Upload
lykhuong
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
A ARTE DA VIGILÂNCIA: A FORMAÇÃO DE AGENTES SECRETOS NO BRASIL
NO LIMINAR DA DÉCADA DE 1960
Rodrigo Pereira Da Silva (Mestrando em História - Bolsista DS/CAPES)
(Universidade Estadual de Maringá- UEM) Angélica Ramos Alvares (Mestranda em História - Bolsista DS/CAPES)
(Universidade Estadual de Maringá- UEM) Prof. Dr. Ângelo Aparecido Priori (Orientador)
(Universidade Estadual de Maringá-UEM)
Resumo: Diante da iminência de um suposto perigo que pudesse vir a ameaçar a Segurança Nacional, a prática da vigilância se tornou uma ação recorrente utilizada pelos serviços de informações do Brasil. Na medida em que este Serviço verificava o aumento da subversão ou aproximação de um hipotético inimigo – por vezes associado ao comunismo – a prática da vigilância passou a ocupar um lugar de destaque no processo de formação dos agentes secretos, principalmente a partir da década de 1960. Foi nesse período, que imbuídos pela Doutrina de Segurança Nacional, que surgiram os primeiros manuais brasileiros voltados para a capacitação de agentes secretos. Entretanto, por trás deste processo, há uma complexidade que só pode ser compreendida à luz do contexto em que fora produzida: o da Guerra Fria. Nesse sentido, almejamos nesse artigo, refletir sobre alguns pontos que norteavam a formação destes agentes, buscando neles indícios que refletem o contexto supracitado, o que justificava o excesso de detalhes contidos nos manuais. Para tanto, tomaremos como referência o Manual “Noções sobre Operações Clandestinas”, produzido no Brasil em abril de 1960. Tal Manual, trás em seu bojo questões que nos permitem refletir não somente sobre a formação dos agentes secretos, mas também sobre uma noção de segurança nacional, que adentrará ao Regime Militar, iniciado em 1964.
Palavras chave: Agentes Secretos; Vigilância; Segurança Nacional.
Financiamento: Mestrandos/Bolsistas DS - CAPES.
Introdução
Em 1992, o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, recebeu de forma anônima,
uma série de documentos relativos ao treinamento de agentes por parte dos órgãos
oficiais, que em diferentes momentos da história republicana do Brasil, foram
responsáveis pela execução dos serviços de informações no país. Este material
revela ainda, certas atividades profissionais, de caráter muitas vezes secreto,
desempenhadas pelos referidos agentes, abrangendo o período de 1946 a 1975. A
coletânea desses documentos é composta em sua grande maioria por:
“apostilas, normas, informes, estudos, publicações, relatórios sobre treinamentos dados pela Subseção de Operações (SSOP) do Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI), órgão integrante do Conselho de Segurança Nacional (CSN), e posteriormente do Serviço Nacional de Informações (SNI); informes e estudos produzidos por agentes infiltrados em reuniões e assembleias de entidades civis contrárias ao regime militar, publicações, texto e cartas provavelmente apreendidos e coletados no decorrer da tarefa de espionagem” (ARQUIVO NACIONAL, 2008, p.6).
Imerso nesse universo, encontram-se também documentos cuja produção é
oriunda de entidades e/ou pessoas consideradas subversivas, sendo muito provável
sua utilização como fonte de informações. Estes materiais foram inventariados em
uma Coleção intitulada “Informantes do Regime Militar” 1. Para sua classificação,
estabeleceu-se um código de identificação de fundo com a nomenclatura “X-9”. A
escolha do código não foi aleatória, pois no jargão policial, X9 significa espião,
informante. O acervo foi organizado em outubro de 2007, com o objetivo de integrar
virtualmente o Portal Memórias Reveladas2 (ARQUIVO NACIONAL, 2008, p.6).
Para além da operacionalização técnica, que diz respeito ao universo dos
arquivos, a organização desse material abriu um leque de possibilidades para os
pesquisadores das áreas de História, Sociologia e Ciência Política, que por meio
desse arsenal documental podem agora ampliar as abordagens de investigação dos
acontecimentos daquela época, no que tange as necessidades e interesses do
governo brasileiro em questões relacionadas à segurança e ao desenvolvimento
sociopolítico e econômico do país.
