A arte de contar histórias no seculo XXI.pdf

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  • Universidade Federal de Santa Catarina

    Centro de Comunicao e Expresso

    Curso de Ps-Graduao em Literatura

    Literatura Brasileira e Teoria Literria

    CLEOMARI BUSATTO

    NARRANDO HISTRIAS NO SCULO XXI - TRADIO E

    CIBERESPAO

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Teoria Literria. Orientadora: Profa. Dra. Alai Garcia Diniz.

    Florianpolis

    2005

  • 2

    Para Alai Garcia Diniz, Gilka Girardello e Alckmar Luis dos Santos.

    Marta Moraes da Costa, Maria F. de Mello e Glria Kirinus.

    Para minha irm, Clari

    e minha me.

    Agradeo aos amigos pelo estmulo criador.

    Agradeo tambm aos desestmulos, que funcionaram

    como impulso para seguir adiante.

    Agradeo equipe de Ps-Graduao em Literatura da

    Universidade Federal de Santa Catarina.

    equipe do Cetrans Centro de Transdisciplinaridade/SP.

    Agradeo vida por ter me doado a impulsividade generosa.

  • 3

    Resumo: Um olhar sobre os caminhos da arte de contar histrias oralmente no sculo XXI e a

    configurao de uma profisso que se estabelece a partir da: o contador de histrias. Um

    olhar para a memria e para o imaginrio como espao de possibilidades, criao,

    maturao e materializao. Os fundamentos tericos da arte de contar histrias. O sagrado

    e as vias de acesso multidimensionalidade. Os novos suportes para a narrao oral

    mediados pelo digital. Significados e significaes desvelados no ciberespao.

    Palavras-chave: Narrao oral, contador de histrias, memria, imaginrio, imaginao, meio digital, CD-ROM.

    Abstract: Approaches to the ways of art of storytelling in the 21st century, and the

    configuration of a new profession. This new profession is defined as a storyteller. A look

    into memory and into the imaginary as the realm that encompasses possibilities, creation,

    maturation and materialization. The theoretical foundations of the storytelling art.

    Sacredness and the access routes to multidimensionality. The new means used in oral

    narration conveyed by the digital media. Meanings unveiled in the cyberspace.

    Key words: Oral narration, storyteller, memory, imaginary, imagination, digital media, CD-ROM.

  • 4

    NDICE

    PARA COMEAR ...

    Sculo XXI, ano 4 ............................................................................................................... 07

    CAPTULO 1

    ORALIDADE NARRATIVA E OS CONTADORES DE HISTRIAS

    1.1 - O contador tradicional atravessa o tempo pelas veredas da recordao ......... 13

    1.2 - O contador contemporneo e o ressurgimento de uma profisso................... .19

    1.3 - A performance de uma contadora tradicional ..................................................27

    CAPTULO 2

    A ARTE DE CONTAR HISTRIAS COMO PASSAPORTE PARA O

    IMAGINRIO

    2.1 - Imagens, ritmo e inteno Fundamentos poticos para encantar .................38

    2.1.1 - Imagens ........................................................................................................45

    2.1.2 - Ritmo ........................................................................................................... 54

    2.1.3 - Inteno ........................................................................................................57

    2.2 - O simblico no conto - (a) ponte para o sagrado .......................................... 60

    CAPTULO 3

    A CONTAO DE HISTRIAS NO SCULO XXI: UM ENCONTRO MEDIADO

    PELO SUPORTE DIGITAL

    3.1 - Cabra Cabriola - O ciberespao e os novos suportes para a narrao oral .... 67

  • 5

    3.2 - Leitura do entorno, no contorno dos cenrios, onde se move um contador de

    histrias ................................................................................................................... 83

    3.2.1 - Primeiro movimento: Ao p do fogo ............................................................ 84

    3.2.2 - Segundo movimento: s margens do rio .......................................................85

    3.2.3 - Terceiro movimento: Ao redor da cama ......................................................85

    3.2.4 - Quarto movimento: Um sopro no ciberespao ............................................ 86

    3.2.5 - Das cenas s marcas de oralidade que se materializam no espao digital

    ..................................................................................................................................87

    3.2.6 - Memria ...................................................................................................... 89

    3.2.7 - Tempo ......................................................................................................... 92

    3.2.8 - Espao ......................................................................................................... 94

    3.2.9 - Recepo ..................................................................................................... 95

    3.2.10 - Oral e escrito ............................................................................................. 97

    ... E POR FIM ................................................................................................................. 100

    ANEXOS

    Anexo 1 - Joozinho e Mariazinha ........................................................................103

    Anexo 2 - Lundu .................................................................................................. 111

    Anexo 3 - Projeto Re-vivendo a nossa cultura...................................................... 115

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 129

  • 6

    PARA COMEAR ...

  • 7

    SCULO XXI, ANO 4. UMA CONTADORA DE HISTRIAS

    REFLETE SOBRE A NARRAO ORAL, ENQUANTO OS CONTOS

    CALAM NO SEU CORPO ...

    ... enquanto os contos aguardam a voz que os tornar reais, uma personagem elabora

    reflexes sobre a arte de contar histrias, e se enrola nas teias do tempo, ora se vendo no

    incunbulo desta tradio, misturada a bardos e griots, sherazades e avs; ora se vendo num

    tempo futuro, disputando o espao com a imediatez e a instantaneidade do ciberespao,

    tentando andar de brao dado com a era da informtica, ao se lanar como uma

    cibercontadora.

    Criada nas ltimas dcadas do sculo XX, a contao de histria um

    neologismo, uma expresso que se refere ao ato de contar histrias (durante o texto que se

    segue, estarei alternando contao de histrias e narrao de histrias. Ambos querem

    dizer a mesma coisa. Por no estar definido para mim, qual usar, alternarei os dois

    conceitos). Uso, tambm, as definies: contador tradicional, para aquele sujeito-contador

    que se revela no seio da sua comunidade, e contador contemporneo, para este sujeito-

    contador da atualidade, o qual elegeu a expresso contador de histrias" para definir uma

    profisso que comea a tomar corpo.

    Paradoxalmente, a arte, que pedia um tempo e corpo presente para se desenvolver e

    envolver, se integrou velocidade da virtualidade, assumindo novas feies, como as

    histrias mediadas pelo digital. Esta arte j no tem como caracterstica apenas uma

    provvel despretenso dos antigos contadores, que se reuniam ao redor do fogo, ao p da

    cama. Por outro lado, imprimiu-se nela uma sofisticao tcnica, com detalhes que fazem

    diferena, como um texto mais elaborado sintaticamente, imagens visuais e paisagens

    sonoras ntidas, e apresenta um sujeito-contador com domnio dos recursos vocais e

    corporais. Muda a forma, muitas vezes o texto e o contexto. Tambm muda a inteno do

    contar, mas permanece o que essencial: a condio de encantar, de significar o mundo que

    nos cerca, materializando e dando forma s nossas experincias.

  • 8

    E, neste imaginrio de sculo XXI, vamos encontrar narraes to distintas, em

    suportes to diversos, sadas de coraes e bocas to peculiares, que s nos resta constatar,

    com olhos esgazeados, que essa diversidade boa e amplia a nossa conscincia tica e

    esttica. Gostaria de apresentar uma histria do tempo de agora, mas que vem de um tempo

    mtico. a fala do cacique Davi Kopenawa Yanomami 1, na qual ele nos esclarece a funo

    da narrao oral para os yanomamis, e tambm revela como o mito atua sobre o imaginrio

    desse povo:

    Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento cheio de esquecimento. Ns guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de ns h muito tempo, e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianas, que no sabem nada dos espritos, escutam os cantos do xams, e depois querem ver os espritos por sua vez. assim que, apesar de muito antigas, as palavras dos xapirip 2 sempre voltam a ser novas. So elas que aumentam nossos pensamentos. So elas que nos fazem ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos antigos. o nosso estudo, o que nos ensina a sonhar. Deste modo, quem no bebe o sopro dos espritos tem o pensamento curto e enfumaado; quem no olhado pelos xapirip no sonha, s dorme como um machado no cho. 3

    No entanto, se uma minoria pensa assim, para uma boa parte dos seres humanos, o

    imaginrio do sculo XXI est povoado por armas de destruies em massa, atentados

    terroristas, assalto mo armada, imagens da fome e da misria. So poucos os que ainda

    acreditam no sagrado contido na noite, nas palavras de xapirip e no poder curativo das

    histrias simblicas. Vive-se os rompantes da ps-modernidade, como a fragmentao,

    simultaneidade de aes, e assume-se o paradoxo da virtualidade, condio de estar em

    todos os lugares e no estar em parte alguma. Assume-se tambm a rapidez com que se

    processam as informaes: um clique e a mensagem j est do outro lado, na maioria das

    vezes nem bem decifrada, nem bem elaborada. As mensagens passam a ter outro sentido,

    porque elas no tm mais o tempo de se assimilarem dentro de ns, para que possamos

    sentir a sua repercusso e a ressonncia, como seria natural. Apesar disso tudo, se corre 1 Maloca Watoriki, setembro 1998 - depoimento recolhido e traduzido por Bruce Albert. 2 Os xapirip so espritos, imagens xamnicas (utup) vistas pelos pajs sob a forma de miniaturas humanides enfeitadas de ornamentos cerimoniais coloridos e brilhantes. http:/www.socioambiental.org/pib/epi/yanomamis/espritos.shtm - abril, 2004. 3 http://www.socioambiental.org/pib/portugues/indenos/yanomami.shtm#t1- abril, 2004

  • 9

    atrs de sentido para as coisas. Segundo Jean Baudrillard4, respondemos com melancolia ao

    desaparecimento do sentido - a conseqncia da revoluo do sculo XX, da ps-

    modernidade. Sem sentido viramos melanclicos.

    Porm, fao eco voz de outra leva de filsofos, no to niilistas como Baudrillard,

    dentre os quais Michel Maffesoli, que cr na abertura de esprito para uma nova ordem

    social, baseada numa organicidade social5, em que um pensamento audacioso seja capaz

    de ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao mesmo tempo, de compreender os

    processos de interao, de mestiagem, de interdependncia que esto em ao nas

    sociedades complexas6; que cr numa razo interna capaz de unir os opostos e aceitar a

    pluralidade de sentidos que se instaura nos diversos setores da sociedade; que acredita ser

    possvel integrar sentidos - sentidos so plurais - e teoria, e dar uma dimenso sensvel

    progresso de conhecimento, assumindo uma postura entusiasmante7 capaz de provocar

    uma nova revoluo a se instaurar no sculo XXI, uma revoluo pelo reencantamento do

    mundo 8.

    nesse panorama que vejo a contao de histria como um instrumental capaz de

    servir de ponte para ligar as diferentes dimenses e conspirar para a recuperao dos

    significados que tornam as pessoas mais humanas, ntegras, solidrias, tolerantes, dotadas

    de compaixo e capazes de estar com. Michel Maffesoli nos faz repensar os conceitos. Ele

    usa pessoa, que para ele quer dizer quem tem identificaes mltiplas no mbito de uma

    teatralidade global e desempenha papis emocionais.9 Vejo o contar histria como um ato

    social e coletivo, que se materializa por meio de uma escuta afetiva e efetiva.

