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A Arte Indígena sob o olhar da identidade e da diferença no livro didático “Arte em Interação” Mariana Schnorr Thomas 1 Universidade Luterana do Brasil O livro didático de Arte Os livros didáticos, artefatos que embora exista uma ampla tradição de produção, a distribuição, com recursos públicos, para o ensino de Arte é algo recente. Em 2015, o Programa Nacional do Livro Didático PNLD, lançou pela primeira vez um Edital 2 voltado para a seleção de livros didáticos de Arte para o Ensino Médio. O processo de avaliação resultou na seleção de duas obras: Por toda Parte e Arte em Interação. Ambos foram selecionados para distribuição gratuita nas escolas públicas e após enviados para professores e estudantes, com recursos do FNDE. Algumas das obrigações que os livros deveriam atender é a abordagem das culturas indígenas, afro-brasileiras e africanas que vêm através de normativas, ou seja, formas de regulação que determinam que as escolas em disciplinas específicas, tratem destes assuntos como modos de garantir a valorização destas culturas em nosso território. A partir da leitura íntegra dos dois livros didáticos, percebi que apenas um deles apresenta um capítulo específico para abordagem destas culturas e artes dos povos indígenas, afro-brasileiros e africanos. É o capítulo dois do livro Arte em Interação, intitulado “Identidade e Diversidade”. Com isso, optei por analisar este capítulo no livro com o objetivo de observar e refletir quais textos e imagens são utilizadas para nomear e caracterizar a arte e a cultura indígena brasileiras 3 . Voltando aos livros didáticos, muitos dos já existentes, que vêm sendo analisados por pesquisadores dos campos de História, Artes, Educação, por exemplo, “privilegiam abordagens genéricas, alicerçadas em versões oficiais dos acontecimentos 1 Mestranda em Estudos Culturais em Educação pela Universidade Luterana do Brasil. Professora de Arte do Colégio ULBRA São Lucas (Sapucaia do Sul-RS). E-mail: [email protected]. 2 Edital 01/2013 CGPLI, Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2015. 3 Dada a extensão do artigo, não foi possível abordar a arte e a cultura afro-brasileiras e africanas.

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A Arte Indígena sob o olhar da identidade e da diferença no livro

didático “Arte em Interação”

Mariana Schnorr Thomas1

Universidade Luterana do Brasil

O livro didático de Arte

Os livros didáticos, artefatos que embora exista uma ampla tradição de

produção, a distribuição, com recursos públicos, para o ensino de Arte é algo recente.

Em 2015, o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, lançou pela primeira vez

um Edital2 voltado para a seleção de livros didáticos de Arte para o Ensino Médio. O

processo de avaliação resultou na seleção de duas obras: Por toda Parte e Arte em

Interação. Ambos foram selecionados para distribuição gratuita nas escolas públicas e

após enviados para professores e estudantes, com recursos do FNDE.

Algumas das obrigações que os livros deveriam atender é a abordagem das

culturas indígenas, afro-brasileiras e africanas que vêm através de normativas, ou seja,

formas de regulação que determinam que as escolas em disciplinas específicas, tratem

destes assuntos como modos de garantir a valorização destas culturas em nosso

território.

A partir da leitura íntegra dos dois livros didáticos, percebi que apenas um deles

apresenta um capítulo específico para abordagem destas culturas e artes dos povos

indígenas, afro-brasileiros e africanos. É o capítulo dois do livro Arte em Interação,

intitulado “Identidade e Diversidade”. Com isso, optei por analisar este capítulo no

livro com o objetivo de observar e refletir quais textos e imagens são utilizadas para

nomear e caracterizar a arte e a cultura indígena brasileiras3.

Voltando aos livros didáticos, muitos dos já existentes, que vêm sendo

analisados por pesquisadores dos campos de História, Artes, Educação, por exemplo,

“privilegiam abordagens genéricas, alicerçadas em versões oficiais dos acontecimentos

1 Mestranda em Estudos Culturais em Educação pela Universidade Luterana do Brasil. Professora de Arte

do Colégio ULBRA São Lucas (Sapucaia do Sul-RS). E-mail: [email protected].

