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A BRINCADEIRA E O JOGO INFANTIS COMO REPRESENTAÇÃODO MUNDO ADULTO EAPREN- DIZAGEM DOS MODELOS SOCIAIS Gláucia Nascimento da Luz Pires RESUMO Neste artigo a autora focaliza a brincadeira eo jogo infantis como formas de representação do mundo adulto e manifestações de sua cultura. Através da ob- servação e da socialização, a criança realiza a aprendi- zagem dos códigos sociais, integra-os no seu EU e os reproduz em sua atividade lúdica. Transmissores de uma certa imagem da sociedade e dos papéis ocupacionais, a brincadeira e o jogo infan- tis são uma representação do social: através deles se difundem as normas e os valores do mundo adulto e as ideologias das classes dominantes. A atividade lúdica adquire todo seu significado quando se compreende a relação existente entre ela e o processo de desenvol- vimento global da criança. Como expressão de suas necessidades, a brincadeira desempenha um papel potencialmente vital nesse pro- cesso de desenvolvimento. Não é mera imitação, não é puramente repetição: a brincadeira e o jogo da criança reúnem elementos da sua experiência, para construir uma ação com novos significados. Este processo de repetir, imitar, representar, inventar, recriar e reinterpretar é mais do que um ato de brincar: através dele a criança nos revela uma parte de si mesma, o que ela é, como pen- Educação em Debate, Fort. 17_18jan.ldez. 1989 67

A BRINCADEIRA EOJOGO INFANTIS COMO … · compreende a relação existente entre ela e o processo de desenvol-vimento global da criança. Como expressão de suas necessidades, a

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A BRINCADEIRA E O JOGO INFANTIS COMOREPRESENTAÇÃODO MUNDO ADULTO EAPREN-

DIZAGEM DOS MODELOS SOCIAIS

Gláucia Nascimento da Luz Pires

RESUMO

Neste artigo a autora focaliza a brincadeira e ojogo infantis como formas de representação do mundoadulto e manifestações de sua cultura. Através da ob-servação e da socialização, a criança realiza a aprendi-zagem dos códigos sociais, integra-os no seu EU e osreproduz em sua atividade lúdica.

Transmissores de uma certa imagem da sociedadee dos papéis ocupacionais, a brincadeira e o jogo infan-tis são uma representação do social: através deles sedifundem as normas e os valores do mundo adultoe as ideologias das classes dominantes.

A atividade lúdica adquire todo seu significado quando secompreende a relação existente entre ela e o processo de desenvol-vimento global da criança. Como expressão de suas necessidades, abrincadeira desempenha um papel potencialmente vital nesse pro-cesso de desenvolvimento. Não é mera imitação, não é puramenterepetição: a brincadeira e o jogo da criança reúnem elementos dasua experiência, para construir uma ação com novos significados.

Este processo de repetir, imitar, representar, inventar, recriare reinterpretar é mais do que um ato de brincar: através dele acriança nos revela uma parte de si mesma, o que ela é, como pen-

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sa, como sente, como vê a si e aos outros. Por isso todas as crian-ças brincam ou, ao menos, desejam brincar. Exigem brinquedoscomo coisas indispensáveis. E quando não os conseguem, recla-mam; quando alguém lhes estraga algum deles, choram desespera-damente como fie sua perda fosse irreparável.

A brincadeira e o jogo desempenham funções psicossociais, afe-tivas e intelectuais básicas no processo de desenvolvimento infan-til. A brincadeira nasce de uma necessídade de movimento e o mo-vimento, para a criança, é uma exigência da natureza, conseqüênciado seu crescimento. O exercício físico, expresso pelo jogo, permitesatisfazer esta necessidade vital. Na definição de Claparêde, a cri-ança é um ser que brinca: "l'enfance sert à jouer", (1) Impedir acriança de brincar seria provocar uma regressão em seu desenvolvi-mento físico, psicológico e social.

O objetivo deste trabalho é aprofundar a idéia de que a brin-cadeira e jogo infantis nascem da vida, das ocupações do adultoc das manifestações de sua cultura. Passatempos e distrações quecausam prazer, eles se constituem, também, nos exercícios prepa-ratórios para a criança participar do 'jogo da vida' de que eles são,afinal, uma expressão e representação.

Quando se analisa o processo das origens da brincadeira in-fantil, constata-se que ela resulta da imitação, a qual, através dosestágios do desenvolvimento da criança, se torna diferenciada e cadavez mais seletiva. Esta imitação, por sua vez, conduz aos proces-sos de representação, caracterizada pelas simbolizações, presentestanto na atividade lúdica individual quanto na social. Estas repre-sentações e simbolizações persistirão até o momento em que, ultra-passando a barreira do sonho e da fantasia, a criança, já crescida,entra na vida adulta.

Um pouco mais adiante se voltará à idéia das conseqüênciasda gênese da brincadeira e do jogo, que pretendemos tornar maisexplícita sobretudo ao se analisar o problema da representação dospapéis ocupacionais e do desenvolvimento de atitudes sociais.

Na evolução da brincadeira, partindo das de exercício, tambémchamadas "funcionais", em que a criança sente alegria, emoção esurpresa diante dos movimentos de seu corpo, que ela repete inces-santemente em gestos que lhe causam prazer, a criança se orientapara as "brincadeiras de imitação" e as "brincadeiras simbólicas",que se caracrerizam por uma maior assimilação e acomodação aomeio que a cerca. A mímica e a ficção simbólicas são os elementos

1. CLAPARt::DE, E. Psychologie de l'enjant et pédagogie expérimentale.Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1947. p 73.

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utilizados pela criança para imitar e representar todas as situaçõesexteriores.

