extraído a preocupação mais

ampla com direitos humanos presente nas doutrinas iniciais de intervenção humanitária88,

ainda que seja para tornar a nova doutrina mais palatável aos Estados89.

84 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op.cit., p. 34. 85 WELSH, J.; THIELKING, C; MACFARLANE, T. Op. cit., p.499. 86 Ibid., p.498. Apesar disso, para se fazer a justiça à ICISS, deve-se mencionar que o estabelecimento de critérios numéricos estritos também seria problemático, uma vez que levaria à situação de “rough States” cometer atrocidades humanitárias até o limite numérico para evitar intervenções humanitárias. Além disso, é importante notar que a ICISS enfrenta essa crítica em seu relatório. Contudo, a resposta dada não é satisfatória visto que declara que não haverá na prática divergências sobre quais situações exigem intervenções. 87 Ibid., p. 497. 88 Ibid. 89 A ICISS justifica as limitações no critério de justa causa dizendo que outras violações de direitos humanos podem justificar sanções aos Estados mas não o uso da força militar. INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, Op. cit., p. 34.

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Na questão da autoridade adequada também há a possibilidade de crítica à

“responsabilidade de proteger”. Isso se deve ao fato de que apesar da ICISS propor algumas

alternativas à inação do Conselho de Segurança, que são importantes para estabelecer a

responsabilidade do Conselho de Segurança no caso de sua inação, tais alternativas não

resolvem os problemas legais ou de legitimidade de inação do Conselho de Segurança

quando o uso da força para propósitos humanitários for necessário.

Em primeiro lugar, em relação à Assembléia Geral que, de acordo com a ICISS, poderia

agir sob o precedente da resolução “Unidos pela Paz”, deve-se dizer que apesar de a

Assembléia Geral poder deliberar sobre o assunto ela não pode autorizar o uso da força ou

efetivar forçosamente suas decisões, o que significa que, na prática, intervenções

humanitárias não podem ser conduzidas pela Assembléia Geral; e assim, a inação

continuaria a existir, e, o que é pior, agora contra a vontade da maioria da comunidade

internacional.

Em segundo lugar, em relação a organizações regionais, as quais poderiam agir dentro de

suas jurisdições subordinadas a uma autorização post facto do Conselho de Segurança, a

proposta também é complicada em termos de legitimidade90 pois (1) autorizações

normalmente devem ser solicitadas antes da ação e (2) até que a autorização seja concedida

a ação ficaria em um limbo não sendo legal mas tendo a possibilidade de adquirir tal status.

Além disso, essa proposta não parece levar em consideração as sensibilidades de

organizações regionais que parecem mais dispostas a agir independentemente da aprovação

da ONU. Um exemplo disso é a declaração da União Africana em seu tratado constitutivo

de que possui a autoridade para intervir em seus Estados Membros no caso da existência de

crimes conta a humanidade, crimes de guerra, ou genocídio91.

90 É interessante notar que apesar do Artigo 53 da Carta da ONU declarar que ações de uso da força por organizações regionais requerem a autorização pelo Conselho de Segurança, não há menção a necessidade de tal autorização ser a priori, o que significa que em termos de legalidade, as propostas da ICISS não são um problema em relação à Carta da ONU. 91 Constitutive Act of the African Union Art. 4 (h): “The Union shall function in accordance with the following principles: […](h) the right of the Union to intervene in a Member State pursuant to a decision of the Assembly in respect of grave circumstances, namely: war crimes, genocide and crimes against humanity”.

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Essa postura de organizações regionais pode levar a conflito entre seus tratados

constitutivos e a carta da ONU uma vez que (1) como mencionado, esse tipo de uso da

força não é autorizado pela ONU e (2) de acordo com o artigo 53 da Carta da ONU o uso

da força por organizações regionais está subordinado à autorização do Conselho de

Segurança. No caso de tal conflito a legalidade da ação da organização regional estará

prejudicada não apenas pelo artigo 53 da Carta da ONU mas também pelo fato de que,

geralmente, as ações de organizações regionais são analisadas em relação à sua adequação à

carta da ONU e não às normas da organização regional92. Desta feita, a legalidade e

legitimidade de intervenções humanitárias realizadas nesse cenário também estarão

prejudicadas o que torna esse problema uma questão séria que deveria ter sido objeto dos

trabalhos da ICISS.

