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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC 1 A aprovação do projeto de lei do divórcio sob a ótica do jornal O Estado (1975-1979) Juliana Miranda da Silva 1 Resumo: Durante a década de 1970 o Brasil viveu um contexto de inúmeras transformações culturais e comportamentais, paralelo a um significativo crescimento econômico, ao mesmo tempo em que a repressão política era largamente praticada pela ditadura civil-militar imposta em 1964. Liberdade de expressão e formas autônomas de vida e comportamento eram tidas como passíveis de sofrerem ações autoritárias por parte do Estado. É nesse contexto que o então presidente General Ernesto Geisel assina a polêmica Lei nº 6515 que admitiria, a partir de 26 de dezembro de 1977, a dissolubilidade do casamento, ou seja, a possibilidade legal do divórcio no Brasil. Diante deste cenário, o Jornal O Estado, periódico de maior circulação em Santa Catarina na época, publicou inúmeras reportagens a respeito do tema, bem como cartas enviadas por leitores e leitoras que desejavam expor publicamente seu posicionamento. Nesse sentido, a proposta do presente texto consiste em apresentar uma análise diante da polêmica causada durante a discussão do projeto de lei, percebendo como os discursos de ambos os lados tanto pró-divorcistas como antidivorcistas tentam legitimar seu ponto de vista através de sua participação no jornal O Estado, entre os anos de 1975 a 1979. Palavras-chave: Divórcio, imprensa, ditadura militar. A segunda metade da década de 1970 foi marcada pela intensificação dos movimentos a favor da retomada da democracia no Brasil. Tanto nos campos político e econômico, como no cenário social, sucessivos acontecimentos evidenciavam a urgência que se fazia a implementação de ferramentas que devolvessem aos cidadãos brasileiros os direitos políticos que haviam perdido a partir do golpe militar em 1964 e ao longo da publicação dos Atos Institucionais. Os costumes e conceitos de “moralidade” e comportamento social também vinham se transformando desde as décadas anteriores. Nesse contexto, o presidente Ernesto Geisel, empossado em 1974, demonstrava em seus discursos o intuito de não prolongar “indefinidamente o controle militar do governo”, desejo esse, que segundo o historiador José Murilo de Carvalho era compartilhado por uma ala liberal de militares ligados a Escola Superior de Guerra, que não concordava inteiramente com o grupo dos “linha dura”. Geisel propôs uma abertura “lenta, gradual e segura”, realizando ao longo do seu mandato ações que visavam garantir a diminuição das restrições políticas e sociais, mas longe de estabelecer uma 1 Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail [email protected]

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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC

1

A aprovação do projeto de lei do divórcio sob a ótica do jornal

O Estado (1975-1979)

Juliana Miranda da Silva1

Resumo: Durante a década de 1970 o Brasil viveu um contexto de inúmeras transformações

culturais e comportamentais, paralelo a um significativo crescimento econômico, ao mesmo

tempo em que a repressão política era largamente praticada pela ditadura civil-militar imposta

em 1964. Liberdade de expressão e formas autônomas de vida e comportamento eram tidas

como passíveis de sofrerem ações autoritárias por parte do Estado. É nesse contexto que o

então presidente General Ernesto Geisel assina a polêmica Lei nº 6515 que admitiria, a partir

de 26 de dezembro de 1977, a dissolubilidade do casamento, ou seja, a possibilidade legal do

divórcio no Brasil. Diante deste cenário, o Jornal O Estado, periódico de maior circulação em

Santa Catarina na época, publicou inúmeras reportagens a respeito do tema, bem como cartas

enviadas por leitores e leitoras que desejavam expor publicamente seu posicionamento. Nesse

sentido, a proposta do presente texto consiste em apresentar uma análise diante da polêmica

causada durante a discussão do projeto de lei, percebendo como os discursos de ambos os

lados – tanto pró-divorcistas como antidivorcistas – tentam legitimar seu ponto de vista

através de sua participação no jornal O Estado, entre os anos de 1975 a 1979.

Palavras-chave: Divórcio, imprensa, ditadura militar.