Em seguida, surgem as brincadeiras que se caracterizam pelouso da regra. B a fase, por excelência, da socialização infantil. Comdeito, essas formas de brincadeiras são correlativas à tomada deconsciência do outro, como existência autônoma e complementar.Assim, a brincadeira, que permite fazer a descoberta do outro ecom ele se identificar, favorece a integração da criança consigomesma. Quando ela aprende a compreender e a apreciar o ambienteque a cerca, desenvolve a aptidão para compreender o próximo eU~ suas necessidades. Brincar contra o outro é brincar com o outro.O adversário, na brincadeira, é sobretudo um companheiro. Será naintegração com outras crianças, no grupo. como diz Piaget, (2) quea criança ultrapassa o estágio da moralidade objetiva e começa acompreender o significado social das regras do jogo.

Afirmou-se, acima, que a atividade lúdica é o reflexo do mun-do dos adultos, de seus comportamentos, tradições e cultura. B tem-po de voltar a essa idéia básica. Na análise da evolução da brinca-deira infantil constata-se que essa evolução surge como um processoque se inicia com as brincadeiras funcionais e se enriquece com aatividade simbólica. Quando a criança brinca de representar papéise funções já está fazendo, embora de forma inconsciente, o treina-mento para o trabalho. A imitação, que paulatinamente foi adqui-rindo um caráter seletivo, leva a criança a imitar os adultos consi-derados por ela como modelos.

O processo de identificação da criança é movido pelo crescentedesejo de ser grande. Mas será na escola que o treinamento para otrabalho adquire um caráter sistemático, tornando a criança consci-ente da importância das tarefas em sua vida. A pedagogia de Mon-tessori, ao utilizar o brinquedo como instrumento de aprendizagem,soube identificar bem o lugar que ele ocupava primeiro na passa-gem para o trabalho escolar e, em seguida, para os outros tipos detrabalho.

A brincadeira da criança, à primeira vista, parece alienada darealidade e dos próprios objetivos escolares. Entretanto, quando seobserva mais de perto o comportamento da criança quando brinca,percebe-se que o brinquedo é uma forma dela desenvolver a capa-cidade de fazer perguntas, de encontrar respostas, de descobrir no-vas soluções, repensar situações, de encontrar e reestruturar novasrelações. B que um dos componentes básicos da brincadeira infantil

2. PIAGET. T. La [ormatlon du symbole chez l'enjant. Paris, DelachauxNiestlé, 1978, p. 149.

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sa, como sente, como vê a si e aos outros. Por isso todas as crian-ças brincam ou, ao menos, desejam brincar. Exigem brinquedoscomo coisas indispensáveis. E quando não os conseguem, recla-mam; quando alguém lhes estraga algum deles, choram desespera-damente como se sua perda fosse irreparável.

A brincadeira e o jogo desempenham funções psicossociais, afe-tivas e intelectuais básicas no processo de desenvolvimento infan-til. A brincadeira nasce de uma necessidade de movimento e o mo-vimento, para a criança, é uma exigência da natureza, conseqüênciado seu crescimento. O exercício físico, expresso pelo jogo, permitesatisfazer esta necessidade vital. Na definição de Claparêde, a cri-ança é um ser que brinca: "l'enfance sert à jouer". (1) Impedir acriança de brincar seria provocar uma regressão em seu desenvolvi-mento físico, psicológico e soéial.

O objetivo deste trabalho é aprofundar a idéia de que a brin-cadeira e jogo infantis nascem da vida, das ocupações do adultoc das manifestações de sua cultura. Passatempos e distrações quecausam prazer, eles se constituem, também, nos exercícios prepa-ratórios para a criança participar do 'jogo da vida' de que eles são,afinal, uma expressão e representação.

Quando se analisa o processo das origens da brincadeira in-fantil, constata-se que ela resulta da imitação, a qual, através dosestágios do desenvolvimento da criança, se torna diferenciada e cadavez mais seletiva. Esta imitação, por sua vez, conduz aos proces-sos de representação, caracterizada pelas simbolizações, presentestanto na atividade lúdica individual quanto na social. Estas repre-sentações e simbolizações persistirão até o momento em que, ultra-passando a barreira do sonho e da fantasia, a criança, já crescida,entra na vida adulta.

Um pouco mais adiante se voltará à idéia das conseqüênciasda gênese da brincadeira e do jogo, que pretendemos tornar maisexplícita sobretudo ao se analisar o problema da representação dospapéis ocupacionais e do desenvolvimento de atitudes sociais.

Na evolução da brincadeira, partindo das de exercício, tambémchamadas "funcionais", em que a criança sente alegria, emoção esurpresa diante dos movimentos de seu corpo, que ela repete inces-santemente em gestos que lhe causam prazer, a criança se orientapara as "brincadeiras de imitação" e as "brincadeiras simbólicas",que se caracterizam por uma maior assimilação e acomodação aomeio que a cerca. A mímica e a ficção simbólicas são os elementos

1. CLAPARtlDE, E. Psychologie de l'enfant et pédagogie expérimentale.Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1947. p 73.

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utilizados pela criança para imitar e representar todas as situaçõesex tcriores,

Em seguida, surgem as brincadeiras que se caracterizam pelouso da regra. É a fase, por excelência, da socialização infantil. Comdeito, essas formas de brincadeiras são correlativas à tomada deconsciência do outro, como existência autônoma e complementar.Assim, a brincadeira, que permite fazer a descoberta do outro ecom ele se identificar, favorece a integração da criança consigomesma. Quando ela aprende a compreender e a apreciar o ambienteque a cerca, desenvolve a aptidão para compreender o próximo eU~ suas necessidades. Brincar contra o outro é brincar com o outro.O adversário, na brincadeira, é sobretudo um companheiro. Será naintegração com outras crianças, no grupo. como diz Piaget, (2) quea criança ultrapassa o estágio da moralidade objetiva e começa acompreender o significado social das regras do jogo.