E, em terceiro lugar, em relação ao próprio Conselho de Segurança, apesar da ICISS manter

que o poder de veto somente deveria ser utilizado quando a questão que estiver sendo

debatida envolver interesses vitais de um dos membros permanentes, a amplitude da

definição de interesses vitais significa que, na prática, tal ação continuaria à mercê dos 5

membros permanentes93.

Em relação às formas que a intervenção deve seguir, a ICISS sugere que um código de

conduta deveria existir. Esse é um aspecto positivo da nova doutrina, pois criaria

mecanismos de accountabilit94y para as forças interventoras95 e aumentaria o respeito pelo

Direito Internacional Humanitário, aumentando, assim, a legalidade e legitimidade das

ações realizadas.

92 Cf. GRAY, C. Op. cit., p. 293. 93 Cf. WELSH, J.; THIELKING, C; MACFARLANE, T. Op. cit. p. 504, para uma análise de que interesses vitais abrangem tanto questões diretas como as questões da Chechênia para a Federação Russa e do Tibet para a China, quanto questões indiretas como a relação entre a China e a Guatemala devido ao estabelecimento de laços diplomáticos dessa com Taiwan. 94 O dicionário Webster ingles-português define accountability como: “responsabilidade; (adm.) obrigatoriedade ou dever de prestar contas” (Cf. HOUAISS, A. (Ed.) Dicionário Webster inglês-português. 15. ed. Atualizada. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 6). É exatamente a combinação desses dois sentidos da palavra que se pretede expressar no presente trabalho, razão pela qual se optou por manter a palavra em seu original na língua inglesa. 95 Ibid., p. 508.

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Na questão da responsabilidade de prevenir, a qual, como mencionado, é tida como o

aspecto central da “responsabilidade de proteger”, deve-se notar que apesar da nova

doutrina dever ser elogiada por trazer uma visão ampla de solução de conflitos na medida

em que estabelece a necessidade de ações da comunidade internacional não apenas em

situações nas quais já existe um conflito, também há espaço para críticas já que a

“responsabilidade de proteger” não traz inovações ao tema da prevenção96, mas tão-

somente parece repetir os parâmetros e as normas já existentes sobre o assunto. Essa mera

repetição também parece ser a abordagem utilizada pela ICISS em relação à

responsabilidade de construir.

Pelo exposto pode-se dizer que as mudanças reais trazidas pela “responsabilidade de

proteger” nos aspectos doutrinários é discutível, o que faz com que a análise dos aspectos

práticos e éticos da nova doutrina sejam ainda mais relevantes a fim de que mudanças

efetivas sejam obtidas

3.2. Análise dos aspectos práticos da “responsabilidade de proteger”

A análise dos aspectos práticos da “responsabilidade de proteger” focará a evolução desta

doutrina na ONU pelos fatos de que (1) o relatório da ICISS foi uma resposta a um pedido

de Kofi Annan; (2) a ONU é a guardiã do uso da força nas relações internacionais; (3) os

órgãos da ONU, especialmente o Conselho de Segurança, são os principais destinatários

das recomendações do relatório da ICISS e (4) as questões da legalidade e da legitimidade

das intervenções humanitárias surgem em relação à Carta da ONU.

À primeira vista, a “responsabilidade de proteger” parece ter vencido suas primeiras

batalhas na ONU, dado que Kofi Annan e a Assembléia Geral agiram com base nas

recomendações da ICISS.