2 Edital 01/2013 – CGPLI, Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras

didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2015. 3 Dada a extensão do artigo, não foi possível abordar a arte e a cultura afro-brasileiras e africanas.

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históricos, que legitimam processos coloniais e genocídios, nomeando-os como atos de

bravura, coragem, ousadia do conquistador” (BONIN, 2010, p. 80).

Nesse sentido, Bonin (2009, p. 100) afirma que “a narrativa genérica de “índios

nus” vivendo na floresta, habitando ocas, adorando o sol e a lua, marca ainda muitos

discursos cotidianos, midiáticos e didáticos que constitui pano de fundo para se pensar o

lugar dos índios”. Isto se dá, segundo a autora, quando a presença dos índios em

espaços urbanos é motivo de estranhamento para as demais pessoas. Contudo, há uma

pluralidade cultural muito mais abrangente do que costumamos pensar.

Problematizando a arte indígena na educação

Embora tenham sido amplamente contestados os padrões universais que

definiriam o que é arte, cabe lembrar que a própria emergência de um campo

disciplinar, o da “História da Arte”, grafada assim, no singular e em maiúsculas,

prenuncia uma concepção unificada, a partir da qual algumas manifestações artísticas

figurariam como representantes legítimas do melhor que se produziu, no mundo, sendo

estas alçadas ao lugar de arte autêntica. As manifestações artísticas selecionadas para

integrar “uma” história da arte – ordenadas sob um viés eurocêntrico – configuram uma

versão dessa história que foi largamente aceita e reiterada.

Conforme dito anteriormente, a arte indígena entra como obrigatória no

currículo escolar através da Lei nº 11.645/2008 determinando que: “nos

estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-

se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” (BRASIL, 2008).

Além disso, estes conteúdos deverão ser ministrados em todo currículo escolar

principalmente nas disciplinas de Arte, Literatura e História Brasileiras.

Após a promulgação desta lei, em 2011, o Ministério da Educação – através da

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – reeditou o

Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação

para as Relações Étnico-raciais, objetivando que os sistemas e instituições de ensino

cumpram o estabelecido na lei 11.645/08.

Sendo assim, além da comunidade escolar, os livros didáticos também deveriam

contar com conteúdos que contemplassem a cultura indígena. Contudo, a forma como

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são inseridos estes conteúdos normalmente dá-se sob um viés eurocêntrico. Sobre isso,

a análise da arte de determinados povos ocorre pelo conceito geral de arte oriundo da

cultura ocidental, nascida da experiência europeia, relacionando-se com a contemplação

estética. Isto se distingue da função da arte produzida pelos povos indígenas e africanos,

que a produzem para outros fins como rituais cerimonialísticos. Por isso, Nunez (2011)

orienta que deve-se ter o cuidado com reducionismos e a falta de problematizações que

há nas análises destes livros, que acabam por esconder uma forma de colonização.

O mesmo autor também afirma que a “arte indígena liga-se a uma imensa

variedade de estilos e manifestações, onde não há uma arte como atividade diferenciada

da produção de objetos úteis” (2011, p. 146). Para Nunez, a nossa definição de arte não

é necessária para os povos indígenas, ou seja, o que eles produzem, não se relaciona a

fins contemplativos e estéticos, conforme já referido.

O próprio termo indígena já categoriza vários povos a partir do processo de

colonização, “colocando os diferentes como sendo iguais entre si, ou seja, quem não era

branco, europeu, passou a ser indígena independente de seu território, dos costumes e

modo de vida”, segundo Barbero (2010, p. 304).

Examinando o capítulo 2 do livro didático, o primeiro aspecto que se sobressai é

a abordagem da arte indígena (e também da arte africana e afro-brasileira) como uma

“arte outra”, uma arte que integraria a diversidade cultural e que precisaria, então, ser

valorizada. E o apelo à diversidade se expressa de forma direta ou indireta, como

pretendo mostrar neste artigo, que se dá principalmente, por meio do discurso

multiculturalista.