Afirmou-se, acima, que a atividade lúdica é o reflexo do mun-do dos adultos, de seus comportamentos, tradições e cultura. É tem-po de voltar a essa idéia básica. Na análise da evolução da brinca-deira infantil constata-se que essa evolução surge como um processoque se inicia com as brincadeiras funcionais e se enriquece com aatividade simbólica. Quando a criança brinca de representar papéise funções já está fazendo, embora de forma inconsciente, o treina-mento para o trabalho. A imitação, que paulatinamente foi adqui-rindo um caráter seletivo, leva a criança a imitar os adultos consi-derados por ela como modelos.

O processo de identificação da criança é movido pelo crescentedesejo de ser grande. Mas será na escola que o treinamento para otrabalho adquire um caráter sistemático, tornando a criança consci-ente da importância das tarefas em sua vida. A pedagogia de Mon-tessori, ao utilizar o brinquedo como instrumento de aprendizagem,soube identificar bem o lugar que ele ocupava primeiro na passa-gem para o trabalho escolar e, em seguida, para os outros tipos detrabalho.

A brincadeira da criança, à primeira vista, parece alienada darealidade e dos próprios objetivos escolares. Entretanto, quando seobserva mais de perto o comportamento da criança quando brinca,percebe-se que o brinquedo é uma forma dela desenvolver a capa-cidade de fazer perguntas, de encontrar respostas, de descobrir no-vas soluções, repensar situações, de encontrar e reestruturar novasrelações. É que um dos componentes básicos da brincadeira infantil

2. PIAGET. T. La [ormatlon du symbole chez l'enjant. Paris, DelachauxNiestlé, 1978, p. 149.

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é a relação entre a criança e o ambiente. A atividade lúdica cons-titui um processo constante de asssimilação e projeção. Por meio daúbservaçao, a criança recolhe grande quantidaae de informação queela integra no seu EU e que traduz ou reproduz nas suas formasde brincar.

Não é, pois, de estranhar que os meninos e meninas, no pe-queno jardim da escola maternal, após terem observado os pati-nhos em fila se dirigindo para nadar no tanque, comecem tambéma brincar de "patinho": põem-se em fila uns atrás dos outros, ba-lançam a cabeça e os bracinhos à imitação do andar desses animais,repetem, com suas vozes, o "quá-quá-quá", e deitam-se na areiacomo se fossem nadar e mergulhar. Em observá-Ias, vê-se bem queas crianças assimilaram o comportamento desses animais, realiza-ram uma interação de gestos e símbolos, fruto de uma ampla rela-ção entre a criança e o ambiente. Esta relação torna-se uma fontede atividades lúdicas, com derivações para uma infinidade de açõescriativas.

Além de uma forma de expressão, a brincadeira é, para a cri-ança, uma espécie de refúgio. Crianças que às vezes têm dificulda-des nas tarefas escolares, como ler, escrever, fazer contas, buscamna atividade lúdica uma forma de compensação. O menino que àsvezes, na escola, se apresenta silencioso, tímido, retraído, é capazde brincar sozinho, no jardim ou num canto da casa, por horas afio, a representar papéis cheios de dinamismo e ação, coragem eheroísmo.

A identificação da criança com suas experiências, através dabrincadeira é, às vezes, estimulada na escola, onde se lhe ofereceoportunidade de fazer do jogo uma atividade expressiva de con-ceitos e de sentimentos, na relação entre Sua experiência e seumeio ambiente. Na pré-escola, as atividades que implicam em mani-pulação e movimento respondem, também, a esta finalidade.

A brincadeira da criança caracteriza-se, essencialmente, pelaação, movimento, e pela representação do que ela percebe atravésdos sentidos. Tocar, ver, ouvir, saborear, sentir, implicam numaparticipação ativa do indivíduo. A brincadeira explora intensamenteo desenvolvime!!to de experiências sensoriais, daí a satisfação quetraz à gurizada. Quando a criança, ao brincar, tem que perceberum certo ruído para realizar determinada ação, não somente de-senvolve a capacidade de ouvir, mas de escutar com atenção. Quan-do, brincando em grupo, tem que identificar gestos e sinais, nãosomente ela tem que ver, mas precisa captar as diferenças e deta-lhes.

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A identificnção da criança com aquilo que brinca é o princípioutilizado pelos pedagogos para conduzi-Ia a uma aprendizagem efi-caz e consciente. Dada a importância da brincadeira como forma decaptar a atenção da criança, a pedagogia lançou mão dos "jogos edu-cativos", elaborados para distrair e instruir ao mesmo tempo. Taisjogos materializaram a idéia, como afirma Ferran, de que é possível"aprender brincando e brincar aprendendo." (3) Visto deste ângulo,O brinquedo possui uma fecundidade pedagógica essencial, permi-tindo a encarnação de uma pedagogia pelo jogo, ou de uma peda-gogia do jogo. Conservando as características essenciais da brin-cadeira infantil, eles ocasionaram uma mudança decisiva nas rela-ções entre a brincadeira, o jogo e o trabalho.

A atividade escolar, transformada numa nova "arte de brincar",permite à criança a passagem para o trabalho propriamente dito,sem choques nem conflitos. Com efeito, na mente da criança a es-cola já vai associada à idéia de estudar e de fazer tarefas. O grandevalor do "jogo educativo", ao lado da facilitação da aprendizagem,é ° de transmitir à criança o gosto pelo trabalho escolar que, porsua vez, poderá ser transferido para o exercício de uma atividadeocupacional, quando a escola proporcionou à criança a aprendiza-gem do gosto pelo trabalho.