Na tentativa de colaborar com os estudos que se utilizam deste material
compilado pelo Arquivo Nacional - como alicerce para suas pesquisas -
pretendemos nesse artigo apresentar a forma como a questão das Técnicas de
‘vigilância’ era percebida pelos serviços de informações e até que ponto sua
1 ARQUIVO NACIONAL (BRASIL). Inventário da Coleção Informantes do Regime Militar. Rio de Janeiro, 2008. 52p. 2 Para maiores informações sobre o Portal “Memórias Reveladas”, consultar o endereço eletrônico: < http://www.memoriasreveladas.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home >.
importância traduzia o medo do governo brasileiro frente à ameaça interna e externa
das organizações que atuavam na contramão da ordem política e social vigente no
início da década de 1960. Para tanto, tomaremos como referência um dos Manuais
que compõem a Coleção “Informante do Regime Militar” intitulado “Noções sobre
Operações Clandestinas”, produzido no Brasil em abril de 19603. Deste Manual
extrairemos a noção de vigilância, impressa no 6º capitulo (Meios de Ação
Clandestina) e partir de então buscaremos estabelecer relações daquela com a
conjuntura histórica do período supracitado.
Nossa tese neste artigo caminha no sentido de apontar que o excesso de
preocupação com a questão da vigilância expressa no manual, para além de uma
mera questão de formação e capacitação de agentes secretos, se justificava e ao
mesmo tempo se entrelaçava com o avanço do Regime Comunista, que após a
Segunda Guerra Mundial fora elencado como o inimigo nº1 dos governos
ocidentais. Nesse período, conforme pontua Luiz Reznik o “espectro do comunismo”
e o temor da revolução social mobilizaram recursos, assim como se programaram
políticas de exclusão de organizações e associações comunistas (REZNIK, 2004, p.
19).
A arte da ‘Vigilância’: Aspectos técnicos do Manual “Noções sobre Operações
Clandestinas”
O Manual “Noções sobre Operações Clandestinas” foi produzido conforme
mencionado acima em abril de 1960. Possui 91 páginas e está classificado como
‘Reservado’. Esta classificação indicava que o conteúdo do documento não deveria
ser publicado ou comunicado a qualquer um, exceto para fins oficiais. O Manual
está dividido em seis capítulos, sendo eles respectivamente: ‘Ação Clandestina’; ‘A
Organização Clandestina’; ‘Comunicações’; ‘Segurança’; ‘Obstáculos a Ação
Clandestina’ e ‘Meios de Ação Clandestina’. O termo ‘clandestino’, nesse contexto
remete-se a ações que deveriam ser realizadas de forma oculta, sem o
3Este documento encontra-se atualmente sob a guarda do Arquivo Nacional, e será aqui referenciado da seguinte forma: AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, 91p.
conhecimento do “objetivo”, ou seja, da pessoa, lugar ou coisa a qual era dirigida a
operação.
A escrita do Manual comporta uma linguagem didática e não apresenta um
conteúdo restrito apenas com a intenção de ambientar os agentes secretos sobre o
que é uma ‘ação e organização clandestina’ e de que maneira elas se organizam4,
mas também apresenta modelos de comportamentos (profissionais e pessoais) para
serem seguidos pelos os agentes (secreto-infiltrados), no decorrer de suas ações.
De acordo com o Manual “em qualquer caso [seja em tempo de guerra ou paz] um
serviço de informação deve estar em condições de responder às perguntas que lhe
forem feitas e, como nem todos os dados são obtidos através dos meios ostensivos
(ou seja, de forma pública) é obrigado a completá-lo por meio de ações
clandestinas” 5.
Entretanto, não constitui nosso objetivo pormenorizar na integra o Manual,
exceto nas partes em que este apresentar conteúdos relacionados com a “arte da
vigilância”, o que de forma concreta se verifica com mais frequência no 6º capítulo
do Manual – “Meios de Ação Clandestina”. A prática de vigiar, conforme está
pontuado neste capítulo, indica que a vigilância poderia ser efetuada visando os
seguintes objetivos:
- Obter provas de um delito; - Levantar um indivíduo mediante a vigilância dos lugares que frequenta e de seus companheiros; - Levantar a residência, lugar de trabalho e outros lugares frequentados pelos companheiros, ou cúmplices do objeto [vigiado]; - Evitar que o vigiado cometa um delito; - Verificar a informação dos informantes, tanto gerais como confidenciais6.