O discurso multiculturalista e os conceitos de identidade e diferença e

representação

A perspectiva multiculturalista pode ser vista como parte de uma engrenagem a

partir da qual se governa ou administra problemas gerados em sociedades

multiculturais. O multiculturalismo apoia as ideias da diversidade e da pluralidade

humana, através do apelo à tolerância e ao respeito. Entretanto, conforme Hall 2008,

este termo naturaliza as diferenças e dificulta as lutas específicas de grupos

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posicionados na diferença, pois desconsidera as relações de poder. Desconsidera, ainda,

a tensão existente entre o reconhecimento da diferença e a realização da igualdade. O

“outro” cultural seria, assim, um problema a ser administrado, uma vez que sua

presença coloca em xeque a nossa própria identidade.

Os Estudos Culturais tem problematizado as perspectivas multiculturalistas, a

partir das quais se celebra uma suposta diversidade constituinte de nossa “natureza”

humana e que formulam a questão sob o apelo à tolerância, e coloca a perspectiva da

diferença – conceito que leva a pensar nos processos de produção, classificação,

hierarquização das culturas, e nas relações de poder que definem quem seriam os

diferentes.

No espaço acadêmico são muitas as discussões sobre o multiculturalismo e estas

têm mobilizado pesquisadores filiados a diferentes perspectivas teóricas. Na obra

Ciladas da diferença, Pierucci (1999, p. 7), por exemplo, indaga: “Somos todos iguais

ou somos todos diferentes? Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes?” Em

seguida, ele explica que a resposta a estas indagações pendia, até algum tempo, para a

noção de igualdade (como expressão do humano, da nação, por exemplo). Porém, a

partir dos anos 1980 (em diversas partes do mundo ocidental) “passamos a nos ver

envoltos numa atmosfera cultural e ideológica inteiramente nova, na qual parece

generalizar-se, em ritmo acelerado e perturbador, a consciência de que nós, os humanos,

somos diferentes de fato” (ibid.) Consolida-se o chamado “direito à diferença”, o que

implica tanto o direito de ser diferente, quanto o de ter acesso aos recursos culturais,

econômicos e educacionais.

Sobre esta questão da diferença, está um dos principais conceitos defendidos

pelos Estudos Culturais, o da identidade e da diferença. Conforme já dito, este conceito

não reconhece o discurso multiculturalista, pois o mesmo classifica todos como iguais,

não reconhecendo a diferença. Para os Estudos Culturais, identidade e diferença são

produzidas na linguagem através de uma construção de significados e de nomeações.

Porém, a linguagem também vacila, onde nem sempre há a presença do significado e do

referente, demarcando as relações de poder.

A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre "nós" e "eles".

Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao

mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder. "Nós" e "eles" não

são, neste caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes "nós" e "eles"

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não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de

posições-de-sujeito fortemente marca das por relações de poder.(SILVA,

2000 p. 2).

Além disso, há uma tendência de uma força homogeinizadora da identidade

normal que desta forma se sobrepõe as diferenças, deixando-as em situação inferior.

Neste sentido, “afirmar a identidade significa demarcar fronteiras como “nós” e “eles”,

estabelecendo posições de sujeitos marcados pelas relações de poder” (SILVA, 2000, p.

3).

Logo, a identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas

quais a sociedade produz e utiliza classificações, hierarquizando e atribuindo valores.

Um exemplo disso são as oposições binárias como o positivo e o negativo em que um

deles sempre é o privilegiado. Outro aspecto a se considerar com relação à este

conceito, é com relação à representação, pois através dela que a identidade e a diferença

existem.

Sendo representação um conceito central na maioria das pesquisas que articulam

Estudos Culturais e temática indígena, tais pesquisas permitem entender que há, via de

regra, uma reiteração de certas marcas culturais e de certos estereótipos quando os

povos indígenas são narrados nos mais variados artefatos e produções.