É oportuno que se examine, agora, em que sentido a brincadeirainfantil é a representação e expressão do mundo dos adultos. Nabrincadeira socializante, a criança faz a aprendizagem da luta e dosocorro, do altruismo e da abnegação, das identificações e das dife-renças. As formas e a estrutura de sociedade nela estão presentes.A socialização da criança, para a qual a brincadeira contribui deforma decisiva, reproduz com bastante fidelidade a sociedade ondea atividade lúdica se inscreve.

Ao mesmo tempo que permitem o exercício de uma atividadeindividual ou social, a brincadeira e o jogo transmitem uma certaimagem da sociedade e uma certa idéia dos papéis ocupacionaisdesempenhados pelos indivíduos. Esta imagem, portanto, é uma re-presentação do social.

Na sociedade tradicional de épocas passadas, a criança desdecedo se misturava às atividades do adulto, com quem partilhavatrabalhos e lazer. A aprendizagem das coisas, na maioria dos ca-sos, era feita ajudando os adultos a fazê-Ias. O médico Heroard,da corte dos reis de França, deixou-nos uma descrição minuciosadas atividades lúdicas de Luís XIII, que retratam bem a sociedadede seu tempo. Desde cedo que o futuro rei da França brinca de

3. FERRAN, P. et alii, A l'école du ieu. Paris, Bordas, 1978, p. 53.

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é a relação entre a criança e o ambiente. A atividade lúdica cons-titui um processo constante de asssimilação e projeção. Por meio daúbservaçao. a criança recolhe grande quantidaae de informação queela integra no seu EU e que traduz ou reproduz nas suas formasde brincar.

Não é, pois, de estranhar que os meninos e meninas, no pe-queno jardim da escola maternal, após terem observado os pati-nhos em fila se dirigindo para nadar no tanque, comecem tambéma brincar de "patinho": põem-se 'em fila uns atrás dos outros, ba-lançam a cabeça e os bracinhos à imitação do andar desses animais,repetem, com suas vozes, o "quá-quá-quá", e deitam-se na areiacomo se fossem nadar e mergulhar. Em observá-Ias, vê-se bem queas crianças assimilaram o comportamento desses animais, realiza-ram uma interação de gestos e símbolos, fruto de uma ampla rela-ção entre a criança e o ambiente. Esta relação torna-se uma fontede atividades lúdicas, com derivações para uma infinidade de açõescriativas.

Além de uma forma de expressão, a brincadeira é, para a cri-ança, uma espécie de refúgio. Crianças que às vezes têm dificulda-des nas tarefas escolares, como ler, escrever, fazer contas, buscamna atividade Iúdica uma forma de compensação. O menino que àsvezes, na escola. se apresenta silencioso, tímido, retraído, é capazde brincar sozinho, no jardim ou num canto da casa, por horas afio, a representar papéis cheios de dinamismo e ação, coragem eheroísmo.

A identificação da criança com suas experiências, através dabrincadeira é, às vezes, estimulada na escola, onde se lhe ofereceoportunidade de fazer do jogo uma atividade expressiva de con-ceitos e de senrimentos, na relação entre sua experiência e seumeio ambiente. Na pré-escola, as atividades que implicam em mani-pulação e movimento respondem, também, a esta finalidade.

A brincadeira da criança caracteriza-se, essencialmente, pelaação, movímene-, e pela representação do que ela percebe atravésdos sentidos. Tocar, ver, ouvir, saborear, sentir, implicam numaparticipação ativa do indivíduo. A brincadeira explora intensamenteo desenvolvime!!to de experiências sensoriais, daí a satisfação quetraz à gurizada. Quando a criança, ao brincar, tem que perceberum certo ruído para realizar determinada ação, não somente de-senvolve a capacidade de ouvir, mas de escutar com atenção. Quan-do, brincando em grupo, tem que identificar gestos e sinais, nãosomente ela tem que ver, mas precisa captar as diferenças e deta-lhes.

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A identificação da criança com aquilo que brinca é o princípioutilizado pelos pedagogos para conduzi-Ia a uma aprendizagem efi-caz e consciente. Dada a importância da brincadeira como forma decaptar a atenção da criança, a pedagogia lançou mão dos "jogos edu-cativos", elaborados para distrair e instruir ao mesmo tempo. Taisjogos materializaram a idéia. como afirma Ferran, de que é possível"aprender brincando e brincar aprendendo." (3) Visto deste ângulo,o brinquedo possui uma fecundidade pedagógica essencial, permi-tindo a encarnação de uma pedagogia pelo jogo, ou de uma peda-gogia do jogo. Conservando as características essenciais da brin-cadeira infantil, eles ocasionaram uma mudança decisiva nas rela-ções entre a brincadeira, o jogo e o trabalho.

A atividade escolar, transformada numa nova "arte de brincar",permite à criança a passagem para o trabalho propriamente dito,sem choques nem conflitos. Com efeito, na mente da criança a es-cola já vai associada à idéia de estudar e de fazer tarefas. O grandevalor do "jogo educativo", ao lado da facilitação da aprendizagem,é o de transmitir à criança o gosto pelo trabalho escolar que, porsua vez, poderá ser transferido para o exercício de uma atividadeocupacional, quando a escola proporcionou à criança a aprendiza-gem do gosto pelo trabalho.

É oportuno que se examine, agora, em que sentido a brincadeirainfantil é a representação e expressão do mundo dos adultos. Nabrincadeira socializante, a criança faz a aprendizagem da luta e dosocorro, do altruismo e da abnegação, das identificações e das dife-renças. As formas e a estrutura de sociedade nela estão presentes.A socialização da criança, para a qual a brincadeira contribui deforma decisiva, reproduz com bastante fidelidade a sociedade ondea atividade lúdica se inscreve.

