A Arte de Ensinar Dos Orientais

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  • 8/18/2019 A Arte de Ensinar Dos Orientais

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     PARA UM NOVO AMANHÃ: Visões em Aprendizagem Histórica. Edições Sobre Ontens. Rio deJaneiro/União da Vitória, 2016, p. 26-36

     A ARTE DE ENSINAR DOS ORIENTAIS

     André Bueno

     Antes de começar, já faço aquela velha ressalva: não gosto de usar otermo ‘Oriental’ para definir a vasta Ásia como se fosse uma coisa só.Mas eu também não gosto de títulos enormes, que tentam explicartudo e acabam ficando com mais de três linhas. Usei o termo

    ‘Orientais’  para convocar o leitor. O que faremos aqui, nesse brevetexto, é uma rápida visita a três formas de pensar o ato de educarnesse amplo e tão multifacetado ‘Oriente’. Colhemos trêsexperiências distintas: uma da Índia, uma da China e uma doSufismo Turco medieval, que apresentaremos de forma comentada.

    E o que poderia nos interessar ler sobre três fragmentos tão antigos,distantes quase três mil anos no tempo, como no caso de Indianos eChineses? Como exercício sobre a História do Ensino, isso já valeriauma olhadela. Mas devemos fazer uma consideração mais profunda:estamos falando de três modos de pensar a educação que são

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    milenares, e que continuam a existir. Talvez nenhuma teoria ousistema educacional ocidental tenha alcançado tanto sucesso e tantadurabilidade. O Confucionismo, por exemplo, inspira até os dias dehoje o funcionamento da educação chinesa, no que concerne aosseus principais valores e princípios. Alguém pode objetar: são teoriasmilenares, mas e daí? Ser tradicional não significa necessariamenteser bom. O fato de essas propostas educacionais continuarem aexistir pode significar que essas civilizações são antiquadas,reacionárias e atrasadas. Afinal, Aristóteles não salvou a Grécia docaos econômico – e são poucos os que se atrevem a citar Aristótelesnuma conversa contemporânea. Só que a questão se complicaquando olhamos para a China, a Índia e a Turquia de hoje:civilizações poderosas, desenvolvidas, cujas culturas milenaresalicerçam um desenvolvimento econômico e político renovado, queresistiu e superou as mais duras crises em suas histórias. Talvez, porisso, seria interessante tentar entender o que foi tão bem sucedidoem suas histórias educacionais.

    Outra questão será considerada aqui: por se tratar de um texto

    aberto ao debate, não nos ateremos exaustivamente às origenshistóricas de cada fragmento. Isso seria um trabalhodemasiadamente longo, e que não daria conta de cobrir todas aspossibilidades de abordagem existentes. O que buscaremos, pois, édiscutir o que de ‘atual’  essas teorias poderiam nos apresentar,revelando-nos o quanto os antigos ‘orientais’  já sabiam sobre o atode ensinar e aprender.

    Conselhos a um estudante no Taittiriya Upanishad

     A um Estudante Leigo; Permiti que vossa condutaseja marcada pela ação correta, inclusive o vossoestudo e o ensinamento das escrituras; através da

     verdade na palavra, na ação e no pensamento;através da auto-abnegação e da prática daausteridade; através do equilíbrio e doautocontrole; através da execução das tarefasdiárias da vida com um coração alegre e umamente desapegada. Falai a verdade. Cumpri vossodever. Não negligencieis o estudo das escrituras.

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    Não interrompais a linha da descendência. Não vos desvieis do caminho do bem. Reverenciai agrandeza. Permiti que vossa mãe seja um deuspara vós; permiti que vosso pai seja um deus para

     vós; permiti que vosso mestre seja um deus para vós; permiti que vosso hóspede também seja umdeus para vós. Executai somente açõesirrepreensíveis. Mostrai sempre respeito pelosgrandes. Qualquer coisa que deis aos outros, dai-acom amor e respeito. Presentes devem ser dadosem abundância, com alegria, humildade ecompaixão. Se em qualquer ocasião houverqualquer dúvida com relação à conduta correta,segui a prática das grandes almas, que sãosinceras, possuem bom julgamento e sãodedicadas a verdade. Conduzi-vos sempre assim.Este é o preceito, esse é o ensinamento, e essa é aordem das escrituras.