4 Em geral, as organizações clandestinas funcionam mais ou menos dentro do seguinte esquema: No
escalão - mais elevado há um Chefe ou Diretor que determina o objetivo. Na base, ou escalões de execução, estão os agentes que tem acesso tem acesso ao local, pessoa ou coisa que constitui o objetivo. Entre o Chefe e os Agentes há um escalão de indivíduos de diversas categorias (que incluem, também outros tipos de agentes), cujo número varia de acordo com as circunstancias. O essencial é que os agentes de primeira linha só se comuniquem com o Chefe através de, pelo menos, um intermediário. Esse escalamento proporciona a compartimentação vertical, essencial à segurança, e permite em certas situações, deixar o agente na ignorância da organização para qual trabalha AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p. 7. 5 AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p. 6. 6 AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p.55.
Poderia ser fixa ou móvel. A primeira consiste na observação contínua de um
local ou um indivíduo de um ponto fixo. A segunda remete-se ao acompanhamento
do vigiado a pé ou em viatura. Usualmente, a vigilância a pé podia ser
desempenhada por grupos de dois, três ou mais, regime de substituição ou por um
único vigilante. Nessa ótica, o método intitulado “ABC” era o mais indicado.
Consiste em cercar o vigiado pelo menos por dois lados. Assim “A” segue o vigiado; “B” segue “A” sem perdê-lo de vista; “C” marcha paralelamente ao vigiado na calçada oposta (ver fig.1). Se o vigiado dobrar uma esquina e entrar num edifício, “C” está em situação de trocar sua posição com “A” (ver fig.2). “B” e “C” devem alternar-se na substituição do “A” para diminuir a possibilidade de ser reconhecida no decorrer de uma vigilância longa e continua. Para conseguir uma vigilância eficiente em ruas muito largas ou congestionadas por trafego excepcional, pode-se adotar uma variação do método “A B C”, fazendo com que “C” preceda o vigiado, em lugar de segui-lo na calçada oposta. Quando existem dois vigilantes disponíveis, um deles adota alternadamente as posições com “A”7.
Para não haver dúvidas quanto aos procedimentos dessa metodologia, o
manual trazia de forma ilustrada, como na prática ela deveria ser organizada.
Figura 1: O Método de vigilância “ABC”. Fonte: AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p.56.
7 AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p.55.
Figura 2: O Método de vigilância “ABC”. Fonte: AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p.57.
O ato de vigiar, contudo não era tão simples assim. Antes de iniciar uma
operação de vigilância a pé ou viatura o agente deveria seguir determinadas
medidas, tais como:
- Decidir quanto ao tipo de grau de vigilância. - Obter a melhor descrição possível do vigiado. Pode - se empregar métodos diretos de identificação, como o de pedir a um informante que o assinale. - Prever os transportes, substituições e comunicações com a Chefia. - Preparar explicações para justificar a presença dos vigilantes nos locais e horas necessárias. - Munir-se de fundos suficientes para qualquer necessidade urgente. - Não portar armas de fogo, se for imperioso usá-las devem estar bem ocultas. - Quando possível, usar câmeras fotográficas para registrar as ações do vigiado. - Pedir instruções sobre o procedimento a adotar em caso de ser descoberto8.
Era ainda aconselhável ao agente vigilante adotar gestos naturais, evitando
chamar muita atenção com seus trajes, gestos e atitudes, ou esconder-se
repentinamente. Em casos de ser reconhecido pelo “objetivo” deveria provocar
ligeiras alterações na aparência para dificultar seu reconhecimento, e alterando a
maneira de usar o chapéu, ou retirando a gravata, por exemplo. Concomitante a
8 AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p. 58.
estas medidas, uma série de sugestões ainda compunham a lista para se obter a
eficiência na arte da vigilância. Dentre elas destacamos:
- A distância entre o vigilante e o vigiado deve ser maior no campo que na cidade. Em um edifício, em rua muito movimentada e em transportes coletivos, a distância deve ser bem curta para não perder de vista o vigiado. - Quando o vigiado entra num elevador e diz o número do andar, o vigilante deve manter-se calado e simplesmente acompanhar o vigiado quando esse sair. Caso o ascensorista insista com os passageiros para que digam onde vão saltar, o vigilante repetirá o número dado pelo vigiado ou pede o último anda, embora salte no mesmo andar que o vigiado, pois chama - se mesmo atenção saltando antes do que após o andar anunciado. - Ao comer em um restaurante o vigilante deve terminar ao mesmo tempo, ou antes, do vigiado. - À noite, o vigilante deve evitar luzes brilhantes, ciladas frente a portas abertas e esquina. - Caso o vigiado aborde o vigilante, esse pode abrandar as suspeitas do primeiro contando-lhe uma história que justifique plausivelmente sua presença no local àquela hora. - Quando o vigiado consegue iludir seus seguidores, deve-se empreender todos os esforços para localiza-lo novamente. Se seu nome é conhecido, o vigilante telefona para sua residência e locais por ele frequentado. É comum os familiares, porteiros e amigos darem notícia sobre seu paradeiro9.