O conceito da representação é, segundo Hall (1997b), a relação entre as coisas,

os conceitos e os signos através da linguagem, e nesta relação é que se dá a produção de

significados. “As coisas”, neste contexto são tudo aquilo que se expressa com uso da

linguagem, não são o real em si mesmo. Reforço que, para este autor, “o significado

surge, não das coisas em si – a “realidade” – mas a partir dos jogos da linguagem e dos

sistemas de classificação nos quais as coisas são inseridas. O que consideramos fatos

naturais são, portanto, também fenômenos discursivos” (HALL, 1997a, p 10).

De forma mais específica, o autor explica que

representação é a produção do sentido dos conceitos da nossa mente

pela linguagem. Ela é o elo entre conceitos e linguagem que nos

permite referir ao mundo ‘real’ dos objetos, pessoas ou eventos, assim

como ao mundo imaginário de objetos, pessoas e eventos

fictícios.(HALL, 1997b, p. 3).

O campo dos Estudos Culturais analisa como uma representação é construída a

partir de contextos específicos, de situações vividas, de narrativas, de artefatos culturais,

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por exemplo. Somos nós que damos significados a partir do uso que fazemos das coisas,

e tais significados nunca são estáveis, nunca são definitivos. Conforme o referido autor,

produzimos e negociamos significados dentro da cultura, usando a linguagem, os signos

e as imagens (Hall, 1997b). Em algumas circunstâncias, os sentidos que construímos

dentro de sistemas de representação vão sendo reiterados, são constantemente ativados,

e por isso nos parecem “naturais” pois são rapidamente reconhecidos. Mas a esta

sensação de serem naturais alguns significados, se produz em relações de poder e por

investimentos.

Analisando o capítulo identidade e diversidade

Ao ler este segundo capítulo do livro Arte em Interação, procuro analisar

algumas estratégias representacionais presentes no mesmo, que são sustentadas em

abordagens multiculturalistas. Neste momento, coloco em discussão duas estratégias

representacionais presentes nas obras: a primeira diz respeito a uma celebração da

diversidade e a segunda refere-se a uma visão genérica do termo indígena.

Uma forma de valorização da diversidade indígena é sobre um dos tipos de arte

desta cultura mais recorrentes no capítulo. Estas são as cerâmicas das bonecas Karajá,

produção do povo Karajá4. Há imagens e textos verbais desta arte em quatro páginas do

capítulo, como mostra a imagem a seguir

Figura 1: Bonecas que expressam a identidade do grupo Karajá

4Grupo indígena que habita a região dos rios Araguaia e Javaés (GO, MT, TO e PA). Sua língua é

a língua carajá (denominada, pelos carajás, como inyrybe, que significa "a fala dos iny"),. Sua população

atual é de 2 927 pessoas, distribuídas em 21 aldeias.

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FONTE: (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 62)

Estas bonecas aparecem no livro como bens culturais imateriais reconhecidos

pelo IPHAN5. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural

Imaterial e com auxílio da UNESCO, conforme o site do IPHAN, no Brasil, em 2006,

foi ratificado que bens imateriais são compostos por práticas, representações,

expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e

lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns

casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu Patrimônio Cultural.

Até então, apenas bens materiais eram reconhecidos como patrimônios culturais

e através deste reconhecimento, há a representação e a valorização deste objeto que é

produzido há centenas de anos, numa tradição que persiste até os dias de hoje e que

serve como fonte de renda para as mulheres deste povo, segundo o livro didático.