Ao mesmo tempo que permitem o exercício de uma atividadeindividual ou social, a brincadeira e o jogo transmitem uma certaimagem da sociedade e uma certa idéia dos papéis ocupacionaisdesempenhados pelos indivíduos. Esta imagem, portanto, é uma re-presentação do social.

Na sociedade tradicional de épocas passadas, a criança desdecedo se misturava às atividades do adulto, com quem partilhavatrabalhos e lazer. A aprendizagem das coisas, na maioria dos ca-sos, era feita ajudando os adultos a fazê-las. O médico Heroard,da corte dos reis de França, deixou-nos uma descrição minuciosadas atividades lúdicas de Luís XIII, que retratam bem a sociedadede seu tempo. Desde cedo que o futuro rei da França brinca de

3. FERRAN, P. et alii. A l'école du jeu. Paris, Bordas, 1978, p. 53.

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"tocar violino e cantar", atividades comuns dos adultos na corte.Ames dos dois anos comprazia-se em "bater seu tambor", à ima-gem do que acontecia nas companhias militares, que tinham seustambores e suas próprias marchas. Na idade de dois anos e setemeses os presentes que recebia eram "pequenas carruagens cheiasde soldadinhos": nessa idade, ele se diverte "com um pequeno ca-nhão" e faz pequenas ações militares com seus "soldadinhos". Aosquatro anos já se inicia na representação de papéis do ballet e, aosseis anos, brinca de "atirar ao arco", jogar cartas e xadrez, partici-pando já, inclusive, dos jogos das pessoas grandes. Quando com-pletou sete anos, finalmente, obrigam-no a abandonar as brincadei-ras da infância: "você já não é mais criança; você é grande". Eaprende a montar a cavalo, a usar as armas, e ir à caça. (4)

Durante alguns períodos, as brincadeiras infantis chegaram aser um suporte da ideologia política, os brinquedos representandoguerras, tanques, ambulâncias no "front". O momento histórico, semdúvida, determina o tipo das atividades lúdicas das crianças. Nofilme "Jogos Proibidos" (Jeux Interdits), de René Clérnerit, assisti-mos a duas crianças brincando de "enterrar os mortos". Ao enter-rar seus bichos no pequeno cemitério, as crianças imitavam os adul-tos, cuja atividade habitual consistia, num período de fim de guer-ra, em sepultar as vítimas dos bombardeamentos.

O suporte ideológico também está presente na descrição queMusgrave apresenta da brincadeira de um grupo de crianças alemãs,impregnadas dos modelos políticos da guerra; "- Vamos brincar desoldados!", diz Alberto. "- Sim, de soldados", gritaram os outros.Dividiram-se em duas armadas, cada uma de quatro meninos. Carlosconduziu seu batalhão para o alto de um monte de areia. Albertodevia surpreendê-los com seus soldados. Aos gritos de "Hurra! Hur-ra!", escalaram o monte, se apossaram do inimigo e os fizeram pri-sioneiros. E foi assim que Alberto ganhou a guerra com seus sol-dados". (5)

Sem que o suporte da ideologia política tenha sido completa-mente abandonado. a grande tendência atual, dOS brinquedos, é asocialização política, com a divisão sexual dos papéis e das fun-ções. Quando se vai comprar um brinquedo numa loja, o vendedorprocura logo inteirar-se da idade e do sexo do destinatário. :e. queos brinquedos, comercialmente, estão divididos em duas categorias:a dos meninos e a das meninas. Qualquer catálogo de brinquedos,

4. ARTES Ph. L'enjant et Ia vie [amiliale sous l'ancien régime. Paris, Ed.du seuil, 1973, pp. 90-140.

5. MUSGRA VE, P. W. Sociology of education. London, Methuen, 1965.p. 147.

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aliás, estabelece o tipo e a relação dos que são próprios a um e aoutro sexo. Esta divisão baseia-se numa certa representação dos pa-péis masculinos e femininos, em nossa sociedade, com tendência afavorecer a perenidade de tal divisão. Ser menino, segundo estaclassificação, é, sobretudo, ser jogador de futebol, ou ser soldado,e saber conduzir carros, caminhões, trens, tratores, máquinas pe-sadas, aviões, motos. Ser menina, é ser uma futura mamãe, umafutura dona de casa, toda entregue aos cuidados dos bebês, do fo-gão e das pãnelinhas, da limpeza da casa, ou então à maquilagem.

Tudo isso é o resultado de uma manipulação social do gostoe da escolhas da criança no seu lazer e no seu brinquedo. Belotti (6)mostra todo o trabalho de aculturação que acompanha a escolha deum brinquedo de criança. À menina a quem se dá uma boneca depresente, se lhe ensina como ninar o bebê e segurá-lo em seus bra-ços; ensina-se-Ihe o papel da mulher na sociedade. Assim, não so-mente a menina brinca de dona de casa, como faz os gestos quesão próprios, varre a casa, lava a louça, faz a comida, balança onenén e usa uma linguagem coerente com esta situação da mulher.