    Em algum momento entre os séculos 8 a 6 AEC, os indianos estavamrevisando toda a sua literatura religiosa, contestando-a, discutindo eaprofundando suas investigações metafísicas. Desse movimentoemergiriam os Upanishads, vasto conjunto de textos que buscavaapresentar as elaborações filosóficas dos pensadores hindus. Essaquestão era fundamental para a continuidade de sua civilização: osindianos conseguiram habilmente, ao longo dos séculos, substituir apreocupação com o registro histórico dos eventos pela manutençãodos princípios religiosos e devocionais. A Índia é uma civilização

    construída pelos seus valores espirituais, que se mantêm os mesmosdesde a sua mais remonta antiguidade. Disso resultou a dificuldadeperene que temos em estudar a história da Índia pelo viés‘ocidental’: sem a arqueologia, seria praticamente impossível saber oque, quando ou onde aconteceu alguma coisa. Isso pouco importava,porém, no senso indiano tradicional. O fundamental era a fazer vivera tradição, os valores que agregavam a existência da sociedade. Issofez com que os indianos conseguissem uma unidade surpreendentede redação em seus textos fundadores, largamente difundidos pormeios orais antes de serem fixados pela escrita. E os Upanishads

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    sintetizavam muito dessa busca de uma unidade no pensamentoindiano.

    Bem, e o que lemos no Taittiriya Upanishad de relevante para nossopequeno estudo? Nesse trecho, apresentam-se conselhos para umaprendizado ideal do saber. Se hoje eles nos parecem óbvios,devemos ter em mente que eles foram escritos há praticamente trêsmil anos atrás. Os redatores do texto já estavam preocupados emtornar a aprendizagem uma atividade sagrada, regida por valoreséticos claros e definidos. O momento educativo não importava,somente, a aprendizagem dos textos, mas todo um conjunto de

     valores que abrangiam a família, os mestres e a vida em sociedade. Aexperiência indiana, pode-se dizer, transformou a educação numaatividade espiritualizada. Obviamente, ela estava imbuída danecessidade de manter os princípios sagrados do ‘Sanatana Dharma’[nome indiano para o que chamamos de ‘Hinduísmo’], tornando-seigualmente um processo de intenso mergulho nas concepçõesreligiosas presentes na cultura da Índia Antiga. No entanto, é a suaprática que aqui nos interessa: o estudante era levado a experiências

    diversas de aprendizagem, tanto no domínio dos textos, da escrita,como de atividades físicas e mentais, tais como a meditação, quefaziam toda a diferença em seu desenvolvimento. A ênfase noautocontrole, na conduta correta, no desprendimento, e na açãocalma e raciocinada constituía o alicerce de um bom aprendizado.Isso orientava os pais a cuidar do comportamento de seus filhos,

     bem como incutia o respeito nos alunos por seus professores. Osexercícios físico-espirituais davam um contributo significativo àquestão da disciplina. Experiências levadas a cabo, no Brasil,

    mostram que a meditação pode contribuir significativamente para amelhoria da qualidade de vida dentro da escola, tanto para docentesquanto discentes.1 

    Os métodos apresentados nesse fragmento podem ser criticados porserem fortemente marcados pela questão religiosa, que permeia ocerne do pensamento indiano. Todavia, foi essa mesma postura que