Sobre a produção destas bonecas, o livro afirma que “muitos grupos e

comunidades, em especial as que vivem em maior proximidade com a natureza, fazem

sua arte com argila, que é retirada diretamente do meio em que vivem” (BOZZANO;

FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 57). Afirmações como esta reforçam e naturalizam a

representação do índio como sujeito que vive junto à natureza. Valendo-me de

argumentos de Hall (1997), penso que reduzir as culturas indígenas à natureza é “uma

estratégia representacional destinada a fixar a ‘diferença’ e assim garanti-la para

sempre”. Esta é, aliás, uma estratégia discutida por diversos pesquisadores do campo

dos Estudos Culturais que abordam a temática indígena, conforme, Bonin, Ripoll e

Aguiar (2015). No conjunto de 15 teses e dissertações que os autores selecionaram para

análise, eles identificaram que em quase todos há uma preocupação em problematizar o

par cultura/natureza, e, como efeito, o vínculo estabelecido entre índio e natureza.

Assim, a articulação produzida entre índio e natureza funcionaria

como uma espécie de chave de leitura, sendo os povos indígenas

narrados como habitantes naturais da floresta, lugar geográfico e

social que produz também um conjunto de atributos, colados ao corpo

e apresentados como sendo próprios da “natureza indígena”.

Habitando o mundo natural, os povos indígenas teriam características

5 Instituto do Patrimônio Histórico e Estatístico Nacional, responsável pela preservação do acervo

patrimonial material e imaterial do país.

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como primitivismo, espontaneidade e ingenuidade (BONIN; RIPOLL;

AGUIAR, 2015, p. 66).

Por outro lado, no mesmo capítulo do livro, se insere um Box intitulado

“Conexão” e nele se apresenta a arte das bonequeiras do Vale do Jequitinhonha, região

norte de Minas Gerais. O texto explica que a seca expulsou muitos homens e, então, as

mulheres passaram a fabricar bonecas de cerâmica para sustentar as famílias. Isto se

percebe neste trecho: “Elas são, em sua maioria, bonequeiras e retiram o barro,

abundante na região, direto da natureza (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p.

64).

O recorte anterior me faz pensar que também neste caso se estabelece uma

vinculação entre as ceramistas e a natureza (na atividade que lhes assegura a

subsistência). Assim, pode-se dizer que a ideia de vínculo com a natureza não se produz

apenas quando se trata dos povos indígenas.

Voltando a ideia do discurso multiculturalista, o mesmo promove o sentido de

valorização da diversidade, através da busca da conquista da igualdade. Sendo assim, é

possível perceber a ideia deste discurso neste outro trecho do livro:

No Brasil, há uma mistura de várias culturas com identidades diferentes.

Com o processo de colonização, buscou-se impor a arte e a cultura de

origem europeia. Isso não impediu a manutenção de outras culturas

ancestrais, como a indígena e a africana, que estão enraizadas em nossa

formação cultural (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 58).

Neste recorte, apesar de os autores iniciarem destacando a imposição da cultura

e da arte europeia, reafirmam a ideia da mistura, noção que reativa a representação de

unidade, formada por partes que se somam e se mesclam formando “uma cultura”, o que

coloca as culturas dos outros povos como unidades menores, subjugadas a uma

totalidade maior. Hall (2003) afirma que a invenção dessa totalidade – correspondente a

uma identidade nacional – se dá por diferentes estratégias, e seria constituidora de uma

ideia de nação miscigenada.

O uso da noção de miscigenação parece ser comum em discursos

multiculturalistas que, desse modo, tornam visíveis as diferenças, mas de um modo que

mantém assimetrias e uma relação de subordinação. Neste contexto, as culturas

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indígenas (e africanas) que teriam originado a sociedade brasileira tal como a que

conhecemos são reconhecidas como “ancestrais”, caracterizando um sentido de passado.

Neste sentido, nas primeiras páginas do capítulo, há também um box chamado

América Pré-Colombiana que informa que a cerâmica já era utilizada, muito antes da

chegada dos portugueses, pelos povos indígenas e teria sido transmitida, de geração em

geração, “na mistura entre povos que ocuparam o Brasil” (BOZZANO; FRENDA;

GUSMÃO, 2013, p. 60). Naturaliza-se, assim, a representação do povo brasileiro

originado na “mistura” entre distintas etnias, por atributos culturais de diferentes

matrizes justapostas, algo que, conforme afirma Zilá Bernd (1992, p. 14), “circunscreve

a realidade a um único quadro de referências”. A construção de uma identidade

brasileira se dá, na literatura (e também na literatura didática) inicialmente por

mecanismos de exclusão (que a autora caracteriza como a ocultação ou invenção do

outro) e de transgressão (caracterizada por ações como o resgate dos discursos dos

excluídos).