A nova doutrina foi adotada por Kofi Annan em seu relatório “In larger Freedom - towards

development, security and human rights for all97” no qual ele propõe uma agenda com

96 Ibid., p. 495. 97 ANNAN, K. In larger freedom- towards development, security and human rights for all. (A/59/2005) September 2005. Disponível em www.un.org/largerfreedom. Acessado em 20/7/2006.

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vários ajustes na ONU a fim de que a Organização esteja preparada para enfrentar os

desafios do sistema internacional. Esse relatório foi endereçado aos chefes de Estado e de

governo para servir de base aos debates da Assembléia Geral comemorativa dos 60 anos da

ONU em 2005, também denominada de Cimeira Mundial.

Em seu relatório, a menção à “responsabilidade de proteger” aparece sob o título “rule of

law” em uma sessão dedicada à “Freedom from fear”98 na qual o Kofi Annan diz que: “I

believe that we must embrace the responsibility to protect and, when necessary, we must

act on it”.

Apesar de o relatório continuar dizendo que a “responsabilidade de proteger” primária cabe

aos Estados e que a comunidade internacional tem apenas responsabilidade secundária; que

o Conselho de Segurança é o órgão que pode autorizar ações envolvendo o uso da força; e

que prevenção deve ser destacada, adotando, assim, a “responsibility to protect as a basis

for collective action”99 como proposta da ICISS, ele se limita a isso. Kofi Annan não

menciona diretamente os elementos e os critérios da “responsabilidade de proteger”, dando

a impressão de que apenas o conceito mais amplo de agir para proteger vidas humanas foi

adotado.

Apesar disso, pode-se notar a ampliação das justas causas para ação uma vez que há

menção direta a crimes contra a humanidade100 nesse relatório. Contudo, no contexto geral,

a “responsabilidade de proteger” foi limitada.

Apesar disso, a “responsabilidade de proteger” conseguiu chegar até o draft do presidente

da Assembléia Geral e foi adotada por esse órgão em 24 de outubro de 2005 no documento

final da Cimeira Mundial101. Ela aparece nos paragráfos 72 e 74 desse documento com a

seguinte redação:

98 Ibid., p. 35. 99 Ibid., p. 4. 100 Ibid., p. 4. 101 ONU. Assembléia Geral. World Summit Outcome (A/RES/60/1) (20 de setembro de 2005). Disponível em http://www.un.org/summit2005/documents.html. Acessado em 30 de novembro de 2005.

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72- We agree that the responsibility to protect civilian populations lies first and

foremost with each individual State. The international community should, as

necessary, encourage and help States to exercise this responsibility. The

international community has also the responsibility to use diplomatic,

humanitarian and other peaceful means under Chapter VI and VIII of the UN

Charter to help protect civilian populations from genocide, war crimes, ethnic

cleansing, and crimes against humanity. If such peaceful means appear insufficient,

we recognize our shared responsibility to take collective action, through the

Security Council and, as appropriate, in cooperation with relevant regional

organizations under Chapter VII of the Charter.

74- We stress the need to continue consideration of the concept of the responsibility

to protect within the General Assembly102.

Uma vez mais a “responsabilidade de proteger” adotada é mais limitada do que a proposta

pela ICISS na medida em que é colocada em termos ainda mais amplos. Disso pode-se

verificar uma tendência de enfraquecimento da doutrina em cada estágio até sua real

implementação. Isso é preocupante dado que o verdadeiro desafio da nova doutrina ainda

está por vir: no Conselho de Segurança onde autorização para ações envolvendo o uso da

força com propósitos humanitários é concedida.

A responsabilidade de proteger chegou apenas incidentalmente ao Conselho de Segurança,

que no preâmbulo de sua resolução 1674 de 2006 afirmou que: “Reaffirms the provisions of

paragraph 138 and 139 of the 2005 World Summit Outcome Document regardint the

responsibility to protect populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing and

crimes against humanity”. Tal afirmação denota que até o momento somente o princípio

mais amplo de proteger populações em face de graves e generalizadas violações de direitos

humanos foi aceito; mas que a doutrina da responsabilidade de proteger como um todo

(com todos seus princípios e elementos) não foi ainda debatida e aceita.