Simultaneamente à representação de papéis sociais, os brinque-dos também defendem as ideo1cgias sociai.s. A maioria deles, apesarde serem distribuídos pelo bondoso Papai Noel, são ou a celebra-ção da violência, ou a celebração da economia capitalista, ou a ce-lebração do êxito social. Na primeira categoria figura, infelizmen-te, a idéia da guerra: os brinquedos são fuzis, carabinas, pistolas,metralhadoras, revólveres eletrônicos, soldados, armadas, pára-que-distas, bombardeiros. tanaues, robôs. Ligados à celebração capita-lista aparecem os brinquedos modernos, que falam de campos depetróleo, business. riquezas do mundo. Em todos estes brinquedosc vencedor, na ideologia capitalista. é o que consegue monopolizaros meios de produção e enganar seus parceiros nos negócios e tran-sações. Finalmente, os que celebram o êxito social, a exemplo dojcgo "Estratagema", em que quatro candidatos (jogadores) se dispu-tam para alcançar a "Pre~idência", ou do "Jogo do Sucesso", ondeos jogadores utilizam estratégias para ser bem-sucedido na vida,sabendo combinar adequadamente a riqueza, a felicidade e reno-

me (7).6. BELOTTI, E. G. Du côté des petites fililes. Paris, Ed. des Femmes,

1974. pp. 107-160.7 . Entre os documentários relativos aos tipos de jogos que celebtam a eco-nomia capitalista e o êxito social podem ser citados: MATTELART. A.e DORFMAN, A. Donald l'imposteur ou l'impérialisme raconié au>.:enfants. Paris, Ed. A. Moreau. 1976; Les jeux dans l'initiation écono-migue. Cahiers Français. n," 179, jan./fev/1977, notice 2.

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"tocar violino e cantar", atividades comuns dos adultos na corte.Antes dos dois anos comprazia-se em "bater seu tambor", à ima-gem do que acontecia nas companhias militares, que tinham seustambores e suas próprias marchas. Na idade de dois anos e setemeses os presentes que recebia eram "pequenas carruagens cheiasde soldadinhos"; nessa idade, ele se diverte "com um pequeno ca-nhão" e faz pequenas ações militares com seus "soldadinhos". Aosquatro anos já se inicia na represe1iltação de papéis do ballet e, aosseis anos, brinca de "atirar ao arco", jogar cartas e xadrez, partici-pando já, inclusive, dos jogos das pessoas grandes. Quando com-pletou sete anos, finalmente, obrigam-no a abandonar as brincadei-ras da infância: "você já não é mais criança; você é grande". Eaprende a montar a cavalo, a usar as armas, e ir à caça. (4)

Durante alguns períodos, as brincadeiras infantis chegaram aser um suporte da ideologia política, os brinquedos representandoguerras, tanques, ambulâncias no "front". O momento histórico, semdúvida, determina o tipo das atividades lúdicas das crianças. Nofilme "Jogos Proibidos" (Ieux Interdits), de René Clément, assisti-mos a duas crianças brincando de "enterrar os mortos". Ao enter-rar seus bichos no pequeno cemitério, as crianças imitavam os adul-tos, cuja atividade habitual consistia, num período de fim de guer-ra, em sepultar as vítimas dos bombardeamentos.

O suporte ideológico também está presente na descrição queMusgrave apresenta da brincadeira de um grupo de crianças alemãs,impregnadas dos modelos políticos da guerra; "_ Vamos brincar dewldados!", diz Alberto. "- Sim, de soldados", gritaram os outros.Dividiram-se em duas armadas, cada uma de quatro meninos. Carlosconduziu seu batalhão para o alto de um monte de areia. Albertodevia surpreendê-Ios com seus soldados. Aos gritos de "Rurra! Hur-ra!", escalaram o monte, se apossaram do inimigo e os fizeram pri-sioneiros. E foi assim que Alberto ganhou a guerra com seus sol-dados". (5)

Sem que o suporte da ideologia política tenha sido completa-mente abandonado. a grande tendência atual, dos brinquedos, é a~ocialização política, com a divisão sexual dos papéis e das fun-ções. Quando se vai comprar um brinquedo numa loja, o vendedorprocura logo inteirar-se da idade e do sexo do destinatário. E queos brinquedos, comercialmente, estão divididos em duas categorias:a dos meninos e a das meninas. Qualquer catálogo de brinquedos,

4. ARTES Ph. L'enfant et Ia vie familiale SOu~l'ancien régíme. Paris, Ed.du seuíl, 1973, pp , 90-140.

5. MUSGRA VE, P. W. Sociology of educatíon. London, Methuen, 1965,p. 147.

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iliús, estabelece o tipo e a relação dos que são próprios a um e aou tro sexo. Esta divisão baseia-se numa certa representação dos pa-péis masculinos e femininos, em nossa sociedade, com tendência aIavorecer a perenidade de tal divisão. Ser menino, segundo estaclassificação, é, sobretudo, ser jogador de futebol, ou ser soldado,c saber conduzir carros, caminhões, trens, tratores, máquinas pe-sadas, aviões, motos. Ser menina, é ser uma futura mamãe, umaIutura dona de casa, toda entregue aos cuidados dos bebês, do fo-gão e das pãnelinhas, da limpeza da casa, ou então à maquilagem.

Tudo isso é o resultado de uma manipulação social do gostoe da escolhas da criança no seu lazer e no seu brinquedo. Belotti (6)mostra todo o trabalho de aculturação que acompanha a escolha deum brinquedo de criança. À menina a quem se dá uma boneca depresente, se lhe ensina como ninar o bebê e segurá-lo em seus bra-ços; ensina-se-lhe o papel da mulher na sociedade. Assim, não so-mente a menina brinca de dona de casa, como faz os gestos quesão próprios, varre a casa, lava a louça, faz a comida, balança onenén e usa uma linguagem coerente com esta situação da mulher.