A segunda metade da década de 1970 foi marcada pela intensificação dos

movimentos a favor da retomada da democracia no Brasil. Tanto nos campos político e

econômico, como no cenário social, sucessivos acontecimentos evidenciavam a

urgência que se fazia a implementação de ferramentas que devolvessem aos cidadãos

brasileiros os direitos políticos que haviam perdido a partir do golpe militar em 1964 e

ao longo da publicação dos Atos Institucionais. Os costumes e conceitos de

“moralidade” e comportamento social também vinham se transformando desde as

décadas anteriores. Nesse contexto, o presidente Ernesto Geisel, empossado em 1974,

demonstrava em seus discursos o intuito de não prolongar “indefinidamente o controle

militar do governo”, desejo esse, que segundo o historiador José Murilo de Carvalho era

compartilhado por uma ala liberal de militares ligados a Escola Superior de Guerra, que

não concordava inteiramente com o grupo dos “linha dura”. Geisel propôs uma abertura

“lenta, gradual e segura”, realizando ao longo do seu mandato ações que visavam

garantir a diminuição das restrições políticas e sociais, mas longe de estabelecer uma

1 Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail

[email protected]

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democracia plenamente participativa. No ano de 1977, em meio a esse clima de

“abertura” o General Geisel sancionou a polêmica Lei nº 6515 que admitiria, a partir de

26 de dezembro daquele ano, a dissolubilidade do casamento, ou seja, a possibilidade

legal do divórcio no Brasil.

Os jornais no país inteiro apresentavam nas primeiras páginas manchetes em

grandes fontes de letras , comunicando a seus leitores e leitoras que o Brasil, a partir

daquela data, daria “uma segunda chance” de união civil àqueles que por diferentes

motivos desejavam a separação de seus atuais cônjuges, pois até então, os casais que

viessem a romper os laços conjugais tinham apenas o direito ao desquite, o que os

impossibilitava contrair novo casamento civil2. Em Florianópolis, o jornal O Estado -

fundado em maio de 1915 - era o veículo da imprensa escrita de maior circulação na

década de 1970, e por se destacar entre os demais periódicos da época, foi utilizado

como fonte de informações e análises para a realização da presente pesquisa. Para o

trabalho em questão utilizo-me das publicações do jornal O Estado, entre os anos de

1975 a 1979, para analise da repercussão do projeto de lei divorcista, no que tange ao

período de tramitação da emenda. Cabe ressaltar que o texto aqui apresentado foi

adaptado a partir da monografia realizada como trabalho de conclusão do curso de

História pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Atores sociais nas páginas de O Estado

De certa forma, pode parecer paradoxal a ideia da aprovação de uma lei que

possibilitaria a separação conjugal definitiva, com a possibilidade inclusive de um novo

matrimônio, justamente durante o período em que os militares estavam no poder do

Brasil, onde havia uma constante preocupação com a imagem familiar e a preservação

da moral, refletida na censura e controle constante dos meios de comunicação. No

entanto, ao analisarmos o conjunto de acontecimentos da época, verifica-se que as

transformações nos conceitos sociais e morais convergiam para mudanças na legislação

brasileira referente ao casamento.

O historiador Marcos Napolitano mapeia a segunda metade da década de 1970

como momento de “retomada de consciência política em torno da luta democrática”

(2006, p.43) e aponta para a necessidade de se esboçar uma hermenêutica daqueles

2 Por desquite se entende o ato jurídico de separação dos cônjuges e de seus bens, sem a dissolução do

vinculo matrimonial, o que impede nova união civil com outrem, enquanto no divórcio há a dissolução

absoluta do vínculo conjugal.

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eventos, a partir das “representações e discursos produzidos pelos próprios

protagonistas na construção de novos parâmetros de ação e de novos espaços políticos”.

Nesse sentido, identifica a criação de novos espaços de atuação, que fizeram emergir a

conscientização dos participantes de entidades civis como “sujeitos protagonistas” na

luta de seus direitos. As tentativas de luta armada e atuações conspiratórias frustradas

como as ocorridas no final da década de 1960 foram gradativamente dando lugar a

protestos públicos que acabaram por articular o encontro da “questão social” com a

“questão democrática. Faz-se necessário salientar que Napolitano analisou episódios de

articulação popular ocorridos na região da Grande São Paulo, mas que, no entanto, ao

observarmos o cenário nacional da época, percebemos que as manifestações em prol da

redemocratização ocorreram por todo o país. Nesse sentido, podemos citar movimentos

sociais que ocorreram em âmbito nacional como o movimento estudantil, a luta dos sem

terra, o movimento feminista e o descontentamento popular em todo o país evidente na

significativa derrota do partido governista, a Arena, nas eleições de 1974.