Caso a “responsabilidade de proteger” chegue até o Conselho de Segurança para esta

análise mais profunda que leve à sua aplicação efetiva por parte deste órgão, resistindo

102 Ibid.

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tanto a seu constante enfraquecimento quanto ao desafio de não ser esquecido em meio a

tanto outros assuntos do cenário internacional103, pode-se prever que a “responsabilidade de

proteger” enfrentará principalmente dois grupos de problemas.

O primeiro grupo de problemas relaciona-se à sugestão de limitar o poder direto dos

membros permanentes. A questão nesse sentindo é dupla. Em primeiro lugar, há

dificuldade de limitar formalmente o poder de veto pois, ainda que a limitação seja suave,

qualquer tentativa de restringir formalmente os poderes dos membros permanentes do

Conselho de Segurança (o que seria o caso se a “responsabilidade de proteger” fosse

adotada, uma vez que ela propõe um compromisso de usar o veto somente em algumas

circunstâncias) se deparará provavelmente com obstáculo praticamente insuperável, dado

que tal limitação tem que ser aprovada pelos próprios membros permanentes104. Em

segundo lugar há a questão do uso real do veto, que continuaria a existir uma vez que a

limitação sugerida deixa ampla margem para interpretação na medida em que é elaborada

de forma a proteger os interesses vitais dos Estados, o que mais uma vez depende de suas

vontades; significando que, na prática, o veto continuaria a ser utilizado ilimitadamente.

O segundo grupo de problemas relaciona-se à constante limitação da doutrina da

“responsabilidade de proteger” que já possui vários déficits em si mesma. O estreitamento,

no escopo da doutrina, pode significar que, quando ela chegar ao Conselho de Segurança,

os critérios vão estar conceitualmente muito amplos e com aplicação prática muito estreita

para serem aplicados a casos reais e solucionar as questões de legitimidade e legalidade das

intervenções humanitárias.

Esses grupos de problemas provavelmente aparecerão e, caso tal previsão se confirme,

pode-se concluir que na prática nenhuma diferença real, tanto formalmente quanto derivada

da prática do Conselho de Segurança, entre as regras atuais e a nova doutrina de

intervenções com propósito humanitário existirá. Isso significa que o status quo será

mantido, e que nenhum critério será utilizado na avaliação de todas as crises humanitárias;

103 ALSTON, P. Aula proferida no curso International Human Rights. Op.cit. 104 FRANCK, T. Collective Security and UN Reform: between the necessary and the possible. Op. cit., p. 13.

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mas sim que uma abordagem caso a caso continuará sendo aplicada, o que seria uma

derrota para a “responsabilidade de proteger” dado que significaria que ela não trouxe uma

real alteração na doutrina de intervenção humanitária. Diante dessas alternativas, tem-se

que a abordagem da “responsabilidade de proteger”, apesar de suas falhas, apresenta-se

como a melhor à luz do atual cenário internacional.

Pelo exposto pode-se dizer que, caso se limite a sua análise a seus aspectos doutrinário e

prático, a “responsabilidade de proteger” é um esforço valioso na tentativa de reconciliar os

conceitos de soberania e direitos humanos; mas que na prática não conseguiu “meet the

secretary general’s objective of providing practical guidelines for policy-makers charged

with responding to conscience-shocking situations around the globe”105.

3.3 Análise dos aspectos éticos da “responsabilidade de proteger”

Os problemas fundamentais envolvidos nas intervenções humanitárias continuam mesmo à

luz dos critérios estabelecidos pela nova doutrina, e não parece que serão resolvidos

brevemente. Isso se deve ao fato de que no fundo dos problemas está o constante dilema do

sistema internacional: a batalha entre valores diferentes que significa que somente com uma

mudança de paradigmas uma solução será possível.