    Ao mesmo tempo em que assistimos ao saudvel retorno das narraes orais em

    diversos setores da sociedade - j que, anteriormente, ela se mantinha presente em alguns

    poucos locais, como a escola, a biblioteca - por meio da presena dos contadores de histria

    que se espalham por todos os cantos do planeta, talvez movidos por um trao primeiro, um

    impulso de transcender o real atravs do imaginrio, para dar forma complexidade das 4 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulao. Lisboa: Relgio dgua, 1991. p. 199. 5 MAFFESOLI, Michel. Elogio da razo sensvel. Petrpolis: Vozes, 1998. p. 37. 6 Op. cit., p. 37. 7 Op. cit., p. 71. 8 Op. cit., p. 104. 9 Op. cit., p. 107.

  • 10

    vivncias, vamos encontrar as histrias migrando para outros meios, ainda que mediados

    pela presena humana, como no caso das narraes digitais, assunto de um dos captulos

    desta dissertao.

    Para maior clareza desse processo, o texto foi dividido em trs captulos. O objeto de

    estudo da pesquisa a narrao oral, e o fio condutor para o seu desenvolvimento ser

    analis-la sob trs enfoques. O primeiro est relacionado ao narrar enquanto ao que se

    liga a recordare, re-cordar (cor, cordis: corao, em latim), trazer para o corao o que

    estava na memria, e fazer da memria um corao, numa relao com a narrao original,

    no sentido de narrao que se ouviu primeiro, a que primeiro despertou no imaginrio.

    Quando conto uma histria a histria que se narra atravs de mim. Eu me torno a histria.

    Eu me torno a minha prpria histria. Neste contexto, o contador de histrias tambm um

    espectador, um leitor. Ao trazer do corao para o corpo presente as histrias narradas e

    suas significaes, ativa-se a instncia do recordar a si prprio, da experincia vivida.

    Num segundo momento, observo a ao do contador, que ao mesmo tempo ator e

    personagem das histrias narradas. Nessa situao dramtico-potica, o narrador se

    metamorfoseia num outro para narrar, h um distanciamento e, simultaneamente, um

    envolvimento com o objeto da ao. um estar dentro e alm da ao. Como o narrador

    est consciente da sua performance, no h como ignorar as impresses do conto e as

    marcas que ele j deixou e deixa naquele exato momento em que est sendo narrado.

    Essas reflexes esto inseridas no captulo 1, que est dividido em trs partes: na

    primeira, a memria e o contador de histrias; na segunda, uma abordagem sobre a atuao

    do contador de histria e uma amostra do panorama global dessa ao; por fim, a narrao

    de uma contadora tradicional e a anlise dessa performance.

    O segundo enfoque para a narrao em si, enquanto arte, e enquanto portadora de

    contedos simblicos que atuam sobre o imaginrio. No captulo 2 proposto um olhar

    sobre os fundamentos tericos-poticos da narrao oral, a partir do que, a meu ver, so os

    elementos constitutivos de uma narrao: imagens, ritmos e intenes. Um subitem aborda

    a narrao oral enquanto experincia multidimensional, ao abarcar a experincia do mtico

    e do sagrado. Aqui um breve olhar sobre as significaes propostas pelos contos.

  • 11

    O terceiro enfoque para a narrao no meio digital e os seus desdobramentos.

    Aqui, espectador se encontra s, diante do contador virtual, e o contador assiste a si mesmo,

    sozinho, ainda mais distanciado da sua ao. Nessa situao, pode-se investigar quais so

    os efeitos de uma narrao na sociedade do espetculo e at que ponto ela pode recuperar

    os sentidos desse contar primeiro, desse recordar como um movimento potico, de paixo e

    de memria do universo mtico-narrativo, do qual o espectador pode ou no ter feito parte.

    Inicialmente, apresento uma anlise de Cabra Cabriola, uma lenda brasileira traduzida para

    a linguagem do CD-ROM, enquanto a segunda parte a teorizao sobre o suporte e as

    suas possibilidades junto narrao oral.

    Nos anexos constam duas histrias recolhidas de uma narradora tradicional, em que

    pode se observar a hibridez dos contos, j que eles carregam referncias de diferentes

    fontes. Tambm no anexo apresentado um projeto educacional realizado em meio digital,

    e que tem como elemento propulsor um CD-ROM com contos da tradio oral intitulado

    Contos e encantos dos 4 cantos do mundo. 10

    10 BUSATTO, Clo. Contos e encantos dos 4 cantos do mundo. CD-ROM. Curitiba, 2003.

  • 12

    Captulo 1

    ORALIDADE NARRATIVA

    E OS CONTADORES DE HISTRIAS

  • 13

    1.1 - O contador tradicional atravessa o tempo pelas veredas da recordao

    A mulher e o homem sonhavam que Deus os estava sonhando.

    Deus os sonhava enquanto cantava e agitava suas maracas,

    envolvido em fumaa de tabaco, e se sentia feliz e tambm estremecido

    pela dvida e o mistrio ...

    Eduardo Galeano 1

    ... e no incio era assim, dizem os ndios makiritare. Num tempo que se perdeu nos tempos,

    num mundo ainda pleno de magia, este era o universo do contador de histrias e por onde ele se

    movia. E assim foi durante sculos, e continua sendo at hoje: histrias existem para serem contadas,

    serem ouvidas e conservarem aceso o enredo da humanidade. O contador narra para se sentir vivo,

    para transformar sua histria pessoal numa epopia, uma narrativa essencial. Esse personagem e suas

    palavras aladas sempre estiveram presentes na alma da comunidade. Ele recebeu vrios nomes atravs

    dos tempos: era o rapsodo para os gregos; o griot para os africanos; o bardo para os celtas; ou

    simplesmente o contador de histrias, o portador da voz potica 2. Era um sujeito que se valiam da

    narrao oral como via para organizar o caos, perpetuar e propagar os mitos fundacionais das suas

    culturas. Um sujeito que mantinha vivo o pensamento do seu povo por meio da memria prodigiosa e

    que o divulga por meio da arte. Sua forma de expresso, a voz manifestada por meio de um corpo

    receptivo e malevel.

    1 GALEANO, Eduardo. Nascimentos - Memria do fogo (1). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 23. 2 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 57.

  • 14

    Da lembrana desse instante que se perdeu no tempo at o sculo XXI, alguma coisa mudou. No

    os contadores de histrias e sua opo pela palavra, mas antes, a forma como elas so apresentadas por

    eles. Nessa pesquisa procurei ficar atenta aos contadores, suas narraes e as especificidades das

    histrias narradas oralmente. Para traar esse caminho por onde vai e vem o contador de histrias,

    pretendo situ-lo no tempo e no espao, ao lhe atribuir uma nominao. Num primeiro momento, vamos

    encontrar o contador tradicional, aquele sujeito que estava inserido nas comunidades onde prevalecia

    uma oralidade primria ou mista (uso o tempo passado, porque atualmente essas culturas praticamente

    no existem mais). A conceituao utilizada aqui provm das pesquisas de Paul Zumthor, que aponta

    para trs modalidades de oralidade, que permeiam as diferentes comunidades culturais, sendo a primeira

    a oralidade primria, cujos representantes no comportariam nenhum contato com a escrita. Na outra

    categoria, oralidade mista, os seus sujeitos j convivem com a escritura, porm ela pouco influi no seu

    cotidiano; e, na oralidade segunda, existe a apropriao da escrita para manuteno do oral.3

    Walter Ong, por sua vez, utiliza o conceito oralidade primria para culturas que desconhecem a

    escrita e a impresso, e oralidade secundria, para a atual cultura tecnolgica, lembrando que atualmente

    difcil encontrar sociedades que se encaixam nessa categoria de oralidade primria, j que

    praticamente todas as culturas esto de alguma forma em contato com a escrita, ou minimamente sentem

    a sua influncia.4

    Esse contador tradicional faz parte de um grupo social que retm as informaes por meio da

    oralidade, seja por ser analfabeto ou, quando vivendo numa comunidade letrada, por no se deixar

    influenciar pela escrita, apesar de ela estar presente no seu dia-a-dia. W. Ong conceitua esses sujeitos

    como participantes da cultura verbomotora 5, ou seja, pessoas que convivem com a palavra escrita,

    mas no lanam mo dela para significar o seu cotidiano, procurando se orientar mais pelo oral do que

    pela tcnica da escrita. Ele um comunicador que adquiriu o dom de narrar influenciado pelo meio em

    que habita, transformando-se na memria coletiva da sua comunidade e transmitindo, por meio dos

    contos, lendas e mitos, as razes culturais do seu povo. Na Amrica Latina ele chamado de cuentero

    popular.

    3 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.18. 4 ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998. p.19. 5 Op. cit., p. 81.

  • 15

    Atualmente, esses sujeitos-narradores-contadores, herdeiros da tradio da oralidade, j se

    encontram inseridos num contexto mediado pelos novos meios de comunicao e transmisso de saber.

    Esto por a, nas comunidades centrais ou perifricas dos grandes centros urbanos; na zona rural; nas

    comunidades litorneas ao longo da costa do Brasil; escondidos nos campos; nas matas; na beira dos rios

    e igaraps; pntanos e restingas; ilhas martimas e fluviais. Porm, com um diferencial: eles ainda

    mantm o tempo preso nos seus atos e nas suas palavras. Um tempo que, para ns, que vivemos o

    urbano e seus desdobramentos, est quase esquecido, pois somos envoltos por outras malhas, achamos

    sentidos no mais na comunicao oral proveniente da tradio e da experincia direta, mas antes no que

    nos chega pela Internet, pelos jornais dirios, pelos noticirios do rdio e da TV.

