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Universidade de São Paulo
Daniela Fernanda Gomes da Silva1
Conexões diaspóricas
a black music2 como elo nas relações raciais Brasil-Estados
Unidos3
Trabalho apresentado durante o Colóquio
Internacional Culturas Jovens Afro-Brasil
América: Encontros e Desencontros
Realizado pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo
São Paulo
2012
1 Jornalista graduada pela Universidade Metodista de São Paulo, especialista em Mídia, informação e
Cultura pelo Celacc/ ECA - USP e mestranda no programa de Pós Graduação em Estudos Culturais da
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.
[email protected]/[email protected] http://afroatitudes.blospot.com 2 Neste artigo utiliza-se o termo black music em referência a gêneros produzidos nos EUA por cantores
negros entre a década de 70 e os anos 2000 entre eles o rhythm and blues, o rap, o hip hop e a soul
music. 3Este artigo é parte de pesquisa intitulada O Som da Diáspora – A influência da black music norte-
americana na juventude negra paulistana realizada no programa de Pós-Graduação em Estudos
Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, no mestrado em
Estudos Culturais sob orientação do Prof. Livre Docente Mauro de Mello Leonel Junior.
2
ABSTRACT
This work aims to observe the relationship between the Sao Paulo
Black youth and the American black music, where it works as a
link between two people of the African diaspora. The
comprehension of this phenomenon involves more than the study of
simple cultural manifestations, but also presents some social and
political aspects which influence in the formation of this group
identity. In a dynamic that started early in the 1970’s and extends
till nowadays, the participation in the named “black parties” works
as a link in the racial relations between Brazil and The United
States of America. Observing this phenomenon involves researches
about subjects as diaspora, and the creation of black people identity.
As methodology I use the bibliographical research, through books,
videos, sites and also observations through personal experiences.
Key Words: identity, black music, diaspora, black, cultura
RESUMO
O presente trabalho propõe uma observação da relação entre a
juventude negra paulistana e a black music norte-americana, onde
esta se apresenta como elo entre os povos da diáspora africana. A
compreensão desse fenômeno envolve mais do que o estudo de
simples manifestações culturais, mas apresenta também aspectos
sociais e políticos que influenciam na formação da identidade desse
grupo. Em uma dinâmica que tem início ainda na década de 1970 e
se estende até o presente momento, a participação nas chamadas
“festas blacks” serve como elo nas relações raciais entre Brasil e
Estados Unidos. Para observação desse fenômeno realiza-se
pesquisa sobre temas como diáspora e formação da identidade do
povo negro. Utilizo como metodologia a pesquisa bibliográfica, por
3
meio de livros, vídeos e websites e também observações realizadas
por meio de experiências pessoais.
Palavras-chave: identidade, black music, diáspora, negros, cultura.
Ao se refletir sobre a diáspora africana, uma das questões que se faz
presente no imaginário de pesquisadores em diferentes áreas
envolve quais são os possíveis elos que fazem com que povos
negros em diferentes países se sintam conectados de diferentes
maneiras e apresentem características semelhantes no que se refere
tanto a sua maneira de ser e agir, quanto aos problemas enfrentados
na sociedade.
Nesse contexto surgem estudos que envolvem diferentes áreas e
tornam significativa a observação das manifestações culturais como
chave para entender a conexão existente entre povos
afrodescendentes nas mais variadas localidades.
A importância dessa observação tem sido colocada em pauta por
pensadores desde que nomes, como W.E.B Dubois, definiram a
cultura como um dos principais elementos para a compreensão do
mundo negro.(GORDON, ANDERSON, 1999, p.285).
A partir da perspectiva das manifestações culturais como elemento
fundamental para o entendimento da diáspora este artigo apresenta
a conexão criada entre jovens negros paulistanos e a cultura urbana
afro-americana a partir de uma relação com o que foi denominado
por este próprio grupo como black music.
Entende-se aqui que esta ligação se deve ao uso da cultura como
instrumento para produção de uma identidade negra, dentro de uma
4
perspectiva política ou ideológica, em busca de uma proposta de
transformação da realidade desse grupo (MUNANGA, 2004, p. 33).