No ano de 1975, o projeto criado pelo Senador Nelson Carneiro, que desejava

regulamentar o divórcio no Brasil havia sido votado, obtendo a maioria dos votos. Por

não conseguir atingir o número que lhe garantisse maioria absoluta o projeto foi

considerado rejeitado, voltando à votação em 1977, onde foi então aprovado. O Senador

Nelson Carneiro já havia apresentado um projeto anterior na década de 1950, porém, a

repercussão nos periódicos da época foi pequena em comparação ao espaço ocupado

pelas discussões ocorridas em torno do projeto divorcista que culminaria na criação da

Lei nº 6515.

O divórcio foi retratado no jornal O Estado não apenas nas páginas dedicadas a

assuntos políticos. A discussão a respeito transbordou qualquer extremo que limitasse

sua problematização, sendo apresentada sob a forma de entrevistas, charges, enquete,

cartas, crônicas, chegando a ser comentado nas colunas sociais e humorísticas. Em

determinados momentos, o assunto ganhou páginas inteiras, sendo classificado como

matéria especial, independente das colunas que já eram publicadas rotineiramente, como

no início da sua votação no ano de 1977. Neste ano, no mês de maio, o senador Nelson

Carneiro, figura de destaque na discussão por ser um dos principais criadores do projeto

divorcista, enviou uma carta endereçada ao jornal O Estado, agradecendo a cobertura

feita pelo veículo de imprensa. De alguma forma, o “mentor do divórcio no Brasil”,

como foi chamado em algumas reportagens, teve conhecimento da cobertura feita pelo

O Estado a respeito de toda a polêmica causada acerca do assunto.

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Abraço os ilustres jornalistas que integram a equipe de O

Estado, felicitando-os pela valiosa colaboração na luta em favor

de melhor e mais justa solução para os desajustados conjugais

irremediáveis (...)3

O Estado foi utilizado como fonte de informações e análises para a realização

do presente estudo, contudo, devemos ressaltar aqui que a leitura das matérias

publicadas é vulnerável a diferentes interpretações e não devem ser analisadas como

verdades ou fatos indiscutíveis, mas como parte de um contexto no qual a publicação

deste órgão de imprensa está incluído. Nesse sentido, nos alerta Maria Helena Capelato:

A imprensa constitui um instrumento de manipulação de

interesses e intervenção na vida social. Partindo desse

pressuposto, o historiador procura estudá-lo como agente da

história e captar o movimento vivo das ideias e personagens que

circulam pelas páginas dos jornais. A categoria abstrata

imprensa se desmistifica quando se faz emergir a figura de seus

produtores como sujeitos dotados de consciência determinada na

prática.4

Desta forma, os jornais são entendidos aqui como espaços de articulação de

discursos e representações, indo muito além de meros locais de divulgação dos fatos

relevantes à “pauta do dia”, que seriam esquecidos na manhã seguinte. Ou seja, o

posicionamento do debate na estrutura do jornal não é imparcial, sendo escolhido

segundo interesses e objetivo do editorial.

Capelato nos aponta ainda, a mudança ocorrida na imprensa escrita após a

década de 1950, onde os jornais ganharam novas estruturas de diagramação e interação

com o leitor, com o intuito de disputar as atenções que, a partir de então estariam

divididas com outras mídias como o rádio e a televisão.5

Diante da quantidade de matérias referente a tramitação do projeto de lei

divorcistas, observa-se que assunto se tornou pertinente em todo o país, tendo em vista

que participavam das discussões nas páginas do jornal representantes eclesiásticos e

3 O Estado, ano 63, n. 18707, 21 de maio, 1977. p.4.

4 CAPELATO, Maria Helena Rolin. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: Ed.

Contexto/EDUSP, 1988, p. 21. 5 Ver, a esse respeito CAPELATO, Maria Helena. Op. Cit. p. 17