    Para a atual sociedade de consumo, contar histrias pode ser interpretado como perda de tempo.

    s observar a pouca pacincia que se tem para ouvir o outro. Gostaria de esclarecer que me refiro

    regra e no s excees. E, na seqncia, procuro mostrar o outro lado, o da urgncia em recuperar o

    tempo de ouvir. Nesse tempo de produo, parece que no h disponibilidade e serenidade para ouvir

    histrias, apesar do crescente interesse que se tem observado pela narrao oral. Esse estado de esprito,

    o ouvir, que pede quietura interna, qualidade seminal para a audio plena, foi substitudo pela pressa e

    pelo agastamento tpico de quem j detm informaes suficientes para o viver. A grande confuso da

    ps-modernidade parece residir tambm por aqui. Vivemos num mundo regido pela informao, onde os

    acontecimentos atravs do planeta e fora dele so transmitidos quase que simultaneamente a todos os

    povos da Terra. As tragdias mundiais se esgueiram no conforto dos lares, as informaes chegam j

    decifradas, explicadas, carregadas de efeitos e afetos, deixando a impresso de ser o ato, fato ntimo do

    morador daquele lar. Narraes do mundo de agora, similares s narraes do mundo de outrora, quando

    as notcias tambm circulavam entre os povos por meio da narrao oral, por meio da voz do contador

    de histrias, no entanto com um diferencial, elas faziam ou no sentido para o ouvinte, de acordo com a

    sua histria e o contexto em que o sujeito vivia.

    Walter Benjamin nos lembra que a imprensa, forma de comunicao que surge com a burguesia e

    com o advento do capitalismo, e um dos seus instrumentos mais importantes, traz a notcia j

    interpretada, verificada, o que lhe confere autoridade. Porm, a informao veiculada pela imprensa

  • 16

    deixa de lado o fantstico, o maravilhoso e a reticncia, caractersticas das narraes orais, que se

    encarregam de gerar encantamento enquanto narram, prolongando a histria com divagaes,

    digresses, dilatando o tempo narrativo e levando o ouvinte para onde eles desejarem.

    O mrito da informao reduz-se ao instante em que era nova. Vive apenas nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele, e, sem perda de tempo, comprometer-se com ele. Com a narrao diferente: ela no se exaure. Conserva coesa a sua fora e capaz de desdobramentos mesmo depois de passado muito tempo. 6

    O bom contador de histrias traz esses cdigos para a narrao. Isso ocorre com freqncia com

    o contador tradicional que, muitas vezes, de uma forma at intuitiva, ainda que sem saber, deixa a

    narrao aberta, no conclui, compactuando, dessa forma, com as mais avanadas teorias da recepo

    literria. Sua narrao expe vazios, convida o ouvinte a ser o intrprete daquilo que narrado. Convm

    lembrar que o contador tradicional, ao narrar os contos da tradio popular: contos de fadas, lendas,

    mitos, causos, j se depara com uma particularidade desses contos, que a de abrir espao para que

    possamos imaginar o que ir acontecer depois do ... e foram felizes para sempre; ou ainda, nos

    estimula a imaginar o que aconteceu no intervalo de cem anos, perodo que durou o feitio da Bela

    Adormecida; o que aconteceu com o pai da pequena menina de Os sete corvos, enquanto ela seguia em

    busca dos irmos, at o sol, at a lua e s estrelas; ou como ter sido a transformao de Cobra Norato

    em homem, e o que teria se passado no ntimo do guerreiro antes de desencantar a cobra. Convm

    lembrar que contos de fadas, mitos ou lendas so criaes com centenas de anos e que o conceito de

    obra aberta do sculo XX. Ainda seguindo esse raciocnio, se o texto narrado um relato pessoal, um

    fato vivido, ele muitas vezes pontuado por pausas e silncios, o tempo da memria do contador e

    tambm a trilha, que leva o ouvinte at o cenrio da ao narrada, para repousar ali sua imaginao.

    Esses detalhes, nunca explicados, nunca preenchidos pelo conto e, conseqentemente, pelo contador de

    histrias, transformam o ouvinte numa grande interrogao e se tornam elementos de encantamento e

    envolvimento, pois cabe ao ouvinte significar o narrado de acordo com seus referenciais internos.

    6 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 62.

  • 17

    O contador tradicional no aprendeu essa tcnica (deixar a narrao aberta) em nenhum curso

    para contador de histrias, mas antes no prprio ato da narrao e no transcorrer da vida cotidiana. Isso

    apontado por W. Ong como uma das caractersticas do pensamento das culturas orais, que relacionam as

    histrias a fatos da atividade humana7. W. Benjamin tambm cita esse sujeito orientado para o prtico,

    que retira da existncia suas histrias, pois nas sociedades orientadas pelo oral a vida vivida jorra

    histrias. Ele lembra o universo do contador artesanal, para quem as narraes eram trocas de

    experincias:

    A experincia que anda de boca em boca a fonte onde beberam todos os narradores (...) quando algum faz uma viagem, ento tem alguma coisa para contar, diz a voz do povo, e imagina o narrador como algum que vem de longe. Mas no com menos prazer que se ouve aquele que, vivendo honestamente do seu trabalho, ficou em casa e conhece as histrias e tradies de sua terra. 8

    O contador tradicional identifica-se com o conhecido e retira os significados do momento

    presente 9, construindo a sua leitura de mundo a partir da interpretao do universo cultural do qual faz

    parte, para depois compartilhar com seu ouvinte, socializando o saber e caracterizando o ato de contar

    como um momento de elaborao das suas prprias crenas. Na pesquisa realizada sobre a oralidade no

    pantanal brasileiro, Frederico A. G. Fernandes constatou que os contadores pantaneiros narram com

    cautela, inicialmente atribuindo a autoria da histria outra pessoa, de quem teria ouvido o relato.

    Percebem o impacto que a narrao causa no ouvinte, e se este demonstra crdito no que est sendo

    narrado, assumem a autoria da histria e passam a narrar na primeira pessoa, ou seja, admitem que

    uma experincia pessoal. Quando isso ocorre, o contador de histrias adquire autoridade, a qual s

    conferida ao se acreditar no narrador.10

    Muitas vezes o contador tradicional rene em torno de si o fantstico e o sobrenatural, e aceita a

    histria como sua, ou seja, mais do que ter ouvido essa histria, em alguns casos o narrado foi fato que

    aconteceu com o contador. Pesquisas como essa, citada de F. Fernandes, demonstram que a narrao

    7 ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998. p. 54. 8 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 58. 9 ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998. p. 57. 10 FERNANDES, Frederico Augusto Garcia (Org.) Oralidade no Pantanal: vozes e saberes na pesquisa de campo. In: Oralidade e literatura: manifestaes e abordagens no Brasil. Londrina: Eduel, 2003. p. 54.

  • 18

    oral de histrias continua a fazer parte do imaginrio de diversos grupos sociais. Ainda no mesmo livro

    organizado por esse pesquisador se encontra outro ensaio, uma pesquisa de relatos orais recolhidos entre

    os moradores da cidade de Bragana, estado do Par.

    Indago sobre as audincias e eles contam que a tradio do contar histrias est em via de extino, pois no h mais pblico para ouvir e indicam como justificativa a falta de tempo ou o desinteresse pelas coisas do passado. Esta fala contradita pela ao: sempre que vou ao encontro dos narradores, uma audincia est espera (...) no contm a lngua e comeam a solicitar esta ou aquela pea do repertrio e, ainda, interferem com consertos no espetculo que se desenrola, fazem vocalizes ou solam partes do contado. A platia conhece o repertrio e tambm narra fragmentos das histrias em performance (provavelmente, alguns j so repassadores ou se tornaro imortalizadores da experincia de narrar).11

    Em 1935, ano em que escreveu O narrador, W. Benjamim disse que o contador de histrias

    estava com os dias contados, porque o lado pico da verdade, a sabedoria estaria agonizando12, porm

    relatos como esses mostram que o contador de histrias se mantm vivo, ativo, desafiando as novas

    tecnologias e apropriando-se delas com a sua arte de narrar. As ltimas dcadas do sculo XX se

    encarregaram de trazer novamente para cena esse personagem, seja por fora de um modismo, seja por

    uma necessidade inerente ao homem de se comunicar por meio da fala esttica, atuando artisticamente

    com a palavra. Vale lembrar tambm que a contao de histrias, ou narrao oral de histrias, permite

    ao sujeito que conta e ao sujeito que ouve um contato com outras dimenses do seu ser e da realidade

    que o cerca, ou seja, um aspecto desta sabedoria citada por Benjamim entra em cena, outra vez. Na

    atualidade convivem, no mesmo espao, o contador da tradio e o contador contemporneo. Uma das

    nuances desse ltimo transformar a narrao oral numa oratura: um espao de recriao simblica e

    esttica, que ganha sentido como troca entre artista e pblico, a exemplo de outras artes, numa relao

    direta.13 Tempos e contextos distintos marcando a presena dos contadores de histrias.

    11 FARES, Josebel A. Imagens da matinta perera em contexto amaznico. In: Oralidade e literatura: manifestaes e abordagens no Brasil. Londrina: Eduel, 2003. p. 29. 12 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 59. 13 BELLO, Sergio Carneiro. Por que devemos contar histrias na escola? In: Ba e chaves da narrao de histrias. Florianpolis: SESC-SC, 2004. p. 158.

  • 19

    1.2 - O contador contemporneo e o ressurgimento de uma

    profisso

    nesse caos de comeo de milnio que a imaginao criadora pode operar

    como a possibilidade humana de conceber o desenho de um mundo melhor.

    Por isso, talvez a arte de contar histrias

    esteja renascendo por toda parte.

    Regina Machado 14

    Eles chegam de todas as partes: Norte, Sul, Leste, Oeste. Vm vestidos de vermelho, azul e

    amarelo; fitas coloridas penduradas pelo corpo; vm com jeito de palhao ou de princesa; outros

    vestidos de si prprio. Alguns trazem consigo instrumentos sonoros, msicos e cantores; outros so eles

    prprios msicos e cantores; alguns portam malas, bonecos, fantoches, panos, chapus, tapetes, bons,

    caixas de fsforo, mmica, humor; outros nada trazem, apenas vo chegando, contando, cantando,

    deixando leitura, mltiplas leituras aos seus ouvintes hipnotizados. Eles esto por toda parte: escolas,

    bibliotecas, creches, asilos de idosos, abrigos de crianas, de jovens, hospitais, feiras, congressos.

    Organizam-se em encontros, festivais, associaes e rodas.15 Fundam espaos, ministram cursos,

    mantm pginas na www, frum de discusso virtual, e cobram, muitas vezes, altos preos pela sua

    atuao. Eles so os contadores de histria do sculo XXI. Esto presentes nos quatro cantos do mundo.