Nesse contexto, observa-se um fenômeno que ainda que não seja
novo, considerando-se que a relação entre a comunidade negra no
Brasil e os bailes já se desenvolvesse muito antes e que mesmo a
ligação com a música negra norte-americana também tenha tido
início pouco antes do período aqui abordado, mostra-se como um
marco importante da formação da identidade do povo negro no
Brasil.
A dinâmica que observamos aqui se desenvolve de modo contínuo
em festas espalhadas pela cidade e também na região metropolitana
de São Paulo desde a década de 1970 e apresenta características
peculiares a cada geração. Mas em todos esses anos a relação com a
black music ainda se mostra como um elo.
Dentre as características desta dinâmica está uma identificação
existente não apenas com seus ídolos, mas também e
principalmente com a imagem que eles transmitem de uma
comunidade negra forte, desenvolvida e que alcançou conquistas
que ainda são almejadas pela população negra no Brasil. Ainda que
esta imagem não corresponda totalmente à verdade, trouxe com o
passar dos anos uma influência na formação da identidade desses
jovens, principalmente no que se refere à formação do pensamento
racial no país, a partir de ícones afro-americanos.
Dentre outros fatores observa-se uma relação de espelhamento,
onde jovens que nunca se encontraram, se sentem próximos de
outros, que ainda que vivenciem realidades diferentes possuem
histórias de vida semelhantes.
Sendo assim, temas como o histórico de escravidão nos dois países,
a luta pela inclusão e pelo fim do racismo em todas as suas formas,
5
a exclusão social e a pobreza, a imagem da população negra na
mídia entre outros, são fatores que ocorrem em ambos os países e
tornam possível que esses jovens vivenciem experiências em
comum.
Outro ponto que merece ser aprofundado está no fato dessa conexão
se estender por mais de uma geração, considerando-se que os
jovens paulistanos de hoje diferem de seus pais em mais de um
aspecto, o que não impede que a relação com a black music tenha
continuidade.
Destacam-se entre os aspectos que diferenciam esse grupo,
mudanças ocorridas não apenas no seio da própria comunidade,
mas fatores que envolvem a sociedade brasileira como um todo,
como uma mudança na economia e na política, que ainda que não
tenham acabado com o abismo social entre brancos e negros no
Brasil, deu a esses jovens um novo poder de consumo, poder esse
que também envolve o consumo dos produtos da indústria cultural.
Procura-se assim traçar aqui um panorama histórico da relação
entre a black music norte-americana e a juventude negra de São
Paulo como símbolo do elo existente entre os povos da diáspora,
pessoas que trazem em sua trajetória um passado comum não
apenas de escravidão e exclusão, mas também de força e
resistência.
Para um melhor aprofundamento nos conceitos aqui explicitados
utilizo os pensamentos sobre a diáspora de Stuart Hall, Paul Gilroy
e Franz Fannon, os conceitos de identidade trabalhados por Manuel
Castells, Kabengele Munanga, Ricardo Franklin Ferreira e Muniz
Sodré, somam-se a esses os conceitos de hibridação cultural de
Néstor Garcia Canclini, além de autores que se debruçam
especificamente sobre o tema como os estudos do Center for Black
6
Music Research, da Columbia College Chicago e também estudos
realizados por pesquisadores brasileiros como João Batista Félix,
Márcio Macedo, Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro e Rosangela
Malachias, entre outros.
Tambores Conectados
Ao se observar os jovens negros que frequentam as chamadas festas
blacks que ocorrem na cidade de São Paulo torna-se possível notar
características comuns ao grupo, características que ultrapassam
uma percepção estética relacionada ao uso de penteados e
vestimentas e envolve além dos usos e costumes do grupo a
formação de sua identidade.
Inspirados pela imagem refletida por artistas afro-americanos, esse
grupo tem nas festas um local de autoafirmação, onde cores,
músicas, estilos e atitudes atuam como símbolos identitários.