No caso da intervenção humanitária os conflitos entre soberania e direitos humanos e entre

legalidade e legitimidade são inerentes. A combinação desses conflitos leva, por sua vez, a

uma dicotomia ainda mais profunda do sistema internacional: a dicotomia entre justiça e

paz. Esse conflito vai ao núcleo do sistema internacional: sua profunda natureza política e a

dificuldade que o direito tem de limitar comportamentos nesse cenário.

Esse é um dilema político que existe desde há muito e que somente o estabelecimento de

critérios ou uma mudança de vocabulário não alterará.

O problema é, assim, essencialmente político, como a própria ICISS parece reconhecer, na

medida em que na conclusão de seu relatório destaca a importância da mobilização

105 WELSH, J.; THIELKING, C.; MACFARLANE, N. Op. cit., p. 509.

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nacional e da vontade política internacional para que se atinja os objetivos da

“responsabilidade de proteger”106.

Estando ausente a vontade política de redefinir o sistema internacional por meio da

alteração de seus principais valores e paradigmas, os dilemas de intervenções de propósito

humanitário persistirão, uma vez que o estabelecimento de novas regras que minimizem os

problemas de legitimidade da intervenção humanitária está relacionado à revisão do sistema

internacional como um todo.

À luz disso, e em face do atual cenário internacional, parece que é na perspectiva ética, que

a “responsabilidade de proteger” traz a sua maior contribuição na tentativa de solucionar a

crise de legitimidade da não-intervenção. Isso porque, ainda que contenha falhas, por um

lado, ela tenta criar uma maneira principiológica de se analisar e avaliar a tomada de

decisões relativas a intervenções; e por outro lado, tenta equilibrar os valores dos direitos

humanos e da soberania estatal, mas deixando claro que, em caso de choque, aqueles

devem prevalecer, resgatando assim o imperativo kantiano de que os indivíduos devem ser

tratados como fins em si mesmos e não como meios.

Conclusão

A “responsabilidade de proteger” é relevante na medida em que (1) evidencia que a

comunidade internacional continua a enxergar o tema das intervenções humanitárias como

relevante e necessitando clarificação; (2) tenta fechar “the critical gap between, on the one

hand, the needs and distress being felt, and seen to be felt, in the real world, and on the

other hand the codified instruments and modalities for managing world order107” e a

“parallel gap, no less critical, between the codified best practice of international behavior

as articulated in the UN Charter and actual state practice as it has evolved in the 56 years

since the Charter was signed”108; e (3) evidencia a vontade da comunidade internacional

106 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY, Op. cit., p. 70-73. 107 Ibid., p. 15. 108 Ibid., p. 15.

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como um todo de estar pronta para agir, inclusive com o uso da força, quando a proteção

dos direitos humanos assim o exigir.

Nesse sentido, a “responsabilidade de proteger” parece ser uma mudança tão significativa

no cenário internacional quanto a introdução do Direito Internacional dos Direitos

Humanos, e que, como esse antecedente, produzirá frutos em longo prazo no sentido de que

as transformações que propõe são mais profundas do que simples alterações de regras. Isso

se deve ao fato de que “at the heart of this conceptual approach is a shift in thinking about

the essence of sovereignty, from control to responsibility”109 e nesse sentido ela seria “an

idea that requires time to root”110.

Se isso se verificar, e a “responsabilidade de proteger” for capaz de inspirar a adoção de um

novo conjunto de valores pela comunidade internacional por meio do Direito, seus

benefícios excederão os dilemas da intervenção humanitária, atingindo os conflitos entre

soberania e direitos humanos e entre legalidade e legitimidade e ao final reconciliando os

valores de justiça e paz no cenário internacional. Mas se isso se ocorrerá somente o tempo

dirá.

109 EVANS, G; SAHNOUN, M. Op. cit., p. 101. 110 WELSH, J.; THIELKING, C.; MACFARLANE, N. Op. cit., p. 511.