    Em O narrador, W. Benjamin afirma que

    14 MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos terico-poticos da arte de contar histrias. So Paulo: DCL, 2004. p. 15. 15 S na Amrica Latina so mais de vinte encontros organizados por instituies, como universidades, ou pelos prprios contadores de histrias, que se organizam, buscam verbas e fazem o encontro acontecer, muitas vezes sem qualquer vnculo oficial.

  • 20

    torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. cada vez mais freqente espalhar-se em volta o embarao quando se anuncia o desejo de ouvir uma histria. como se uma faculdade que nos parecia inalienvel, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a troca de experincias.16

    Essa afirmativa, apenas em parte, soa pertinente para os tempos atuais, pois hoje em dia quem

    conta, conta sabendo, ou pelo menos se pretende assim, e se no sabe contar, corre atrs, faz curso, se

    informa, se forma, e aprende contando. As buscas multiplicaram-se, e a troca de experincias se

    configura como condio inerente narrao oral de histrias, pois o ato de narrar em si j uma

    experincia compartilhada. No depoimento de Tnia Fernandes, professora, durante uma sesso da Roda

    de Histrias/ PUCPR podemos sentir um dos olhares lanados sobre essa arte:

    Acho que o contador precisa, antes de ele querer contar uma histria, encarar sua prpria histria. E ns temos dificuldades, muitas vezes, de parar nessa correria do tempo, de voc precisar de dinheiro, de voc ter que pagar conta, de voc ter que correr atrs de um currculo cada vez melhor pra se manter no trabalho. A gente vai esquecendo da nossa histria pessoal. Ento nesse sentido, eu acho que o contador de histrias precisa encarar sua histria, rever, reviver ela, a voc vai ter condies de contar alguma coisa pra uma pessoa sabendo que aquilo que voc t contando pode mexer profundamente no outro. E talvez essa seja a funo do contador de histrias. Uma funo que vai muito alm de uma comunicao. uma comunicao interior, porque ela vai mexer com coisas que esto l na gente, guardadinhas.

    O momento outro, distante daquela dcada de 30 do sculo passado, quando W. Benjamin

    refletia a narrao oral. Porm, continuamos na mesma busca, ou seja, vamos atrs do que pode fazer

    eco e ressoar no nosso interior. Contudo, h que se pensar, sim, nas transformaes impingidas pelo

    tempo e que provocaram mudanas na sociedade atual. H que se pensar nas diferentes organizaes

    comunicacionais da atualidade, na diversidade marcada pelo avano das novas tecnologias, da

    propagao que os meios telemticos alcanaram nessas ltimas cinco dcadas e na complexidade

    cultural em que se move o contador de histrias contemporneo. Erick Havelock fala a respeito desse

    retorno oralidade:

    16 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 58.

  • 21

    Na Amrica, a proliferao de novos meios de comunicao de massa estimulou um novo interesse pelo estudo da comunicao em si. (...) Quais so as suas formas, seus mtodos e seus objetivos? No horizonte desses problemas, uma pesquisa das formas e efeitos da comunicao oral desempenha um papel de destaque. Como sugerem os estudos de McLuhan e Ong, a cultura de nossa gerao est a assistir a um reviver da oralidade como um modo de comunicao vivel, com uma longa histria ancestral. 17

    De fato, a narrao oral, essa funo, essa arte comunicacional, que correu o risco de se perder

    pelos caminhos do tempo, quando surgiram novos suportes para a transmisso dos saberes, reapareceu

    nas ltimas dcadas do sculo XX, num imaginrio distinto, pois chegou com uma cara diferente do que

    j se viu. A contao de histria, que para alguns contadores latino-americanos chamada de narracin

    oral escnica, assume-se agora como um espetculo de narrao oral e seus contadores apresentam

    performances elaboradas, dominam tcnicas e adotam critrios na seleo do seu repertrio. Eles se

    apropriam da vocalidade 18 para levar um texto (seja ele recolhido por meio de registros orais ou

    escritos) aos seus ouvintes, estejam eles no teatro, na sala de aula, em casa, na rua, na fbrica, na festa,

    no parque ou no shopping center.

    O contador contemporneo atua num regime de oralidade secundria 19, ou seja, encontra-se

    inserido no contexto de uma cultura letrada, se apropria da escrita, da impresso e das novas tecnologias.

    Surge em diferentes setores da sociedade atual movido pelo desejo de fazer de sua voz uma marca na

    sua comunidade e vido por mergulhar nos segredos da narrao. Carrega consigo influncias do seu

    tempo e dos meios de comunicao que o cerca: imprensa escrita, rdio, TV, telefone, Internet. Carrega

    para a sua narrao marcas de outras artes, como o teatro, a poesia, a declamao, a dana, a mmica, o

    canto. Constri a sua arte por meio da experincia que traz da sua histria pessoal, ou dos cursos que se

    proliferaram nos ltimos anos. A formao do contador ainda ocorre na informalidade, porm a

    institucionalizao da arte de contar j vem acontecendo: em algumas universidades, por meio de cursos

    de extenso; por rgos pblicos de cultura e educao; organizaes privadas, como o SESC (o SESC-

    SC tem formado contadores pelo interior do estado de Santa Catarina, com cursos consistentes e bem

    fundamentados); organizaes no-governamentais, como o Leia Brasil, e os tantos espaos privados 17 HAVELOCK, Eric A. A revoluo da escrita na Grcia. So Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 148. 18 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 21. 19 ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998. p. 19.

  • 22

    que ministram oficinas nessa categoria. Os contadores da contemporaneidade freqentam encontros de

    narrao oral, buscam novidades na rea e criam espaos para se apresentar.20

    O contador contemporneo agenda e se prepara para a sua apresentao, ajusta-se ao espao

    fsico, muitas vezes usa um figurino que o caracteriza enquanto personagem-narrador, aguarda o pblico

    entrar, e s ento inicia o espetculo, em alguns casos permeado por aparatos cnicos. Esse personagem

    presena certa nas bibliotecas, feiras de livros, livrarias e escolas. A narrao oral est ligada ao

    contexto pedaggico, e no raro encontrar a solicitao do contador de histria para dinamizar o

    processo de leitura. Mas ela j comea a ocupar outros espaos, talvez nunca imaginados pelo contador

    tradicional. Eventos inusitados, como jantares especiais, festas sofisticadas e encontro de amigos passam

    a ser ambientes onde soa a voz do contador contemporneo. A narrao de histrias no sculo XXI tem

    se configurado como profisso e, mesmo sem ser regulamentada, ela funciona assim, e j ocorrem

    acordos entre os profissionais, seja com relao aos preos praticados pelo mercado, abordagem poltica,

    tica ou esttica dessa nova atividade.

    Porm, ao situar a narrao oral como profisso e no como arte corre-se o risco de perder a sua

    caracterstica de ser uma prtica, por meio da qual se tenta recuperar o tempo circular e mtico. Quando

    o contador tradicional narra, o seu improviso convive harmonicamente com o imprevisvel (entradas e

    sadas de pessoas, por exemplo), e diante da solicitao de um visitante que solicita a sua voz, um

    fragmento da memria se desperta. Porm, no raro ocorrer entre os contadores contemporneos uma

    indisponibilidade para contar histrias em espaos que no geram lucro. Isso nos leva a refletir sobre a

    arte de contar histrias: at que ponto ela mais um produto de consumo da indstria do lazer? At que

    ponto uma profisso? At onde uma expresso simblica/artstica mediada pelas ritualidades? E como

    conciliar profisso com arte?

    20 Aqui no Brasil a prtica dos encontros de contadores ainda esparsa, mas em alguns pases da Amrica ela j acontece, sistematicamente, h mais de quinze anos, como na Argentina, Colmbia, Cuba, Chile, Equador, Peru, Bolvia, Mxico, Uruguai, Estados Unidos, Costa Rica, Venezuela. No Rio de Janeiro, realiza-se o Simpsio Internacional de Contadores de Histrias, que teve no ano de 2004 a sua quarta edio. J o SESC-SC realizou, em 2004, a segunda Maratona de Contos em Florianpolis SC. Dados sobre esses encontros podem ser encontrados no livro: Unicuento - Un sueo hecho palabra. Cali/Colmbia: Universidad Santiago de Cali, 2002 de Jorge E. Olya Garcer.

  • 23

    Ao se pensar a narrao oral como uma criao do esprito animado e ancorado na memria,

    pode-se pensar tambm nas rupturas dos sentidos de arte: arte enquanto espao que funde o sagrado com

    o profano, e arte enquanto resultado da produo da sociedade de consumo. Talvez seja tambm por esta

    via que se pode refletir sobre a funo do contador de histrias no sculo XXI, e em que medida contar

    histrias na sociedade ps-moderna pode recuperar na memria uma funo ancestral e arquetpica,

    provocar a suspenso do tempo cronolgico apresentando um outro tempo, reencantando o mundo,

    despertando a compaixo e a lembrana do universo mtico do qual todos fazemos parte, numa espcie

    de teia coletiva que se forma a partir do momento em que os contos soam e apresentam situaes

    simblicas.

    Ento, como contar histrias e fazer dessa ao uma profisso, sem perder o fio que conduz para

    dentro, ao centro? Como conciliar uma prtica artstica, estar numa situao de performance animando

    fenmenos sensveis, estabelecendo um ato comunicacional e, simultaneamente, sustentando o tempo do

    vivido e significado, tocando e sendo tocado pelo conto, e fazer disso um trabalho remunerado? 21

    O contador de histrias do sculo XXI um performer, um realizador, um artista. Ele atua numa

    rea muito prxima s artes cnicas, sem dvida, mas contar histrias no como atuar numa pea de

    teatro. O que separa a narrao oral do espetculo cnico so marcas frgeis, quase imperceptveis, j

    que os elementos constitutivos de cada uma delas so praticamente os mesmos. So marcas pontuadas

    por pequenos detalhes, o que parecem distinguir a contao de histrias do teatro. O olhar uma delas.

    A contao de histrias pede olho no olho, intimidade e cumplicidade com o ouvinte, enquanto que na

    ao teatral, na maioria das vezes, atua-se com o conceito da quarta parede, ou seja, estabelece-se um

    distanciamento entre ator e espectador, muitas vezes originado pelo espao fsico onde a ao cnica

    ocorre. J na contao de histrias prioriza-se espaos onde o contador possa estar o mais prximo

    possvel do ouvinte, propondo, assim, uma comunho entre quem narra e quem ouve.