Contudo, ainda que não haja novidade em se observar o cotidiano
dessas festas, considerando-se que como dito anteriormente, as
mesmas ocorrem de modo contínuo desde a década de 1970, e
levando-se em consideração também o fato de que estas veem
sendo observadas separadamente por pesquisadores de diferentes
áreas do conhecimento há algum tempo, o estudo desse fenômeno
sob a ótica de uma ligação entre os povos da diáspora ainda se faz
raro.
E é a partir deste conceito de conexão dispórica que esse tema será
tratado aqui. A legitimação do estudo das manifestações culturais
como elo entre os povos da diáspora se faz presente em Stuart Hall
(2003, p.342) que explicita que o povo da diáspora negra tem
fundamentado sua forma e estrutura cultural na música.
7
Com visão semelhante, Paul Gilroy (2001, p. 61) afirma que
examinar o lugar da música nesse contexto envolve examinar as
relações sociais que esta tem produzido e reproduzido como cultura
expressiva única.
Dessa maneira, o início dessa dinâmica se dá ainda na década de
1970, época em que os bailes eram realizados nos quintais de casas
espalhadas por diferentes bairros da periferia de São Paulo.
Inspirados por uma movimentação que ocorria em outra grande
metrópole brasileira, o Rio de Janeiro, os jovens negros paulistanos
passavam a ter seu primeiro contato com a soul music.
O ritmo que tinha entre seus principais representantes o pai do soul,
James Brown, logo virou febre entre os jovens da época e trazia
consigo os primeiros passos para a formação de uma identidade
negra diaspórica, que envolvia aspectos culturais e políticos.
Sendo este um período de grande efervescência política e cultural
nos Estados Unidos, o contato com a black music e as
manifestações ocorridas naquele país tem influencia direta sobre a
formação identitária dos jovens negros da época, caracterizando o
pensamento de Manuel Castells (1996, p.22) de que identidade
pode ser definida como “o processo de construção de significado
com base em um atributo cultural”
A partir do pensamento explicitado por Kabengele Munanga (2009,
p.20), entendemos que nesse contexto a identidade buscada pelo
grupo não se refere apenas às diferentes tonalidades de pele, mas e,
principalmente, a uma história comum aos grupos considerados
negros ao redor do mundo.
Privados de referenciais positivos para que pudessem se espelhar o
contato com essa nova dinâmica faz com que os jovens brasileiros
passem a ver a luta e as conquistas do povo negro norte-americano
8
como fonte de inspiração e passem a reproduzir esta dinâmica no
Brasil, ainda que esta ganhe características próprias.
Exemplificando o conceito explicitado por Ricardo Franklin
Ferreira (2004, p.47) de que “identidade é uma referência em torno
da qual a pessoa se constitui”, os jovens negros paulistanos veem
nos ícones da black music uma base para a construção de sua
identidade. Isso se justifica principalmente, pela deficiência na
formação da identidade afro-brasileira, que se dá principalmente
pela invisibilidade do negro brasileiro não somente durantes os 300
anos em que perdurou a escravidão, mas também nos 124 anos pós-
abolição, propiciada por diferentes faces do racismo.
Somados a esses fatores, as poucas opções de lazer para os jovens
da época, também colaboram para que as festas realizadas nos
fundos dos quintais se mostrassem extremamente atrativas e
passassem a atrair mais pessoas do que o esperado. Com isso,
surgem em diferentes pontos da cidade, grupos de amigos que
decidem locar espaços para a realização de seus bailes.
Nesse contexto, a inspiração mais uma vez surge das festas souls
cariocas que já contavam com grandes equipes de bailes e
inspiraram a formação de equipes em São Paulo.
A trilha sonora composta principalmente pelos grandes nomes da
música negra norte-americana chegava aos organizadores por meio
de contatos que trabalhavam nas companhias aéreas, por regiões
portuárias, como Santos e o próprio Rio de Janeiro e em raros
momentos por alguns dos organizadores das equipes que iam aos
Estados Unidos e traziam material para os bailes.
As grandes lojas de disco no centro de São Paulo também serviam
como local de busca de novidades para os bailes e era nas capas dos
9
discos, que eles passavam a descobrir outros lançamentos e
sucessos.