As identidades, tanto quanto as diferenças, precisam ser narradas: “uma

coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através das histórias que ela narra a

si mesma sobre si mesma e, dessas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da

sua definição” (BERND, 1992, p. 17). Por isso, também, a ideia de diversidade ganha

expressão em muitos materiais que vemos circular nas escolas hoje, assim como em

manuais, em diretrizes curriculares, em pronunciamentos de especialistas de Educação,

em produções acadêmicas, entre outras.

Conforme destaquei no início desta seção, uma das estratégias de inserção da

arte e da cultura indígena no livro didático Arte em Interação diz respeito a contestação

e deslocamento da visão genérica de índio. Esta visão pode ser vista nos trechos a

seguir: “Mas apesar dessa forte presença, muitos brasileiros desconhecem essas

culturas, ou as veem somente de um jeito estereotipado” (BOZZANO; FRENDA;

GUSMÃO, 2013, p. 58), e ainda

[...] uma visão europeia, a visão dos colonizadores, de mundo e da

sociedade, fez-se dominante, o que faz com que, ainda hoje, haja um grande

desconhecimento dessas culturas ancestrais das quais somos herdeiros. As

culturas indígenas no Brasil, por mais que se encontrem dentro do território

em que vivemos, ainda são vistas por muitas pessoas com olhar

estereotipado e equivocado. De um modo geral, não se conhecem seus

modos de vida, visão de mundo, as semelhanças e diferenças entre seus

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povos. Há, inclusive, uma tendência de se entender os indígenas todos da

mesma maneira. Diz-se o “índio”, no singular, sem diferenciar as centenas

de povos indígenas que vivem no território brasileiro (Ibid, p. 59).

Na sequencia, o texto explica os contextos de uso dos termos “índio” e

“indígena”, relacionando-os com outros termos como “autóctone” e “nativo”. Várias

estratégias vão sendo utilizadas para pluralizar o sentido do termo “indígena”. Uma

delas é a inserção de dados estatísticos que permitem entender quantos são, quantas

etnias existem e quantas línguas são faladas. No box “Capsulas”, inserido na mesma

página, apresentam-se dados extraídos de sites de organizações não governamentais e

dados do IBGE sobre a presença indígena no país.

Uma outra estratégia é a inserção de exemplos relativos a determinados povos

indígenas. São exemplos contextualizados na cultura e arte de um povo indígena

específico. Por exemplo, entre as páginas 60 e 61 são inseridas fotografias do povo

indígena – os Karajá – em distintas situações cotidianas. Junto às imagens, são

colocadas questões para orientar o olhar:

O que caracteriza cada uma das imagens? Procure observar os lugares,

gestos e posturas [...] Que relações você vê entre elas? Quais elementos

possuem em comum? Que materiais você identifica? Quais seus usos e

relações entre as imagens? (ibidem, p. 61).

Figuras 2, 3 e 4: Cenas da cultura Karajá

FONTE: (BOZZANO; FRENDA; GUSMÃO, 2013, p. 62)

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Após este diálogo direto com o leitor, o texto prossegue explicando que as

imagens são do povo Karajá e que sua autodenominação é Iny, que significa “nós”,

sendo Karajá um nome adotado em língua portuguesa, originado do Tupi. O texto

explica que esse povo vive em seus territórios tradicionais, numa extensa faixa do Rio

Araguaia, na Ilha do Bananal e que os Karajá estão presentes nos estados de Tocantins,

Goiás e Mato Grosso. Há breves informações sobre os mitos deste povo e sua relação

com a arte. São destacados elementos artísticos que o leitor também pode observar nas

fotografias – as pinturas corporais, a arte plumária, por exemplo. Há também

informações sobre o processo de produção da cerâmica e das tintas utilizadas para

colorir estes objetos e para produzir pinturas corporais.