    Isso, por si, j estabelece a ao do contador como performer, j que prprio da performance

    oferecer-se ao pblico e, em contrapartida, aceitar a sua interveno. A contao de histrias, como a

    performance, uma linguagem artstica multidisciplinar, pois envolve letra feito voz, movimento feito

    21 DERRIDA, Jacques. A voz e o fenmeno. Lisboa: Edies 70 Lda, 1996. p. 94.

  • 24

    imagem visual, som feito paisagem sonora. Na narrao oral, como na performance, considera-se o

    corpo do artista como objeto da arte. Com isso, quero dizer que algumas vezes o contador de histrias

    transforma seu corpo em cenrio da ao, traz o texto impresso na pele, cria corporalmente (enquanto

    narra) imagens dos espaos por onde a histria desliza. J no teatro (com exceo de algumas linhas

    contemporneas que prope como pesquisa na linguagem a interveno do pblico e, por isso, distingue-

    se do teatro clssico e aproxima-se da performance) o corpo do ator limita-se a representar um outro,

    seja dentro de uma perspectiva realista ou no. Nas artes cnicas, busca-se o gesto exato de cada

    personagem, sua voz, seu pensamento, de tal maneira que ele se apresente inteiro para ns. Na narrao

    oral no se representa um personagem, antes, se sugere, se apresenta, e deixa-se ao ouvinte a construo

    desse personagem, do espao e da ao, de acordo com os seus referenciais internos. o que chamo de

    arte da representao o teatro, e arte da apresentao a narrao oral. Porm, essa uma viso bem

    particular que se refere a um estilo de contao de histrias.

    A efemeridade da ao performtica tambm caracterstica da ao narrativa oral. Uma

    contao de histrias nunca ir se repetir, por mais que a histria narrada esteja memorizada, palavra por

    palavra. A possibilidade de participao, no s intelectual e emocional, mas fsica do pblico, faz com

    que ela seja nica, pois pode sofrer alteraes por conta da platia.

    No que diz respeito a essa distino, j dizia a inglesa Marie L. Shedlock, em seu livro The art of

    the story-teller, de 1915, que contar histrias uma performance de alto padro e muito mais difcil que

    representar um papel no palco.22 Ao procurar entender essa afirmao, busquei alguns argumentos

    tcnicos que pudessem justificar essa fala. Noto que, de fato, o espao fsico tradicional do teatro, o

    palco italiano, por exemplo, distancia o ator da platia e at mesmo o protege de possveis interferncias.

    O ator conta com diversos suportes tcnicos, como a iluminao, a qual cria uma barreira espacial; a

    trilha sonora, que auxilia na criao de diferentes atmosferas; a rplica dos outros atores, que talvez seja

    a grande marca da arte cnica, j que ela que estabelece o jogo entre dois ou mais sujeitos em cena.

    Mesmo no monlogo, com a presena solitria do ator no palco, encontramos sinais visveis que o

    diferencia da contao de histrias, como a concepo de um personagem que representado com

    veracidade e o uso desses elementos cnicos que prope o distanciamento da platia. 22 SHEDLOCK, Marie L. Da introduo de A arte do contador de histrias. In: Ba e chaves da narrao de histrias. Florianpolis: SESC SC, 2004. p. 23 e p. 27.

  • 25

    Uma das particularidades da narrao oral que a sua ao acontece sem que sejam necessrios

    os recursos tcnicos como os j citados. Numa narrao, quanto mais perto o pblico do narrador, mais

    pessoal e particularizada fica a narrao. Somente esse detalhe j muda a atuao do artista, seja ele o

    contador de histrias, o ator ou o bailarino. Muitas so as maneiras de se contar uma histria. O teatro

    uma delas, assim como o cinema, a msica, a dana, a pintura, a literatura, entre tantas. Se encontramos

    diferenas, tambm encontramos elementos nicos s duas expresses artsticas, como a capacidade de

    lidar com a memria das emoes, criao de imagens internas que se projetam durante a atuao,

    domnio tcnico do corpo e da voz, capacidade de concentrao na ao, cincia de estar presente no

    espao fsico onde se desenrola a ao, clareza das intenes e dos objetivos que permeiam um texto, e

    um sentimento de verdade que perpassa essas performances. Esses elementos que foram sinalizados pelo

    terico Constatin Stanislavski so nicos para as duas formas de atuao.

    Mesmo assim acredito que narrao oral de histrias ou contao de histrias outra coisa. Aqui

    entra em cena o sujeito-narrador oral e sua tcnica peculiar, que envolver o ouvinte, usando como

    suporte apenas o seu corpo e a sua voz. Ao se falar em tcnica, deve se lembrar que ela um recurso a

    ser apreendido, para, em seguida, ser esquecido. Pois, se contar histrias uma arte, uma necessidade

    humana, ento o artista da palavra materializada precisa ter um domnio profundo da tcnica a ponto de

    interioriz-la e no precisar conscientemente dela durante a sua apresentao. Nesse momento de fruio

    artstica o que transparece no a tcnica, mas, antes, a vida.

    Considerando os mais recentes estudos sobre oralidade, consensual que a narrao oral seja

    vista como representante de gneros dramticos contemporneos. Ela vem marcada por atributos ticos e

    estticos. Adquire um papel transgressor, crtico e poltico ao dar voz s minorias, recuperando a

    cidadania. Em alguns casos, o contador apropria-se da narrao com o objetivo de despertar o riso, por

    meio do cmico que escorre das histrias apropriadamente escolhidas para esse fim; assume, dessa

    forma, uma objeo contra as foras opressoras.23

    23 Observei, no ano de 2004, no XVIII Encuentro Nacional y XI Internacional de Contadores de Historias y Leyendas, em Buga, Colmbia, como a palavra expressa pelo narrador oral escnico, na Amrica Latina, uma palavra que recupera e solicita a permanncia da cultura local.

  • 26

    A narrao oral poltica e transgressora quando agrega os ouvintes, seja na rua, na praa, e

    subverte o tempo linear, a pressa, quebra a resistncia em ouvir a voz do outro, rompe as defesas do

    passante com a graa do contador, liberta o sujeito das normas e oferece indagaes, questionamentos,

    alegria, riso, descontrao, aproximao, harmonia, fraternidade.

    Seus predicados estticos se manifestam com o domnio do ritmo, a clareza das intenes e a

    capacidade de dar forma s palavras por meio de um corpo expressivo e expresso dos afetos. Isso lhe

    confere um espao de reflexo nas recentes teorias literrias. Pode-se considerar aqui que o texto

    transmitido oralmente se insere na categoria de performance, pois, segundo ster J. Langdon, a

    performance um ato de comunicao que se distingue de outros atos da fala principalmente por sua

    funo expressiva ou potica 24. Isso faz da narrao oral um espetculo de arte.

    Performance: objeto de estudo de vrios autores, entre eles Paul Zumthor, o qual v performance

    como a ao que comunica a obra, onde obra aquilo que se transmite poeticamente, composta pelo

    texto, ritmo, intenes, e texto, um apanhado de sinais grficos inseridos num contexto. Do texto, a voz

    em performance extrai a obra 25, nos diz ele. Considero a narrao oral uma performance que revela um

    ato coletivo e interativo, em que emissor e receptor entram em consonncia no momento presente,

    envolvidos por sons e silncios, movimentos e quietudes, num pulsar de afetos que transcendem o

    espao fsico onde ocorre a ao.

    Ao refletir sobre o ato performtico e o seu intrprete, Zumthor se remete aos cantadores-

    contadores da Idade Mdia, num tempo em que essa forma de transmitir o texto era aceita e reconhecida

    como um ato de comunicao. Porm, neste incio de sculo XXI, com o homem habitando o

    ciberespao, com cabos e satlites servindo de ponte entre os sujeitos, com as notcias chegando em

    tempo real, de supor que no haveria mais espao para este contador de histrias e sua ancestral forma

    de se comunicar, considerando que esta prtica implica intimidade e proximidade, dilogo que cruza o

    espao entre emissor e receptor, mesmo quando apenas um fala, num dilogo sem dominante e sem

    24 LANGDON, ster J. A fixao da narrativa: do mito para a potica de literatura oral. In: Horizontes antropolgicos. Porto Alegre: 1999. p. 25. 25 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 220.

  • 27

    dominado.26 Porm, atualmente, no apenas se abre a sala para o contador de histrias, como se busca

    por ele. Talvez isso seja uma tentativa de recuperar o olhar subjetivo para a vida ameaado pelo

    pragmatismo da contemporaneidade e a possibilidade de abrir espao para o imaginrio criador. A

    performance do contador de histrias propicia a ampliao do horizonte simblico e traz aquela

    sensao de conforto e aconchego para o nosso mundo interior.

    Est formada a rede mundial dos contadores de histrias. Esse movimento j tem a sua imagem

    potica, e ela nos foi oferecida pela professora Gilka Girardello, do departamento de Educao da

    Universidade Federal de Santa Catarina: uma floresta de sequia. Essa rvore antiqssima e de grande

    porte tem as razes curtas, porm, num movimento coletivo, elas se amparam mutuamente. Suas razes

    se entrelaam no solo formando uma grande teia que lhes d sustentao. Acredito que o movimento dos

    contadores de histria est apenas comeando, e parte os modismos que o envolve, ele resistir, porque

    a humanidade e o planeta conspiram por graa e beleza, e o contador de histrias pode ser o sujeito-

    conspirador que vislumbra a permanncia do mtico-simblico, que transparece por entre as ramagens da

    floresta dos contos.

    1.3 - A performance de uma contadora tradicional

    Quando algum recolhe um conto tradicional e o repassa linguagem escrita,

    como se lhe tirasse uma fotografia, um instantneo desse conto nesse momento.

    Estrella Ortiz 27

    26 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 222. 27 ORTIZ, Estrella. Ler, interpretar, recitar ... In: Ba e chaves da narrao de histrias. Florianpolis: SESC SC, 2004. p. 106.

  • 28

    Com o objetivo de mapear as contaes de histrias na contemporaneidade, procurei ouvir um

    contador tradicional, para sentir como ele se articula nesta era da lgica paradoxal 28, quando se

    convive com a velocidade ciberntica. Busquei por esse contador e cheguei dona Ilva. Ilva de Oliveira

    Ramos, 68 anos, moradora num pequeno stio no municpio de Balsa Nova, a 40 km do centro de

    Curitiba, PR. A zona rural onde ela mora pontuada por pequenas propriedades de trabalhadores da roa

    ou do comrcio da cidade prxima, Campo Largo. Dona Ilva mora com seu marido prximo casa dos

    filhos.