A divulgação das festas ocorria por meio de circulares, hoje
denominadas flyers, que eram feitas pelos próprios participantes e
distribuídas em lugares que eram pontos de encontro dos jovens
negros como as grandes galerias na Rua 24 de maio e o Viaduto do
Chá.
Contudo, a música não era a única coisa partilhada pelos
organizadores e frequentadores dos bailes. Em busca de material
para os bailes por muitas vezes os jovens da época acabavam por
ter contato com revistas importadas que traziam em seu conteúdo
informações sobre as manifestações políticas ocorridas naquele
país. Dessa maneira obtinham conhecimento sobre temas como o
movimento pelos direitos civis, o movimento Black Panthers e
Black Power e líderes como Martin Luther King e Malcom X.
Ainda que este conhecimento fosse obtido por poucos, o baile
passava então a se tornar um local não apenas para diversão, mas
também para uma formação política, que acontecia principalmente
por meio de mensagens transmitidas informalmente pelos
organizadores.
Porém, essa identificação só se tornou possível devido às
semelhanças existentes na luta destes dois povos da diáspora pela
inclusão da população negra na sociedade.
Alguns fatos podem exemplificar como apesar de viverem em
contextos históricos diferenciados, o racismo e a luta da população
negra existentes nos dois países provocam uma identificação entre a
comunidade negra brasileira e a americana.
10
Como exemplos mais concretos, podemos comparar o fato de que
enquanto as décadas de 1960 e 1970, nos Estados Unidos, foram
marcadas por lutas como o fim da segregação e a integração de
jovens negros nas escolas (que apesar de ter tido início na década
de 1950, ainda não se fazia completa), no Brasil (país que não
possuía nenhuma lei que autorizasse a segregação), o movimento
negro surgia a partir de protestos contra a expulsão de quatro jovens
que haviam sido agredidos por desejar fazer parte de um time de
vôlei, em um clube em São Paulo.
Da mesma maneira, enquanto nos Estados Unidos, o movimento
Black Panthers tem como principal bandeira a defesa da população
negra contra a brutalidade policial, a população negra em São Paulo
realiza um protesto em frente ao teatro municipal, contra a morte de
um jovem negro dentro de uma delegacia em Guaianazes, o que
marca o início da organização que se tornou conhecida
posteriormente como Movimento Negro Unificado.
Ressalta-se, porém, que as manifestações de resistência da
comunidade negra no Brasil, não tiveram início com a presença da
black music nos bailes, estas existiram desde que os povos
africanos foram sequestrados e trazidos como escravos para o país.
O que se intensifica com a black music é a inspiração em ícones
afro-americanos, para uma formação de uma negritude brasileira.
A afirmação acima pode gerar dúvida sobre por qual razão esse
grupo não buscou então referenciais nessa resistência negra
brasileira e foi buscar exemplos em outro país. A resposta pode
estar na afirmação de Michel Wieviorka (2007, p.117) de que não
se pode analisar o racismo contemporâneo sem se avaliar o papel
que a mídia desempenha nesse contexto, seja para sua difusão ou
para a regressão do fenômeno.
11
A partir deste pensamento destacamos aqui a pouca
representatividade na mídia de uma imagem positiva do negro
brasileiro, o que interferiu diretamente na formação identitária
desse grupo (SODRÉ, 1999, p.246) e contribuiu de maneira intensa
para que este passasse a buscar referenciais na cultura afro-
americana.
A identificação com esses ícones contribuiu não apenas para o
surgimento dos grandes bailes, mas também para o sucesso que
estes obtiveram em pouco tempo.
Em épocas áureas dos grandes bailes os organizadores contavam
com um público que variava entre 10 e 20 mil pessoas, que lotavam
casas de show e espaços como o Ginásio do Palmeiras. Nesse
período a ligação com a black music se confirma, quando grandes
shows são realizados e tem como principais atrações, ídolos negros
americanos que faziam grande sucesso entre o público frequentador
dos bailes, como James Brown, DJ Cash Money & Marvelous,
Whodini, Gloria Gaynor entre outros.