Simultaneamente à representação de papéis sociais, os brinque-dos também defendem as ideologias sociais. A maioria deles, apesarde serem distribuídos pelo bondoso Papai Noel, são ou a celebra-ção da violência, ou a celebração da economia capitalista, ou a ce-lebração do êxito social. Na primeira categoria figura, infelizmen-te, a idéia da guerra: os brinquedos são fuzis, carabinas, pistolas,metralhadoras, revólveres eletrônicos, soldados, armadas, pára-que-distas, bombardeiros, tanques, robôs. Ligados à celebração capita-lista aparecem os brinquedos modernos, que falam de campos depetróleo, business, riquezas do mundo. Em todos estes brinquedosc vencedor, na ideologia capitalista, é o que consegue monopolizaros meios de produção e enganar seus parceiros nos negócios e tran-sações. Finalmente, os que celebram o êxito social, a exemplo dojcgo "Estratagema", em que quatro candidatos (jogadores) se dispu-tam para alcançar a "Presidência", ou do "Jogo do Sucesso", ondeos jogadores utilizam estratégias para ser bem-sucedido na vida,sabendo combinar adequadamente a riqueza, a felicidade e reno-me (7).

6. BELOTTI, E. G. Du côté des petites iilêes. Paris, Ed. des Femmes,1974, pp. 107-160.

7. Entre os documentários relativos aos tipos de jogos que celebram a eco-nomia capitalista e o êxito social podem ser citados: MATTELART, A.e DORFMAN, A. Donald l'imposteur ou l'impérialisme raconté auxenjants. Paris, Ed. A. Moreau, 1976; Les ieux dans l'initiation écono-migue. Cahiers Français. n," 179, janJfev/1977, notice 2.

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Roland Barthes dizia que o jogo significava sempre algumacoisa, e acrescentava: "que os brinquedos ( ... ) prefigurem literal-men tc o universo das funções adultas não pode senão preparar acriança a aceitar essas funções ... " (8). Assim, a sociedade trans-mite, pelos brinquedos que põe nas mãos das crianças, as idéiasmais absurdas como naturais, como vender e revender a produçãodos países mais pobres para construir um monopólio, ou tomar opoder através de um golpe de estado, para defender os próprios in-teresses econômicos (9).

Já o brinquedo infantil livremente escolhido, é o reflexo dograu de desenvolvimento social da criança. As pessoas e o queelas fazem ocupam o maior conteúdo subjetivo da brincadeira in-fantil, acentuando-se na medida em que ela traduz uma maiorobservação das ocupações do adulto. Estes estímulos que a criançarecebe de seu meio social, são organizados por sua percepção emimagens que constituem a "realidade" da criança. O meio profis-sional, em especial, é percebido através das ocupacões dos pais edas atividades das pessoas mais próximas. As realidades do traba-lho entram no seu pensamento e na sua imaginação por meio detudo o que ela vê, ouve e sente em casa e na escola. Muito maisdo que as palavras, as atitudes dos adultos relativas a suas ocuna-ções, são interiorizadas pela criança, contribuindo para a elabora-ção das imagens sobre a atividade ocupacional.

Desta forma, as atitudes da criança relativas ao trabalho tantopodem ser positivas como negativas. As primeiras ocorrem quandoos pais e os adultos que convivem com a crianca lhe transmitem,de forma vivencial, uma idéia gratificante do trabalho. Neste caso,a criança formará dele uma imagem positiva. A segunda atitudeocorre quando o conjunto de circunstâncias em que a criança vive,lhe oferecem do trabalho uma idéia negativa.

Sabe-se que estas duas atitudes são obieto da representação lú-dica das crianças. Embora elas tenham conseqüências mais durá-veis no desempenho ocupacional, a maneira como as crianças orga-nizam seus jogos e representam papéis relativos a ocupações, reve-lam claramente quais as atividades que lhes são simpáticas ou antipá-ticas. Os psicólogos, ao interpretarem testes projetivos de crianças,assim como os ludoterapeutas, têm chegado a conclusões que con-firmam estas idéias. (10)

8. BARTHES, R. Mythologies. Paris, Ed. du Seui!, 1979, p. 47.9. MATTELART, A. e DORFMAN, A. Op. cit., pp , 78-120.10. Cf., a respeito, ZAZZO, R. "Rôle des modeles paternels et maternels

dans Ia formation des stéréotypes sociaux". In Bulletin de Psychologie,mai, 1956.

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Examinando-se atentamente a natureza das brincadeiras infan-tis, pode perceber-se que existe grande associação entre elas e aatividade ocupacional dos adultos. Em lugares do interior nordes-tino, onde a distribuição da água, nas pequenas cidades, é feita emcarroças, é comum ver grupos de crianças brincando com suas car-rocinhas miniaturas. como se estivessem distribuindo a água pelascasa. Em outros lugares, onde é grande o movimento de cami-nhões, o brinquedo predileto de certos meninos consiste em cons-truir e puxar um caminhão. Estas atividades são, para a criança,mais do que um passatempo: são uma comunicação significativaconsigo mesma e com os outros, uma seleção das coisas do seu meioambiente com as quais mais se identificam.

A brincadeira é, portanto, uma imitação dos comportamentosocupacionais do adulto. E. imitando o comportamento dos mais ve-lhos que a criança se torna homem e aprende a se dispensar daajuda dos outros. A criança começa por imitar a forma exterior docomportamento adulto, adaptando-se, desta forma, a seu ambiente.Em seguida, os comportamentos primeiramente imitados, são inte-riorizados sob a forma de normas comportamentais: ela aprende aoque deve e não deve brincar, começa a distinguir o que pode e oque não pode fazer. Por este processo de imitacão e de interioriza-ção a criança se cultiva. desenvolve sua autonomia e se socializa.

Esta aprendizagem social está presente em todas as formas debrincadeira simbólica. Em sua atividade infantil, a criança senteuma motivação mais para as formas de imitacão e de identificaçãocom o mundo social adulto, de que para as atividades voltadas paraa organização moral da personalidade.

