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 1 REVISTA LESTE VERMELHO número 1 junho de 2015 L ST V RM LHO revista de estudos críticos asiáticos issn 2446-7278 número 1  junho de 2015 . EDITORIAL A ÁSIA É UM TIGRE DE PAPEL  andrea pizzaroli longobardi Esta revista trabalha para o fim de si mesma. É preciso trabalhar para que seu título e subtítulo sejam incapazes de descrever um campo de estudos. É preciso também que sua origem acadêmica trabalhe por uma outra forma de conhecimento e de pesquisa, para que estes estejam em qualquer parte e a pompa universitária seja obsoleta. . Os chamados Estudos Asiáticos hoje incluem muitos e diversos objetos de estudo, os quais foram agrupados sob esse título ao longo de uma história longa e conflituosa. A palavra “Ásia” já foi usada em vários contextos, indicando regiões e políticas diversas, a depender de quem a enunciava. Palavra de origem grega que inicialmente designava o Império Persa, “Ásia” continuou sendo usada pelo Império Romano e por outros reinos europeus para indicar outros povos localizados a seu leste. Mas a designação de uma área territorial delimitad a pelo nome “Ásia” só foi definida poucas décadas atrás, com a fundação da Divisão Estatística das Nações Unidas em 1947, ou seja, quando a concentração de capital ganhava novo impulso após o fim da Segunda Guerra, e novos dispositivos internacionais políticos e jurídicos estavam sendo forjados para regular uma nova fase do capitalismo. No mandarim e no japonês, por exemplo, a

A Ásia é um tigre de papel

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editorial revista leste vermelho 1

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  • 1 REVISTA LESTE VERMELHO nmero 1, junho de 2015

    LESTE VERMELHO revista de estudos crticos asiticos

    issn 2446-7278

    nmero 1 junho de 2015

    .

    EDITORIAL

    A SIA UM TIGRE DE PAPEL andrea pizzaroli longobardi

    Esta revista trabalha para o fim de si mesma. preciso trabalhar para que seu ttulo e

    subttulo sejam incapazes de descrever um campo de estudos. preciso tambm que sua

    origem acadmica trabalhe por uma outra forma de conhecimento e de pesquisa, para que

    estes estejam em qualquer parte e a pompa universitria seja obsoleta.

    .

    Os chamados Estudos Asiticos hoje incluem muitos e diversos objetos de estudo, os quais

    foram agrupados sob esse ttulo ao longo de uma histria longa e conflituosa. A palavra

    sia j foi usada em vrios contextos, indicando regies e polticas diversas, a depender

    de quem a enunciava. Palavra de origem grega que inicialmente designava o Imprio Persa,

    sia continuou sendo usada pelo Imprio Romano e por outros reinos europeus para

    indicar outros povos localizados a seu leste.

    Mas a designao de uma rea territorial delimitada pelo nome sia s foi definida

    poucas dcadas atrs, com a fundao da Diviso Estatstica das Naes Unidas em 1947,

    ou seja, quando a concentrao de capital ganhava novo impulso aps o fim da Segunda

    Guerra, e novos dispositivos internacionais polticos e jurdicos estavam sendo forjados

    para regular uma nova fase do capitalismo. No mandarim e no japons, por exemplo, a

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    palavra sia se refere atualmente a uma regio econmica e territorial delimitada,

    enquanto a palavra Lado Leste (mais antiga) designa a regio a Leste da Europa.

    Todo mapa uma estratgia. No sculo XX, uma linguagem cartogrfica especfica foi

    formalizada e disseminada mundialmente atravs da tecnologia que padronizou escalas,

    perspectiva e ponto de vista e da informtica que padronizou as variantes do desenho.

    As linhas dos mapas atuais delimitam Estados e tornam possvel a estatstica, mas os vazios

    circunscritos por essas linhas poderiam falsamente dar a impresso de uma organizao

    global esttica, aplainada e disciplinada pronta para o trabalho sob o ritmo marcado pelos

    meridianos.

    A forma cartogrfica contempornea s possvel num contexto de financeirizao da

    economia, no qual a representao dos Estados lembra o organograma de uma empresa. Os

    chamados Tigres Asiticos, por exemplo, marcam uma disposio geogrfica internacional,

    na qual agem como polos estratgicos de administrao da produo e da circulao,

    baseadas no trabalho e na matria-prima comprados nos amplos territrios vizinhos (entre

    eles, alguns dos que integram o chamado BRICS).

    irnico que uma representao geogrfica mundial que se pretende desmistificada e

    moderna composta de linhas sbrias e espaos vazios seja acompanhada, atualmente, de

    um discurso com vocbulos como: tigres ou drages asiticos, milagre econmico, e

    outras referncias a mitos e bestas como lobos e lees. H um conjunto especfico de

    imagens e vocbulos mticos (e mistificadores) usado para descrever a dinmica da

    economia mundial dos ltimos quarenta anos.

    Claro que a utilizao de imagens de animais legendrios para representar determinados

    reinos ou Estados uma prtica muito anterior. Mas atualmente essa prtica tem

    caractersticas especficas: essas imagens esto hoje sobrepostas a uma concepo

    tecnolgica da administrao estatal ou da gerncia econmica esferas cada vez menos

    descritas como polticas, e cada vez mais caracterizadas como resultado de uma tcnica

    globalizada, depurada de seu contedo social.

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    A proporo mtica assim evocada como atributo da economia financeira, o que favorece

    uma separao, no mbito do discurso, entre poltica econmica e poltica pblica. Ora,

    lees, lobos ou tigres no dizem respeito qualidade de vida ou s polticas sociais

    em um local.

    Nesse contexto, em que as relaes econmicas nacionais e internacionais so

    compreendidas como estratgias gerenciais em funo da valorizao do valor, as imagens

    mticas ou fantsticas fazem referncia habilidade tcnica de administrao econmica. O

    uso corrente dessas imagens, pela mdia e mesmo em textos acadmicos, refora uma

    concepo despersonificada e despolitizada da economia a qual foi disseminada entre os

    anos 70 e 90, seguindo o fim da Revoluo Cultural chinesa, a derrubada do Muro de

    Berlim (eventos que pareciam indicar o fracasso da concepo poltica de economia) e as

    invases militares estadunidenses na regio do Golfo Prsico (as quais, entre outros

    exemplos, atestam a impossibilidade de separar essas duas instncias e, alm disso,

    demonstram um agravamento do carter destrutivo do capital).

    .

    Esta revista prope um espao de debate poltico e crtico sobre as histrias, economias e

    culturas dos pases e povos que integram a chamada sia. Entretanto, assim como outros

    peridicos de Estudos Asiticos contemporneos, como a Critical Asian Studies ou a

    Positions Asia Critique, consideramos que a prpria noo de sia deve ser

    problematizada nesses debates.

    No Brasil, por exemplo, essa rea de estudos ainda muito incipiente. Nos ltimos dez

    anos foram fundados alguns grupos de pesquisa de Estudos Asiticos em vrias

    universidades do pas. Contudo, ainda permanecem operantes alguns resqucios da viso

    ibrica seiscentista ou setecentista de sia. s vezes, ideias fantasiosas como a de lnguas

    impossveis de aprender, o exotismo ou os negcios da china se mesclam com nova

    mitologia financeira dos Tigres Asiticos e dos Milagres Econmicos. No caso das

    universidades, o resultado prtico de alguns desses dogmas, que muitas pesquisas

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    sobre Histria, Cincias Sociais, Arte ou Economia de pases asiticos foram abandonadas

    por falta de referncias tericas, de interlocuo e mesmo de cursos de idiomas.

    Mesmo assim, essa rea est crescendo no Brasil em grupos ligados principalmente a

    faculdades de Letras e de Economia. Mas ainda h obstculos e grandes lacunas. A maioria

    desses estudos foca ora a produo artstica cortes de sociedades pr-modernas ou

    imperiais, ora as transformaes econmicas contemporneas. Alguns textos tecem

    comentrios suntuosos sobre as sedas do imperador e as suas originalssimas porcelanas;

    outros textos discutem, de forma entretida, o quanto se poderia lucrar atualmente com

    investimentos quantificados, mas no qualificados, ou com a explorao da mo de obra

    barata e disciplinada na sia temas para gerentes.

    Mas tal panorama tende a se transformar. Algumas publicaes, como a China Left Review, a

    Modern China, a Asian Marxist Review, a Monthly Review, a New Left Review e mesmo a

    tradicional China Quartely, tm fomentado e realizado pesquisas e debates importantes

    nessa rea. Tais peridicos dividem suas pginas entre artigos de autores de diversos

    pases, tradues e registro de conferncias e debates. Muitos dos pesquisadores que

    passam por essas publicaes so tambm militantes, e os peridicos, por sua vez,

    fomentam debates que ocorrem em diversas partes do mundo.

    que atualmente os Estudos Asiticos no poderiam mais ser definidos como pesquisas

    sobre um outro distante. As transformaes da geopoltica e da economia mundial nos

    ltimos trinta anos geraram uma nova organizao de relaes sociais globais. Um exemplo

    claro dessa transformao a transferncia de inmeras etapas produtivas de tantas

    empresas para fbricas no territrio chins. Esse fenmeno interliga diversas regies e

    Estados de uma nova forma, do ponto de vista da administrao da produo e tambm do

    ponto de vista das polticas pblicas e da responsabilidade social. O problema da poluio

    na China, por exemplo, um dos resultados diretos desse processo nuvens de fumaa que

    encobrem o cu da maioria das cidades por todo o ano, nveis letais de metais txicos no ar

    que exigem a utilizao de mscaras especiais diariamente (o que, terrivelmente, vem

    acompanhado da fabricao de novos modelos de mscaras com cores, formas e

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    propriedades antirrugas). Seria esse problema, por exemplo, de responsabilidade s do

    governo chins?

    Mas se o problema do modelo de industrializao na China ainda nos parece distante, basta

    que tenhamos em considerao um dos aspectos decorrentes dele. Sabe-se que o Partido

    Comunista chins tem levado adiante estratgias de crescimento econmico que envolvem

    compra e gerenciamento de produes nos pases vizinhos e na prpria Amrica Latina.

    Tambm no Brasil, as imensas reas de monocultura de soja e a acelerao da extrao ferro

    e gs esto diretamente relacionadas a investimentos chineses. Dessa forma, os

    investimentos de capital tambm agravam a letal contaminao dos lenis freticos sob o

    chamado deserto verde, no centro do territrio brasileiro, e as precrias condies de

    trabalho de mineradores.

    Ou seja, no se trata de focar temas de estudo situados geograficamente por causa do

    exotismo que lhes possa ser atribudo, seja este composto por elementos arquitetnicos,

    lingusticos ou financeiros. Trata-se de focar um ngulo de um sistema global no qual

    estamos includos.

    A Leste Vermelho prope ser um espao de estudo que articule pesquisas feitas em

    universidades e grupos de estudo brasileiros com os debates internacionais correlatos.

    Dessa forma, esta revista pretende fomentar a participao de estudantes, pesquisadores e

    militantes brasileiros no debate acerca dos temas que integram os chamados Estudos

    Asiticos. Isso porque compreendemos que a abertura de mais um espao para essas

    discusses no Brasil poder contribuir com a criao de mais possibilidades de interlocuo

    e a disseminao de referncias tericas. Mas, alm disso, entendemos que as anlises do

    ponto de vista crtico ou materialista histrico so necessariamente determinadas pelas

    condies das quais se observa e analisa isso quer dizer que o ngulo do qual se posiciona

    para a anlise tambm determina o resultado de um estudo e, portanto, que o

    aprofundamento dos Estudos Asiticos no Brasil pode resultar em pesquisas originais e

    contributivas.

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    Esta primeira edio trata da Revoluo Cultural chinesa, alguns de seus precedentes e e de

    suas decorrncias. A escolha desse tema para a primeira edio foi feita porque a Revoluo

    Cultural representa, ainda, um desafio para os estudos modernos asiticos, tanto do ponto

    de vista do acesso a informaes que tornem possvel a narrao e anlise de seus eventos

    quanto do ponto de vista do entendimento e interpretao desse perodo e de seus

    desdobramentos histricos. O teor de irracionalidade e mesmo de insanidade

    atribudo Revoluo Cultural em diversos estudos em todo o mundo corrobora para uma

    despolitizao dos eventos ocorridos entre 1960 e 1976 na China. Mas essa barreira no se

    limita a criar um lapso meramente factual na historiografia (o qual , diga-se de passagem,

    forjado artificialmente, pois documentos e registros do perodo no faltam um rico

    exemplo analisado no texto de Tiago Camarinha Lopes sobre a obra de Bettelheim).

    Como trata Wang Hui em seu artigo Poltica despolitizada do Oriente ao Ocidente, a

    negao sistemtica de valor poltico Revoluo Cultural vem acompanhada de uma

    negao a quaisquer polticas radicais ocorridas no sculo XX na China. Como argumenta

    Alessandro Russo, no texto A cena conclusiva, isso resulta, dentro e fora da China, em

    uma barreira terica de interpretao desses eventos os quais j oferecem uma certa

    dificuldade de anlise devido s questes epistemolgicas que provocaram. O texto de

    Marcio Bilharinho Neves trata justamente da importncia dessas questes, aprofundadas e

    disseminadas durante a Revoluo Cultural e que influenciaram mundialmente

    movimentos sociais e polticos mundialmente Maoismo.

    Os textos de Gustavo Santilln e de Jos de Lima Soares tratam de dois aspectos

    problemticos da China contempornea que esto relacionados s crises ocorridas durante

    a Revoluo Cultural. E, por fim, o texto de Cecilia Mello analisa, a partir de um vis

    especfico, um documentrio dirigido por Jia Zhangke que trata justamente da

    desmontagem e demolio de construtos sociais que passaram por uma crise na dcada de

    70, e das conseguintes tentativas de construo de uma nova sociedade chinesa.

    Os documentos apresentados nesta edio ambos fundamentais para pesquisas sobre

    China moderna e contempornea foram traduzidos do mandarim para o portugus num

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    esforo notvel de um grupo de estudantes da Graduao de Letras-Chins da

    Universidade de So Paulo (Rud Eric Paixo, Caio Paes Ramalho, Paulo Jos, Pedro Cabral

    e Elson Santos) e revisados em confronto a outras tradues em ingls e italiano dos

    mesmos textos. So documentos-chave para o estudo da Revoluo Cultural chinesa,

    apresentados e problematizados no artigo de Alessandro Russo.

    Por fim, agradecemos a colaborao de todos os professores e pesquisadores que

    participaram tanto da concepo do peridico quanto desta edio com textos e tradues.

    Desejamos uma boa leitura e aguardamos as crticas, comentrios e sugestes.