De acordo com Márcio Macedo (2007, p. 18), em São Paulo, “Para
captar esse turbilhão de coisas novas não era necessário ler livros
ou viajar para lugares distantes, bastava se produzir e frequentar um
baile da Chic Show” Essa afirmação tenta traduzir a realidade dos
bailes da época, em razão destes ocorrerem em um período em que
a maioria da população negra brasileira, ainda era uma minoria
sócio econômica e não possuía os recursos financeiros necessários
para realizar viagens internacionais.
Em meados da década de 1980, os grandes bailes perdem um pouco
de sua força, mas isso não impede que dentre seus organizadores e
frequentadores surjam nomes que se tornaram referências não
apenas na memória da comunidade negra paulistana, mas também
12
na trajetória da black music no Brasil. Entre estes se destacam a
equipe Chic Show, responsável por grande parte dos eventos
realizados na época e figuras lendárias como o pernambucano
Nelson Triunfo que se tornou destaque ao apresentar coreografias
no melhor estilo soul music, com o grupo Funk Cia.
Os grandes bailes se estenderam até o final da década de 1980,
quando ainda que não deixassem de existir perderam sua força e
não atraiam mais multidões.
O final da era dos bailes, porém não significou o fim da relação
entre juventude negra e black music em São Paulo. Como
explicitado por Paul Gilroy (1991, p.154), a cultura negra possui
como característica a capacidade de se criar e recriar
constantemente e dessa maneira, a geração dos grandes bailes
blacks dá lugar a uma nova geração da juventude negra paulistana
que chegou a conhecer os bailes, mas passa a se relacionar com
outra vertente da música afro-americana.
Inspirados no movimento criado nos guetos nova iorquinos na
década de 1970, surge em São Paulo em meados da década de 1980
indícios do que se tornaria o movimento hip hop no Brasil.
A partir de reuniões ocorridas nos vãos da estação São Bento do
Metrô, nomes como Racionais MCs, Rappin Hood e Thaíde que se
tornariam figuras ilustres do rap nacional, mas que na época eram
apenas jovens que desejavam se divertir, se reuniam com outros
tantos anônimos e reproduziam em território nacional cenas que há
algum tempo já aconteciam nos Estados Unidos.
Nesses encontros os jovens aproveitavam para realizar passos de
break dance, herança dos grandes bailes, e faziam uso de um estilo
que na época era denominado pelos mesmos de tagarela, mas que
hoje já se internacionalizou como rap, palavra que em inglês
13
significa ritmo e poesia (rhythm and poetry) para denunciar as
agruras e mazelas sofridas pelos jovens negros na periferia de São
Paulo.
Nessa época o movimento hip hop, que hoje possui extrema
importância no cenário sociocultural do país, se desenvolveu sem
nenhum tipo de atenção positiva por parte da mídia e das classes
superiores exemplificando o que Stuart Hall (2003, p. 338) intitula
como vozes das margens.
A marginalidade acompanhou o rap e o movimento hip hop no
Brasil em toda sua primeira fase, não apenas pelas denúncias
existentes em suas letras, mas também em sua forma de divulgação
e comercialização, que se deu principalmente por meio de rádios
comunitárias e mídias alternativas, conhecidos popularmente como
CDs “piratas” que eram vendidos durante os shows realizados em
casas noturnas na periferia da cidade.
Com relatos que narravam desde a miséria e a fome, até o descaso
dos governantes para com os bairros periféricos e a violência
policial, intercalados a frases que referenciavam uma
conscientização do lugar que a população negra ocupava na
sociedade, as letras de rap desse período se tornaram a voz dos
excluídos, fossem eles pobres ou até mesmo aqueles vistos como
criminosos pela sociedade.
As denúncias incomodaram a mídia que em um primeiro momento
passou a imagem dos adeptos do hip hop como seres à margem da
sociedade, como inimigos da moral e dos bons costumes,
principalmente devido às gírias e palavrões presentes nas letras.
Mas foi essa marginalidade que impulsionou o crescimento do
movimento não apenas em São Paulo, mas em todas as periferias
brasileiras, pois trouxe aos que se sentiam excluídos a sensação de
14
pertencimento, por verem seu reflexo em jovens que haviam
vivenciado a mesma realidade.