Com relação a vigilância em viaturas recomendava-se ainda ao agente a
utilização de automóveis tipo comum, sem placas oficiais além de uma reserva de
gasolina em caso de emergência. Em cada viatura dever-se-ia viajar dois vigilantes.
Um para dirigir o carro e o outro para observar, anotar, operar o rádio e saltar para
continuar a pé, quando fosse o caso. Sobre a vigilância de caráter fixo era
imperativo a utilização de um quarto, apartamento, casa ou algum tipo de
construção em sítio adequado. Em localidades cuja vigilância fixa não fosse
possível, os observadores poderiam manter a vigilância disfarçada em caçadores,
operários, vendedores ou qualquer tipo de atividade que não chamassem a atenção
nas vizinhanças10.
Nesse sentido imperava a necessidade de saber o que ocorria no interior de
certos locais (casas, armazéns, escritórios, etc.). Segundo o Manual “Informes
9 AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p. 58-59. 10 AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p. 63.
dessa natureza são procurados para obter provas que comprometam alguém ou
para conhecer os frequentadores de determinados locais”. Normalmente, havia
interesses em saber quem frequentava o que faziam e diziam, o que manejavam e
guardavam no local. Para tanto:
O registro de entrada e saída de uma casa [poderia] ser feito com máquinas fotográficas e cinematográficas bem como as atividades no seu interior podem ser registradas por esses meios previamente ocultos. As conversações podem ser ouvidas ou gravadas através de microfones ocultos, tomadas nas linhas telefônicas, etc.11. (grifos nossos)
O não - dito sobre o Manual “Noções sobre Operações Clandestinas”
Muito mais do que os procedimentos técnicos expressos anteriormente
acerca da melhor forma de se vigiar alguém, interessa-nos aqui compreender o
porquê e principalmente a quem a vigilância (minuciosa) deveria ser direcionada.
Para operacionalizar está análise partiremos da noção de ‘Documento’ defendida
por Jaques Le Goff, o qual entende o Documento (no sentido histórico) enquanto
“um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
detinham o poder” (2003, p. 536). Para Le Goff, nenhum documento é inócuo,
“é antes de mais nada resultado de uma montagem , consciente ou inconsciente, da história da época, da sociedade que produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado ainda que pelo silêncio” (LE GOFF, 2003, p. 537-538).
Assim, buscando indicar os possíveis motivos que se escondiam nas
entrelinhas do Manual, bem como o excesso de medidas na área da vigilância, far-
se-ia necessário compreender a sociedade que o fabricou, bem como a conjuntura
histórica que ela estava inserida.
Com o término da Segunda Guerra Mundial em 1945, sucedeu-se uma série
de transformações, tanto política quanto econômicas, no cenário internacional.
Neste ambiente, emergiu de forma polarizada duas potências saídas da guerra: os
11 AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/14, p. 65.
Estados Unidos e a União Soviética, representando respectivamente o bloco
ocidental capitalista e o bloco oriental socialista. Neste contexto que se
convencionou chamar de “Guerra Fria”, diversos países do Ocidente, com
orientações dos Estados Unidos, se uniram como forma de fazer frente ao
expansionismo da União Soviética e consequentemente ao ideário comunista.
Em meio a este contexto, as atividades de inteligência tiveram papel
destacado, trabalhando em termos de ameaça a um eventual conflito. O governo
brasileiro, na tentativa de sanar a carência de um serviço que pudesse corresponder
a este novo cenário mundial, criou em 1946, o Serviço Federal de Informações e
Contra- Informações (Sfici). Apesar de civil, o Sfici era subordinado ao Conselho de
Segurança Nacional (o novo nome do Conselho de Defesa Nacional). Nesse
ínterim, anexado ao Conselho de Segurança Nacional, o Sfici, passou a reger suas
atividades, conforme prerrogativas dos militares. Estes, por sua vez, passaram a
desenvolver uma Doutrina para o órgão, que pudesse nortear o combate ao
comunismo, elencado como principal ameaça a segurança nacional. O resultado foi
a elaboração da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) 12, cujo termo
“Desenvolvimento” seria anexo posteriormente.