    1 Veja Revista da Educação, n.221; revista Mente e Cérebro Julho/2015 e a reportagemsobre as escolas públicas, no estado do Espírito Santo, que usam a meditação:

    http://g1.globo.com/espirito-santo/educacao/noticia/2015/09/meditacao-e-usada-como-aliada-no-ensino-nas-escolas-estaduais-do-es.html 

    http://g1.globo.com/espirito-santo/educacao/noticia/2015/09/meditacao-e-usada-como-aliada-no-ensino-nas-escolas-estaduais-do-es.htmlhttp://g1.globo.com/espirito-santo/educacao/noticia/2015/09/meditacao-e-usada-como-aliada-no-ensino-nas-escolas-estaduais-do-es.htmlhttp://g1.globo.com/espirito-santo/educacao/noticia/2015/09/meditacao-e-usada-como-aliada-no-ensino-nas-escolas-estaduais-do-es.htmlhttp://g1.globo.com/espirito-santo/educacao/noticia/2015/09/meditacao-e-usada-como-aliada-no-ensino-nas-escolas-estaduais-do-es.htmlhttp://g1.globo.com/espirito-santo/educacao/noticia/2015/09/meditacao-e-usada-como-aliada-no-ensino-nas-escolas-estaduais-do-es.html

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    conseguiu transformar a Índia de Gandhi [1869 -1948] na primeiranação a obter sua independência pós-colonial por meio de ummovimento pacífico. Essa ação espiritualizada inspirou o pastorMartin Luther King [1929-1968] a realizar um processo deresistência semelhante nos Estados Unidos, quando da luta pelosdireitos civis. No Brasil atual, está em curso um processo dediscussão sobre a presença da religiosidade dentro da escola. Assimsendo, a experiência indiana nos mostra que, se estamos a falar deum ensino espiritualizado, que ensine valores éticos e preza pelacoexistência pacífica, pelo respeito ao próximo e pela difusão de umsentimento saudável de amor ao próximo, então, a religiosidade nãoseria um problema. Contudo, muitas das visões exclusivistasenvolvidas nesse processo propõem justamente o contrário: aincitação ao ódio, ao preconceito e ao obscurantismo, que sóexacerbam as tensões sociais, levando a exclusão e ao desrespeitohumano. Quando isso acontece, os pilares básicos da aprendizagemsão enfraquecidos na nascente, e fenece inexoravelmente o projetode continuidade de uma civilização.

    O Bom Educador no Liji [Registros Culturais]

     Ao ensinar, o homem superior orienta seusdiscípulos sem arrastá-los; convida-os a avançar,mas não os coage; abre-lhes os caminhos, mas nãoos força a caminhar. Orientando sem arrastar,torna o aprendizado agradável; convidando semcoagir, torna o aprendizado fácil; abrindo ocaminho sem forçar à caminhada, faz com que os

    alunos pensem por si mesmos. Ora, uma pessoaque torna agradável e fácil o aprendizado e fazcom que os estudantes pensem por si mesmosserá o que se pode chamar um bom mestre. Há naeducação quatro inconvenientes muito comuns,contra os quais deve precaver-se o professor.Certos estudantes procuram aprender demais oudemasiados assuntos, outros aprendem pouco oupoucos assuntos, alguns aprendem comdemasiada facilidade, outros facilmente perdem oânimo. Essas coisas demonstram que os

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    indivíduos diferem quanto aos dotes mentais, e sómediante o conhecimento desses dotes o professorpoderá corrigir as respectivas falhas: o professornão é senão alguém que faz por incrementar o quehá de bom e remediar o que há de mau em seuspupilos. Um bom cantor leva os circunstantes aseguirem- lhe o canto, um bom educador leva oscircunstantes a seguirem-lhe o ideal: sua palavra éconcisa, mas expressiva, ocasional, mas rica desentido, e ele tem ainda a habilidade de esboçarengenhosos exemplos que o façam melhorcompreendido pelos demais. Assim, pode-se dizerum bom educador aquele que faz com que outroslhe sigam o ideal.

     A educação chinesa é hoje reconhecida como uma das melhores domundo. Ela consegue a façanha, no Brasil, de reunir positivamenteas opiniões de grupos divergentes2, e tem alcançado os melhoresresultados em testes internacionais promovidos para aferir a

    qualidade da educação ao redor do mundo.