Com essa atuação política, misturada a uma manifestação cultural,
o que era uma posição marginal se se tornou um espaço produtivo,
como resultado das políticas culturais da diferença (HALL, 2003, p.
338).
Esse caráter de denúncia que o rap nacional ganhou nesse primeiro
momento, se apresenta mais uma vez como herança da relação dos
jovens negros paulistanos com a música negra norte-americana, já
que estas tinham como principal característica na época as
denúncias sofridas pela população negra nos guetos do país.
Em outras palavras ainda que em pontos diferentes do atlântico a
população negra nos dois países, em especial em seus grandes
centros urbanos estava vivenciando realidades semelhantes.
Como exemplo de como nesse contexto a música também se mostra
como um elo entre os povos da diáspora apresenta-se aqui uma
comparação entre letras de dois grupos de rap conhecidos tanto no
cenário nacional como internacional.
Do rap nacional escolhe-se um de seus principais referenciais, o
grupo paulistano Racionais MCs. Liderado pelo rapper, Mano
Brown, o grupo foi pioneiro ao introduzir o caráter de denúncia em
suas letras e agrega legiões de fãs em todo o Brasil.
Da cena norte-americana apresenta-se o Public Enemy, grupo que
serviu de fonte de inspiração para muitos jovens brasileiros, entre
eles os próprios integrantes do Racionais MCs.
Ao se comparar letras de algumas músicas desses dois grupos se
mostra perceptível a semelhança em seu conteúdo.
15
Enquanto na letra 911 is a Joke, o grupo norte-americano narra o
descaso do serviço de emergência nos Estados Unidos, ao afirmar
“Now I dialed 9-1-1 a long time ago Don't you see how late they're
reactin' They only come and they come when they wanna” (Eu
disquei 911 há muito tempo atrás e você não vê o quanto eles estão
atrasados em responder, eles só vem quando eles querem), em O
homem na estrada, o grupo brasileiro narra a violência e o descaso
policial ao cantar a polêmica frase “Não confio na polícia, raça do
caralho. Se eles me acham baleado na calçada, chutam minha cara e
cospem em mim”.
Outro exemplo em músicas dos mesmos grupos, mas que dessa vez
marcam fatos históricos ocorridos nos dois países, estão nas letras
de Burn Holywood burn, que faz referência aos levantes ocorridos
na cidade de Los Angeles, em 1992 e em Diário de um detento, que
narra o massacre do Carandiru ocorrido em São Paulo, também em
1992.
Em ambos os exemplos, o tom de protesto denuncia a violência do
Estado contra a comunidade negra, ainda que em países diferentes.
Exemplifica também, como diferentes pontos da diáspora estão
conectados, pois nesse caso a música, que se enquadra dentro da
cultura está diretamente ligada à denúncia do racismo e da
opressão.
Essa característica contestadora e a maneira como o hip hop se
espalhou pelas periferias brasileiras refletem o pensamento do
diretor do Center for Black Music Research, da Columbia College
Chicago, Samuel Floyd Jr. (1995, p. 227), que em seu livro The
power of Black Music afirma que “A música Afro Americana
sempre refletiu uma série de batalhas e de realizações”.
16
As realizações geradas em meio à juventude negra paulistana
ganham nova roupagem quando entre meados da década de 1990 e
o início do novo milênio, se faz possível notar mais uma vez o
quanto as mudanças ocorridas no cenário da black music nos
Estados Unidos exercem influência sobre a juventude negra que
frequenta as festas em São Paulo.
Nesse momento, o hip hop norte-americano ganha novo formato ao
ser absorvido pela indústria cultural. Com o fim da disputa entre as
costas leste e oeste4, marcado principalmente pela morte dos
cantores Tupac e Notorious BIG, os músicos norte-americanos que
estão presentes na grande mídia deixam os tons de protesto de lado
e passam a ostentar riqueza e sensualidade.
Surge também nesse período novos nomes do Rhythym and Blues,
ou simplesmente R&B, canções que tem como principal
característica as letras românticas e dançantes e que tem como
adeptos diversas divas femininas da música afro-americana.