Será, portanto, para este aspecto da aprendizagem dos modelossociais através da brincadeira infantil, que serão orientadas as últi-mas observações deste trabalho. Esses modelos são transmitidosora por contato direto com a sociedade, ora sob a forma de normasteóricas de comportamento. No primeiro caso, a criança anrendeos modelos sociais através de uma influência difusa do ambiente,sem que a intervenção voluntária e sistemâtica do adulto se faça ne-cessária. Ela assimila esses modelos, imitando o adulto e identifi-cando-se com ele. As normas teóricas do comportamento traduzem-se na maneira como a criança brinca ou "representa o trabalho",onde as atitudes de liberdade, de honestidade, de justiça, de solida-riedade, são assumidas pelas crianças.

Entretanto, nem todas as crianças adquirem os mesmos mo-delos, pois além de cada uma ter suas próprias motivações, seus in-teresses e sua seletividade de imitação, também nem todas são edu-cadas no mesmo meio social.

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o contato da criança com esses modelos varia em função desua inserção familiar. Em suas brincadeiras, a criança "representade" diferentemente, conforme seja filho de um agricultor, de umoperário de fábrica, de um médico ou de um advogado, pois, emtodos esses casos, a criança concebe a atividade do adulto de umamaneira diferente.

Se a brincadeira e o jogo infantis representam uma necessidadebiológica, psicológica e social de movimento, de participação e ação,é sempre bom lembrar que eles não dependem apenas de fatoresfisiológicos. Toda atividade infantil, seja ela brincadeira ou tra-balho, deve ser vista e interpretada dentro de um ângulo culturale à luz de condições sociais determinadas. Em algumas sociedades,as meninas brincam de bonecas até a entrada da adolescência; emoutras, desde os quatro anos de idade que esta atividade lúdica ésubstituída pelo trabalho de carregar e cuidar dos irmãozinhos, en-quanto a mãe passa o dia inteiro no trabalho (11). A atividade lú-dica da criança é, portanto, socialmente condicionada, conforme elaseja filho único ou tenha um determinado número de irmãos, con-forme seja o mais velho ou o mais novo, conforme sua mãe traba-lhe em casa ou fora dela, conforme viva numa casa sem esnaço oumuito espacosa. conforme sejam seus contatos com pais, avós, tios,primos, vizinhos.

O tipo e a natureza da atividade lúdica, enfim, dependemmuito do papel da família em seu grupo social, de seus meios fi-nanceiros, de sua inserção cultural, de suas atividades profissio-nais. É necessário, portanto, compreender a brincadeira da criançaem função de suas condições de vida, isto é, considerando sua con-dição de criança e sua situação social real. A criança filha de umproletário e a criança de uma família burguesa não vivem sua con-dição de criança de uma mesma maneira. A primeira depende deum adulto ele próprio dependente, oprimido, despojado do podersocial, e que responde às expectativas da criança de um modo quereflete. sua situação de classe. A segunda deperide de adultos quepossuem um poder social real, vivendo em condições materiais quelhe permitem satisfazer melhor as suas necessidades.

Nas comunidades rurais, a representação dos modelos sociais émais acessível e se constitui uma aprendizagem mais direta. A cri-ança está numa relação de presença mais freqüente com os pais,participa de alguns afazeres na comunidade familiar e se ajusta des-de cedo a esses modelos. Assiste às sementeiras e ao nascimentodas plantas, à procriação dos animais, participa das expectativas do

11. RIMBAUD, C. 52 mil/íons d'enjants aú travail. Paris, Plon, 1980.

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grupo social ao qual está íntima e constantemente ligada. Esta cri-ança desenvolve uma atividade e assume uma responsabilidade nogrupo. :P- verdade que dispõe de seus momentos para brincar, massuas brincadeiras são simbólicas, pautadas na atividade dos adultos,com os quais, ao brincar, se identifica.

Naturalmente tudo isso contrasta com a vida da família moder-na nas grandes cidades. As indústrias concentram os lugares detrabalho longe do âmbito residencial. O pai sai de madrugada epassa o dia inteiro longe de casa; quando volta, a maioria das ve-zes, os filhos já estão dormindo, e, no outro dia, sai de novo antesque eles se levantem. Este quadro se complica mais ainda quandoa mãe tem que assumir, também. responsabilidades de trabalhofora do lar. A urbanização e a industrialização, tais como estãoconcebidas em nossa sociedade atual, desintegram o lar tradicional.Com freqüência, outros comportamentos se associam aos anteriores:sinais de frustração, de desânimo, de cansaço, cenas de briga, discus-sões e embriaguez, são vivenciadas pelos pais, transformando o larnum ambiente de apreensão e insegurança.

A criança, através da influência do clima familiar e do seumeio ambiente, realiza a aprendizagem dos modelos sociais ineren-tes à situação concreta em que é educada. Suas pautas de conduta,suas atitudes e preferências são fortemente condicionadas pela si-tuação familiar e social. A criança brinca, e pela brincadeira operaa fuga do real e se evade para o mundo do sonho. Mas este so-nho é povoado da realidade das coisas: o trabalho, os estereótiposocupacionais, o universo familiar, são simbolizados, representados,traduzidos em sua ação lúdica. Por mais que se atribua à brin-cadeira infantil um sentido de "fuga das coisas sérias", como ofaz Wallon, (12) ela está impregnada de imagens ligadas à vidado trabalho, que testemunham, na criança, uma observação ativado meio, sua inserção no social e a aprendizagem dos códigos so-ciais. Treinamento para as realidades do trabalho? Ensaio tímidopara ingressar na vida adulta? Qualquer que seja a resposta, o queé certo é que a brincadeira e o jogo infantis são uma preparaçãosimbólica à existência social concreta.

12. WALLON, H. L'evolution psychologique de Peniant, Paris, Armand Co-Iin, 1977, p. 58.

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