    Não é exagero dizer que o fundamento da educação chinesa émilenar. Ela está calcada na disciplina, na dedicação e no empenhoárduo. Os chineses da antiguidade tinham dois desafios pela frente,com os quais teriam que lidar pelo resto de suas vidas: cuidar deuma terra difícil para se alimentarem, e [quando podiam] aprenderuma escrita ideográfica que tinha que ser praticada para sempre,exigindo um enorme esforço de memorização. Não que a vida dos

    chineses fosse simplesmente mais complicada ou mais fácil do queem outras partes do mundo: mas desde cedo eles aprenderam a valorizar o trabalho e o estudo, concomitantemente. Por essa razão,o trabalho do professor –  que conjuga ambas as necessidades –  é

     valorizado e destacado nessa sociedade. Somente em épocas difíceisna História Chinesa [como foi a Revolução Cultural de 1966], osprofessores foram desrespeitados e perseguidos. Na época, o regimepolítico Maoísta apostava que para criar uma nova cultura, era

    2

     http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacional-que-fez-da-china-uma-potencia/ e http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4486 

    http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacional-que-fez-da-china-uma-potencia/http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacional-que-fez-da-china-uma-potencia/http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacional-que-fez-da-china-uma-potencia/http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacional-que-fez-da-china-uma-potencia/http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4486http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4486http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4486http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4486http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacional-que-fez-da-china-uma-potencia/http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacional-que-fez-da-china-uma-potencia/

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    necessário eliminar os seus tradicionais transmissores [osprofessores]. O resultado foi o que se viu: fome, pestes ecalamidades que pareciam não ter fim. A dignidade da docência foirecuperada, nos dias de hoje, a níveis que desconhecemos em nossopaís. Para se ter uma ideia da valorização do estudo na China, écomum que os pais ofereceram dinheiro aos professores para queeles cobrem mais de seus filhos na escola. Sim, é isso mesmo: umaespécie de suborno passivo não para facilitar, mas para exigirempenho!3 

    Os chineses sabem que, sem esforço, não vamos a lugar nenhum.Era o que Confúcio já sabia ao resgatar esse fragmento que vimos hápouco. No século 6 AEC, o sábio mestre chinês estava preocupadoem salvar a sua civilização de uma tremenda crise social e políticapelo qual ela passava. Para ele, a solução seria recuperar o sistemaeducacional chinês, estimulando o pensamento e a consciênciacrítica. No livro  Liji   [Registros Culturais], Confúcio apresenta umcapítulo inteiro dedicado à questão da Educação na China Antiga,propondo detalhes metodológicos e estruturais. Ali, já está presente

    a concepção do esforço e do aprendizado intensivo. Contudo,Confúcio sabia de outra coisa importante, que nos apresenta nessetrecho: apenas o estudo intenso e cansativo não torna ninguémmelhor. É preciso reconhecer as aptidões e tendências dos alunos. Épreciso fazer com que o caminho do estudo seja uma via defelicidade e auto-realização do ser humano. Sem isso, ela se tornaapenas um preparador profissional. Confúcio defendia que aeducação deveria proporcionar uma identificação libertadora: seusalunos eram estimulados a aprender artes diversas, de modo a se

    realizarem naquelas com as quais encontrassem maior afinidade.Por isso o mestre ideal dá o exemplo: ele conduz, não arrasta; elechama, e não ordena; ele vivencia o que faz, e não faz apenas pordinheiro. A docência é a medicina preventiva da alma, cuidando dasaúde plena do indivíduo por meio de sua preparação libertadora econsciente. Como dizia o próprio Confúcio: ‘encontre um trabalhoque você gosta, e nunca precisará trabalhar’. Por essa razão,

    3 As implicações dessa prática podem ser vistas aqui:

    http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,professor-chines-ganha-mais-que-uma-maca,1557888 

    http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,professor-chines-ganha-mais-que-uma-maca,1557888http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,professor-chines-ganha-mais-que-uma-maca,1557888http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,professor-chines-ganha-mais-que-uma-maca,1557888http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,professor-chines-ganha-mais-que-uma-maca,1557888http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,professor-chines-ganha-mais-que-uma-maca,1557888

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    trabalhos como o recente li vro de Amy Chua sobre a ‘Mãe Tigre’, quereprime os filhos a exaustão em busca de resultados, é umaexcrescência, uma degradação do espírito tradicional de educaçãoconfucionista [ou mesmo, chinesa]. Os chineses sabiam – e sabem – que sem disciplina e dedicação, a educação não frutifica; mas estão acolher o resultado de realizarem suas aspirações pessoais, trazendoao mundo artistas, músicos, intelectuais, cientistas; e todos elesprestam o seu tributo ao professor, esse pilar inexorável nasobrevivência da humanidade.