Essas mudanças fazem com que a black music e os artistas
relacionados a estas se tornem fenômenos mundiais, com recordes
de vendas e fãs espalhados nos quatro cantos dos planetas que lhes
garantem recordes de público durante suas apresentações.
Essas mudanças refletem o poder que segundo Stuart Hall (2003,
p.254) as indústrias culturais possuem de se remodelar e ajustar as
definições de “nós mesmos” às descrições da cultura dominante.
Em outras palavras a indústria cultural remodelou a imagem não
4 Durante os anos 90 o hip hop norte-americano apresentou uma disputa entre músicos da costa oeste
(Califórnia) e costa leste (Nova Iorque), que ultrapassou as fronteiras da cultura e se tornou uma guerra
sangrenta entre os chamados gangsta rappers o que culminou na morte dos principais representantes de cada lado. Tupac Shakur e Notorius BIG.
17
apenas da black music, mas também dos ícones desse ritmo, que
servem como espelho para jovens negros em todo o mundo.
Em São Paulo, não foi diferente e o Rhythm and Blues passou a ser
um atrativo para jovens negros que frequentavam as chamadas
festas blacks espalhadas pela cidade. Mas nesse contexto uma peça
fundamental passa a mudar as características desse grupo.
Com a visibilidade garantida pela indústria cultural para a black
music, esta se torna um fenômeno e passa a ser uma garantia de
sucesso. Motivados por essa realidade, os proprietários de
danceterias de casas de elite em São Paulo, que até o momento
tinham como público alvo jovens brancos de classe média e classe
média alta, passam a contratar conhecidos DJs do cenário black e a
oferecer em seu repertório noites regadas a black music, para
agradar seu público fiel que também foi atingido por esta novidade.
Contudo, ainda que essa mudança na agenda das casas noturnas não
tivesse como alvo os jovens negros da periferia, esses acabam
sendo atingidos e dominando o cenário das festas blacks em clubes
de classe média.
Atraídos pelas facilidades, os jovens da nova geração, que
diferentemente das gerações anteriores vivem um novo momento
econômico do país, onde apesar da desigualdade que ainda persiste,
a população negra passa a ter um maior acesso aos bens de
consumo e com isso passam a cruzar a ponte e serem figuras
constantes em casas de bairros como Vila Madalena, Jardins e Vila
Olímpia, lugares que anteriormente não constava da rota de bailes.
Ainda que a imagem transmitida pelos videoclipes não corresponda
a uma verdade absoluta da realidade vivida pelos afro-americanos,
esta se torna símbolo de uma sociedade onde a população negra se
destaca por possuir um poder aquisitivo maior e ascensão social e
18
faz com que os jovens negros que frequentam as festas paulistanas
tenham desejo de se aproximar o máximo possível da imagem
transmitida por eles.
Esta realidade caracteriza o pensamento de Márcio Macedo (2007,
p. 22), de que a globalização econômica foi a responsável pela
divulgação de um conceito que envolve um estilo de vida e uma
estética referentes à população negra.
Dentre esses jovens, muitos, se não a grande maioria são filhos ou
possuem um grau de parentesco direto com aqueles que
frequentaram as tradicionais festas blacks das décadas de 1970 e
1980.
Além de um maior poder aquisitivo, outras características, porém
os diferenciam das gerações anteriores, entre estas está o acesso às
informações sobre o que acontece nos Estados Unidos que se dá de
modo muito mais rápido com o uso da internet, em especial das
redes sociais.
No novo milênio, os membros da geração y tem acesso
praticamente instantâneo a qualquer informação e com os jovens
frequentadores das festas blacks isso também acontece.
O acesso às músicas e videoclipes que antes precisava ser
intermediado pelos organizadores de bailes, no cenário atual estão
disponíveis para qualquer pessoa que tenha acesso a internet.
Além do repertório, criam-se a partir da internet, conexões com
pessoas de outras partes do globo e principalmente dos Estados
Unidos, para partilhar informações e receber novidades.
Essa ferramenta se mostra útil não apenas para os frequentadores,
mas também para os DJs que passam a ter seu trabalho facilitado
19
pelos avanços tecnológicos e em muitos casos tem em programas
de computador um substituto para os discos de vinil.