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políticos de diferentes estados. Inúmeras matérias publicadas iniciavam com o nome da

cidade na qual correspondiam:

Salvador – O senador Nelson Carneiro, do MDB, telegrafou ao

cardeal arcebispo (...)6

Brasília – O congresso nacional iniciou ontem a noite os debates

sobre a emenda constitucional (...)7

São Paulo – Para o cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo

Evaristo Arns, disse ontem que (...)8

Porto Alegre – o cardeal arcebispo Dom Vicente Scherer

criticou ontem os senadores (...)9

A partir de fevereiro de 1975, a problematização aumentou consideravelmente,

quando oito reportagens trataram do tema, expondo a opinião da Igreja Católica, de

parlamentares, e de leitores e leitoras que através de cartas manifestaram sua opinião. O

aumento da discussão é explicado pelo fato de que o projeto da emenda começaria a ser

avaliado pelas bancadas partidárias. Mesmo a inauguração da ponte Colombo Salles,

importante obra que figuraria como nova alternativa de ligação rodoviária entre a parte

insular de Florianópolis e a região continental da cidade, ocorrida em março de 1975,

não recebeu tanto espaço nas edições do jornal quanto a questão da tramitação do

projeto de lei divorcista.

No ano de 1977, principalmente a partir do mês de abril, o divórcio foi

largamente discutido nas páginas do jornal O Estado, tendo em vista que no citado mês

ocorreram mudanças na regulamentação para aprovação de projetos, reduzindo a

quantidade de votos necessários, que passaram de dois terços para a metade da bancada,

facilitando o propósito dos divorcistas. Na votação anterior – em 1975 – o projeto

obteve a maioria dos votos, somando 222 votos a favor e 148 contras, contudo, sem

alcançar os dois terços necessário na época, não foi aprovado.

“O que Deus uniu”, a lei não deve separar

São numerosas as reportagens no Jornal O Estado que apresentam a opinião da

Igreja Católica quanto a questão divorcista. Tais reportagens, referentes não só à

aprovação do divórcio como de tantos outros assuntos, apareciam com frequência sob o

6 O Estado, ano 60, n. 17946, 1 de março, 1975. p. 5.

7 O Estado, ano 60, n. 18010, 7 de maio, 1975. p. 5.

8 O Estado, ano 60, n.17943, 22 de fevereiro, 1975, p. 5.

9 O Estado, ano 60, n. 17949, 4 de março, 1975. p. 5.

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formato de entrevistas, indagações e pronunciamentos oficiais, e nos levam a concluir

que havia certa preocupação por parte do jornal em repassar a opinião do clero sobre

diferentes temas a seus leitores e leitoras.

Em nenhum momento se percebe uma homogeneidade na opinião tanto de

Arenistas como de Emedebistas em relação à aprovação do projeto. No entanto,

podemos notar que a pressão exercida pela Igreja Católica sobre os políticos pesou na

decisão final de inúmeros congressistas, inclusive na grande maioria dos deputados

catarinenses, que acabaram votando contra a aprovação do projeto.

Os deputados catarinenses em sua maioria eram contra a instauração do divórcio

no Brasil, e em muitos momentos se colocaram como aliados da Igreja ao defender

segundo eles, a instituição familiar.

A Igreja Católica em Santa Catarina, não apenas foi contra em todos os

momentos a aprovação da emenda constitucional, como tratou de ampliar o número de

políticos favoráveis ao prosseguimento da indissolubilidade matrimonial do país, como

mostra a nota publicada apresentando aos leitores e leitoras a mobilização do clero

contra o divórcio:

Os sete bispos de Santa Catarina, reunidos em Lages desde

Segunda-feira, decidiram enviar aos senadores e deputados

federais, que representam o Estado em Brasília, uma a mostra da

posição ortodoxa e unânime do clero catarinense sobre o

divórcio. (...) O documento finaliza com estes termos: “o atual

momento histórico de massificação e permissividade exige o

fortalecimento da instituição familiar como fator de

personalização e preservação dos princípios éticos fundamentais

em favor da integração dos lares brasileiros.10

Em Brasília a situação se apresentava dividida, e a Igreja Católica tratou de

pressionar de diferentes formas deputados e senadores na luta contra a emenda

divorcista. A coluna editorial demonstrou-se muitas vezes irônica ao tratar do assunto,

apontando um posicionamento favorável a aprovação do projeto. Na nota intitulada “na

lista negra” temos um exemplo de oposição à atitude da Igreja e das possíveis

consequências que sofreriam aqueles que votassem a favor do divórcio:

Padres de todo o Brasil estão recebendo uma circular com os

nomes de deputados e senadores que votaram a favor do

10

O Estado, ano 60, n.17986. 12 de abril, 1975, p.4.