    Nasrudin

    Nasrudin estava sendo esperado em uma cidade.Praticamente toda a população estava reunida napraça para ver o Mullá falar.Nasrudin olhou para aquelas pessoas e perguntou:— Vocês sabem sobre o que vou falar hoje?Todos responderam ao mesmo tempo:— Não!

    — Se vocês não sabem o que eu vim falar, eu meretiro — e foi embora.Tempos depois a população conseguiu queNasrudin voltasse à cidade para falar.Mas combinaram que se ele perguntassenovamente se sabiam o que ele ia falar, elesdiriam que sim.Quando Nasrudin chegou, ele lhes perguntounovamente:

    — Vocês sabem sobre o que vou falar hoje?— Sim!Nasrudin disse então:— Se vocês já sabem, eu não preciso falar nada! — e se retirou.Conseguiram então que ele voltasse lá mais uma

     vez para falar. Dessa vez combinaram que metadediria que sim, e metade que não.Nasrudin então veio, e perguntou mais uma vez:— Vocês sabem sobre o que vou falar hoje?Metade gritou: Sim! E a outra metade: Não!

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    Nasrudin respondeu:—  Muito bem. Então a metade que sabe ensinapara a metade que não sabe — e se retirou.

    Nasrudin foi um sábio sufi do século 13 EC, que passou sua vida noque hoje é a Turquia. Seus ensinamentos destacam-se por uma‘sabedoria oculta’: Nasrudin sempre se faz de idiota ou bobo em suashistórias, que contém um fundo moral e filosófico a ser desvendado.O objetivo era estimular a reflexão daquele que a lê, em busca de umsentido mais profundo. Obviamente, aqueles que só leemsuperficialmente as histórias de Nasrudin pensam tratar-se depiadas. O Sufismo, porém, é um exigente movimento filosófico-religioso dentro do Islamismo, cujo acesso e entendimento exigem

     bastante estudo por parte dos seus praticantes. A atribuição deNasrudin como um mestre sufi é, portanto, um título que implicaseriedade e espiritualidade desenvolvidas.

    Demos um longo salto histórico até aqui, partindo dos indianos echineses; do mesmo modo, não podemos afirmar que Nasrudin

    representa a todo o Islã. Contudo, o resgate do fragmento deNasrudin, presente em nossa conferência, tem um objetivo claro: a valorização da autonomia no aprendizado. A postura aparentementeinsana e preguiçosa do sábio sufi tinha um propósito: o quesabemos, de fato? O que não sabemos? E o que sabemos quepodemos ensinar? E o que não sabemos, que podemos aprender comos outros que estão próximos de nós?

    Obviamente, não estamos a banalizar a questão do aprendizado. É

    muito comum hoje, principalmente no Brasil, a desvalorização dodocente. As pessoas esquecem que passaram por uma escola e pordiversos professores. Agem como se tivessem nascido comhabilidade de ler, escrever, fazer contas. Quando erram em qualquercoisa, culpam seus mestres, e não buscam em si mesmo a razão deseus erros. Entendem que desrespeitar seus professores é quase umrito de passagem, da adolescência desgovernada para uma fase cujadenominação está longe de ser adequadamente classificada como‘adulta’. Assim, quando se atinge o ápice do conflito dentro da escolae na sociedade, as soluções são extremas: abandonar tudo, e fazer

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    um ensino descompromissado e indiferente, ou, impor um ensinorígido, disciplinador e autoritário.