Nesse contexto, as diferenças existentes na realidade dos
frequentadores de bailes e os jovens negros afro-americanos não
tem grande interferência na maneira como esses se relacionam o
que se torna possível, pois de acordo com Nestor Garcia Canclini
(2008, p. 53) na internet são construídos “grupos de iguais através
da sociabilidade na rede, em que os contatos são cada vez mais
seletivos e autônomos”. O que passa a esses jovens uma sensação
de pertencimento.
Essa sensação de pertencimento se reflete também ao se observar a
maneira como esses jovens se vestem, no linguajar que usam, nos
esportes que praticam, todos claramente inspirados nos ícones afro-
americanos e na imagem que eles transmitem em seus videoclipes.
Nesse contexto, nem o idioma que poderia ser uma barreira entre os
jovens negros daqui e a cultura afro-americana, interfere na
dinâmica, pois o idioma que no passado era conhecido de poucos,
com a globalização passou a fazer parte do cotidiano de grande
parte dos jovens ainda que estes tenham apenas um conhecimento
básico. A globalização faz assim que o inglês deixe de ser um
idioma estrangeiro e passe a se tornar uma condição de
modernidade (ORTIZ, 2006, p. 17 e 24).
Mas a chegada do novo milênio e a face comercial do cenário black
em São Paulo não atingiram toda a massa de consumidores de
black music da mesma maneira. Ainda que as festas nas casas de
classe média tenham seguido a dinâmica da indústria cultural, um
grupo grande de seguidores do hip hop ainda frequenta festas que
são regadas pelo rap nacional e músicas que fazem parte da
20
denominada old school, ou velha escola, do hip hop norte-
americano.
Estas se diferem, pois ainda que os jovens possuam as mesmas
características dos frequentadores de festas blacks, estes se mantém
fiéis ao caráter contestador do hip hop, ainda apresentam no som
que produzem o tom de denúncia e buscam um contato maior com
ícones de uma militância política.
A linha que separa os dois grupos é tênue e não é difícil encontrar
jovens que caminham pelos dois tipos de festa. Como característica
em comum os dois grupos possuem o contato com ícones da música
e da militância afro-americana, o que corrobora a perspectiva da
influência diaspórica existente.
Considerações Finais
Observa-se neste artigo que a conexão existente entre os povos da
diáspora envolve também as manifestações culturais e a maneira
como essas influenciam os indivíduos em diferentes países.
Tomando como ponto de partida a existência de uma influência da
black music norte-americana na juventude negra que frequenta
festas blacks da cidade de São Paulo, aponta-se aqui como essa
conexão se faz possível.
Sob uma perspectiva histórica, compreende-se que esta
manifestação cultural teve início na década de 1970 e se mantém
ativa até o presente momento, ainda que apresente novas
características.
Observa-se também, que a black music norte-americana
desempenha a função de elo entre a juventude negra paulistana e o
ideal de uma população negra com oportunidades representada pela
sociedade afro-americana. Esta relação iniciada dentro das
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danceterias se aprofunda e ganha novas proporções ao refletir no
cotidiano desses jovens.
Nota-se essa absorção de usos e costumes de várias maneiras, a
mais perceptível por uma mudança no que diz respeito à moda,
roupas, cabelos e utensílios. Mas também são visíveis ao se
observar uma postura diferenciada, traduzida em atitudes e
apropriações de expressões idiomáticas e práticas que são
associadas às imagens de uma sociedade bem sucedida. O que se
torna um desejo de consumo desse grupo.
Mais do que entender a maneira como certas manifestações
culturais se desenvolvem, o estudo desse fenômeno busca mostrar
que para os povos da diáspora africana, a cultura se apresenta
também como uma forma de combate ao racismo e como meio para
a construção de uma identidade negra, ainda que em alguns
momentos essa formação identitária seja superficial.
Longe de apresentar uma conclusão, o estudo deste fenômeno ainda
está no início e irá se desenvolver em outros trabalhos de maneira
mais minuciosa e profunda.
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