Desse modo, o texto expressa um sentido mais abrangente de arte, que estaria

presente em várias instâncias da vida indígena e discute, inclusive, padrões e abstração

em pinturas corporais de povos como os Karajá e os Munduruku6, do Alto Tapajós.

Segundo Silva e Vidal (1998), a cultura ocidental cria, muitas vezes, visões estanques

das sociedades indígenas, mas a arte para os índios é movimento, dinamismo,

representando uma experiência coletiva. Neste aspecto, o livro didático Arte em

interação parece partilhar o ponto de vista das antropólogas citadas acima. Neste

sentido, penso que as afirmações presentes no livro reforçam as ideias do discurso

multiculturalista que promove o reconhecimento da diferença e das lutas que promovem

este fortalecimento do pluralismo cultural.

Palavras finais

Em um artigo que analisa a diferença na literatura para crianças, Silveira, Bonin

e Ripoll (2010) afirmam que o tema das diferenças eclode e adquire visibilidade nos

dias atuais, em parte porque serve ao consumo (a diferença vende, tem apelo, faz

circular mercadorias), em parte porque vivemos atualmente um tempo de contestação

dos discursos unificadores sobre identidades e de valorização da diversidade. Para elas,

hoje são produzidos e circulam variados artefatos que colocam em destaque os grupos

6 Povo que habita a região do vale dos Tapajós nos estados da AM e PA, contando com uma população de

mais de 11.000 indivíduos.

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minoritários, com suas demandas específicas e suas diversificadas maneiras de pensar.

Desse modo, “os discursos multiculturais produzem, como tendência geral, uma

positivação das diferenças, tomadas como essenciais, autorreferenciais, com valor em si

mesmas (SILVEIRA; BONIN; RIPOLL, 2010, p. 101).

Apesar de as sociedades atuais serem constituídas por diferentes culturas, isso se

dá não porque naturalmente sejamos diferentes e sim porque há diferentes

posicionamentos e identificações que se constroem e nos quais se investe. Na

perspectiva dos Estudos Culturais existem múltiplas culturas. Não se trata apenas de

diferentes práticas culturais ligadas a distintas etnias, e sim de culturas marcadas por

diferentes pertencimentos – falamos, nos estudos produzidos neste campo, de culturas

surdas, culturas juvenis, culturas infantis, culturas laborais, entre outras.

Desta forma, minha análise mostrou, que há uma reiteração da noção de

diversidade, que colabora para a naturalização de certos atributos indígenas. Pude

também observar que são postas em operação estratégias que deslocam e contestam

representações comuns dos povos indígenas, dentre as quais destaquei a contestação da

noção genérica de índios.

Sendo assim, o discurso multiculturalista apesar de enaltecer a diversidade e de

promover um deslocamento no sentido genérico de índio, da mesma forma apresenta

limites ao não contestar as relações de poder. Portanto, os efeitos deste discurso são de

uma arte indígena que aparece de forma celebrativa e não conflitiva, ou seja, uma

política de tolerância. E, tolerar afirma uma atitude implicada com o poder (quem tem o

poder de tolerar, quem está na condição de ser tolerado?). A diversidade é naturalizada

e, assim, não é vista como algo a ser dissolvido num todo homogêneo, não devendo ser

integrada.

Deste modo, finalizo este artigo com uma citação de Silva apud Pardo

[...] Respeitar a diferença não pode significar "deixar que o outro seja como

eu sou" ou "deixar que o outro seja diferente de mim tal como eu sou

diferente (do outro)", mas deixar que o outro seja como eu não sou, deixar

que ele seja esse outro (1996, pg. 54).

Rerefências

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BARBERO, Estela Pereira Batista; STORI. Norberto. 2010. “Artes Indígenas ”-

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