    Nasrudin nos chama a atenção para a responsabilidade individual naconstrução do conhecimento. Quando assumimos, para nósmesmos, a tarefa de educar-nos, encontramos naturalmente adisciplina e o esforço necessário para aprendermos. Artistas,músicos, atletas, cientistas, intelectuais –  todos aqueles que foramou são bem sucedidos sabem que, para alcançarem uma posição dedestaque [ou simplesmente, encontrarem a satisfação pessoal], éindispensável o estudo curioso e prazeroso, para além do trivial eexigido na escola. Nesse momento é que encontramos a autonomiado aprendizado, libertadora e consciente, que nos torna seresresponsáveis, éticos e plenos. Se achamos isso impossível, é queestamos tão viciados em transferir a culpa de nosso problemas paraos outros, que não acreditamos ser possível educar as crianças sem

     violentá-las ou comprá-las [métodos que, também sabemos, nãofuncionam]. Algumas experiências, no entanto, nos mostram ocontrário. No século 19, Joseph Jacotot, colocado diante da difícil

    situação de ter que lecionar fora de seu país, em um idioma que lheera estranho, conduziu uma nova experiência pedagógica –a panecástica – em que os indivíduos atuavam de forma autônoma noaprendizado, obtendo um sucesso significativo. [veja o magníficotexto de Jacques Ranciére, O Mestre Ignorante. Autêntica, 2007].Mais recentemente, a Escola da Ponte, em Portugal, organizou-se deforma revolucionária: não dispõem de turmas, propõe que os alunosse auto-organizem, se regulem, troquem experiências econhecimentos, e seu regime de estudo é feito por orientação,

    quebrando a rigidez do sistema de disciplinas.4

     Seus índices de aprovação são excelentes dentro do país, e a escolasofre muito menos problemas de disciplina do que outras. Por fim, aexperiência da Finlândia – notável no quadro mundial da educação–  se encaminha para uma integração dos saberes, estimulando o

    4  Veja aqui: http://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtml e também:

    http://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/ 

    http://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtmlhttp://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtmlhttp://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtmlhttp://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/http://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/http://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/http://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/http://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/http://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtmlhttp://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtml

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    empreendedorismo e o conhecimento holístico por parte dosalunos.5 

    O que Nasrudin sabiamente nos revelara, pois, é que podemosrealmente ensinar uns aos outros; não podemos dispensar aorientação dos educadores, cuja experiência e o conhecimento nosconduzem no caminho da auto-descoberta. Contudo, os alunosprecisam ser saudavelmente estimulados a buscar conhecimento,sob o risco de tornarem-se eternamente dependentes, alienados edesprovidos de uma consciência autônoma.

    Conclusão

    Esse breve passeio por três opiniões tão antigas, quanto distintas,nos conduzem a uma unidade crucial na história do ensino: énecessário, de alguma forma, priorizar o sentido de educar-se.Nessas três experiências duráveis e bem sucedidas, o fator comum éa questão ética –  quer seja dita espiritual, ou simplesmenterealizante para o indivíduo. Os milênios de história da aprendizagem

    entre os ‘orientais’ nos mostram que, sem a ênfase positiva no serhumano, nenhuma civilização pode durar e alcançar sucesso. Aeducação mercantilizada mostra que seus aparentes sucessos têmefeitos curtos e limitados, e os danos posteriores se manifestamclaramente na escalada de violência, na dependência externa e no

     vazio existencial que se cristaliza no consumismo e nodesregramento. Hannah Arendt percebera isso na educação norteamericana, ícone das práticas mercadológicas de educação [noensaio ‘Crise na Educação’  in  Entre o passado e o futuro.

    Perspectiva, 2005]. Reportagens mais atuais mostram que osEstados Unidos está sofrendo as terríveis consequências do‘pragmatismo’ na educação básica; e enquanto isso, tentamos adotarmodelos similares [já testados, e fracassados] no Brasil...6 