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divórcio, na sessão conjunta do Congresso, Quinta-feira

passada. Para motivos óbvios..11

Durante o governo de Geisel, o então partido de oposição MDB, conquistou

crescentes vitórias nas eleições de 1974, no entanto, em busca de alianças e

fortalecimento, o senador Nelson Carneiro, autor do projeto, era integrante do MDB do

Rio de Janeiro enfrentou dentro de seu partido a rejeição por parte de alguns deputados

e senadores. O deputado catarinense Dib Scheren tem sua opinião publicada sobre esta

questão no jornal, afirmando que:

Se o divórcio não passar no congresso, não será por obra da

Arena. Quem vai derrotar a Emenda de Nelson Carneiro é o

MDB, e exatamente a sua ala autêntica, ‘disposta a uma política

de aproximação com o clero.12

As reportagens publicadas no jornal O Estado nos anos referentes a tramitação

da emenda divorcista evidenciam que as opiniões dos políticos a respeito da aprovação

do projeto de lei, independente de posição partidária, estavam ligadas a preocupação de

não desagradar os grupos que se apresentavam como possíveis aliados. E entre estes

“grupos aliados” se encontrava a Igreja Católica. Utilizando-se da passagem bíblica

encontrada no livro de Marcos capítulo 10, versículo 12, que diz “não separem os

homens o que uniu Deus” a Igreja justificava sua decisão irrefutável.

Em 1975, o senador Nelson Carneiro pediu que se fizesse um plebiscito, como o

que ocorreu na Itália13

, para saber o que o povo brasileiro pensava a respeito da

dissolubilidade do casamento, mas a Igreja manifestou-se contra, afirmando que

existiam questões mais pertinentes a serem tratadas no momento e que o divórcio não

era um assunto popular. A Igreja alegou que tal discussão dizia respeito a “caprichos da

classe média”, pois a população carente priorizava outros assuntos. Segundo Dom

Vicente Scherer, bispo de Porto Alegre em 1975, a realização de um plebiscito não seria

interessante porque “A verdade e a solução de problemas não se encontram no voto de

grandes multidões”14

.

11

O Estado, ano 60 n. 18018. 15 de maio, 1975 p.4. 12

O Estado, ano 60 n. 17992. 18 de abril, 1975 p.6. 13

Na Itália, após a realização de um plebiscito popular, os parlamentares instituíram o divórcio, mesmo

com toda a campanha contra, feita diretamente pelo Vaticano. 14

O Estado, ano 60, n.17953, 04 de março, 1975. p. 5.

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Esta não foi a única vez em que representantes da Igreja Católica desmereceram

a discussão, alegando que existiam preocupações mais urgentes. A Igreja, não via nas

transformações políticas e sociais vividas no país um motivo plausível - como

argumentavam os divorcistas - para que se tomasse posição favorável a legalização do

divórcio.

A influência da Igreja Católica nas discussões políticas nacionais é percebida

facilmente nas matérias do Jornal. Muitas mudanças ocorridas nos projetos de

implantação do divórcio anteriores foram vistas por diferentes juristas como formas de

consentir em parte com a Igreja, a fim de obter certa tolerância para que se conseguisse

a aprovação do projeto divorcista. Nesse sentido, faz-se importante perceber que

“ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não

for, de início, qualificado para faze-lo” (FOULCAULT, 1996). O advogado J. Saulo

Ramos aponta a escolha do divórcio indireto adotado no Brasil, que exige condições

preliminares como a separação temporária como uma forma de condescendência às

vontades da Igreja:

A separação prévia é uma concessão à influência católica, que

considera o desquite, isto é, a separação de corpos, um meio de

autorizar a cessação da vida em comum por um período

indeterminado, mas destinado a meditação e ao longo do qual os

cônjuges separados, sem poderem casar-se de novo com outra

pessoa, venham a desistir da separação e, em conseqüência,

voltem a viver juntos.15

Segundo diferentes artigos publicados no jornal O Estado, o número de

desquites aumentava a cada ano e matérias sobre o assunto também foram publicadas,

divulgando estatísticas que apresentavam informações relevantes, como o fato do

número de pedidos ser maior por parte das mulheres:

Conseqüência da crescente independência feminina ou não, o

fato é que hoje, a mulher é quem mais procura soluções no

desquite.16

15

RAMOS, J. S, Op. Cit. 16

O Estado, ano 60, n. 17925, 06 de fevereiro, 1975, p. 15.

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Dentro do assunto, a questão referente a “moralidade” da mulher após a

separação foi debatida juntamente com a dúvida quanto ao “bem estar” dos filhos diante

de um possível novo matrimônio dos pais. Este possível “novo matrimônio” preocupava

a Igreja Católica, que desejava se manter como ditadora de preceitos morais e sociais e

que não cansou de se manifestar através de seu discurso contra a legalidade do divórcio.

Em contrapartida, para alguns dos leitores que tiveram cartas publicadas no jornal, a

mudança da lei poderia fazer com que as então “divorciadas” fossem consideradas mais

dignas do que as “desquitas”, visto que teriam nova chance de contrair um novo

casamento, livrando-se assim dos “inconvenientes sociais” que lhes caiam.

Nas cartas, as discussões giravam basicamente em torno dos leitores e leitoras

que estavam a favor da legalização do divórcio, e daqueles que defendiam a posição dos

clérigos e de alguns parlamentares, se declarando contrários à dissolubilidade civil do

casamento. Foi percebido que havia por parte de alguns leitores, grande preocupação

com a “moral” que deveria ser mantida não só em Santa Catarina, como em todo o país,

e que, caso liberado, o divórcio poderia vir a ser um sério e hostil adversário daqueles

que buscam viver em uma nação que preserva a moralidade e os “bons costumes”.

Alguns leitores utilizavam-se de passagens bíblicas para defender seu ponto de

vista e defender também a posição adotada pela Igreja. Diversas cartas questionavam a

legalidade do divórcio, pois este era contrário as leis divinas, e não viam as

transformações sociais e culturais como motivo para a sua aprovação no Brasil:

Para mim a palavra de Deus haverá de prevalecer sobre o

barulho dos homens e por isso acredito que o divórcio não será

aprovado para o bem da família brasileira. (...) Cristãos ou não,

todos aqueles que surgiram de uma família, deverão defende-la,

contra o perigo.17

O “perigo” ao qual a leitora Carmen Lúcia Cândido, da cidade de Blumenau se

refere é a instituição do divórcio no Brasil. Entretanto, alguns leitores utilizavam-se

também de trechos dos evangelhos, para apoiar a legalização do divórcio, interpretando

trechos bíblicos como sendo “a prova” de que Deus seria piedoso com aqueles que

acabaram sendo infelizes no casamento, e que seria melhor estar “corretamente” unido a

outrem, do que amasiado:

Sr. Diretor, “todo aquele que rejeitar sua mulher, dê-lhe carta do

divórcio”. Estas palavras foram pronunciadas por Cristo no

17

O Estado, ano 63, n. 18692, 05 de maio, 1977. p.4

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Sermão da Montanha (Mateus, capítulo 5, versículo 31.) E no

versículo 32 Ele nos adverte: “Todo aquele que rejeita a sua

mulher faz-lhe tornar-se adúltera”, então por que os senhores

bispos estão contra as palavras do Mestre? Por que razão os

clérigos celibatários rejeitam a sua lei e obedecem

incessantemente, em nome de uma falsa moral – um dogma

contraproducente que induz a mulher abandonada, e com filhos

pequenos a arranjar um amásio que lhe garanta o sustento e de

sua prole?(...)” Pensem na atitude imparcial do Presidente da

República, que tanto preza a ética. Acredito que Sua Excelência

como religioso saiba que Cristo foi o primeiro divorcista da

História 18

O leitor aqui está demonstrando sua preocupação com a situação da mulher

separada do marido, além de ver a necessidade de um novo homem, para ajuda-la a

garantir “o sustento da prole”. É interessante analisar nesta correspondência, como

mesmo defendendo padrões sociais, o leitor está a favor da aprovação do que chama “lei

cristã”. No entanto, se equivoca ao dizer que Cristo teria sido o primeiro divorcista da

História, visto que mesmo antes da existência de Cristo, o divórcio já era praticado

pelos romanos e de maneira muito facilitada pelo direito romano arcaico, podendo ser

solicitado por um dos cônjuges, o chamado repudium, ou por um acordo entre as partes,

o divortium communi consensu.19

A instituição familiar foi vista e abordada de diferentes formas. Em oposição as

reportagens referentes à igreja e a opinião de seus representantes, as cartas publicadas

durante o período da pesquisa, apontam uma preocupação maior e de certa forma mais

realista acerca dos problemas que levam um casal a pensar em separação, sem focar

necessariamente a preocupação com a situação dos filhos.

Considerações finais

O projeto de lei do divórcio percorreu um longo caminho até chegar a ser

sancionado pelo presidente Ernesto Geisel em 1977. Nesse sentido, o espaço dado pelo

jornal O Estado para as publicações referentes ao projeto de lei e sua tramitação, foi

importante pelo fato de possibilitar um diálogo entre diferentes grupos da sociedade.

Deste modo, mesmo evidenciando nas matérias publicadas que a discussão ocorreu em

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O Estado, ano 63, n. 18695, 08 de maio, 1977. p.4 19

THOMAS, Marky. Curso Elementar de Direito Romano, ed. Saraiva, 6ª ed., 1992.

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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC

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âmbito nacional, o jornal procurou passar a visão dos políticos e clérigos catarinenses,

bem como a publicação de cartas de leitores do estado.

Mesmo com a separação oficial entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro,

ocorrida em 1891 com a primeira constituição republicana, até a década de 1970,

quando foi aprovada a dissolução legal do casamento, os dogmas religiosos

continuaram a influenciar nas decisões judiciais, principalmente quanto à questão

familiar. Os espaços dados às declarações da Igreja Católica demonstram o quanto as

opiniões desta instituição foram relevantes nas decisões políticas e sociais sobre o

assunto e no adiamento da legalização do divórcio no Brasil.

O jornal O Estado, ao publicar a carta de leitores e leitoras, mostra também

como o debate envolveu diferentes setores da sociedade. Ao enviarem suas opiniões

sobre o assunto, leitores e leitoras buscavam dar credibilidade aos seus comentários

expondo nomes e/ou ocupações. Além disso, em nenhum momento que antecedeu a

decisão final, o jornal deu como definida a situação apontando a “vitória” para um dos

lados. As matérias publicadas, ao contrário, demonstraram a opinião da população e

políticos de forma indefinida, expressando o desejo de seus defensores, mas em nenhum

momento afirmando qual seria a decisão aprovada.

É compreensível que grande parte da sociedade estivesse ainda em dúvida

quanto ao seu posicionamento frente a lei divorcista, visto que se tratava de um tema

polêmico uma vez que abordava transformações no comportamento. A posição da

mulher após a separação, por exemplo, foi abordada inúmeras vezes. Discutiu-se como

ficaria a situação comparativamente entre ser uma mulher “desquitada” ou “divorciada”.

A Igreja não concordava com nenhuma das opções, no entanto, preferia a posição de

desquite, pois negava as pessoas a possibilidade de se contrair um novo casamento civil.

A Igreja via na aprovação do projeto divorcista um caminho para a desmoralização da

sociedade brasileira ao se afastar as decisões religiosas das decisões políticas e sociais.

Podemos concluir com o debate apresentado no jornal que diferente do que a

Igreja Católica tentou pregar, a aprovação da Lei do Divórcio não deve ser vista como

um “estímulo” à separação, pois o número de pedidos de desquites no período anterior a

sanção já era considerado elevado. Neste sentido, a aprovação do projeto divorcista nos

leva a crer que a o divórcio legal ajudou a sociedade a aceitar melhor aquelas pessoas

que por algum motivo viam na separação uma alternativa a infelicidade no casamento.

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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC

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