Paralelamente a estes fatos, os Estados Unidos, na tentativa de frear este
avanço comunista, abriu as portas das academias americanas, ofertando cursos
aos militares brasileiros, que dentre outros objetivos visava capacitá-los no combate
ao avanço do comunismo na América Latina. Como resultado deste contato, em
1949 surgiu no Brasil, a Escola Superior de Guerra (ESG) uma academia de alto
nível para militares baseada no National War College Americano13. A partir dos
dogmas paranóicos da Guerra fria, a ESG, se tornou a organização militar brasileira
mais empenhada no estudo e na construção de um serviço secreto no país, o qual
teria um papel fundamental na difusão da Doutrina de Segurança Nacional. Este
empenho se materializaria em 1964, com a criação do Serviço Nacional de
Informações (SNI), cuja atuação daria novos contornos a Ditadura Militar no Brasil,
após 1964.
12 Sobre a Doutrina de Segurança Nacional ver: ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1985. Bauru: Edusc, 2005; COMBLIN, J. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 13 Ver: ARRUDA, Antônio de. ESG: História de sua Doutrina. São Paulo: GRD [Brasília]: INL, 1980.
Tantos esforços americanos, no entanto não foram suficientes para barrar o
avanço comunista em países como a China (Revolução de 1949) e Cuba
(Revolução de 1959). Este último respingaria no cenário brasileiro, acendendo todas
as luzes do Sfici. Conforme Lucas Figueiredo, na concepção do Sfici, o Brasil era
um ninho de espiões vermelhos na virada de 1959 para 1960. A imagem do
comunista superpoderoso povoava as cabeças do Serviço. Era como se os
comunistas tivessem o dom da hipnose e fossem capazes de converter qualquer um
à causa revolucionária – mais ou menos como Fidel fizera com Che (FIGUEIREDO,
2005, p.76- 77). O serviço secreto tinha enfim seu primeiro grande desafio:
[...] identificar e neutralizar qualquer manifestação simpática a Cuba
no território nacional. Os estudantes – candidatos naturais a Che Guevara – foram o alvo inicial. O Sfici começou a vasculhar nas universidades e escola secundaria qualquer atitude simpática a Cuba. Para o serviço secreto, até mesmo pendurar um retrato de Fidel na parede era considerado uma atitude subversiva, um gesto que demonstrava que a revolução cubana se infiltrava. Na ótica do Serviço, o culto às imagens de Fidel e Che fazia parte da chamada guerra psicológica, a primeira etapa (e a mais sórdida) da revolução, aquela em que, sem perceber, a sociedade é dominada por dentro. (FIGUEIREDO, 2005, p. 73)
A situação de Cuba, por outro lado, evidenciava que o inimigo não estava tão
longe, e dessa forma, o Sfici começou a se exercitar com mais empenho para a
guerra interna, com vista a proteção da segurança nacional. Com o aumento de
operações de caráter anticomunistas em 1959 e em 1960, o serviço secreto
brasileiro sentiu a necessidade de abandonar o ‘armadorismo’ com que realizava
suas atividades até então. Como resultado da profissionalização, o Sfici voltou-se
para a elaboração de métodos e procedimentos padrão. Foi assim que no Brasil
surgiram os primeiros manuais sobre teoria e prática da espionagem
(FIGUEIREDO, 2005).
Conforme Figueiredo (2005), O Dicionário de Espião, de janeiro de 1960,
pode ser considerado como um dos precursores desse processo de
profissionalização do serviço secreto brasileiro. O nome oficial era Glossário de
Informações14 e segundo seus autores, tratava-se da “primeira tentativa de
sistematizar o emprego de termos pela comunidade de informações”.
O objetivo era fazer com que todos os agentes falassem a mesma língua e assim evitasse mal entendidos. Dessa forma, todos entenderiam, por exemplo, quando um chefe emitisse uma ordem para que um agente adormecido despertasse para poder invadir um apartamento e sangrar uma linha, acompanhado de uma capanga e portando uma gazua. (FIGUEIREDO, 2005, p. 84-85) 15.
É em meio a esse contexto que surge em abril de 1960, três meses após ser
elaborado o Dicionário do Espião o manual ‘Noções sobre Operações Clandestinas’,
cujo conteúdo fora exposto no tópico anterior. Embora, a primeira vista sua
elaboração esteja voltada para um público específico – a formação dos agentes
secretos – nas entrelinhas poder-se-ia ver que seu conteúdo refletia um cenário que
ia além do universo dos serviços secretos.
Se o “inimigo” estava presente, a repressão, vigilância e combate deveriam
ser constantes. E foram. Um dos sintomas da preocupação excessiva do governo e
dos órgãos de informações brasileiros com o avanço dos ideais comunistas em
território nacional foi justamente a adoção de inúmeras medidas que pudessem
vigiar as ameaças internas e externas provocadas pelos grupos ou indivíduos
vinculados a tais ideais, e dessa forma extirpá-los do território nacional. Esta forma
de encarar “os inimigos da nação”, contudo não se circunscreveu apenas ao início
da década de 1960. Ela adentrou ao Regime Militar iniciado em 1964,
permanecendo nele durante toda sua vigência. Neste período, em que se
intensificou ainda mais as noções “segurança e desenvolvimento nacional”,
qualquer obstáculo que inviabilizasse alcançá-los deveria ser vigiado, e
principalmente combatido.
14 Ver: AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI- 1/13, 70p. 15 De acordo com o Dicionário de Espiões, tais termos assim são definidos: AGENTE – Pessoa que se dedica a atividade clandestina sob direção de um órgão de informações; [AGENTE] ADORMECIDO – Agente recrutado, equipamento ou operação planejada, que está pronto para entrar em ação, todavia mantido inativo por um período considerável para criar ou reforçar sua cobertura ou ainda para estar pronto caso se apresente uma necessidade especial; SANGRAR LINHAS - Fazer uma tomada em um circuito telefônico para fins de escuta; CAPANGAS – Tipo de agente utilizado, a fim de proporcionar uma proteção especial em fases perigosas de uma ação clandestina; GAZUA – (1) Pedaço de aço usado para abrir fechadura. (2) Pessoas que tem a arte de fazer com que outras revelem seus segredos.
Considerações Finais
A ideia da vigilância que aqui procuramos enfatizar não se relaciona apenas
ao simples ato de vigiar alguém. Conforme procuramos mostrar, a noção de
vigilância, dentro de um determinado contexto, pode significar um ato além daquele
restrito a observação. Diante da necessidade de aperfeiçoar-se, o Serviço Secreto
Brasileiro, no inicio da década de 1960 instrumentalizou uma série de medidas,
manuais e treinamentos para a formação e capacitação de seus agentes.
Contudo, todas estas medidas, não possuem apenas um caráter técnico, elas
não estão desconexas de uma conjuntura histórica maior. Por vezes se entrelaçam
e traduzem um temor que se cristalizou principalmente a partir de 1949 com a
Revolução Chinesa, e 1959 com a Revolução Cubana: o avanço do ideário
comunista. Estes acontecimentos reinflamaram as chamas que haviam sido acesas
em 1935, com a Intentona Comunista, e intensificava a necessidade do governo
brasileiro por meio de seu serviço secreto, de barrar a atuação dos “inimigos da
pátria”. Nesse sentido, vigiar, tornou-se a melhor maneira de conhecer o inimigo, e
ao conhecê-lo extirpa-lo do território nacional.
Fontes
AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI-
1/13, 70p.
AN. Fundo: Informante secreto do Regime Militar, REF: BR AN. RIO X9. 0. TAI-
1/14, 91p.
Referências
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1985. Bauru:
Edusc, 2005.
ARQUIVO NACIONAL (BRASIL). Inventário da Coleção Informantes do Regime
Militar. Rio de Janeiro, 2008, 52p.
ARRUDA, Antônio de. ESG: História de sua Doutrina. São Paulo: GRD [Brasília]:
INL, 1980.
COMBLIN, J. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América
Latina. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio: a história do serviço secreto brasileiro
de Washington Luís a Lula (1927-2005). Rio de Janeiro: Record, 2005.
LE GOFF, Jacques. Documento /Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e
Memória. 3ª ed. Campinas: Ed. Da Unicamp, 2003, p. 525- 541.
REZNIK, Luís. Democracia e Segurança Nacional: a polícia política no pós-guerra.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.