    Visitei-a no domingo, 30 de maio de 2004. Cheguei sua casa num dia frio, chuvoso e em festa.

    Da festa eu no sabia. O cd-player lia cantigas sertanejas, tradicionais e modernas, msicas gauchescas e

    tangos. No fogo a lenha estalavam pinhes, e, animada pelo vinho fabricado artesanalmente pelo seu

    marido, Anacleto, comecei a pensar em como abordaria as histrias, naquele ambiente festivo e familiar,

    sendo eu uma estrangeira que aterrissara interesseira naquele espao. Porm, o ambiente simples e

    afetuoso logo me deixou vontade para que eu me aproximasse e arriscasse um papo com a dona Ilva.

    Na conversa sobre o frio e pinhes, que so mais gostosos assados na chapa do que cozidos na

    gua, apostei numa interveno de contadora de histrias:

    - Fiquei sabendo que a senhora tem histrias muito interessantes.

    - A gente conhece umas histria de criana.

    - Eu tambm conto histrias, dona Ilva. E a senhora, o que conta?

    - Ah! Eu conto umas que meu pai contava quando eu era criana. A Paola (sua neta de 20 anos) que

    gostava de ouv estas histria. Ela vivia pedindo: v, conta histria.

    - E que histrias so essas?

    28 VIRILIO, Paul. A mquina de viso. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2002.

  • 29

    - Tem aquela do Lundu ... do Joozinho e da Mariazinha ... mas eu nem me alembro muito bem.

    A conversa foi interrompida pelas pessoas da casa, que reforavam que ela conta direitinho.

    Sua filha at sugeriu que ela as contasse naquele momento, mas percebi que no era boa hora para as

    histrias deixarem a memria e se tornarem material na voz da dona Ilva, pois ela estava envolvida com

    o almoo e com os convidados que chegavam. Eu nem mesmo tinha conhecimento da situao que ela

    escolhia para contar histrias. H contadores tradicionais que deixam a histria fluir durante o trabalho,

    mas eu no conhecia dona Ilva para saber como ela gostava de contar. Sua filha sugeriu que fizssemos,

    mais tarde, uma roda de histrias, em que eu tambm contaria algumas. Assim ficou combinado.

    A festa animou-se. Logo chegaram outros convidados, e eles traziam um potente karaok.

    Percebi que as histrias corriam o risco de no se materializarem naquele dia. Como a festa, dona Ilva

    tambm se animou e ps-se a cantar uma velha cantiga sertaneja: ndia. Fui convidada a cantar com ela,

    e cantei. Eu me aproximava de dona Ilva com a naturalidade com que tudo acontecia naquela casa, e

    nessa animao o tempo passou.

    Eram praticamente seis horas da tarde e as pessoas que me levaram at l queriam ir embora,

    mas eu no queria voltar sem ouvir a contadora de histrias. Chegou o momento. Dona Ilva nos

    presenteou com suas histrias. Se, num primeiro momento, ela iniciou uma narrao quase obrigatria e

    coerciva, num segundo momento animou-se e divertiu-se com elas. Sentou-se no sof, cruzou os braos

    sobre seu colo farto e comeou a narrar. Naquele momento, e pela primeira vez, vi aquela mulher sorrir,

    gargalhar, enquanto puxava pela memria, entre das e hs, as desgraas do Lundu, a esperteza do

    Joozinho e as malvadezas de Mariazinha. At ento, dona Ilva aparecia para mim como uma mulher

    afvel, porm sria e um tanto distante. Mas, no instante da narrao, eu testemunhava a sua

    transformao: ela ficava vontade, se largava na histria narrada. Algumas vezes justificava, entre

    risos encabulados:

    - Meu pai que contava, n?

  • 30

    A legitimao da narrao aconteceu no momento que interferi na histria para pedir a ela que

    repetisse o nome de alguns personagens, pois no havia entendido. Percebi que dona Ilva tomou essa

    interveno como uma desconfiana da sua fala. Ela riu e afirmou estar contando apenas o que antes

    ouvira contar.

    - Meu pai que contava ... no sei ... meu pai contava essa histria.

    Essa mulher que gargalhava alto eu ainda no havia conhecido. Na sua performance junto ao

    karaok, ela se manteve sria, pouco dada ao brincar. Mas durante a narrao, ela se divertiu. Braos

    cruzados sobre o ventre proeminente, somente os descruzava quando a histria exigia uma demonstrao

    por meio de gestos, como para dar o formato de algum objeto ou alguma indicao espacial. A histria

    vertia veloz, sem dar descanso aos nossos ouvidos, o que lembrou uma das observaes de W. Ong ao

    citar que os narradores das culturas orais no interrompem e no deixam espao entre a narrao. Ele

    nos lembra que as culturas orais estimulam a fluncia, o excesso, a loquacidade. 29

    A narrao de dona Ilva nos aproximou num forte abrao final. Agora ramos cmplices naquilo

    que nos era comum: o encanto pelas histrias. Dona Ilva, que iniciou uma contao sria, como se fosse

    apenas satisfazer a nossa curiosidade, aos poucos foi se tornando a senhora da situao, recordando,

    trazendo do corao para o seu corpo-memria as significaes das histrias, transformando a histria

    de um outro na sua prpria histria.

    Esse movimento de recordar a si mesmo conduz a uma tomada de conscincia da nossa prpria

    experincia de vida, seja ela intelectual, emocional, afetiva. Aqui se situa a exemplificao da diferena

    que Derrida faz entre indcio e expresso 30. O que poderia ser apenas um indcio tornou-se uma

    expresso, uma ao comunicativa ampliada pela manifestao das vivncias, pela exposio da vida

    interna da alma, pela lembrana dos afetos despertos pela figura paterna, o qual conduzia a narradora por

    estradas tortuosas, com tantos perigos e convites descoberta de algo jamais imaginado. Poderia-se

    29 ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998. p. 52. 30 DERRIDA, Jacques. A voz e o fenmeno. Lisboa: Edies 70, Lda, 1996. p. 27.

  • 31

    pensar esse momento como uma expresso do simblico mediado pela ritualidade ancorada na palavra,

    no olhar, na escuta, no movimento tosco: as gramticas da ao de Martin-Barbero.31

    Na segunda histria, dona Ilva estava to vontade, que nem mesmo a porta, que era aberta a

    todo instante, deixando vazar o som alto que vinha de fora, interferia no seu contar. Eu ficava apreensiva

    com a possvel intromisso, j que, na minha prtica, prezo pelo absoluto silncio enquanto os contos

    soam, sempre atenta s possveis distraes dos ouvintes. Mas dona Ilva parecia no se importar com o

    barulho, apenas prosseguia, envolta pelos personagens que acabara de despertar e, para a minha

    surpresa, quando pensava que a histria ia se acabar, surgia uma continuao indita. Foi ento que me

    dei conta que estava diante de uma construo narrativa hbrida, composta por verses pouco conhecidas

    de histrias tradicionais. A experincia de ouvir uma histria envolvida a tantos rudos externos me

    remeteu outra vez reflexo de Martin-Barbero, que qualifica essa caracterstica de se relacionar com os

    meios comunicativos, como um barroquismo expressivo dos modos populares 32.

    Dona Ilva narrou duas histrias. A primeira foi Lundu, uma verso abrasileirada de A Bela e a

    Fera. O que a difere tanto da verso francesa como da verso italiana (Bellinda e il mostro) o

    personagem-fera, que nesta verso negro. Desconheo qualquer conto africano com esse tema.

    Ao findar a primeira narrao, dona Ilva deixa uma reticncia no ar e, ao perceber nosso

    interesse, se pe a contar a prxima histria: Joozinho e Mariazinha (para ela assim!). Essa uma

    verso longa do conto popular, com o diferencial de reunir temas de outros contos de fadas e mitos, o

    que o torna totalmente desconhecido para mim. A estrutura bsica corresponde verso registrada pelos

    Irmos Grimm e tambm verso brasileira registrada por Cmara Cascudo. Do conto de C. Cascudo

    possvel reconhecer a mentira do pai, que, ao dizer que ir derrubar uma colmia para colher mel,

    abandona os filhos na floresta, merc da sua prpria sorte. Tambm as frases bem pontuadas:

    - gua, meus netinhos! - Azeite, minha av! aparecem na verso de C. Cascudo. Porm so as nicas

    referncias ao conto registrado por esse autor.

    31 MARTIN-BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. 32 Op. cit., p.19.

  • 32

    J o tema dos trs ces, cujos atributos correspondem aos seus nomes, parece ser uma reproduo

    na ntegra da verso italiana I tre cani 33, recolhida na Lombardia:

    (...) - Su questa montagnetta dicono c um drago che ha sette teste e lo chiamano il drago-dalle-sette-teste. Tutti i giorni bisogna che una persona vada su a farsi mangiare. Se no lui vieni in citt e fa disastri. Oggi tocata alla figlia del re e bisogna che vada a farsi magiare, perch qui la legge uguale per tutti. Ma il re ha solo una figlia e allora la citt parata a lutto. Lui fa finta di niente e va via.

    partito, andato su quella montagnetta coi suoi ter cani pacifico e tranquillo. Quando su si tiene um po`indietro dal punto dove arrivava il drago. Arriva la principessa accompagnata da tutti i suoi servi e servitori, tutta col velo nero, si inginocchia davanti a uma cappelletta della Madonna e si mette a pregare mentre aspetta il drago. Era l, pronta a farsi mangiare. Il drago venuto avanti piano, piano piano. E anche lui venuto avanti. Quando stato a un metro di distanza dalla principessa e dal drago h detto: Turco! Moro! Sbranaferro ! Sbranate quella fiera che siete ancora in tempo! E loro si sono buttati sul drago-dalle-sette-teste e lhanno ammazzato.