    5  Ver: http://rescola.com.br/finlandia-sera-o-primeiro-pais-do-mundo-a-abolir-a-divisao-do-conteudo-escolar-em-materias/ 6  Ver:http://blogs.edweek.org/edweek/top_performers/2015/04/why_have_american_edu

    cation_standards_collapsed.html?intc=mvs e também: http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=2553 

    http://rescola.com.br/finlandia-sera-o-primeiro-pais-do-mundo-a-abolir-a-divisao-do-conteudo-escolar-em-materias/http://rescola.com.br/finlandia-sera-o-primeiro-pais-do-mundo-a-abolir-a-divisao-do-conteudo-escolar-em-materias/http://rescola.com.br/finlandia-sera-o-primeiro-pais-do-mundo-a-abolir-a-divisao-do-conteudo-escolar-em-materias/http://blogs.edweek.org/edweek/top_performers/2015/04/why_have_american_education_standards_collapsed.html?intc=mvshttp://blogs.edweek.org/edweek/top_performers/2015/04/why_have_american_education_standards_collapsed.html?intc=mvshttp://blogs.edweek.org/edweek/top_performers/2015/04/why_have_american_education_standards_collapsed.html?intc=mvshttp://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=2553http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=2553http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=2553http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=2553http://blogs.edweek.org/edweek/top_performers/2015/04/why_have_american_education_standards_collapsed.html?intc=mvshttp://blogs.edweek.org/edweek/top_performers/2015/04/why_have_american_education_standards_collapsed.html?intc=mvshttp://rescola.com.br/finlandia-sera-o-primeiro-pais-do-mundo-a-abolir-a-divisao-do-conteudo-escolar-em-materias/http://rescola.com.br/finlandia-sera-o-primeiro-pais-do-mundo-a-abolir-a-divisao-do-conteudo-escolar-em-materias/

  • 8/18/2019 A Arte de Ensinar Dos Orientais

    12/12

     PARA UM NOVO AMANHÃ: Visões em Aprendizagem Histórica. Edições Sobre Ontens. Rio deJaneiro/União da Vitória, 2016, p. 26-36

    Ora, se gostamos tanto de pensar a educação a partir de teoriasestrangeiras...talvez valha a pena, então, dar uma olhada nas bemsucedidas experiências ‘orientais’. Plenas de sabedoria, e aprovadasno mais exigente teste da história – o tempo – elas nos mostram queapostar na Humanidade ainda é, entre todas, a melhor escolha.

    Para ler

    Os Upanishads: http://estudantedavedanta.net/Os-Upanishads-Traduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdf  

    O texto sobre Educação do Liji: http://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.html 

    Sobre Nasrudin: http://www.nasrudin.com.br/ 

    E também:

     Annping Chin Autêntico Confúcio São Paulo: JSN, 2014. André Bueno. EducArte – a educação chinesa numa visãoconfucionista.2011 Disponível em:https://www.academia.edu/1439632/EducArte_-

     _a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionista Contos de Ensinamento do Mestre Sufi Nasrudin. São Paulo:Dervish, 2001.

     Histórias da Tradição Sufi . São Paulo: Dervish, 1993.

    Emile Gathier O pensamento Hindu. Rio de Janeiro: Agir, 1996.Heinrich Zimmer Filosofias da Índia. São Paulo: Palas, 1997.

    http://estudantedavedanta.net/Os-Upanishads-Traduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdfhttp://estudantedavedanta.net/Os-Upanishads-Traduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdfhttp://estudantedavedanta.net/Os-Upanishads-Traduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdfhttp://estudantedavedanta.net/Os-Upanishads-Traduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdfhttp://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://www.nasrudin.com.br/http://www.nasrudin.com.br/http://www.nasrudin.com.br/https://www.academia.edu/1439632/EducArte_-_a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionistahttps://www.academia.edu/1439632/EducArte_-_a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionistahttps://www.academia.edu/1439632/EducArte_-_a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionistahttps://www.academia.edu/1439632/EducArte_-_a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionistahttps://www.academia.edu/1439632/EducArte_-_a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionistahttps://www.academia.edu/1439632/EducArte_-_a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionistahttps://www.academia.edu/1439632/EducArte_-_a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confucionistahttp://www.nasrudin.com.br/http://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://chines-classico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.htmlhttp://estudantedavedanta.net/Os-Upanishads-Traduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdfhttp://estudantedavedanta.net/Os-Upanishads-Traduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdf