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A Bandeja - Qual Pecado Te Sedu - Lycia Barros

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • A BANDEJA

    Qual pecado te seduz?

    Lycia Barros

    AGRADECIMENTOS

    Que bom que a vida relacionamento! Se no fosse assim, muitos sonhos no sairiam do papel.A cada dia tenho mais certeza de que devo investir mais e mais em amigos verdadeiros e fazerde pessoas prximas grandes amigos tambm. enorme a lista de agradecimentos que tenho afazer. Mas, para tornar vivel o meu desejo, infelizmente teria que escrever um livro s paraisso. Sendo assim, peo que todos aqueles que sabem ter feito parte desse projeto e que por

  • alguma razo no foram citados, sintam-se prestigiados da mesma forma.Em primeiro lugar, obviamente, quero agradecer a Deus por compartilhar comigo

    palavras que saram do seu corao. Sei que Ele autor deste livro tanto quanto eu, ou mais.Valeu, paizo! Agradeo ao melhor marido que uma pessoa poderia ter, no teria conseguidosem a sua pacincia e apoio o tempo todo. Hugo, te amo. Agradeo aos meus filhos, Renan eLorena, que mesmo sem saber abdicaram da minha ateno e cuidados enquanto eu estavaimersa no mundo de Angelina. Este livro para vocs. Agradeo aos meus pais, Gilda e Jorge,incentivadores que sempre acreditaram em mim, motivando-me a alcanar os lugares onde ocu no o limite. No tenho palavras para a minha maior leitora e incentivadora: Ingrid. Vocfoi pea fundamental para o surgimento deste livro, obrigada por seu apoio integral. Agradeo sminhas amigas e irms em f, que todo o tempo cobriram este projeto em orao. Tatiana,Letcia, Simone, Luciana e Mnica que Deus as abenoe em dobro!

    Agradeo filha de fara, Janana, que recebeu meu livro do outro lado do lago comtanto amor e carinho, me ajudando a realizar esse sonho. Agradeo a Joo Marins e DanieleArcanjo, que compraram essa ideia fazendo nosso esse sonho. Vamos luta, moada! Obrigadatambm aos meus lderes e pastores da Sara Nossa Terra. Se eu aprendi o caminho, foi atravsdo seu apoio e ensinamento. E obrigada tambm queles que, tornando a minha jornada maisdifcil, me obrigaram a crescer e a chegar at aqui. Deus sbio em todos os seus planos.

    Gostaria tambm de homenagear a Irm Ktia, profeta do Senhor, que h cinco anos meentregou a profecia desta obra, quando eu nem imaginava escrever um dia.

    E finalmente, este livro dedicado a todos os jovens que pretendem de alguma formainfluenciar esta gerao e resgatar valores eternos, que provm do corao de Deus. Contandoesta histria, espero poup-los de grandes sofrimentos. Se este livro est em suas mos agora,Deus quer falar com voc. Simplesmente, oua.

    Durantes muitos anos imaginei qual seria a minha primeira empreitada profissional e

    acreditava que seria um conto policial ou uma histria de suspense. Apesar de ser mulher, nunca

  • pensei que seria uma histria romntica, se que podemos denomin-la assim. Na verdade, oimpulso de escrever testemunhando esses fatos se deve ao meu ardente desejo de que seja aminha primcia para o meu melhor Amigo. Espero que muitas vidas sejam transformadas poressa experincia com Deus. A minha foi.

    A autora

    SUMRIO Captulo I A partida...................................................................................... Captulo II Pisando em ovos...................................................................... Captulo III Primeiro sonho...................................................................... Captulo IV O cu........................................................................................... Captulo V A colheita.................................................................................... Captulo VI Revelao.................................................................................. Captulo VII Segunda queda....................................................................... Captulo VIII Inverno da vida.....................................................................

  • Captulo IX Grandes surpresas.................................................................. Captulo X Evento inusitado........................................................................ Captulo XI O esperado................................................................................ Captulo XII Duas opes.........................................................................

    CAPTULO IA PARTIDA

    No conseguia imaginar como seria minha vida longe dos meus pais. Como filha nica, pormuitos anos cresci recebendo todos os tipos de cuidados e mimos que se possa imaginar. Isso foibom e ruim ao mesmo tempo. Nunca tinha lavado minha prpria roupa e agora estava indomorar sozinha por quatro anos, ou talvez para o resto da vida.

    Havia trs anos que meu irmo temporo nascera. Desde ento, meus pais se esforaramainda mais para me agradar. Eu entendia que os cuidados com Vitor demandavam muitaateno, mas mesmo assim a situao acabou virando a meu favor.

    Tudo havia passado to rpido e sob muitas perspectivas a sensao de entrar no mundoadulto era doce. Imaginei que essa sensao viria automaticamente quando eu completasse 18anos, mas estava vindo agora, com todas aquelas mudanas.

    Decerto, havia uma certa nostalgia pelas coisas que eu iria deixar para trs. Enquantoarrumava minha mala, olhei bem para as fotos anexadas em minha cortia: a ltima viagem aoChile, de frias com meus pais; meu aniversrio de 15 anos e eu deitada nos braos dos meusprimos fiquei horrvel e com o lindo penteado todo desgrenhado. Meu cabelo castanhoescuro e muito liso, desde pequena era difcil prender qualquer coisa nele. Havia uma foto

  • especial, que eu sempre guardava com carinho: eu e minha me fazendo castelinho de areia napraia de Bertioga. Era incrvel como desde menina ns j ramos to parecidas! Sempre ameinossos olhos cor de mel, to diferentes das cores habituais. Ser parecida com ela um elogiopara mim.

    Vi tambm outra foto: eu e minha melhor amiga Natasha no pedalinho, em frente aohotel Quitandinha. Natasha tem um irmo gmeo: Dante, uma figura doce e engraada. Ele temcabelos lisos e negros e sempre deixa uma franja cada por cima dos olhos azuis. Apesar deDante ter a mesma idade que eu e Natasha, sempre foi bem mais alto que ns e devido ao sbitocrescimento da adolescncia, ficou magrelo e desengonado, ao contrrio de sua irm, que eramais baixinha e magrinha como eu. Nas fotos que eu tinha, ambos estavam de aparelho. Alis, oaparelho nos dentes era a nica coisa que tinham em comum fisicamente. Natasha tem cabelocacheado, olhos castanhos e morre de inveja dos adereos do irmo.

    Essa amiga-irm entrou na minha vida muito cedo, nossa amizade era inabalvel desde osoito anos, seu sorriso metlico me tirava de qualquer baixo astral. s vezes, eu achava que elatinha o dom especial de alegrar ambientes.

    Dante e Natasha so filhos do pastor da nossa igreja e talvez por isso tenham sidoincentivados desde pequenos a confortar as pessoas ou... Sei l, trazer esperana, essa era umacaracterstica que compartilhavam. Apesar disso, nenhum dos dois se mostrava interessado emherdar do pai o cargo de pastor. Dante era meio polmico no seu modo de pensar e irreverentedemais para o gosto do pai. Porm, eu sempre achei que ele conhecia Deus mais do que todosns, pela intimidade que demonstrava ter com Ele. Sua f parecia mais real do que a nossa.Dante tocava violo desde pequeno, e era o nico dom que desejava possuir.

    J Natasha acreditava que seu ministrio era seguir em misses viajando pelo mundo.Vivia atenta s tragdias sociais e sempre inventava alguma forma de ajudar, mobilizando todos sua volta. Por esta razo, ela no prestou vestibular comigo naquele ano, achou melhor passarum tempo fora do pas para descobrir realmente qual era o seu propsito.

    De qualquer modo, tudo isso seria deixado para trs por um bom tempo. Afinal, euprecisava seguir o meu caminho.

    Minha mala estava quase pronta quando minha me entrou no quarto. Sim, eu sabia queela estava sofrendo tanto quanto eu com aquela despedida. Mas minha me uma pessoa queparece que nasceu para me ver feliz, e tentou me manter otimista durante toda a ltima semanaem casa.

    J est com tudo pronto, querida?Como se ela mesmo no tivesse cuidado de cada detalhe... Acho que sim, s falta pegar a minha Bblia na gaveta. Angelina, estou to feliz com a sua conquista! Voc sempre sonhou estudar Literatura

    e Deus te deu mais essa vitria. Pena que tenha que ir para o Rio de Janeiro. Bem, mas voc estindo para uma das melhores faculdades do Brasil e sei que, quando voltar, ser uma grandeprofissional.

    Na verdade, no estava nos meus planos voltar para trabalhar na minha cidade. Afinal,em Petrpolis, com a mdia de 300 mil habitantes, imaginava que as oportunidades seriamreduzidas. Porm, eu sabia que no era o momento de abordar aquele assunto, no queria gerarmais uma crise na minha me.

    Pegamos as coisas e resolvi levar minhas fotos para tornar o quarto na repblica umpouco mais familiar. Estava ansiosa, mas ao mesmo tempo nervosa. Claro que eu j tinha ido aoRio de Janeiro, mas nunca nos prolongamos por l pois meu pai no podia ficar longe do trabalhopor muito tempo. Na verdade, ele achava que uma cidade mais calma e perto da natureza seria

  • ideal para criar os filhos. Por isso, nunca quis sair da regio serrana do Rio, tinha alergia aotumulto da cidade grande. Sendo assim, minha vida inteira girou em torno de uma cidade pacatae familiar, bem diferente da turbulncia de uma grande metrpole.

    As notcias de violncia no me assombravam tanto, pois no pretendia sair muito darepblica. Imaginava que teria que ler muito para acompanhar o curso. O que realmente medeixava desconfortvel era ir para um lugar com tanta gente, onde eu no conheciaabsolutamente ningum.

    Uma amiga da minha me tinha uma filha que estudava e residia na mesma universidadepara onde eu estava indo. Por intermdio dela, consegui uma vaga em um quarto da repblica.Quando ramos crianas, na igreja havamos frequentado a mesma escolinha dominical, mas afamlia dela sumia e aparecia com tanta frequncia que no formamos laos. Para mim, ela erauma estranha.

    Quando desci a escada, l estava ele: meu ansioso e desesperado pai, o senhor FredericoHermann. Ele j tinha feito todo tipo de cerimnia para comemorar o meu ingresso nafaculdade. Fez um churrasco e convidou todo mundo que ele conhecia; levou-me no altar daigreja para que o pastor fizesse com que todos os membros orassem por mim e abenoassemminha partida; criou uma pgina nesses sites de relacionamentos s para achar amigos antigos edivulgar a grande notcia.

    Meu pai era comerciante, no teve muita opo sobre o que queria ser. Seu paipraticamente exigiu que ele se apoderasse dos negcios. Ele herdou uma grande fbrica deagasalhos, que meu av levantou do nada. Acho incrvel como, injustamente ao longo dos anos,as pessoas que no querem parecer com os pais ficam cada vez mais semelhantes a eles. Issotambm aconteceu ao meu pai, fsica e emocionalmente. Querendo ou no, ele tinha tino para osnegcios. Fisicamente estava ficando idntico ao pai dele: ambos altos, carecas, gordinhos e deolhos verdes.

    Morvamos num excelente bairro chamado Valparaso, numa casa de dois andaresampla e confortvel. A empresa da famlia fornecia produtos para lojas de todo o Brasil. Porm,apesar de ser bem sucedido, o sonho do meu pai estava se realizando em mim: agora, ele queriater feito faculdade.

    Fui livre para decidir o que fazer. A deciso foi exclusivamente minha, apesar de eureconhecer uma certa influncia da minha me, que era pedagoga. No que ela tivesse meincentivado a fazer essa escolha, mas lendo pra mim desde pequena tornoume umaapaixonada por livros. No mais, nunca tive talentos comerciais e apesar de no achar m ideiaser dona de uma livraria, na verdade eu queria ser escritora. Estava pronta para esse desafio,mesmo que fosse doloroso partir.

    Est pronta? perguntou ele, mordendo o lbio inferior numa tentativa de nodesmoronar.

    Sim, vamos logo pai. No quero que voc volte tarde.Ele passou a mo pelo meu ombro, me apertando forte. Achei que no fosse me soltar.Passamos pela porta e vi que todas as tralhas j tinham sido colocadas na mala. Minha

    me repetia as mil recomendaes que j tinha me dado. Eu insisti para que ela ficasse tranquila,dizendo que eu havia sido muito bem criada por uma famlia crist, que me passoufidedignamente seus valores durante os ltimos 18 anos.

    Coma direito, nada de lanches o dia todo e no se esquea de orar sempre: noite, aoacordar, antes de fazer as provas...

    Dona Silvia, acalme-se! Deus estar comigo, tenho certeza de que Ele j ouviu suasininterruptas oraes nessa ltima semana.

  • Afaguei-a carinhosamente e dei-lhe um abrao rpido, seno quem iria chorar era eu.Beijei e abracei o Vitor, a sim uma lgrima escapou. Ento, partimos.

    Comeamos a viagem em silncio nos primeiros dez minutos, mas logo meu pai comeoua reclamar: do preo do pedgio, do tempo de viagem prejudicado pelo asfalto ruim, dapreocupao de voltar muito tarde para casa, da violncia nas estradas, dos bandidos, das placaspichadas e amassadas pelo caminho, dos malfeitores da cidade vizinha e eis que finalmentechegou ao cerne do seu objetivo: os malfeitores da faculdade.

    Falou longamente sobre os filhinhos de papai que vo para a universidade somente para sedivertir e fazer mal s mocinhas inocentes do interior. Antes que o assunto se prorrogasse demais,interrompi:

    Pai, no estou interessada em namoros e farras, agora estou focada em outros alvos.Quero dar o meu melhor na faculdade, acompanhar o curso, fazer pesquisas sobre a profisso,ler muito, e no pouco tempo que me sobrar ligarei sempre para vocs. Alm do mais, eu voufazer o curso de Letras e j soube que a maioria da classe feminina ou gay , no se preocupe.

    No bem assim, acredite. Alm do mais, no campus h faculdades de diversoscursos e, com certeza, muitos rapazes por l tambm. Voc no tem muita experincia e mesinto na obrigao...

    Pai! interrompi de novo. Voc teve quase duas dcadas para me cobrir de todainformao necessria, fez questo de me inscrever em todos os seminrios de jovens queacontecia na cidade. Voc fez um bom trabalho, confie em mim.

    Certo. Est bem, mas... me prometa uma coisa. Diga consenti. Sempre que estiver em dvida se deveria ou no estar em algum lugar, pea ao

    Esprito Santo a sua presena naquele instante. Se no puder senti-lO, ali no lugar para vocestar. Vai se lembrar disso?

    Prometo, pai falei, levantando dedinhos de escoteiro.A viagem seguiu sem muitas novas recomendaes. Comeamos a conjecturar sobre

    como seria o campus, os professores, em quanto tempo eu estaria estagiando. Foi bem maisagradvel.

    Quando enfim chegamos, no era muito tarde. O trnsito estava bom, j que eradomingo. As aulas comeariam no dia seguinte. Eu ansiava por arrumar minhas coisas no quartoe preparar tudo para o incio da minha vida acadmica e no via a hora de comear.

    Entramos pelo porto grande e verde da repblica e deparamos com umapequena saleta. Ali havia uma mesa de ping-pong e uma TV ligada. Quando entramos, vimos umgaroto assistindo filme, sentado no sof. Ele nos olhou com curiosidade, em seguida nos informouque os quartos eram no segundo andar. Notei que a saleta era integrada com outra ainda menor,onde havia dois computadores e uma pessoa usando a internet. Adorei esse adendo.

    Subimos um lance de escada e meu pai levou minhas coisas at a porta do meunovo aposento. Como era um quarto de meninas, achei melhor no convid-lo para entrar,poderia pegar algum desprevenido. O corredor estava vazio e devia haver, no mximo, uns dezquartos.

    Repentinamente uma das portas se abriu e por ela passou um garoto de toalha amarradana cintura, escovando os dentes. Ele nos cumprimentou levantando a sobrancelha na maiorinformalidade e entrou no quarto da frente, onde dois ou mais garotos falavam alto e davamrisadas. Meu pai vislumbrou aquela cena com uma reprovao ntida no olhar, me abraou numadespedida silenciosa e se foi rapidamente, evitando que o desespero tomasse conta dele e ofizesse me levar imediatamente de volta para casa.

  • Abri a porta com a chave que haviam me enviado e entrei no pequeno cmodo. A paredeera verde clara e havia uma janela de alumnio. O quarto era composto por um armrio demadeira antigo, duas camas tambm de madeira e muitos ursinhos de pelcia. Roupas e meiasestavam jogadas em uma cadeira, havia papis com frases de automotivao colados na parede,que pareciam ter sido retirados de alguma revista feminina. Perto do armrio avistei umapequena pia com alguns itens para comestveis: um fogo de acampamento de duas bocas sobreuma prateleira e um frigobar abaixo dela.

    Quando examinei as camas, em uma delas estava um edredom fazendo um morro, e naoutra s um colcho, que imaginei ser a minha. Assustei-me quando ouvi o som de algum seespreguiando e, ao mesmo tempo, vi um movimento no edredom da cama ao lado. Debaixodele apareceu o rosto de uma menina pequena, que quase podia-se confundir com uma criana,mas sem roupas de criana. Seu cabelo era castanho claro, meio ondulado, e em seu rosto haviavrios borres de rmel em volta de seus pequenos olhos verdes. Ela me olhou, esfregou o rostoborrando-o ainda mais, e fez contato entre um bocejo e outro.

    Oi, voc deve ser Angelina. Eu sou Michele, filha da Ana, amiga da sua me. Bemvinda faculdade, gata. Sua cama aquela.

    J percebi. Bem... boa tarde Michele disse, sorrindo, para ela perceber o horrio. Obrigada pela vaga que voc me cedeu, soube que difcil por aqui. Valorizei, tentandoestabelecer uma boa primeira impresso. Afinal, era com essa pessoa que eu acordaria edormiria nos prximos meses. Sempre tive um quarto s para mim, e essa parte da minha novavida, dividir um quarto, no me animava.

    Nem tanto... desmereceu ela. Nem todo mundo se acostuma com as baratas ecom o barulho. Acabam sobrando muitas vagas no meio do semestre.

    Barulho ok, mas... baratas? J comecei a ficar em estado de alerta. Eu abominava baratas.Comecei a arrumar minhas roupas enquanto Michele me dava algumas dicas: onde

    ficavam os banheiros, os melhores horrios para o banho... Enquanto isso, eu examinava cadacentmetro onde colocava minhas coisas, j pensando em ir ao mercado mais prximo paracomprar todas as armadilhas, remdios e inseticidas que eu achasse disponveis. Infelizmente,me lembrei que j eram 5 horas da tarde de domingo e todos os mercados j deviam estarfechados.

    Terminei de arrumar tudo, troquei de roupa e arrumei o novo material na minha bolsa.Enquanto prendia meu cabelo, Michele terminou de fazer caf e me deu uma xcara, enquantoacendia um indesejvel cigarro. Achei pssima a ideia de morar com algum que fumasse, jque eu tinha rinite alrgica. Mas, como ainda no era o meio do semestre e no existiam outrosquartos vagos, achei melhor ser simptica com a minha colega e no reclamar, pelo menosnesses primeiros dias.

    Michele trocou de roupa, lavou o rosto e disse que ia descer para ver os calouroschegando. Perguntou se eu queria ir, mas eu respondi que estava cansada e que iria dormir cedo.Assim que ela saiu me deitei por alguns segundos para assimilar a minha nova realidade. Pegueio celular para ligar para Natasha, mas ela no atendeu pois devia estar na igreja. Ela fazia partedo louvor e Dante tocava aos domingos. Como eu tambm no podia estar l, peguei minhaBblia e abri aleatoriamente. Caiu em I Corntios 10:12.

    Aquele, pois, que cuida de estar em p, olhe para que no caia.

    Achei que meu pai tinha, propositalmente, marcado essa pgina da Bblia. Ento, abri

    outra vez. Caiu em I Timteo 3:7.

  • Convm tambm que tenha bom testemunho dos que esto de fora, para que no caia em

    afronta, e no lao do diabo.

    Achei que meu pai tinha marcado essa tambm. Ser que peguei a Bblia dele? Bem,com certeza, a dele no tinha a capa rosa.

    Orei para que nenhuma barata subisse no meu colcho durante a noite e depois de algunscheck ups embaixo da cama, apaguei.

    CAPTULO IIPISANDO EM OVOS

    Acordei super animada, ao contrrio do que minha me jamais imaginaria depois de anos e anosme empurrando cama abaixo para ir escola. Mas agora eu era independente e tinha que serresponsvel, queria provar para mim mesma que j sabia me cuidar. Fiquei surpresa ao ver queMichele j se fora. Ela no me pareceu o tipo de menina pontual e disciplinada, mas a gentepode se enganar. Estranhei o fato da cama dela estar exatamente igual noite anterior, masgostei de saber que ela havia sado sem fazer barulho. Iramos nos dar bem assim.

    Troquei de roupa, penteei o cabelo e resolvi tomar caf na cantina para desenvolverminha performance social. Ao me dirigir at a porta para sair, a mesma se abriu de repente,quase batendo no meu rosto e tive que dar um pulo para trs para me salvar. Era Michele, queentrou correndo e pedindo desculpas, dizendo que iria se atrasar. Pegou a mochila, lavou o rosto,trocou de roupa e foi catando as coisas, afobada, perguntando se o telefone dela tocara noiteenquanto ela dormia fora.

    Dormiu fora? Aonde?A faculdade era super isolada e os parentes dela tambm residiam em Petrpolis. Antes

    que eu perguntasse alguma coisa, a porta se abriu novamente e entrou outra menina. Era maisalta do que eu, cabelos lisos, loiros e mdios, com uma mecha azul que saa do topo da cabea ecaa at as pontas. Vestia roupas escuras e coladas, que destacavam bem sua silhueta. Ela nempercebeu minha presena e se dirigiu Michele, rindo e gritando:

    Sua malvada, nunca deixa os melhores pra mim!Notei pelo sotaque que ela era do sul. Ao me notar, no se entreteve muito tempo.

    Limitou-se a exprimir um esnobe oi e voltou sua ateno novamente para Michele. Percebique educao no era o seu forte, mas no me incomodei com a pouca ateno que me foradispensada. Enquanto as duas riam e fofocavam, eu sa. Ainda teria que tomar o caf da manhe achar a minha sala.

    O corredor da repblica agora estava lotado, as pessoas se abraando e rindo, meninosbatendo na cabea uns dos outros... Eu conseguia nitidamente destacar os calouros assustados,tentando caminhar imperceptveis, longe dos veteranos. Essa tambm era eu, desejando serinvisvel apesar de sentir os olhares maliciosos me analisando como se eu fosse umamercadoria a ser adquirida. Que pattico, pensei.

    Peguei um caf expresso na cantina e sa apressada, me sentindo uma executivaatrasadssima. Logo achei a minha sala. Quando entrei, havia poucas pessoas, o professor noestava e dei graas a Deus. Coloquei minhas coisas na mesa e joguei fora o copinho do caf,depois de beber. Fiquei olhando o movimento no corredor imaginando se conseguiria prestar

  • ateno com tanto barulho ao redor. Eu estava ansiosa para me tornar uma estudante em umadas faculdades mais respeitadas do Brasil. Tantas perguntas a fazer...

    Olhei para a sala para registrar cada momento do meu primeiro e glorioso dia. Talvez euainda viesse a narrar isso em uma das minhas entrevistas como futura reconhecida escritora.

    Os minutos foram se passando e cada vez mais alunos chegavam atrasados. Algum tempodepois minha ansiedade foi se transformando impacincia. Em seguida, em intolerncia. Atque, quando avisaram que o professor no poderia dar aula naquele dia, me senti invadida poruma grande decepo. Como? J no primeiro dia? Que descaso!

    Os alunos que j jogavam sueca no fundo da sala saram satisfeitssimos e s tiveram otrabalho de transferir o jogo para as mesas do refeitrio. Frustrada, me encaminhei para salaonde seria a segunda aula e resolvi matar o tempo lendo minha Bblia de bolso.

    Meus olhos liam, mas minha cabea estava longe. Pensava no infeliz do professor quefaltara, postergando minha esperada estreia como universitria. Olhava a cada cinco minutospara o relgio para ver se a prxima aula estava prestes a comear. Aps meia hora lendo notenho a menor ideia do qu, os alunos comearam a entrar. Escondi minha Bblia, pois no queriaser rotulada de crentona logo no primeiro dia. Queria que as pessoas me conhecessem comoeu sou, para depois saberem qual a minha religio. J tinha sofrido muitos distanciamentosprematuros por causa desse preconceito religioso, mas eu no me via nem um pouco diferentedas meninas da minha idade, apesar de ter sido criada dentro de uma igreja. s vezes, issopreocupava minha me, mas eu no queria me tornar a rainha da pureza e do autocontrole! Eume esforava muito para agradar meus pais, para ser a menininha perfeita, mas s vezes eu squeria... ser livre para cometer alguns erros, s para variar. No que eu no os cometessediariamente, mas sabia bem como mant-los em segredo.

    A primeira aula no foi nada impressionante, todos se apresentavam igualzinho nosegundo grau. Falamos um pouco sobre o leque de opes em relao a nossa carreira, o que nofoi nada animador vindo daquela professora. Ela fez questo de ressaltar todas as dificuldades doramo e dizer que, pelas estatsticas, somente dez por cento dos alunos chegariam ao final docurso. Acabamos a aula mais cedo e fomos dispensados.

    Estava me encaminhando para a terceira aula, ainda meio confusa com tantas salas,quando finalmente encontrei um banheiro. Entrei, e vi que o seu estado era lastimvel. Comeceia me questionar. Para onde vo nossos impostos? Percebi que papel higinico deveria ser artigode luxo ali e que, a partir daquele dia, deveria trazer um na bolsa. Havia uma pequena janela, poronde dava para ver uma floresta ao lado do campus e um movimento de meninas num banco lfora chamou minha ateno. Para minha surpresa, reconheci Michele no meio delas. Era bvioque estavam matando aula. Estavam rindo, tagarelando e fumando, mas no me parecia ser umcigarro comum. Comearam a passar o objeto fumegante umas para as outras e, pelo pouco queconhecia do assunto, deduzi que se tratava de um baseado.

    S pode ser provao!, pensei. Iria passar os prximos quatro anos num lugar sujo, comprofessores descomprometidos, sem papel higinico e morando com uma viciada? Um anointeiro de dedicao ao pr-vestibular para isso? Eu estava seguindo rumo ao completodesencanto com essas perspectivas.

    E se meus pais viessem me visitar enquanto ela estivesse fumando aquela erva de Sat nonosso quarto? E se a diretoria do alojamento descobrisse e pensasse que eu tambm estava nessa?E se eu fosse presa por porte de drogas?

    Minha cabea estava a mil, e eu sabia que teria que me adaptar a muitas realidadesimprevistas e indesejveis. Procurava ter esperana de que viriam dias melhores quando sa do

  • banheiro, irritada, marchando e olhando para o cho. Por causa disso, trombei abruptamentecom algum, deixando meu fichrio, meus horrios e meu celular se espatifarem no cho,espalhando-se em vrios ngulos diferentes. Desanimada, suspirei, preparando-me para pedirdesculpas aps j ter visto um par de sapatos masculinos no piso diante de mim. Mas, no foipossvel...

    Ao erguer os olhos, me deparei com o ser humano indiscutivelmente mais bonito e maismaravilhoso que j tinha visto naquela faculdade. Na verdade, na minha cidade tambm.Fazendo-lhe totalmente justia: era o homem mais bonito que eu j vira em toda a minha vida.Fiquei arrebatada por alguns segundos com aquela desconcertante viso e me confortei em saberque ali havia pelo menos uma coisa boa de se ver. Afinal, depois de tanto desagrado, aquela visoera remdio para a minha alma.

    Tratava-se de um rapaz. Ou homem, que devia ter entre 20 e 30 anos, no mximo. Suapele branca estava levemente bronzeada, seu cabelo era loiro escuro e meio desalinhado emtorno do rosto. Seus olhos tinham nuances infantis e sedutoras ao mesmo tempo. No pude deixarde notar as ruguinhas leves que surgiam nos cantos de seus olhos quando ele sorria e que lheatribuam um charme viril, todo especial. Seu maxilar era quadrado e emolduravam um sorrisocaloroso e perfeito, aberto para mim. Ele era um pouco mais alto do que eu, o que me faziaerguer a cabea para apreci-lo. O cu deveria ser mais ou menos assim...

    Quanta pressa? Est tudo bem? indagou a voz que, com certeza, pelo tom e firmezaestava mais perto dos 30. Percebi tambm que no parecia, em nada, uma voz tipo gay .

    Minha inacreditvel resposta foi: Ahn?Ele uniu as sobrancelhas, sorrindo, e repetiu a pergunta movendo os lbios pausadamente

    como se eu fosse uma estrangeira: Voc-est-bem?Sa do meu momento mula e me abaixei depressa, embaraada para pegar minhas

    coisas enquanto ele ajudava. Disparei a tagarelar, olhando para o cho. Sim, sim, s estou meio... perdida. Meu nome Angelina Hermann e hoje meu

    primeiro dia. Estava procurando a sala enquanto passava pelo banheiro. A entrei e... contive ompeto de narrar o resto da deprimente histria, dizendo a ele que no consegui fazer minhasnecessidades porque no tinha papel e ainda descobri que minha abenoada colega de quartogostava de dar um tapinha de vez em quando.

    Qual sala est procurando? perguntou ele se levantando. 23 A respondi. Vem comigo, estou indo pra l, depois do laboratrio.Ele foi andando com meu fichrio e meu horrio na mo. Resolvi no pegar de volta para

    garantir a companhia at a sala de aula. Para tirar a m impresso depois do meu Ahn idiotacomo primeiro contato, resolvi puxar assunto.

    No acredito que os professores daqui sejam to descomprometidos. No primeiro diade aula um professor no veio, a segunda nos liberou 30 minutos mais cedo ele riu. Chegueicom tanta empolgao, mas j vi que terei motivo para me juntar queles que falam mal defuncionrios pblicos. Disse isso para parecer sria e politizada e no uma caloura perdida dointerior. Isso um desrespeito com nossos impostos, que pagam os seus salrios.

    s seu primeiro dia, realmente alguns so assim, mas no so todos... Bem, vamos ver o que me espera agora, tomara que no seja mais um idiota que

    queira que todo mundo se apresente de novo. Detesto isso: resumir sua vida e quem voc emnome, idade e endereo... Enfim, vamos ver... disse revirando os olhos, fazendo charminho.

  • Chegamos sala e como o meu pequeno incidente tinha me atrasado, para minhasurpresa todos j estavam sentados, aguardando. O desconhecido maravilhoso que meacompanhou me entregou o fichrio na porta da sala e eu o peguei, tristonha. No queria ter queme despedir to rpido, nem havia perguntado seu nome, de onde era, onde estudava... Teria deaguardar cinquenta minutos para, com sorte, trombar com ele de novo pelos corredores dafaculdade. Pensei em fazer mais uma horinha no corredor, j que o professor ainda no haviachegado. Assim, examinaria em que sala ele iria entrar, mas achei que iria dar muita bandeira.Resumi minha despedida num informal valeu e entrei na sala sem olhar para trs. Comecei aconstatar como eu era tola por no saber prorrogar uma conversa informal. Como seria escritoracom aquela imaginao tacanha?

    E se ele no me reconhecer mais depois desse momento? E se no me cumprimentar daquipra frente? E se nunca mais tivermos um assunto em comum? Ele provavelmente era de umperodo bem acima do meu, deveria estar quase se formando. Logo presumi que no andariacom uma caloura. Droga! Por que perdi tempo falando mal desses malditos professores? Namelhor das possibilidades, eu receberia dele um desinteressado oi, em um possvel encontroaleatrio pelo campus.

    Sentei na ltima cadeira vaga da sala, arrumei meu material na mesa e quando tomeicincia da situao minha frente, fiquei branca! L estava ele: na mesa do professor. Mas oqu? Como? No possvel!

    Minha cabea comeou a dar um n. Inegavelmente, eu sempre fui propensa a escolhermal os assuntos para iniciar uma conversa, mas dessa vez tinha me superado. J sei, trote!Pensei, tentando me confortar. Ele deve ser o representante do ltimo perodo que veio armaruma pra gente. Torci para que isso fosse verdade, pois depois do meu sofrvel discurso poltico-idiota sobre professores, sendo ele tambm professor, com certeza eu j estaria sumariamentereprovada nessa matria. Minha suspeita desesperadora se confirmou depois da sua apresentaoformal como mestre.

    Ol turma, meu nome Alderico Schmitz e sou o professor de Lingustica 1.No sabia onde enfiar a minha cara, minha tenso ficou bvia atravs dos meus olhos

    alarmados. Aps os primeiros minutos exibindo cara de paisagem, me recuperei parcialmentee resolvi prestar ateno em cada palavra, com uma expresso incrivelmente interessada. Eviteiolhar nos olhos dele cada vez que ele virava na minha direo. De fato, fiquei impressionadacom sua eloquncia e carisma, ele prendia facilmente a ateno de todos, especialmente dasmulheres, que eram maioria na turma.

    Ao trmino da aula, aps anotar algumas indicaes bibliogrficas, fiquei em dvida se: 1 Saa disfaradamente; 2 Dizia: Tchau, at a prxima, me desculpe; 3 Simplesmente saa sem dizer nada.Num estalo criativo tive a brilhante ideia de sair fingindo que estava falando no celular.

    Assim, no precisaria me despedir. Enquanto eu atravessava o corredor de cadeiras, observeique ele me acompanhava com os olhos, rindo e ainda sentado na mesa dos professores. Estavacercado por trs entusiasmadas alunas. Ele gesticulou com as mos, fazendo sinal para eu meaproximar. Pra que eu fui olhar? Caminhei na direo dele, ainda conversando com minhaamiga imaginria, enquanto suas mais novas fs se despediam. Aps fazerem milhes deperguntas desnecessrias, elas finalmente deram sinal de que iriam embora. Cheguei perto e elese levantou sorrindo, provavelmente divertindo-se com a minha gafe. Enquanto despedia-sedelas, ele segurou de leve o meu ombro, como se estivesse me impedindo de fugir. Fiquei meio

  • desorientada com a sua proximidade, observando os torneados msculos do seu brao nomsculos de um halterofilista bombado, porm firmes e bem presentes.

    Enquanto eu fazia minha talentosa atuao ao telefone e as meninas j estavam nosdeixando, o imprevisvel aconteceu: meu celular idiota tocou de verdade, quer dizer gritou bemna minha orelha. Arfante, olhei para o visor: era minha me, hrrhrrhrr... Atendi correndo otelefone:

    Ah, oi, caiu a ligao... improvisei. O qu? interpelou ela, sem entender. Daqui a pouco te ligo, beijo. Atabalhoada, desliguei na cara dela.Olhei para ele segura, como se nada tivesse acontecido. Acho que vou fazer teatro.

    Ficamos parados uns cinco segundos nos olhando num silncio mortal. Ser que essa aula desfez sua m impresso sobre a classe de mestres? sondou ele

    rindo e voltando-se para a mesa para pegar um papel. Desculpe pelo que eu disse antes, s estava... chateada com os primeiros incidentes

    aqui. Tambm defendi , como iria imaginar que existia um professor to... ( lindo)... jovemcomo voc por aqui?

    o segundo ano em que dou aula neste curso, me formei aqui mesmo, em francs. Voc explica como se fizesse isso h anos... Foi muito boa a sua aula argumentei,

    tentando recuperar uma imagem simptica. Ento, no perca a prxima. Dito isso, ele estendeu a mo e me entregou o meu

    horrio, que tinha ficado com ele. Queria acreditar que tinha sido de propsito. At parece...Agradeci e me despedi.Quando cheguei no quarto, Michele j estava l e pelo nmero de pacotes abertos e

    panelas sujas j tinha comido um bocado. Pensei tratar-se da famosa larica[1]. Ela me ofertouum macarro que estava pronto na panela enquanto teclava no seu laptop.

    E a? Como foi o seu primeiro dia? indagou ela, com uma felicidade estranha noolhar.

    Legal eu disse. S tive duas aulas. De qu? De apresentao de pessoas brinquei e Lingustica 1. Com aquele gato do Rico! Ele um timo colrio para se comear o dia... arfou ela. , a aula foi legalzinha. desdenhei, tentando aparentar indiferena. Escuta Angelina, vai ter uma... reuniozinha aqui em casa hoje noite com as minhas

    amigas. Sabe como , a gente no se v h um ms, temos muito o que fofocar, devemos jogarcartas e tal... Voc no se importa, no ?

    Bem, desde que elas no saiam muito tarde, amanh temos aula bem cedo, certo? Pode ficar tranquila. garantiu.Que dia! Resolvi tomar um banho e comer alguma coisa. Preparei humildemente um

    misto quente de frigideira, que ficou meio queimado o que me fez desejar ardentemente acomida da minha me.

    Pela primeira vez no dia a saudade de casa bateu forte e resolvi ir at a pequena lan houseque havia visto l em baixo para enviar algumas mensagens para o meu pessoal.

    Quase tive uma parada cardaca ao descer as escadas e v-lo sentado no sof com doisoutros garotos, vendo um jogo de futebol. Era ele mesmo: Alderico ou Rico, como disseraMichele. Estava bem mais informal, com uma bermuda verde, uma camiseta branca e chinelos.Mesmo assim, um espetculo!

  • Ao sair do transe pensei: Droga! Eu tinha descido com uma cala larga, uma blusa queganhei num comcio, chinelos e cabelo molhado penteado para trs. Parecia que estava em casanuma sesso de cinema com a minha me. Pensei em retornar rapidamente escada acima parame trocar, mas no me decidi em tempo suficiente. Ele me avistou e saudou:

    Angelina? No sabia que voc tambm morava aqui.Uma onda de calor e satisfao subiu pelo meu corpo ao ouvir a palavra tambm

    ecoando na frase. Abri um sorriso dissimulado e caminhei em sua direo. Bem, cheguei essa semana, na verdade ontem. Est em que quarto? No terceiro direita do segundo andar. Com a Michele? Coitadinha, vai precisar de um refgio, naquele quarto um entra e

    sai...Balancei a cabea concordando com um sorriso afetado. Onde estava indo? Internet falei, apontando para a saleta ao lado. Fica no computador da direita, mais rpido ele sugeriu com aquele sorriso

    arrebatador e o brao estendido no sof.Agradeci a dica e fui andando, arrependida de no ter dito vim ver televiso e ficar mais

    tempo por ali, conversando com ele. Mas foi melhor assim. No final das contas, o que eu estavapensando? Ele era meu... professor e com certeza no era cristo nem nada. No que eu meimportasse com isso, mas meu pai...

    E tambm era... mais velho, apesar disso tambm no me incomodar tanto. Continueirepetindo as inadequaes dessa fantasia insana para mim mesma a fim de convencer-me desseimproprio. Eu precisava de foco!

    No meu ltimo e nico relacionamento, eu tinha 16 anos quando namorvamos, elemorava em So Paulo e s vinha duas vezes por ano a Petrpolis para visitar os avs. Alis, erapor isso que meu pai o aprovava tanto: um perfeito e inofensivo relacionamento distncia. Eramelhor eu me distrair mesmo com outra coisa.

    Conferi a caixa de mensagens e fiquei feliz de ver que tinha recebido uma pgina inteirade e-mails de familiares e amigos. Uns me desejando boa sorte nessa nova fase, outros curiosossobre como estavam indo as coisas nesse novo comeo. Mas a mensagem mais preciosa foi a deNatasha. Como j sentia falta de tagarelar horas e horas com essa minha amiga do peito! Ela memandou um e-mail enorme contando tudo que havia acontecido desde que sa de l como seisso tivesse acontecido h anos , me fez mil perguntas sobre tudo e anunciou que, finalmente,iria passar seis meses fazendo intercmbio na Inglaterra, junto com seu irmo, para aprimorar oingls. Dante aproveitaria para fazer uns cursos de msica que h tempos desejava. Ele tinhauma banda Gospel e seu sonho era ganhar a vida como msico. Suas canes eram muito boas ej tocavam bastante na rdio local.

    Fui resgatada de minhas lembranas por um barulho de vassoura. Olhei para trs e vi umasenhora gorda, morena e baixinha. Estava com um pano enrolado na cabea, um avental brancoe um vestido florido azul escuro. Tinha lbios grossos, bochechas proeminentes e um olhargrande, negro e curioso. Quando percebeu que havia me interrompido, abriu logo um sorrisoarrependido e se desculpou:

    Desculpa, filhinha, nem vi voc a. Estava to escuro aqui que entrei distrada. J passadas nove horas e eu no posso sair sem deixar tudo limpo para amanh.

    Imagina! exclamei, sinceramente agradecida. Agora tinha um motivo real pararetornar sala. Quer dizer, para o meu quarto. , vou direto para o meu quarto... eu acho.

  • Meu nome Raimunda... prolongou-se ela. Trabalho aqui, na cozinha e na faxinadas reas comuns a todos.

    Ah sim! Meu pai me falou de uma taxa que os estudantes racham para a manutenoda repblica. Prazer, sou Angelina e cheguei esta semana, j estava de sada mesmo, boa noite. Apressada, me despedi.

    Seja bem vinda querida e que Deus abenoe sua jornada.Suas palavras me entretiveram por um momento. Fiquei ali parada, mirando-a

    complacentemente. Era a primeira vez que algum me dava boas vindas desde que chegara eme sentindo estranhamente simpatizada por aquela mulher, agradeci e sa.

    Quando voltei para a sala, ele ainda estava l, s havia um garoto em sua companhiaagora. Ao passar, notei que ele me observou enquanto conversava com o menino.

    Que olhos lindos... Melhor eu ir dormir, conclu.Quando cheguei perto da porta do quarto, pelo barulho percebi que ainda havia meninas l

    dentro. Resolvi entrar assim mesmo para ver se elas se tocavam que j estava na hora de sair.Que pssima surpresa eu tive quando entrei e vi aquela fumaa e aquele cheiro horroroso noquarto! Fiquei parada, administrando na minha mente diante daquele cenrio de pesadelo. Pelaminha expresso, Michele percebeu que eu no estava muito satisfeita com a cena, pois pelovisto eram vrios tapinhas por dia.

    Elas j estavam de sada. antecipou Michele, amigvel. Deixa s a gente queimar esse restinho, t? disse a loura de mecha azul, impassvel

    novamente. Volto em cinco minutos! Limitei-me a dizer, batendo a porta.Caminhei pelo corredor e tamborilei meus dedos na porta para dar tempo de me acalmar.

    Eu decididamente no iria conviver com aquilo. Drogas no combinavam com os meusprincpios. Ali deveria ser o meu refgio, meu lugar de descanso, de estudo. Comecei a pensar nahiptese de procurar outro quarto vago por ali. Felizmente, meu humor foi instantaneamenterestaurado quando vi Rico, sozinho, subindo as escadas.

    Meu aborrecimento tornou-se irrisrio na sua presena, ele morava mesmo ali. Curioso,seguiu na minha direo e perguntou, brincando:

    Fazendo a ronda? Esperando meu quarto esvaziar bufei, sem pacincia. Por que no pede a elas para se retirarem? J pedi, mas esto muito ocupadas queimando um... no terminei a frase,

    aborrecida. No acredito! Quantas vezes j falei com a Michele... Eu vou l proclamou ele,

    marchando para a porta. No! relutei. No queria passar por fofoqueira. Agora no. Ela vai pensar que fui

    atrs de algum e no quero criar um mal-estar entre ns duas, depois me entendo com ela. Faa isso, ento insistiu ele. Seno, eu fao. Quer que eu espere aqui com voc?Claaaaaaaaaaaaro! No, tudo bem, elas j vo sair. Ento... onde o seu quarto? Na verdade, no moro aqui (momento de decepo intensa), mas meu apartamento

    meio longe do campus e quando vou ministrar aula muito cedo no dia seguinte os meninos meconvidam pra ficar. Pra falar a verdade, tenho passado mais tempo aqui do que em casa.

    tima notcia. Nesse momento a porta do quarto se abriu e com isso fomos agredidos poraquele cheiro odioso, que me deixou nauseada. Michele veio at a porta conversando com asmeninas e recebeu dele um olhar de reprovao. Aps me desejar boa noite, ele se dirigiu para

  • dois quartos depois do meu, deixando aquele imenso corredor desprovido novamente do seucharme.

    Michele comeou a recolher os cinzeiros, cantarolando, enquanto eu organizava asminhas coisas, muda. Depois de cinco minutos sendo completamente ignorada, ela resolveureatar relaes.

    Saudades de casa? Com certeza! murmurei, arrumando a cama. Algum problema? investigou a dissimulada. Isso comum? reagi. O qu? Vocs, aqui, se drogando no nosso quarto?Que palavra pesada Angelina... Se drogando? Bem inerente a quem chegou do interior.

    melhor voc se livrar logo desses valores arcaicos. Voc sabia que a maconha liberada emmuitos lugares? um tipo de... calmante, muitas pessoas usam s pra tirar o estresse do dia, sabiadisso?

    Estresse do dia.... Ela no fez nada alm de dormir fora, bagunar o quarto, matar aula nafloresta e fumar o dia todo. Que hipocrisia! Ser que nunca ouviu falar de yoga?

    Pois argumentei, com uma cara ofendida , mas gostaria de pedir que nofizesse isso aqui. Alis, gostaria de pedir que no fizesse isso, pela sua famlia e por voc, mas jque no nos conhecemos o suficiente para este tipo de intromisso da minha parte, ao menos emrespeito a mim, faa isso em outro lugar, por favor.

    por causa dessa coisa de igreja, no ? inferiu ela, revirando os olhos. Minhame sempre tagarelou diversas vezes nos meus ouvidos sobre tudo que ela ouvia l, apesar de euachar que ela mesma no aprendeu nada, s decorou o que ouviu. Sei que logo, logo voc vaiperceber quanto exagero aprendeu. A vida pode ser divertida, sabia? Deus alegria! disse ela. Mas sem drama, t? No vamos mais vir aqui, a no ser que voc queira. Voc precisa fazernovas amizades e abrir a cabea, menina... Se vai ficar aqui por quatro anos bom se enturmar,esteretipos moralistas no sero muito teis por aqui.

    Achei tudo aquilo um absurdo! No me considerava arcaica nem... moralista. Masagradeci por ela concordar em no fazer mais aquilo em nosso domiclio partilhado. Agora squeria dormir e relembrar meus velhos e saudveis amigos.

    CAPTULO IIIPRIMEIRO SONHO

    No acredito! Por causa de toda a minha irritao, no tinha colocado o celular para

    despertar e estava atrasada. Pulei da cama. Vesti um jeans, uma blusa, um casaco e coloquei

  • meu tnis. Fiz um rabo de cavalo desajeitado e parti com minha mochila, chupando uma balapara esconder o bafo. Que vergonha! Essa eu tenho certeza que minha me tinha previsto e logono segundo dia! Saquei para fora da mochila meu horrio do bolso para ver para em que saladeveria estar. Quo grande foi o meu alvio ao ver que s teria aula a partir do segundo tempo!Ca sentada no primeiro banco que vi e larguei a mochila entre as pernas. Pensei em voltar paraescovar os dentes, mas resolvi tomar caf na cantina, estava com muita fome.

    Sentei no banco alto perto do balco e pedi um croissant e um suco de laranja. Haviaalunos, professores e tambm alguns gatos famintos por ali. Acabei de comer e abaixei para daros restinhos a um gatinho branco que costurava minhas pernas quando minha Bblia de bolso caiuno cho. Ainda faltavam uns 30 minutos para a aula seguinte e resolvi procurar um lugartranquilo para ler. Lembrei daquele banco em que vi Michele e sua gangue pela janela dobanheiro. Era perto da floresta e decidi procurar. Dei a volta por fora da faculdade e logoencontrei o local. Para minha surpresa, contemplei um imenso lago logo aps a floresta, semnenhum ser humano em volta e achei ali um canto de paz. Os raios de sol incidiam por entre asrvores. Resolvi me embrenhar floresta adentro at chegar margem do lago. Sentei ali,confortada naquele calor matinal, e me encostei numa rvore prxima. Dei-me conta de quedesde que havia chegado s havia orado para Deus afastar as baratas, ento resolvi orar eagradecer por tudo que estava acontecendo. Eu estava ali, na faculdade, como sempre sonhei.Feito isso, abri a Bblia e no sabia o que ler. Resolvi, ento, comear pelos Salmos, pois sconhecia mesmo o 23 e o 91. Folheei o primeiro:

    Bem aventurado o homem que no anda segundo o conselho dos mpios, nem se detm no

    caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores.Antes tem o seu prazer na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite. Pois ser

    como a rvore plantada junto a ribeiros de guas, a qual d o seu fruto no seu tempo; as suasfolhas no cairo, e tudo quanto fizer prosperar.

    No so assim os mpios; mas so como a moinha que o vento espalha.Por isso os mpios no subsistiro no juzo, nem os pecadores na congregao dos justos.Porque o SENHOR conhece o caminho dos justos; porm o caminho dos mpios perecer. Achei bem propcio ao momento, era a descrio perfeita para o pblico do meu quarto

    na noite anterior: a roda dos escarnecedores. Era bom lembrar o meu lugar sem me sentirextremamente... moralista (aquela palavra ainda estava me incomodando).

    Fiquei mais alguns minutos contemplando a paisagem e sentindo o sol aquecer a minhapele, me sentia revigorada e merc dos elementos da natureza. Aps alguns instantes melevantei e caminhei at a beira do lago. Abrindo os braos, me espreguicei e levantei a cabeapara o cu quando, subitamente, algum comentou:

    Que lindo dia, no ?Apanhada de surpresa, ao virar para trs deixei minha Bblia cair no lago. Era Rico, ainda

    mais lindo sob a luz do sol. Seus olhos verdes reluziam na pele suada e rosada. Estava decamiseta, bermuda e tnis, com um MP4 pendurado no brao. Sem ainda falar nada, contempleiminha Bblia no fundo raso do lago. Antes que eu me abaixasse, ele a pegou para mim.

    Ser que toda vez que eu deixar algo cair, ele vai aparecer? Encharcou! constatou ele, segurando o volume pela capa. Mas no uma

    literatura difcil de encontrar...No gostei muito da palavra literatura para o que eu aprendi a considerar A Palavra de

    Deus. Ento, retruquei:

  • No o que dizem na ndia... Ainda bem que voc no caiu tambm disse ele, mudando de assunto e me puxando

    para longe da margem do lago. O que faz aqui, Angelina? Estava procurando um lugar tranquilo para ler, e voc? Sempre corro de manh quando estou por aqui (informao registrada), minha aula

    s s 10 horas.Claro que essa boa forma no cai do cu. Bem, a minha daqui a... dez minutos constatei ao olhar a hora no celular.Peguei minha mochila e fui andando com ele de volta ao campus. O que est ouvindo? perguntei, apontando para o MP4. No da sua poca zombou ele. E de que poca voc , meu idoso professor? provoquei de volta. Da poca em que se faziam boas msicas brincou ele. Afinal, quantos anos voc tem? perguntei, aproveitando o ensejo. 27 respondeu ele. Fao 28 no ms que vem, em abril. bem novo para um professor de faculdade, no? elogiei. No para os competentes! gabou-se ele.Chegamos diante do campus e ele disse que iria para a repblica, precisava tomar um

    banho. Nos despedimos e enquanto eu subia os poucos degraus da escada pensando em dar umaespiada pra trs, ele me chamou:

    Angelina?Virei-me na hora. Quelqu`un m dit, de Carla Bruni disse.Franzi a testa sem entender. A msica! esclareceu, balanando o aparelho de som.Fiz um sinal positivo com a cabea como se tivesse ideia de quem se tratava e me voltei

    para a escada, pensando em me atualizar musicalmente com urgncia. Foi quando esbarrei emMichele, que estava saindo.

    Socializando, hein gata? isso a! disse ela com uma vozinha cantante enquantocaminhava na direo de uns quiosques de lanches que ficavam no gramado. Fingi no entender.Pude notar a loira de mecha azul me encarando com uma expresso indignada enquanto andava.Talvez ela no tivesse gostado de eu ter acabado com as festinhas no quarto.

    Nesse dia as coisas fluram mais normalmente. Todos os professores vieram, masministraram pouca matria. Eu J tinha alguns livros para comprar, ento resolvi ir ao shoppingmais prximo para encontrar uma livraria. Peguei as informaes de como chegar com umaaluna da minha sala e depois de almoar na cantina segui, sozinha.

    Logo ao entrar no shopping dei de cara com uma mega livraria e fiquei feliz por estarresolvendo tudo sozinha. At ento, minha me sempre tinha comprado meus livros didticos eeu raramente a ajudava. Ao invs disso, ficava perdida na livraria comprando o mximo deromances que pudesse. Aquele era o meu ambiente favorito.

    Achei quase tudo que precisava e fiquei calmamente vagando por ali, fiscalizando todasas novidades. Encontrei um cibercaf e fui consultar meus e-mails. Aps mandar mensagenspara meus pais e para Natasha, voltei a caminhar procurando a sesso de best sellers. Achei quecomprar um livro novo para distrair a cabea seria uma boa, j que os meninos da repblicamonopolizavam a televiso. Chamou minha ateno uma seo de CDs e DVDs. Eu no meinteressava muito por msica, mas resolvi procurar o CD de que Rico falara mais cedo. Assimque achei, o inclui nas minhas compras, no via a hora de podermos conversar sobre a minha

  • mais recente aquisio.Ainda era cedo quando fiquei enfadada e resolvi voltar para a repblica. Um sono

    avassalador me dominou no nibus, segurei firme os olhos abertos para no perder o ponto ondedevia descer. Quando cheguei, fui direto para o quarto, joguei as coisas no cho, troquei de roupae ca na cama. Graas a Deus Michele no estava. Adormeci profundamente, alis isso nunca foiproblema para mim, s que dessa vez tive um sonho muito diferente.

    Sonhei que estava correndo num enorme parque onde que no se podia contemplar o fim.Eu ainda era criana e devia ter uns oito anos. Estava de vestido branco, brincava e pulava semparar. Subitamente, enxerguei uma escada de sete degraus, que descia em direo a umafloresta distante. Era como se eu estivesse no segundo andar do parque. Do lado esquerdo decada degrau da escada havia sete homens altos e vestidos de branco. Todos olhavam na minhadireo. Na minha concepo, pareciam anjos. Cada um deles segurava uma bandeja de prata eem cima delas havia uma ma. Por algum motivo insondvel, aquelas no eram como as outrasmas. Eram magnificamente vermelhas e extremamente aromticas, reluziam ao sol aindamais do que a prpria bandeja, destacando-se na paisagem verde. Seu perfume me atraiuintensamente. Incitada, resolvi me aproximar e desci o primeiro degrau, pois cobiava v-lasmais de perto. O primeiro homem estendeu a bandeja para mim e, amistoso, ofereceu-me.Retribu a simpatia, mas fiquei em dvida se deveria peg-la. Ele se posicionou na minha altura,fitando-me nos olhos e mais uma vez ofereceu-me a fruta. Ela era to apetitosa, e eu estava comtanta fome... O desejo de obt-la era quase inevitvel. Argumentei comigo mesma que nohaveria problema em somente toc-la e o aparente anjo continuou me encorajando. Trouxe-apara mais perto da boca e fechei os olhos, inspirando profundamente. No podia resistir atamanha formosura. Queria ter a liberdade de com-la, no vi nada nem ningum que pudesseme impedir, e eu salivava cada vez mais. Regida pelo meu impetuoso desejo, no aguentei maise a mordi com toda fora. O sabor espalhou pelo meu corpo uma sensao de satisfao eprazer. Era sem dvida a coisa mais deliciosa que eu j tinha comido na minha vida. Meus pscomearam a esquentar e o calor foi subindo pelo meu corpo devagar, at alcanar a minhacabea. Estava to satisfeita que comecei a danar enquanto comia. Girava embevecida e adesfrutava, satisfeita. Agora sentia o sol bater no meu corpo mais ardentemente. Saboreei a frutaat no sobrar mais nada.

    Acabei de lamber os dedos e me virei para agradecer. O homem posicionou a bandeja deprata vazia virada para mim, exibindo meu prprio reflexo. Desalentada, notei que estava com aminha aparncia atual, no era mais uma menina e sim uma mulher. Ainda assombrada com aabrupta transformao, vi quando a bandeja caiu das mos dele e foi ao cho. Aquele que asegurava comeou a tremer e tambm a se converter em outra coisa bem diferente. Como seassistindo a um truque de ilusionismo, pude contemplar em que se tornara. Ainda no acreditavaquando testemunhei, atnita, o surgimento de um grande leopardo na minha frente. Rpido, elepulou escada abaixo e correu para a longnqua floresta no me dando tempo de agradecer-lhe,nem de entender o acontecido. Foi ento que um estrondo de porta batendo me acordou. EraMichele entrando no quarto.

    Desculpe, no sabia que voc estava dormindo aqui, pensei que ainda estivesse noshopping.

    No, tudo bem agradeci. J estava mesmo na hora de eu acordar.Verifiquei as horas e j eram seis da tarde, tinha dormido durante umas trs horas

    seguidas. Levantei e joguei gua no rosto para despertar. Enquanto isso, Michele pegou suascoisas e foi ao banheiro do corredor dizendo que ia tomar banho. Comecei a preparar um caf,ainda pesada pelo sono, e o sonho se repetiu todo na minha mente. Era estranho porque eu

  • sempre dormia to profundamente que nunca me lembrava de nada, mas aquele sonho estavaespecialmente ntido na minha cabea.

    Tomei o caf, escovei os dentes, peguei um dos livros que havia comprado e resolvidescer para, quem sabe, cruzar com meu maravilhoso professor. Eu sabia que no acontecerianada entre ns, tudo ficaria somente na minha cabea. Afinal, o que ele iria querer com umapirralha sem assunto como eu? Nem de msicas poderamos falar, ele estava muito alm demim. Por certo, eu no deveria nem estar pensando naquilo. Alm do mais, deveria existir umcdigo de tica na profisso a respeito de envolvimentos de professores com alunos e, claro queum homem lindo como aquele no deveria estar sozinho. Mesmo assim ele era um deleite visual,e olhar no iria me matar.

    Quando sa no corredor me arrisquei, em vo, a tentar ouvir a voz dele no quarto. Desci asescadas vasculhando cada canto e pela primeira vez a saleta estava vazia. Sentei no sof emfrente televiso desligada e, frustrada, abri o meu livro. Mal comecei a ler o prefcio eRaimunda adentrou na saleta acompanhada de sua vassoura.

    Parece que estou sempre te interrompendo, no querida? disse ela, sorrindo, masum pouco abatida.

    Claro que no, Raimunda, j estava mesmo estranhando isso aqui to calmo hoje. Est tendo chopada na outra repblica do campus, todo perodo que comea a

    mesma coisa, tudo motivo de festa. Voc no vai? Nem estava sabendo, mas no conheo ningum l e tambm no gosto de agitao

    respondi, tentando no parecer excluda. Afinal, nem a Michele tivera o trabalho de me convidar.Tambm, pensei, no gostaria de sair com um grupo de meninas que teria como nico objetivoacabar a noite bbadas, nos braos de um estranho.

    De repente, fui acometida por pensamentos apavorantes:Ser que por isso que ele no est aqui? Ser que ele est l, com milhes de alunas mais

    bonitas do que eu, se oferecendo para ele? No, ele no me parece esse tipo ftil, pensei tentandome consolar.

    Ser que existe algum cdigo de tica para isso tambm, proibindo professores decomparecer a esses despudorados eventos? Tomara que sim...Ai droga, por que eu ainda estoupensando nisso?

    Novamente Raimunda me resgatou de meus delrios. Voc me parece uma menina muito especial, diferente das outras daqui. Espero que

    continue assim com o passar do tempo torceu, suspirando.Nesse momento avistamos Michele descendo a escada toda emperiquitada e acendendo

    um cigarro. Vestia um casaco e um short mnimo. Afinal, ela estava com calor ou com frio?Usava tambm um salto alto e uma bolsinha pequena com a ala atravessada no peito. Suamaquiagem forte contrastava com seu rosto ainda meio infantil.

    Assim que chegou at ns, dando uma voltinha, inquiriu: O que acha? Aprovada?Olhei para Raimunda, a mesma arregalou os olhos em minha direo franzindo a testa e

    logo comeou a varrer. Achei que a verdade seria muito rude e somente balancei a cabeasoprando um falso ahn ahn.

    Talvez eu durma fora hoje de novo, se estiver com sorte, claro! profetizou, rindo. No me espere.

    Soltou um beij inho e saiu pelo porto. Acho que vou continuar como estou afirmei eu, me voltando para Raimunda e

    revirando os olhos.

  • Estava no final do primeiro captulo, enquanto Raimunda varria e tirava o p da sala,quando ouvi um barulho e olhei para trs. Ela derrubou um livro da estante enquanto tentava seapoiar para no cair, ficou ereta novamente e encostou a mo na testa com os olhos fechados.Rapidamente me desloquei em sua direo para me certificar de que ela estava bem.

    s uma tontura, estou um pouco gripada informou ela.Segurei em seu brao para ajud-la a caminhar at o sof e percebi que ela estava

    queimando. Raimunda, voc est com febre! No deveria estar aqui e sim em casa, descansando. No posso querida, se faltar me descontam o dia, j ganho to pouco aqui, meu marido

    est desempregado e ainda ajudo minha filha, que me solteira, a criar minha neta. Ela cuidado pai enquanto estou trabalhando.

    Seu marido tambm est doente? No, graas a Deus, mas ele ficou cego depois de velho e no gosto de deix-lo s. Mas no podem te descontar se voc est doente! V pro hospital e consiga um

    atestado, diante da lei estar protegida. Minha filha lamentou ela , se for ao hospital pblico hoje por causa de uma gripe,

    passaro todos na minha frente e s sairei de l, talvez, amanh. Vamos! J tarde e voc j cumpriu o seu turno, eu te levo pra casa ordenei

    ,decidida. Mas ainda falta tirar p de alguns mveis... relutou ela. Eu termino quando voltar e amanh a senhora no vem. Deixe que eles descontem e

    eu te pagarei uma diria. No tenho gasto muito dinheiro por aqui e tenho umas reservas. No posso aceitar, isso no seria justo... Eu fao questo! insisti. Ento, fico lhe devendo uma faxina especial no seu quarto para compensar. Fechado! concordei, encerrando o assunto.Caminhei alguns metros com Raimunda apoiada em mim e vi que atrs da repblica

    existia uma casinha pequena, branca, com uma janela azul. Ficava margem do mesmo lagoonde eu estivera pela manh. Havia alguns arames pendurados de um lado a outro com algumasroupas de criana, pneus encostados na parede e duas galinhas passeando em volta. Quandochegamos, antes de cruzar a porta ouvi uma voz masculina que saa do interior da casa.

    Oi meu amor, j est tarde, estava te esperando. Como voc est?Entramos e vi um senhor negro, alto e grisalho. Estava sentado em um sof de dois

    lugares, velho e meio rasgado. Em frente havia uma cadeira vazia. Percebi que a casa tinhasomente uma sala, um banheiro e um quarto. Os mveis eram velhos e tinha um pouco de mofono teto e nas paredes, mas fora isso parecia muito limpa e arrumada.

    No outro lado da pequena sala, num colchonete velho dormia uma criana linda, mulata,bem mais clara do que eles. Estava de chupeta, vestindo um macaco rosa e com algumasbonecas em volta. Era menina e devia ter uns trs anos.

    Percebi um barulho de panela de presso que vinha de dentro da cozinha. Dela saiu umamoa negra, alta, com um vestido bege at os joelhos, que marcavam uma cintura fina. Seusbraos eram bem delineados e, apesar do vestido discreto, dava para ver que era muito bem feitade corpo. Devia ter em torno de vinte 25 ano, seu cabelo era bem curto e tinha os mesmos olhosde Raimunda. Vinha enxugando as mos com um pano de prato e ao me ver perguntou,assustada:

    O que aconteceu? A senhora passou mal, no foi? Eu disse que iria no seu lugar, mas asenhora to teimosa...

  • Ela est com febre revelei, interrompendo-a. Meu nome Angelina insistipara que ela viesse logo.

    Obrigada. Eu sou Carla e esse meu pai, Amino. Minha me muito cabea dura, euqueria ir no lugar dela mas...

    Voc no sabe limpar direito! Seu negcio cozinhar! resmungou Raimunda,tremendo de frio.

    Carla pegou um cobertor de l azul marinho e cobriu as costas da me. Eu podia sentir ocalor familiar que emanava daquele lugar.

    Temos um antitrmico da Carina aqui disse Carla. Deve servir para a senhora.Vou lhe dar uma quantidade um pouquinho maior. V se deitar, levo sua sopa na cama. Amanheu vou no seu lugar.

    No ser necessrio... anunciou Raimunda. A senhora no vai! esbravejou Carla, sria, com as mos na cintura. Eles podem

    respirar poeira por um dia e nem vo notar. S vivem bbados e fazendo baguna... subitamente ela se conteve e me olhou, arrependida.

    Desculpe, no quis dizer isso. Voc foi muito gentil em vir aqui e... No se preocupe falei Ela conseguiu uma dispensa para amanh.Carla me olhou estupefata e depois voltou-se para a me, exclamando: Que milagre foi esse? Eles nunca te deram folga... As coisas mudam minha filha, Deus sempre nos surpreende... declarou Raimunda. Aleluia! festejou a filha, virando-se para mim pela primeira vez e com um grande

    sorriso nos lbios. Seus dentes eram perfeitos e muito brancos, ela era mesmo uma mulher muitobonita.

    Bem, vou indo, melhoras Raimunda! Cumpra o combinado e se precisar ficar mais deum dia em casa, s avisar falei, dirigindo-me para a porta.

    Quem voc? Filha do diretor do campus ou coisa assim? indagou Carla em tom debrincadeira.

    Quase isso brinquei. Do dono de tudo! Ento, temos o mesmo pai disse ela dando uma piscadinha.Entendi que ela falava de Deus assim como eu e fiquei feliz por t-los ajudado. Volte sempre que quiser. Na verdade, espere um minuto! ordenou ela, entrando e

    voltando poucos minutos depois com um pote enrolado em um pano. Est fervendo, acabei defazer. uma simples sopa de legumes, no sei se gosta. Mas como minha me disse, na cozinhaeu sou boa, tem um pouquinho de carne tambm.

    Recebi feliz aquele presente por saber que teria um jantar digno,que eu jamais fariasozinha. Agradeci sinceramente e fui embora.

    Quando subi as escadas e entrei na repblica me lembrei de que ainda tinha que limparalguns mveis para Raimunda,como havia prometido. Um desnimo bateu, mas me senticompelida a seguir em frente e fui pegar o pano,apoiando minha janta no sof.

    Comecei a limpar de onde ela havia parado. Estava quase acabando quando olhei orelgio e vi que j eram mais de 11 horas, a sopa com certeza j estava fria. Limpava a ltimaprateleira no momento em que fui surpreendida.

    Tem algum que paga para isso, sabia? Voc tem TOC ou coisa assim?S a voz j me fez estremecer. Quando me virei, Alderico estava encostado na porta,

    sorrindo para mim. Guardei o pano sem graa e relatei o ocorrido. Quer dizer que tem uma sopa fresquinha nesse pano, ? ameaou ele, fingindo que

    ia pegar. Estou morto de fome! Esses meninos nunca cozinham.

  • Bem, no muito, mas se quiser dividir... propus, de imediato. Alis, jantar com eleseria muito mais apetitoso.

    Nem vou me fazer de difcil disse ele, pegando o pote , mas precisaremosesquent-la constatou.

    Tem um fogozinho no meu quarto... ofereci, sem pensar. Beleza, vamos l. Disse ele pegando a sacola super rpido e comeando a subir a

    escada. Limpei as mos na cala e segui atrs dele, arrependida, pensando se no teria parecidooferecida ao falar do fogo no meu quarto. Decidi de forma resoluta que pensaria melhordaquele momento em diante quando abrisse a boca perto dele, que confundia meus sentidos deforma inexplicvel.

    Paramos em frente porta do quarto e eu a abri sem olhar para ele. No repare a baguna pedi.Convenhamos, s do lado da Michele. No esquenta, j estou acostumado.Mirei-o com cara de interrogao. Ele j esteve aqui? Rapidamente ele captou meus

    pensamentos e se defendeu, erguendo as mos: No, quer dizer, acostumado com a baguna dos alunos por aqui.Que alvio! Peguei uma panela e coloquei a sopa dentro, acendendo o fogo para

    esquentar. Quando me virei, ele olhava minhas fotos na parede. Senti-me um pouco constrangidapois estava bem infantil naquelas fotos. Ele apontou para uma foto minha e de Dante juntos noaniversrio da Natasha e perguntou:

    seu namorado? No! disparei. um amigo. Um amigo homem... falou ele, meditando. No de se estranhar, voc muito

    fcil de conversar.Recebi contente o elogio. Est sentindo muita saudade de Petrpolis? perguntou ele, distrado. Como sabe que sou de Petrpolis? indaguei, envaidecida com a revelao. As notcias correm rpido por aqui respondeu ele baixando os olhos

    disfaradamente.Ser que ele perguntou sobre mim por a? Que sacola essa aqui no cho? Parece um CD, novo? perguntou ele retirando o

    CD da sacola enquanto eu podia sentir o calor subindo pelo meu pescoo. Foi impossvel no ficarvermelha.

    ... confirmei sem graa enquanto ele olhava o CD com um sorriso convencido. Comprei hoje. Na verdade, fui comprar uns livros e me lembrei do que voc tinha falado, sabe,sobre... boa msica, resolvi arriscar.

    Sentindo-me ridcula, comecei a catar as coisas do cho, toda agitada e enrubescendocada vez mais.

    E gostou? perguntou ele, candidamente. Ainda no ouvi, est lacrado no v? Posso? perguntou ele, ameaando abrir o CD. Fiz sinal que sim com a cabea, ele

    abriu e colocou-o no aparelho de som ao lado da cama da Michele. A msica realmente eratima e fez do quarto um ambiente romntico e sedutor.

    Senti um leve cheiro de queimado e, num sobressalto, me virei para desligar o fogo. Comoesquentou to rpido?

  • Sopa queimada... apontei, desapontada com meus dotes culinrios. Ainda vai? perguntei sem graa.

    Claro! respondeu ele, sem se abalar.Ele se levantou, pegou a panela sacando duas colheres de cima da pia e me oferecendo

    uma. Sentamos na beira da cama, esfomeados, e comeamos a comer da panela mesmo.Lembrei do filme A dama e o vagabundo: pena que no tinha espaguete para unir os nossoslbios...

    Eu estava estranhando aquela sensao, nunca tinha ficado to prxima de um homemmais velho, mas ele me deixava confortvel. A verdade que eu achava os garotos da minhaidade muito bobos e desinteressantes.

    Conversamos sobre vrias coisas, a maioria delas sobre mim. Meus sonhos, meus planos eminha famlia. Rimos com histrias engraadas que eu lembrava de vez em quando olhando asfotos.

    No meio da nossa agradvel conversa, meu celular tocou. Era meu pai. Que faro! Treminas bases. O que iria dizer? Que estava com um professor no meu quarto, quase meia-noite,tomando uma inocente sopa? Era a verdade bem, no to inocente da minha parte , masmeu pai iria pirar. Pensei em no atender, mas ele ligaria dezenas de vezes achando que fuiraptada ou algo parecido. Por que ele estava ligando to tarde? Ser que tinha acontecido algograve? Relutante, resolvi atender.

    Oi pai. cumprimentei, desanimada.Rico se endireitou na cama, parecia at que meu pai estava ali, achei engraado. Oi querida, est acordada? Sim, lendo menti, sorrindo para o Rico e me virando de costas. Aconteceu

    alguma coisa pra ligar a essa hora? No, ... sua me teve um sonho estranho e queria saber se tudo est bem.Lembrei do meu sonho, ser que era o mesmo? Que pirao, claro que no. Tudo em ordem pai, volte a dormir e no ligue mais to tarde, lembre-se que eu no

    moro sozinha, amanh cedo nos falamos. Espere! ordenou ele Deixa eu orar por voc.Fiquei vermelha. Agora no pai, amanh. Sua me no vai me deixar dormir se eu no fizer isso, ento, tem que ser agora!

    insistiu ele.Fiquei irritada com todo aquele empenho missionrio em orar por mim meia-noite, mas

    eu sabia que aquela discusso j estava vencida, ento tive que concordar. Comecei ouvindo aorao fingindo que ele ainda estava falando. No final sibilei um espirrado amm e medespedi.

    Virei-me para o Rico e ele j estava de p. Bem, vou indo, meu estmago est meio estranho... reclamou ele, passando a mo

    na barriga. Ser que foi a sopa? Eu estou bem... falei, em desalento por ter sua companhia

    podada. Com certeza tem a ver com a orao protetora do meu pai, imaginei desgostosa. No sei, mas melhor eu ir, amanh cedo dou aula pra voc, mocinha disse ele

    segurando meu queixo e dirigindo-se para a porta. Acompanhei-o e, antes de sair, ele se virou einclinou-se para mim como se fosse me beijar. Meu corao disparou. Fiquei catatnicaesperando sua reao. Ele me olhou por um segundo e depois passou a mo perto da minha bocapara tirar um resto de sopa. Ainda bem que no fiz um biquinho.... Ele riu discretamente

  • obviamente se divertindo com o meu susto , me deu um beijo na bochecha e disse: Obrigado pela sopa... e chegando mais perto do meu ouvido, sussurrou: voc

    um anjo.Quando ele se foi, eu ca de costas atrs da porta para no desmaiar.O que foi aquilo? Por que ele chegou to perto? Ser que eu estou sonhando?Fui arrumar o quarto, sorrindo de vez em quando ao me lembrar da cena, parecia uma

    idiota. Quando me deitei, procurei o cheiro dele ao redor, mas no achei. Dormi em paz esorrindo, no via a hora de chegar o dia seguinte.

    CAPTULO IVO CU

    Infelizmente, independente

    Acordei para me arrumar mais cedo do que no primeiro dia. Tentei me maquiar, mas como notinha o hbito me senti ridcula para aquela hora da manh. Troquei de roupa umas quatro vezes,prendi e soltei o cabelo umas quinze. Eu estava esquisita. Muito vaidosa s para um dia de aula.No podia evitar que a cena do dia anterior povoasse meus pensamentos matinais. Escovei osdentes e coloquei um perfuminho de leve, caso algum se aproximasse tanto novamente. Eusabia que algo no estava certo naquilo tudo, mas estava to bom, por que parar? Afinal, nadahavia acontecido... ainda.

    Quando enfim estava pronta, me olhei no espelho para uma ltima conferida. Decidi queiria deixar a franja crescer para parecer um pouco mais velha.

    No campus fui direto para a minha sala. Fui a primeira a chegar e escolhi uma cadeira naterceira fileira para no dar muita bandeira. Virei meu cabelo de lado e comecei a fingir queestava lendo um dos livros que ele recomendou. Pela fresta do meu cabelo jogado dava paraenxergar a porta, assim ele no veria que eu estava vigiando-a de soslaio para quando eleaparecesse. Os alunos chegaram e ele tambm. Fingi no tomar conhecimento da sua presena econtinuei lendo. Ele pigarreou alto, olhando e rindo para mim, se fazendo notar. Ri de volta esussurrei: Desculpe. A aula prosseguiu normalmente, mas parecia que nunca ia acabar. Eu estava louca paraestar a ss de novo com ele. Diferente da primeira vez, ele caminhava por entre as carteiras enquanto falava, fazendo osalunos rirem de vez em quando. No sei se ele tinha ideia do quanto era encantador. Cada paradadele dava uma foto, to lindo ele era. Em certo momento, ele passou pela minha mesa e deixoucair um pequeno papel, sem que ningum visse. Meu estmago embrulhou de nervoso e me senticomo se fosse uma criana no quinto ano. Seria realmente para mim? Procurei-o com o olharpara confirmar se era, de fato, para eu abrir. Mas ele me ignorou, continuando a dissertar.Impaciente, abri imediatamente o papel no meu colo, onde estava escrito: Meu anjo, te devoum jantar.

    Quase ca da cadeira. Aquilo no era real, ele estava mesmo me assediando. Meu corpocomeou a tremer com a possibilidade. Enquanto era s uma fantasia da minha cabea eu estavame divertindo, mas agora parecia que ia pirar.

    O que eu iria fazer? Onde estava Natasha agora para me aconselhar? quela hora ela

  • devia estar na Europa e eu no podia ligar para ela. Podia mandar um e-mail, mas ser que elame responderia at o jantar? Ela se correspondia comigo todos-os-dias, mas s noite e at lpoderia ser tarde. Tambm no podia ligar para minha me, seno ela iria arrumar umadvogado para process-lo por corrupo de menores, mesmo eu no sendo mais menor. Noimpasse dessa deciso, todo o resto perdeu a relevncia, no consegui ouvir mais nada naquelaaula, s pensando no que iria fazer. A aula acabou e permaneci paralisada. Guardei o materiallentamente enquanto os alunos iam se retirando. Quando levantei, o ltimo j estava saindo e euestava vermelha como um camaro. Alderico me acompanhou at a porta e me cumprimentou,receoso.

    Tudo bem com voc? Sim disse eu, umedecendo os lbios para conter o nervosismo. E ento? indagou ele. E ento o qu? repeti, indecisa. O jantar. Hoje? Amanh? melhor um almoo sugeri, desesperada. Eu durmo cedo. Mas voc janta todos os dias, no ? ironizou ele. Tudo bem, ento. Almoamos

    hoje e jantamos quando voc quiser. Assim, voc vai me dever mais um almoo e eu te devereium jantar, s ento ficaremos quites.

    Fechado! consenti, aliviada.No sabia como me comportar num jantar romntico, se que era isso mesmo... Bem,

    para estudar que no devia ser. De qualquer forma, um almoo era mais informal. Mas no aqui... protestou ele, levando meu alvio embora. Te encontro no

    corredor ao meio dia.Passei o resto das aulas agonizando, me perguntando aonde iramos, as possibilidades

    eram infinitas. O que tinha de errado com o restaurante local? Resolvi enfrentar a realidade defrente: eu j era adulta e precisava aprender a me relacionar com maturidade, no precisavatemer.

    Quando enfim nos encontramos ele pediu que eu aguardasse no banco do corredor ecorreu para o restaurante. Pensei que ele tinha mudado de ideia e que iramos almoar por alimesmo, o que me traria um grande alento. Alguns minutos depois ele retornou munido dealgumas sacolas e fez sinal para que eu o acompanhasse. No perguntei nada, apenas o segui. Eleentrou num porto de servio do corredor e comeamos a subir uma escada. Imaginei que haviaalgum restaurante de professores l em cima. Quando enfim no havia mais para onde subir, eleabriu uma porta e pude contemplar um cu ensolarado sobre ns. Estvamos no terrao dafaculdade e a vista da lagoa de cima era deslumbrante, a floresta tambm era maior do que eupensava. Ele tirou da sacola uma toalha de mesa igual do restaurante e forrou o cho. Entendique se tratava de um piquenique e achei tudo maravilhoso. Ele tinha pedido pores de vriascoisas para eu escolher. E eu como sou boa boca, comi um pouquinho de tudo, ainda bem quenunca tive tendncia para engordar.

    O sol estava forte, mas corria uma brisa que amenizava o calor. Ele segurou as pontas dacamisa com os braos cruzados e perguntou: Se importa? Acenei que no com a cabea,comendo uma batata frita. Vidrei os olhos nele, apatetada, enquanto ele tirava a camisa e apendurava no pescoo. Era a viso do paraso...

    Conversamos mais do que na noite anterior e dessa vez foi ele que me contou histriasengraadas do tempo da faculdade. Em certo momento, no encontrando uma explicaoplausvel para ele querer estar em companhia de uma fedelha como eu, questionei-o com umaexpresso intrigada.

  • Voc no acha isso esquisito? O qu? indagou ele, sereno. Eu e voc... aqui. Voc professor, eu aluna. Nossa diferena de idade tanta, no sei

    como voc aguenta ouvir minhas idiotices... conclu, balanando a cabea.Ele olhou para o cho e riu num suspiro rpido. Depois, respondeu: Bem, sim e no. Estou aqui h muito tempo e me considero... parte daqui. Como

    estudei nessa faculdade, me sinto mais parte dos alunos do que dos professores, que so bemmais velhos do que eu vangloriou-se ele. E voc ... diferente das outras meninas, maisautntica. No vazia, sabe? Veio para c com um objetivo maior e no s para se divertir. Adiferena de idade no aparece tanto com pessoas assim, maduras como voc.

    Claro que me senti muito bem com esse comentrio dele, apesar de ter certeza que eleno me conhecia o suficiente. Relaxei, achando que a minha pergunta tinha sido mesmodespropositada.

    Acabamos de comer, guardamos os restos para os gatinhos e juntamos o lixo.Levantamos para partir e ele me olhava mais srio, porm com um sorriso no canto dos lbios.Como ele podia ser professor? Deveria ser modelo...

    Para o meu descontentamento, ele infelizmente vestiu a camisa e depois abriu a portapara descermos. Passei na frente dele e ao descer os primeiros degraus me dei conta de quehavia esquecido meu celular no cho, l em cima, enquanto arrumava as coisas. Virei para trspara subir e peg-lo quando dei de cara com ele que, estranhamente, no saiu da minha frente deimediato. Ficou parado, me olhando nos olhos a centmetros do meu rosto. Senti que minhaspernas iriam falhar. Como eu podia estar to envolvida em apenas trs dias? Seu rosto eraperfeito, seus olhos eram doces e miravam a minha boca. Eu desejava que ele no fosse toatraente.

    Esqueci o celular revelei, no me movendo um centmetro. Est aqui sussurrou ele, levantando a mo direita sem sair do lugar. Obrigada peguei o aparelho constrangida, sem saber o que fazer. Queria voltar a ser aluno... s vezes. confessou ele com um sorriso irnico. Queria ser professora, como voc agora... devolvi, no acreditando no que estava

    dizendo.Ele se aproximou da minha orelha como se fosse dizer alguma coisa, mas no disse nada.

    Cheirou meu cabelo como se cheirasse uma rosa, desceu o nariz pelo meu rosto at ficar maisperto da minha boca. Ns dois pudemos sentir o calor do corpo um do outro. Fiquei em dvida seele podia ouvir as palpitaes do meu corao. Estvamos na escada e no havia ningum emvolta, nenhuma testemunha caso algo acontecesse. Afinal, o que eu sabia da vida? Como podiajulgar sentimentos que no conhecia? Minha vida toda fora monitorada por meus pais e elesfalavam de casamento como algo to puro que chegava a ser entediante. Eu no sabia quepoderia sentir algo assim, uma desenfreada vivacidade. Minha cabea saiu de circuito e meucorpo comeou a tremer de leve. Ele colocou a mo na minha nuca e foi enfiando os dedos pelomeu cabelo. Toquei no peito dele delicadamente. Com esse meu gesto, ele entendeu que eutambm o queria e depois de me avaliar por mais dois segundos, me beijou. Larguei tudo nasescadas e correspondi ao beijo, intensamente. Ele desceu a mo para a minha cintura e mepuxou para mais perto dele, fazendo meu corpo disparar uma descarga eltrica. Eu noacreditava que aquilo estava acontecendo. Subitamente ele parou, abaixou o olhar e falou,encostando a testa na minha:

    Eu estou ficando doido.Eu ri, pensando a mesma coisa, e meus olhos brilharam. Ele segurou a minha mo e me

  • conduziu descendo as escadas. Quando atravessamos o porto para o corredor principal ele mesoltou e eu compreendi.

    Andamos lado a lado sem dizer nada. Eu s queria pular no pescoo dele de novo.Chegamos no porto de sada da faculdade, ele se virou para mim com um leve sorriso, disse queainda tinha aulas para dar e que mais tarde a gente se veria na repblica. Mirou novamente aminha boca por alguns instantes, percebi que ele pensava no mesmo que eu, e depois se foi.

    Eu no estava acostumada a uma vida com tantas emoes. Parecia que estava vivendouma das histrias de um dos meus livros favoritos. Uma parte de mim dizia que aquilo tudo erato... errado. Mas ao mesmo tempo, por que tudo isso estava acontecendo comigo? No seria umplano de Deus que eu entrasse na vida do Rico para que ele pudesse conhec-lO? Claro que euno era nenhum exemplo de virtude, mas pelo menos vinha de uma famlia crist, o que j deviame garantir algum pedacinho do cu, eu achava. Tinha que concordar que quando estava pertodele esquecia completamente que existia qualquer coisa alm dele. Comecei a entenderperfeitamente o que Paulo dizia em sua carta aos romanos e que meu pai sempre repetia paramim:

    Porque o que fao no o aprovo; pois o que quero isso no fao, mas o que aborreo isso

    fao. E, se fao o que no quero, consinto com a lei, que boa. Porque no fao o bem que quero,mas o mal que no quero esse fao. Ora, se eu fao o que no quero, j o no fao eu, mas opecado que habita em mim.

    A verdade era que eu queria ter feito tudo que havia feito e no conseguia me arrepender

    de nada. Senti-me um pouco culpada lembrando dessa passagem, mas decidi esperar para ver oque iria acontecer. Iria tentar tocar no assunto Deus da prxima vez que estivesse com ele paraver sua reao. Meu pai jamais aceitaria que eu namorasse algum de outra religio.

    Namorar... Ser?Passei a maior parte da tarde comeando realmente a ler os livros indicados. No

    consegui me concentrar muito tempo pois aquele beijo povoava minha mente a cada cincominutos. Eu devia ser muito diferente das outras meninas dali como ele falara e no acreditavaque tinha atrado aquele ser to encantador. J devia estar lendo h umas duas horas e nempercebi quando adormeci com o livro em cima do peito.

    Novamente eu estava no parque do meu sonho anterior. Sondei em volta e sabia queestava procurando algo. Olhei para o meu corpo adulto e me lembrei de tudo: daquela frutadeliciosa, da sensao maravilhosa que ela provocara, daqueles anjos de branco... Sabia quehavia mais alguma coisa, mas s me lembrava at a. Procurei novamente a escada. Comecei acaminhar seguindo em frente, a certa altura inspirei um cheiro delicioso e o segui. Ao meaproximar do local certo, pude ver que a cena se repetia com poucas alteraes. Os homensestavam l, de p, menos o primeiro que se fora. As bandejas agora estavam lambuzadas de mele o mesmo era brilhante e muito apetitoso. Desci dois degraus e parei na frente da bandeja. Osolhos do homem que a segurava eram doces e ele me esticou a bandeja para provar. Olhei paraele rindo e estiquei o brao para tocar o mel, sem medo. Nesse momento senti uma mo no meuombro que me deteve, olhei e no vi ningum, mas parecia ter ouvido a voz de um amigo.Voltei-me de frente e continuei em direo ao mel, lambuzei o dedo indicador e o coloquei naboca. Seu sabor era ainda mais gostoso do que o da ma. Ele me dava... felicidade! Desfrutei detudo que podia, rindo e danando como antes. No s comia, mas tambm passava pela minhapele. Nada mais importava, eu estava completamente absorta pela aquela sensao energizante.Quando me saciei, virei-me para o homem decidida a agradecer dessa vez, mas ele j havia

  • posicionado a bandeja de prata virada para mim e pude ver meu reflexo no espelho. Fiqueideliciada com o que vi, me senti a mais desejada das mulheres. Eu estava muito mais bonita,aquele mel tinha me revigorado de forma maravilhosa. Minha pele rosada parecia de seda, meusolhos possuam um brilho diferente e meus cabelos balanavam, pesados com o vento, era comose eu tivesse sido finalmente lapidada. Eu girava admirada, me certificando que era mesmo omeu reflexo. De repente, a bandeja caiu me distraindo da minha beleza. O homem, que atento me admirava, comeou a se retorcer como da primeira vez, e vi que se transformava emalguma coisa, s que agora bem maior. Tremendo, comecei a definir os traos que se formavamat que percebi que ele estava se tornando um grande urso. Transfigurado, ele me encarou nosolhos e me farejou como se estivesse checando algo. Fiquei paralisada de medo e no reagi.Depois de alguns segundos ele se virou e correu para a floresta. Observei-o indo embora,assombrada com os acontecimentos. Olhei para a bandeja no cho e sorri, me lembrando daminha nova imagem. Sentei-me e peguei-a para me apreciar mais um pouco. Hipnotizada,esqueci completamente do perigo que corri minutos antes. Eu estava to linda...

    Acordei uma da manh, desesperada por ter perdido a oportunidade de ver o Riconaquela noite. Ser que ele pensou que eu no queria v-lo? Porcaria de sono pesado! Lembrei-me daquele sonho maluco e me olhei no espelho, estupidamente esperanosa de ver algumamudana. Estava toda descabelada e com um lado do rosto vermelho e amassado. A realidadeera cruel, mas estava muito irritada para me concentrar naquilo. Michele j estava dormindo.Decepcionada, depois de fazer um lanche fui dormir de novo, desta vez sem sonhos.

    Despertei cedo como no dia anterior e estava bem disposta pois tinha dormido muito.Tomei caf, percebi que teria que fazer umas comprinhas no final de semana, me arrumei edesci. Nenhum sinal dele. Caminhei at o campus observando cada caminho por onde elepoderia estar correndo. Nada. Como estava cedo fui ao refeitrio ver se ele estava l, nem sinal.Conferi todos os sete corredores da faculdade, de sala em sala, para ver se o encontrava, perdimeu tempo. Minha vontade era de dar com a mochila na cabea por ter dormido tanto na noiteanterior.

    Voltei para o corredor onde era minha sala e entrei, derrotada. Passou-se a primeira aula,a segunda, a terceira e a cada intervalo eu dava uma ronda pela faculdade. Como vigiava,enlouquecida, o corredor pela porta no ouvi nada do que os professores falavam. Finalmente asaulas acabaram e voltei repblica, abatida por aquela situao to angustiantemente indefinida.

    No dia seguinte, estava desesperada! Era sexta-feira e eu s teria aula com ele dali a trsdias, tempo mais do que suficiente para ele me esquecer. Eu no tinha ideia do que faria no finalde semana, s sabia que no iria a Petrpolis pois ali haveria maior possibilidade de encontr-lo.No tinha ideia de onde o procurar. Fui ao banheiro da repblica s para passar em frente aoquarto em que ele ficava e tentar ouvir algum barulho dele, mas no ouvi. Voltei ao quarto paradeixar minhas coisas e resolvi que iria ficar de sentinela na sala de baixo para ver se ele passava.Peguei meu livro e desci. Li seis captulos do livro, chequei meu email e passei a tarde beliscandobiscoitos. A fonte de comida estava mesmo acabando. s seis da tarde resolvi ir tomar um banhoe voltar para o quarto. Desceria de novo mais tarde.

    Quando estava no quarto penteando o cabelo bateram na porta. Estranhei, pois geralmenteMichele e suas amigas vinham entrando. Imaginei ser Raimunda para pagar a faxina que medevia, mas claro que no iria querer faxina quela hora. Ao abrir a porta, as nuvens-cor-de-rosa voltaram a aparecer. Encostado