    La principessa cos si salvata, era tutta contenta, figuratevi! (...) Allora lui venuto fuori, ha aperto la bocca alle sette teste del drago, ha tirato fuori le sette lingue e le ha messe nel suo zaino. Ha preso su i suoi cani e poi andato allalbergo. Ha domandato allogio per lui e per i cani e basta, finita cos.34

    A histria I tre cani segue o mesmo desenvolvimento de Joozinho e Mariazinha. O rei

    determina que a princesa ir se casar com aquele que matou o drago; aparece um impostor que

    desmascarado com a ajuda dos ces e, finalmente, o heri se casa com a princesa. 33 MARI, Alberto. Fiabe popolari italiane Nord. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1994. p. 147. 34 Sobre esta montanha, dizem, existe um drago que tem sete cabeas e chamam-no de drago-de-sete-cabeas. Todos os dias necessrio que uma pessoa v at ele e se deixe devorar. Se isso no acontecer, ele vem cidade e faz um desastre. Hoje a vez da filha do rei, e necessrio que ela v e se deixe devorar, porque aqui a lei igual para todos. Mas o rei tem apenas uma filha e agora a cidade se ps em luto. Ele finge que no est nem a e vai embora. Partiu e andou at aquela montanha com seus trs ces, calmo e tranqilo. L em cima, ele se mantm um pouco afastado do ponto de onde chega o drago. Chega a princesa acompanhada de todos seus servos e serviais, toda com o vu negro, se ajoelha diante de uma capela de Nossa Senhora e se pe a rezar, enquanto espera o drago. Estava ali, pronta para ser devorada. O drago avana devagarinho, devagarinho, devagarinho. E tambm ele veio adiante. Quando est a um metro de distncia da princesa e do drago, disse: - Turco! Moro! Sbranaferro! Despedaa aquela fera que agora hora! E eles se lanaram sobre o drago-de-sete-cabeas e o mataram. Assim a princesa se salvou e ficou feliz. Ento, ele apareceu, abriu a boca das sete cabeas do drago, tirou fora as sete lnguas e as colocou na sua mochila. Pegou seus ces e andou para o albergue. Pediu alojamento para si e para os ces, e foi isso, e acabou.

  • 33

    Italo Calvino reconta essa histria em Fiabe Italiane35 e nela vamos encontrar trs cachorros

    chamados, na verso em portugus, de Rompe-Ferro, Quebra-Correntes e Racha-Parede. Porm, o

    enredo dessa histria um pouco diferente do das duas primeiras.

    J a serpente-de-sete-cabeas devoradora de donzelas pode ser uma referncia ao universo mtico

    grego, pois o monstro ofdico beira da gua lembra a serpente marinha que iria devorar a princesa

    Andrmeda. Lembra ainda a Hydra de Lerna, outra personagem dessa mitologia, uma serpente com

    nove cabeas, na verso mais comum, sendo a do meio imortal, de hlito venenoso, que matava as

    pessoas que se aproximassem dela. Sua captura um dos doze trabalhos de Hrcules.

    Para a minha surpresa, quase no final da histria, surge o Caporo 36, (outras vezes a pronncia

    revelava Capora). Deduzo, pois a narradora no fornece mais informaes sobre o personagem, que seja

    o brasileiro Caipora, perdido num conto de fadas europeu, ou melhor, contextualizado num conto de

    fadas abrasileirado e dergando rvores. Fica evidente a caracterstica viajante desta literatura oral, que

    vai tomando a forma das terras por onde passa. Assim, na verso da narradora, Joozinho e Mariazinha

    recebem a visita de um personagem tipicamente brasileiro, ainda que a sua caracterstica na histria seja

    um pouco confusa. Nessa histria, o personagem persegue crianas e chupa (destri?) rvores. Convm

    lembrar que Caipora e Curupira muitas vezes se confundem no imaginrio nacional, e passam a ser o

    mesmo personagem, ou seja, o protetor das matas. Alguns folcloristas e escritores preferiram mant-los

    com caractersticas e funes distintas. C. Cascudo indica a gnese desses personagens e apresenta-os

    como: Caipora, o protetor dos animais de caa, e Curupira, a entidade das matas.

    Nessa leitura, Curupira aparece como um indiozinho peludo, que bate nos troncos de rvore para

    certificar-se de que eles esto bem firmes, a ponto de agentarem a tempestade que est por vir;

    enquanto o Caipora, tambm um duende selvagem 37, um indgena que anda nu, fuma cachimbo e

    35 CALVINO, Italo. Fiabe Italiane. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1956. p. 203. 36 No Dicionrio do Folclore Brasileiro, 7. edio, Belo Horizonte: Itatiaia, 1993, de Luis da Cmara Cascudo, pode-se encontrar o Caipora sendo chamado de Caapora. Informa o Padre Joo Daniel, missionrio no Amazonas, 1780-97, que do que se infere que o diabo disfarado em figura humana, Coropira, tem muita comunicao com os irmos mansos e j aldeados; e muito mais com os bravos, a que chamam Caaporas, isto , habitadores do mato. 37 Nos Cadernos de Folclore Mitos Brasileiros MEC/Fundao Nacional da Arte, Cmara Cascudo cita que o Caipora pode ser o nome que o Curupira assume quando comea a sua viagem pelo Sul e Sudeste do Brasil.

  • 34

    emite um assobio agudo que enlouquece quem ouve. Vive montado num porco-do-mato, fazendo pacto

    com os caadores, desnorteando uns, ajudando outros.

    Ora, na histria de dona Ilva, o Caipora aparece como um ser que dergava as rvores. A

    narradora inclusive emite a onomatopia do que significaria esta ao, ou seja, como se ele chupasse a

    seiva das rvores, elas murchassem e se dobrassem, atingindo o cho, para ento o personagem apanhar

    o que est nos seus galhos. A palavra dergar no existe no nosso vocabulrio, mas existe outra

    semelhante, foneticamente, que vergar, cujo sentido prximo ao que ela quis dar: curvar, dobrar,

    encurvar. Tambm adelgaar, cujo sentido fazer delgado, fino; tornar fino ou agudo; diminuir, reduzir.

    A hibridez na composio do conto chama a ateno, pois o torna nico, e pode revelar, talvez, a

    histria de vida de dona Ilva. Indagada sobre os contos, tudo o que ela acrescenta que os ouvia desde

    menina, ou seja, h setenta anos. Martin-Barbero lembra do sentido do popular, como um lugar de

    mestiagens e reapropriaes.38 Parece bem apropriado para essa situao. Dona Ilva parece ter

    misturado todas as referncias do seu imaginrio infantil, recuperando uma narrao essencial, no

    sentido de primeira. Fica claro que a verso de Joozinho e Mariazinha uma recriao de vrios contos

    ouvidos pela autora, ou antes, pelo seu pai. Para me manter fiel fala da contadora,39 busquei alguns

    critrios na transcrio da fita de udio, pois essa caracterstica confere autenticidade e singularidade

    sua narrao oral. As pausas foram marcadas com reticncias e optei por registrar as palavras como ela

    de fato as falou, ou seja, omitindo s dos plurais, como em os cachorro; omitindo e trocando letras

    como no caso do voc por oc ; rvore por arvre; outra por otra; alguma por arguma.

    Um olhar distanciado para o espao da narrao mostra que a relao entre contador de histrias,

    o ato narrativo e o ouvinte nada tem de ingnuo ou simples. Essa relao oculta uma trama de muitas

    marcas. Em torno e por trs da simplicidade narrativa e gramatical da verso de dona Ilva, encontram-se

    intrincadas relaes, como mostra o personagem negro, que, no final da histria de Joozinho e

    Mariazinha, aparece como um sujeito oportunista e impostor. Convm lembrar que o Paran apresenta

    uma miscigenao tnica proveniente do processo imigratrio, com o predomnio do homem branco:

    38 MARTIN-BARBERO, Jsus. Dos meios s mediaes: comunicao, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. p. 161. 39 As histrias narradas se encontram nos Anexos 1 e 2.

  • 35

    alemo, polons, ucraniano, espanhol, portugus, italiano, holands. O negro, presena da escravatura do

    Brasil Colnia, quase inexistente no imaginrio popular paranaense. As lendas registradas por

    Telmaco Borba e por Romrio Martins no apresentam esse personagem. No pretendo fazer nenhuma

    anlise sociolgica desse fato, porm transparece na leitura desse conto que o negro teve sua presena

    registrada no imaginrio popular, fosse na condio diminuta do vilo, como em Joozinho e

    Mariazinha, ou o rejeitado, como em Lundu. As histrias tambm revelam os afetos da narradora e a

    sua relao com o pai, que contava histrias. Ele era a autoridade, ele contava assim, diz ela. A

    hibridez dos temas revela o complexo universo onde viveu dona Ilva, uma descendente de portugueses e

    ndios. O seu imaginrio pontuado pelas marcas da cultura europia, mas tambm se pode sentir a

    presena da cultura indgena e negra, o que expe a diversidade de informaes que incidiram na

    formao dessa contadora tradicional.

    Nesse captulo procurei apresentar o contador de histrias contemporneo, seja ele o contador

    tradicional, que herdou o dom da narrativa de seu ncleo familiar ou comunitrio; seja ele o contador

    que elaborou a habilidade para a narrao por meio de uma tcnica. Qualquer que seja o seu caminho,

    vamos encontrar a narrao oral enquanto uma ao do recordar a si prprio, que se caracteriza como

    uma arte peculiar.

  • 36

    Captulo 2

    A ARTE DE CONTAR HISTRIAS COMO

    PASSAPORTE PARA O IMAGINRIO

  • 37

    Neste captulo, pretendo apresentar a narrao oral enquanto evento potico que se

    liga ao imaginrio, por conter na sua estrutura literria imagens simblicas que funcionam

    como hormnio da imaginao1, assim como meio de acesso ao sagrado - entendendo

    sagrado como o centro organizador de uma experincia, como fora de unificao presente

    no homem. Pretendo, tambm, situar o contar histrias como um evento artstico. A arte

    geralmente adquire a colorao que lhe dada pelo esprito do seu tempo. Cada poca e

    cultura tm pontos de vista diferentes sobre a natureza da arte, como tambm critrios

    distintos para a sua recepo. Porm, qualquer que seja o perodo histrico e contexto no

    qual ela se apresenta, uma das coisas que faz eco a de que a arte transformao

    simblica do mundo. Ela propicia a criao de um universo mais significativo e ordenado.

    A arte vibra com vida e contar histrias pede este pulsar para se configurar como

    comunicao emocional.

    Para refletir sobre a arte de contar histrias, pretendo falar de imagens, ritmos e

    intenes, enquanto fundamentos poticos e tericos que sustentam a narrao oral.

    Procurei entender o papel do imaginrio, observando como ele permeia esses trs

    elementos. Para isso, lancei o meu olhar para alguns conceitos elaborados sobre imaginrio

    e imaginao, e suas transformaes no decorrer do tempo.

    1 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 35.

  • 38

    2.1 - Imagens, ritmos e intenes - Fundamentos poticos

    para encantar

    Mas h uma outra definio na qual me reconheo plenamente, a da imaginao como repertrio do potencial,

    do hipottico, de tudo quanto no , nem foi e talvez no seja, mas que poderia ter sido.

    Italo Calvino 2

    Para Gilbert Durand, o imaginrio o museu de imagens passadas, possveis,

    produzidas e a serem produzidas 3 (...), que constitui o capital pensado do homo sapiens 4.

    Com o passar do tempo e a multiplicao de leituras, o imaginrio e a dimenso mtico-

    simblica deixaram de ser visto com desconfiana. O conceito se ampliou e novos

    significados foram agregados a ele. Imaginrio passou a ser entendido como um espao de

    elaborao e transmutao de pensamentos, sentimentos, percepes, uma espcie de

    incubadeira para as criaes humanas. Gaston Bachelard 5 aponta para a imaginao como

    a maior potncia da natureza humana e, segundo o autor, antes de ela ser apenas a

    faculdade de produzir imagens, a potncia que deforma as cpias pragmticas fornecidas

    pela percepo. 6

    Diz a introduo do Dicionrio de Smbolos que hoje em dia, os smbolos gozam

    de nova aceitao. A imaginao j no mais desprezada como a louca da casa, (la folle

    2 CALVINO, Italo. Seis propostas para o prximo milnio - Lies americanas. So Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 106. 3 DURAND, Gilbert. Imaginrio. Ensaio acerca das cincias e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2001. p. 6. 4 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 18. 5 BACHELARD, Gaston. A potica do espao. So Paulo: Martins Fontes, 2000. 6 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 30.

  • 39

    du logis )7. A expresso usada por Nicolas de Malebranche, orador e filsofo metafsico

    francs, do sculo XVII, tambm citada por Voltaire, atestava uma ruptura epistemolgica

    que se iniciou no sculo XIII e se concretizou no sculo XVII, com a entrada da

    natureza de ordem cientfica. O conhecimento passou por modificaes, como a

    substituio da hierarquia analgica 8 pela anlise, e a atividade do esprito deixou de ser

    o aproximar, e passou a ser o discernir. Uma das conseqncias dessa forma de ver o

    mundo foi a rejeio dos sonhos, das vises, da fantasia, da alegoria e da imaginao. Com

    isso, negou-se a atividade simblica que escorre nessas manifestaes. louca da casa

    estava destinada as profundezas da natureza humana, a escurido, um lugar de onde no

    deveria jamais sair. Com ela iria o ressoar das vivncias e das significaes. Segundo

    Michel Maffesoli, preciso compreender que o racionalismo, em sua pretenso cientfica,

    particularmente inapto para perceber, ainda mais apreender, o aspecto denso, imagtico,

    simblico da experincia vivida. 9 Ele se refere ao racionalismo abstrato, processo que no

    considerou a complexidade da vida e das coisas, mas antes, para compreender e aprender,

    as separou, qualificou e excluiu.

    Michel Foucault apontou para esta nova epistme e mostrou que, at o momento no

    qual se instaurou o movimento da razo abstrata, o saber se articulava pelas similitudes10,

    pela ressonncia do que se parecia.

    No sculo XVI a semelhana estava ligada a um sistema de signos; e era sua interpretao que abria o campo dos conhecimentos concretos. A partir do sculo XVII, a semelhana repelida para os confins do saber, do lado de suas mais baixas e mais humildes fronteiras. L, ela se liga imaginao, s repeties incertas, s analogias nebulosas. 11

    7CHEVALIER, Jean. Dicionrio de smbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1999. p. XII. 8 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das cincias humanas. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 75. 9 MAFFESOLI, Michel. Elogio da razo sensvel. Petrpolis: Vozes, 2001. p. 27. 10FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das cincias humanas. So Paulo: Martins Fontes, 2002. 11 Op. cit., p. 98

  • 40

    A semelhana, que at ento era a via para o conhecimento, foi rejeitada e repelida

    para os confins do saber, onde se encontrou com a imaginao. O smbolo deixou de ser

    uma via para o conhecimento frente da atividade cognitiva, reunindo o que estava

    disperso, e transformou-se numa representao.

    Uma das conseqncias desse processo cientificista (doutrina que s considera a

    verdade quando comprovada por mtodos cientficos) foi introjetar no ser humano uma

    espcie de arquitetura interna, composta de compartimentos isolados, onde cada qual

    corresponde apenas atividade exercida, sem qualquer relao com o todo, onde a

    faculdade de pensar foi exaltada e a mente reconhecida como soberana nos processos de

    aprendizagem, desconsiderando, dessa forma, a observao da vida por diferentes aspectos.

    Durante anos, a humanidade articulou-se a partir desse olhar linear e contnuo e, apesar do

    sculo XX ter sido marcado pelo sentido que se d s coisas e o sculo XXI ser pontuado

    por outras epistemologias, como o pluralismo de pensamentos e a aceitao da

    subjetividade como forma de acesso ao conhecimento, o elemento norteador da nossa

    poca, o pensamento predominante deste incio de sculo XXI, ainda se caracteriza por

    uma viso determinista e rasa, que olha com desconfiana para o que sugere diversidade e

    para o que prope a aceitao das diferentes dimenses da realidade.

    A histria nos apresentou alguns movimentos responsveis por criar resistncia ao

    cientificismo racionalista, como o romantismo, o surrealismo e o simbolismo. No cerne

    desses movimentos, sobreviveu a certeza de que o homem no vivia apenas sob a luz, como

    tambm sob as trevas. A descoberta do inconsciente comprovou essas idias, e foi a partir

    dessa epistme que se reavaliou de forma positiva a imaginao, o sonho, o mito e a louca

    da casa se transformou na chave que d acesso aos pores mais escuros da alma humana, e

    passar a ser, como para Baudelaire, a rainha das faculdades. No sculo XX, nomes-

    chave das cincias e das artes construram seu saber aproximando os diversos nveis da

    realidade, reconhecendo o espao do simblico na vida humana e considerando o papel

    mediador do imaginrio e das imagens. Ainda assim, a imaginao continuou a ser

    encarada como um fragmento da memria, uma mera reproduo das coisas reais, uma

    espcie de infncia da conscincia, ou seja, algo em formao. Tal foi a ambigidade

  • 41

    gerada em torno desse conceito, que a psicologia geral reduziu o fenmeno imaginrio a

    um inbil esboo Conceitual 12, e a psicologia da imaginao, no rastro do

    associacionismo, confundiu a imagem com a palavra.

    Imagem, imaginao, imaginrio. Jung ampliou os conceitos de Freud, que

    considerava a imagem apenas como um smbolo que trazia uma mensagem do inconsciente,

    como ainda, uma indicadora dos vrios estgios da libido. O que Jung concluiu que todo

    pensamento se assenta nas imagens gerais, as quais ele chamou de arqutipos. Postulou que

    a imagem um modelo da autoconstruo individuao - da psiqu, e normalizadora de

    doenas psquicas, ao perceber que doentes mentais com perspectiva de cura expressavam

    essa possibilidade por meio de desenhos significativos, como as imagens de mandalas. Por

    essas e outras atribuies, concluiu que as matrizes produtoras de imagens so plurais e,

    com isso, abriu um vasto campo de pesquisa na psicanlise. Para Jung, smbolo uma coisa

    vaga, desconhecida. Um nome que damos a algo que pode ser familiar, mas cujo

    significado vai alm do convencional,13 enquanto os arqutipos, diz ele, so representaes

    conscientes, resduos arcaicos, ou ainda imagens primordiais.14 Foi a partir desses

    conceitos vivos que C.G. Jung deixou sua contribuio compreenso do imaginrio como

    espao interno de elaborao dos contedos emocionais do ser humano.

    J Bachelard, na pista lanada pela fenomenologia de Husserl, viu a imaginao

    como uma energia organizadora, a imagem surgindo para iluminar a prpria imagem.

    Supe que a nossa sensibilidade serve de mdium entre o mundo dos objetos e o dos

    sonhos 15. A sensibilidade no a qualidade mais apreciada pelos racionalistas. Essa pista

    lanada por Bachelard seguida de perto por Durand, que se lanou numa viagem

    arqueolgica e

    12 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio: introduo arqueotipologia geral. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 28. 13 JUNG, Carl-Gustav. O homem e seus smbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 20. 14 Op. cit., p. 67. 15 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio: introduo arqueotipologia geral. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 34.

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    mitocrtica atravs das imagens, elaborando as estruturas das representaes conceituadas

    como Regime diurno e Regime noturno 16 da imagem. Num vasto texto ele procura

    mostrar que o ser humano dotado de capacidade simbolizadora e reage contra a

    desvalorizao ontolgica da imagem. Segundo Durand, o Regime diurno das imagens

    um regime de anttese, dualista e polmico, e que aparece na histria do pensamento

    ocidental como herana de um regime de expresso e raciocnio filosfico, o qual se

    chamou de racionalismo espiritualista.17 Ele est estruturado sob as bases das duas

    maiores filosofias do Ocidente, a de Plato e Descartes. Suas imagens levam filosofia do

    duplo, como o esprito sendo o duplo do ser, o mundo inteligvel como o duplo do mundo

    real, e s imagens que pem em movimento a verticalizao do homem, em contrapartida

    com o arqutipo da queda. Nesse tecido construdo por Durand entram em cena outras

    imagens de anttese, como o gldio, espada e outras armas cortantes, os principais objetos

    ligados a esse Regime diurno, da fantasia da liberao para a verticalizao.

    J o Regime noturno inverte o contedo afetivo e minimiza os efeitos da imagem.

    Esse agrupamento de estruturas est sedimentado sob o signo da converso, ou seja,

    inverso do valor afetivo atribudo ao tempo; e do eufemismo, inverso radical do sentido

    afetivo das imagens. Traz para a cena as imagens da descida aos espaos da intimidade e da

    criao. Apresenta como smbolos da intimidade o ventre, o bero, o sepulcro-bero. Aqui

    a morte se eufemiza por meio das imagens de intimidade. A caracterstica da descida

    tambm minimizada. Ao contrrio da queda brusca e suas imagens observadas no

    Regime diurno, aqui se chega aos espaos ntimos lentamente, suavemente. Este regime

    de imagens apresenta as deusas, A Grande Me, ao invs do soberano. Relaciona-se com a

    sociologia do matriarcal, com os ciclos do calendrio agrcola e da indstria txtil. Faz a

    imaginao tender para narrativas simblicas que apresentam o mito do retorno. O Regime

    diurno configura-se como herico, uraniano, luminoso. mstico, entendendo por mstico

    16 DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do i