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A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

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NORBERT ELIAS

A RT TCP A T\\ UVr'TTAr'AABUoLA JJA rAL.1 lALAU%J

M E M f i f i i A e S O C I E D A O E

DIFELDifusao Editorial. Lda.

Lisboa

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A colecgao MEMORIA ESOCIEDADE dirige-se a umpublico diversificado, compostopor professores dos diversosgraus de ensino, estudantes dosanos terminals do ensino secun-dario e do ensino universitaric,quadros e empregados de servi-gos, novas profissoes urbanas,profissoes liberais, agentesculturais de diferen'tes sectores,etc. Cobrira um campo muitovasto, procurando apresentar es-tudos de reconhecida qualidadesobre problemas pertinentes dopresente e do passado.Os autores previstos para a pri-meira fase da colecgao consti-tuem uma garantia da divers'ida-de de temas e de pontos de vista.As suas obras tern vindo a insta-lar rupturas e a por em causa asdivisoes tradicionais do saber.Ao mesmo tempo, esta em pre-paragao um conjunto de obrassobre a realidade portuguesaque, elaboradas no silencio dogabinete ou no colorido trabalhode campo, interessam vastoscirculos de opiniao. Contra umafalsa ideia que faz da obra dedifusao sinonimo de simplifica-gao fbrgada, serao dados a conhe-cer os resultados de cuidadasinvestigates, porque so estasestimulam reflexoes aprofunda-das.Finalmente, havera que revalori-zar textos classicos, tanto no seuestatuto, como na forga da sua

* actualidade. Criterio que impli-ca recupera^ao do olvidado ourecoloca^ao do demasiadoconhecido, na linha da concilia-gao das obras pertencentes aopatrimonio internacional com asobras portuguesas.

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A BUSCA DA EXCITAgAO

I Centre JU - lei; S33-23S*

$33 2237-FAX. $331277

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NORBERT ELIAS E ERIC DUNNING

A BUSCA DA EXCITAgAO

Tradugaode

Maria Manuela Almeida e Silva

Memoria e Sociedade

DIFELDifusao Editorial, Ida

Lisboa

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Titulo original: The Quest for Excitement©1985 by Norbert Elias and Eric DunningTodos os direitos para publicacao desta obra reservados so para Portugal por:

DIFELDrfusao Editorial. Lda.

Ltsboa

Denominac.ao Social — DIFEL 82 — Difusao Editorial, Lda.Sede Social — Rua D. Estefania, 46-B

1000 LISBOATelefs.: 53 76 77 - 54 58 39 - 352 23 10

Capital Social — 60 000 000$00 (sessenta milhoes de escudos)Contribuinte n.° — 501378537Matrfcula n.° 3007 — Conservatoria do Registo Comercial de Lisboa

Memoria e SociedadeColecc,ao coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto

Capa: Emtlio Tavora VilarRevisao: Maria Manuela Vieira e Ayala MonteiroComposigao: Maria Esther — Gab. Fotocomposi$aoImpressao e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu 1992Deposito Legal n.°ISBN 972-29-0203-2

Proibida a reproduc,ao total ou parcial sem previa autoriza^ao do Editor

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Para Stephen, Barbara, Richard, Bebe, Judy,Michael e Rachel

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J

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NOTA DE APRESENTAgAO

Com a tradugao para lingua portuguesa de A busca da excitagao— desporto e lazer no processo civilizacional\ (precedida de A Condi$aoHumana, nesta mesma colecgao) passam a estar disponiveis emlingua portuguesa cinco obras de Norbert Elias. Este numero, semduvida significativo, corresponde a uma redescoberta dos trabalhosdo autor, falecido vai para dois anos, e impoe uma reflexao cruzadasobre a sua pratica intelectual e as condigoes de recepgao ou deleitura da sua obra1.

A Sociedade de Corte foi editada pela Estampa, em 1986, tendoa tradugao sido feita com base na primeira tradugao francesa. Ora,desta nao constava o longo e importante prefacio escrito por Eliaspara a primeira edigao alema de 1969, em que o autor tratou osproblemas da relagao entre a sociologia e a historia. Do ponto de

1 Sobre o autor e a sua obra os melhores estudos, incluindo as discussoescriticas, sao os de Peter Gleichmann, John Goudsblom e Hermann Korte, eds.,Materialen zu Norbert Elias' Zivilisationstheorie, Francoforte, Suhrkamp Verlag,1979; idem, eds., Macht und Zivilisation. Mater ialen zu Norbert Elias'Zivilisationstheorie 2, Francoforte, Suhrkamp Verlag, 1984; Theorie, Culture andSociety, vol. 4, numero 2-3: Norbert Elias and Figurational Sociology (1987); Her-mann Korte, Uber Norbert Elias, Suhrkamp Verlag, 1988; C. Lasch, «HistoricalSociology and the Myth of Maturity: Norbert Elias' Very Simple Formula»,Theory and Society, vol. 14 (1985), pp. 705-720; S. Mennell, Norbert Elias, Civi-lization and the Human Sciences, Oxford, Basil Blackwell, 1989; R. van Krieken,«Violence, Self-Discipline and Modernity: Beyond the Civilizing Process», TheSociological Review, vol. 37 (1989), pp. 193-218; Roger Chartier, A HistoriaCultural — entre prdticas e representafies, Lisboa, Difel, 1988, pp. 91-119; idem,«Conscience de soi et lien social», in Norbert Elias, La Societe des individus, trad.Jeanne Etore, Paris, Fayard, 1991. Os textos autobiograficos de Elias forampublicados sob o titulo de Norbert Elias Uber sich selbst, Francoforte, Suhrkamp,1990 (trad, francesa de Jean-Claude Capele, Norbert Elias par lui-meme, Paris,Fayard, 1991).

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vista do autor, interessa notar que esta obra se encontrava escritadesde ha muito. Die hofische Gesellschaft constituira a teseapresentada em 1933 na Universidade de Francoforte, mas quenunca chegou a ser discutida, dada a emigra^ao de Elias paraInglaterra (com uma breve passagem por Paris), logo apos a subidaao poder dos nacional-socialistas. Assim, a distancia entre omomento da elaboragao e o tempo da difusao desta obra assinalaa figura de um autor exilado, tardiamente reconhecido.

De O Processo Civilizacional as Edigoes D. Quixote publi-caram em 1989 e 1990 os dois volumes, numa tradugao feita di-rectamente do alemao, por Lidia Campos Rodrigues. Uber denProcess der Zivilisation conheceu uma primeira edigao em Basi-leia, em 1939, precisamente numa colecgao que se propunha editartextos de autores alemaes exilados. Mas so em 1969 surge umasegunda edigao. A partir de entao, tem-se assistido por toda aEuropa e nos Estados Unidos a uma redescoberta desta obra, con-cretizada em sucessivas tradugoes.

A Introdugao a Sociologia foi publicada em 1980, pelasEdigoes 70, em tradugao de Maria Luisa Ribeiro Ferreira, a partirda versao inglesa (la edigao alema: Munique, 1970). Relativa-mente as duas obras anteriores, elaboradas antes da SegundaGuerra, Was ist Soziologie? marca o momento da redescobertada obra de Norbert Elias, que durante quase trinta anos ficaralimitada a artigos de revista ou publicagoes especializadas (a ex-cep^ao do livro escrito com John L. Scotson, The Established a dthe Outsiders, Londres, Frank Cass & Co., 1965).

Perante estas tres publica0es, o problema esta em saber qualo melhor contexto para ler Norbert Elias. A questao — inerentea todo o acto de leitura — pode ser extensiva a outras obras, nummercado editorial como o nosso em que as tradugoes, na area das

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NOTA DE APRESENTA^AO

ciencias humanas e socials, embora ocupem lugar de destaque,raramente obedecem a criterios rigorosos de estabelecimentoe apresentagao do texto. Neste sentido, nao se trata apenas deinquirir da «qualidade das tradugoes», o importante e tambem porem causa o proprio acto da publicagao em lingua portuguesa dostrabalhos de Norbert Elias.

Ora, a tradugao dispersa e incompleta de uma serie de trabalhosdo mesmo autor favorece apropriagoes fragmentadas da sua obra.Tais apropriagoes — investidas de um sentido utilitario em relagaoaos objectos ou aos metodos, apresentados pelo autor — raramenteatendem as operates de construgao da propria obra, a partir dosvarios contextos em que esta e produzida. Assim, a apropriagaofragmentada de uma obra implica o risco da sua descontextuali-zagao. Reconstituir esses contextos obriga a pensar em con junto umpercurso intelectual nas suas constantes e nas suas mutagoes. Sema intengao de proceder a um levantamento exaustivo, sera possiveldetectar tres grandes con juntos de temas — tematizagoes — quepercorrem os diversos trabalhos do autor e que adquirem diversasmodalidades, consoante os objectos em analise e os tipos de inves-tigagao.

Em primeiro lugar, a atengao e dada ao con junto das pulsoes edos comportarnentos violentos, a par dos dispositivos de controloque sobre eles incidem: discursos ou praticas normativas, poderesmais ou menos institucionalizados e mecanismos de autocensura oude autocontrolo. Se esta preocupagao pelas atitudes pulsionais podeser relacionada com a propria obra de Freud, nao se podera omitiro facto de Elias ter comegado por seguir estudos em medicina,psicologia e filosofia na Universidade de Breslau (cidade ondenasceu em 1897) e, uma vez em Inglaterra, ter exercido a psicote-rapia de grupo. E esta preocupagao pelas pulsoes que Ihe permite

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pensar, em referenda a um mesmo campo, fenomenos tao diferen-tes quanto a guerra, o desporto e as emogoes. Fazendo variar asescalas de analise e afinando os pontos de vista comparativos, Eliasapresenta na obra que agora publicamos a nogao de ciclo de vio-lencia, enquanto momento de um determinado processo.

Em segundo lugar, Elias procura definir configurates sociaisespecificas. Inicialmente determinadas a partir da analise da corte,nomeadamente da corte de Luis XIV, e do Estado em construgaonos alvores da epoca moderna, tais configurates definem-se -— emtrabalhos mais recentes — com base no estudo concrete dascomunidades de uma cidade operaria inglesa, das equipas despor-tivas, do grupo de apoiantes de um clube («hooligans»), bem comodas grandes potencias actuais, isoladas ou em confronto (comovemos em A Condigao Humana). Do ponto de vista da analise socio-logica, a nogao de configuragao (figuragao) permite simultanea-mente identificar os diversos modos de inter-relagao e ultrapassar asseparagoes teoricas entre o individuo e a sociedade. Neste sentido,a configuragao enquanto unidade de analise do social funda-senuma logica relacional, o que permite a Elias resolver o dualismoentre integragao e conflito.

O ultimo tema que atravessa a obra de Norbert Elias diz res-peito a nogao de processo, que em boa medida se filia no valor doprogresso, no duplo sentido de evolugao da humanidade e deavango no conhecimento da natureza e da sociedade. Para o autor,nao se trata de postular um valor e de o projectar em analises,particularmente interessadas no estabelecimento de comparagoesentre diferentes configuragoes sociais. O que Elias intenta releva deuma dupla preocupagao. Em primeiro lugar, trata-se de recuperarpara a sociologia a sua orientagao inicial, particularmente visfvel naobra de Augusto Comte, e fazer conciliar a analise das estruturas

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NOTA DE APRESENTA^AO

sociais com as marcas da evolugao temporal, isto e, o seu processo.Neste sentido, a divisao entre a sociologia e a historia desaparece.Em segundo lugar, Elias pretende reiterar a confianga no progresso,num seculo que tern procurado demmciar a fragilidade dos seusresultados. Na defesa desse ponto de vista, essencialmente etico, oautor aponta as formas crescentes de controlo sobre a natureza esobre a sociedade, ao dispor do homem ocidental, ao mesmo tempoque reivindica para a ciencia a vontade de descobrir as relagoesinscritas na propria realidade e, assim, orientar de forma proficuaa acumulagao de conhecimentos.

Em A busca da extita$ao, Norbert Elias e um dos seus principalscolaboradores, Eric Dunning (num dos capitulos acompanhado dePatrick Murphy e John Williams), analisam a partir do caso con-creto do desporto — em particular do fiitebol e do rugby, incluindoos grupos de hooligans — uma sociologia historica atenta as con-figuragoes e ao processo da civilizagao1. Centrados sobretudo nasociedade inglesa, os autores recorrem sistematicamente ao pontode vista comparativo, tendo em vista identificar a especificidadedos processos e as diferengas na caracterizagao de cada configuragaosocial. O controlo da violencia, no modelo da sociedade inglesa doseculo XVIII, conduz Norbert Elias a estabelecer uma analogiaentre a emergencia e difusao do futebol, e um sistema politico emque se enraizam os habitos parlamentares. As regras estabelecidas,na inter-relagao dos grupos em conflito, o face-a-face de taisgrupos, que os agentes incorporam e a que se habituam, passam a

1 De Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, cf. ainda HooligansAbroad. The Behaviour and Control of English Fans at Continental Football Matches,Londres, Rout ledge, 1984; The Roots of Football Hooliganism — An Historical andSociological Study, Londes, Routledge, 1988.

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constituir um padrao de civilizagao horizontal. Este modelo con-trapoe-se ao da sociedade francesa do seculo XVII, onde a corteimpoe, do alto, regras e comportamentos, deflnindo um processode civilizagao vertical. Neste sentido, a analise das praticas despor-tivas integra-se no vasto campo de analise da sociedade global,fugindo as compartimentagoes dos especialistas do desporto econvidando-os a reflectir com maior profundidade sobre um dosfenomenos essenciais da nossa civilizagao.

Memoria e sociedade — os coordenadores

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de aproveitar esta ocasiao para assinalar a minhagrande divida para com Norbert Elias. Sem o estimulo e o encora-jamento que dele recebi — primeiro, como estudante universitario,mais tarde, como pos-graduado e jovem assistente — duvido deque tivesse concretizado a carreira sociologica, em face do modestoprestigio que esta profissao gozava. Com efeito, se nao tivesse tidoa sorte de me encontrar com Norbert Elias quando comecei aestudar economia na entao University College, de Leicester, em1956 — nao tinha ouvido falar de sociologia antes de iniciar osmeus estudos universitarios, e nao conhecia Elias nem sabia queensinava em Leicester —, duvido de que, na verdade, tivesse segui-do uma carreira sociologica.

Na epoca, o tema encontrava-se enredado num impasse degrande esterilidade — em termos teoricos caracterizava-se, sobre-tudo, por modelos estaticos de funcionalismo e, sob o ponto devista empirico, por formas de empirismo igualmente estaticas earidas. Por certo, isso nao me teria interessado mais do que aeconomia, assunto que depressa descobri nao ser do meu agrado.No entanto, as li^oes de Elias e as suas orientagoes como professor,com o seu enfase na perspectiva do desenvolvimento, o fulcro dosestudos orientado a partir da realidade e o acento tonico colocadona interdependencia entre a teoria e a observagao, a sociologia e apsicologia, atrairam-me desde o inicio. Tive sorte pelo facto de oacaso me ter levado a ser formado por um dos maiores sociologosdo nosso tempo e sinto-me privilegiado por ter sido possivel traba-Ihar com ele nos artigos reunidos e publicados neste volume. De-sejo que os meus esforgos independentes, aqui incluidos, repre-sentem alguma coisa, ainda que diminuta, contribuindo para odesencadear da reorientagao da sociologia na direcgao pela qualElias tern lutado ha tanto tempo, uma reorientagao que, entre ou-tras coisas, coloque o estudo do desporto e do lazer mais no centrodas preocupagoes sociologicas do que ate agora tern acontecido.

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Tambem gostaria de agradecer a alguns dos meus actuals cole-gas, em particular, a Pat Murphy, John Williams, Ivan Wadding-ton e Tim Newburn. E um privilegio trabalhar com sociologos detanto talento e tao empenhados, e gosto de pensar que desempe-nhamos um pequeno papel na continuidade e no desenvolvimentoda «tradigao de Leicester» no ensino e na investigagao sociologica,cujas bases foram bem langadas por Elias nos anos de 1950 e I960.

Finalmente, devo agradecer ainda a Eve Burns e a Val Phebypela simpatia e inabalavel bom humor com que levaram a cabo aardua tarefa de dactilografar este manuscrito.

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PREFACIO

Eric Dunning

1

A maior parte dos artigos incluidos nesta obra ja foi publicada.Contudo, esta e a primeira vez que aparecem reunidos e que sepublicam as versoes completas de alguns. O seu aparecimentonuma obra constitui um facto de algum significado e, em parti-cular, mostrara ao leitor que sao o resultado sistematico de umunico corpo de teoria e de investigate — o trabalho pioneiro deNorbert Elias sobre o processo de civilizagao e a formagao doEstado1. Com efeito, constituem exemplos e ampliagoes deste corpoteorico e de investigate e, por esse motivo, sao representatives daabordagem especifica «configuracional» e do «desenvolvimento»que Elias aprofundou na sociologia2.

Dado parecer que o trabalho de Elias encontrou, por vezes, nomundo dos sociologos de lingua inglesa3, ouvidos de surdos, apro-veitarei esta oportunidade para relacionar este con junto de artigos

Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978; Sate Formation and Ci-vilization, Oxford 1982.

2Para uma caracterizagao geral desta abordagem, ver a obra de NorbertElias, What is Sociology, Londres, 1978; e, tambem, de Johan Goudsblom, Socio-logy in the Balance, Oxford, 1977; e, de Peter Gleichmann, Johan Goudsblom eHermann Korte (eds.), Human Figurations, Amsterdao, 1977.

3Ha uma ou duas excepgoes. Por exemplo, Philip Abrams refere-se a TheCivilizing Process como sendo «a tentativa recente mais extraordinaria para abran-ger o social e o individual no quadro de um projecto unitario de analise so-ciologica». Ver a sua Historical Sociology, Shepton Mallet, 1982, p. 231. Vertambem, Zygmunt Bauman, «The Phenomenon of Norbert Elias», Sociology, 13(1), Janeiro, 1979, pp. 117-25. Para um estudo critico do artigo de Bauman, verEric Dunning e Stephen Mennel, «Figurational Sociology. Some Critical Com-ments on Zygmunt Bauman's vvThe Phenomenon of Norbert Elias"», Sociology,14 (2), Julho, 1979, pp. 497-501.

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com a estrutura do seu trabalho na sua globalidade. Antes disso, noentanto, utilizarei uma abordagem «eliasiana» para tratar da ques-tao ligada ao facto de o desporto e de o lazer, em particular oprimeiro, terem sido desprezados como areas de investigate dasociologia. A seguir, depois de fornecer alguns pormenores bio-graficos e de situar a perspectiva de Elias no «mapa sociologico»,apresentarei o que considero serem os principais aspectos da suaabordagem. No final, direi uma ou duas palavras sobre os artigosque integram este volume.

Na verdade, a sociologia do desporto enquanto area de especia-lizagao e recente, embora tenha sido efectuada uma tentativa paraIhe atribuir uma ancestralidade respeitavel, atraves da referencia asobservances feitas por sociologos «classicos» como Weber4. O seucrescimento foi consideravel, em especial, nos Estados Unidos,Canada e Alemanha Ocidental, desde os primeiros anos da decadade 60. Todavia, tal como se encontra no presente, ela e em grandemedida o resultado de especialistas de educagao fisica, um grupocujo trabalho, devido ao seu envolvimento real nesta area, naopossui, por vezes, o distanciamento necessario para uma analisesociologica fecunda e aquilo que pode designar-se como uma im-plantagao «organica» nas preocupagoes centrais da sociologia.Ou seja, muito do que tern escrito situa o fulcro das suas preo-cupagoes, em grande parte, nos problemas especificos da educagaofisica, cultura fisica e desporto, falhando na apresentagao das rela-goes sociais mais alargadas. Alem disso, esta analise parece possuirum caracter meramente empirista5. Existem algumas excepgoes

4Ver, por exemplo, John W. Loy e Gerald S. Kenyon, Sport, Culture andSociety, Macmillan, Londres, 1969, p. 9-

5Para exemplificagao desta tendencia empirista deve ser suficiente, nocontexto presente, registar os titulos dos artigos publicados em The InternationalReview of Sport Sociology, 1 (17), 1982. Sao os seguintes: «Factors Affecting ActiveParticipation in Sport by the Working Class»; «The Social Role of Sports Eventsin Poland and Hungary»; «Sport and Youth Culture»; «The Development ofPlay and Motoric Behavior of Children Depending on the Existing Socio-SpatialConditions in Their Environment»; «Sports Activity During the Life of Citi-

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notaveis6. Contudo, tenho a certeza de que a maioria dos sociologosconcorda que muito do trabalho realizado ate ao momento, na areada sociologia do desporto, se encontra longe de despertar interessefora do quadro da educagao fisica ou de chamar a atengao das«principais correntes» sociologicas.

Outro aspecto desta questao consiste no facto de poucas corren-tes sociologicas terem teorizado sobre o desporto ou realizadoinvestigates sobre qualquer aspecto deste — com a evidenteexcepgao dos hooligans* do futebol, que atrairam a atengao dealguns teoricos dos fenomenos de desvio e de marxistas7.

E esta a situagao, mesmo quando o desporto parece constituiruma parte integrante das instituigoes com as quais um grupoparticular de especialistas da sociologia se encontra envolvido, porexemplo, na educagao8. Talvez seja sintomatico deste quadro geralo facto de a tese de mestrado apresentada por Anthony Giddens,em 1961, na London School of Economics, tratar da sociologia dodesporto e, desde ai — periodo em que este adquiriu a fama de serum dos teoricos mais avangados da sociologia na Gra-Bretanha —,o mesmo ter sido incapaz, o que nao deixa de ser significative, deregressar ao campo do desporto ou de o considerar, em qualquer

zens»; «Sports Clubs and Parents as Socializing Agents in Sport»; «The FlemishCommunity and its Sports Journalisms, « Demystifying Sport Superstition».

6Intelectuais como Alan Ingham e, embora discorde de muitos aspectos dasua abordagem, John Loy e Gerald Kenyon sao proeminentes entre estas notaveisexcepgoes.

7Ver, por exemplo, John Clark, «Football and Working Class Fans: Tradi-tion and Change», em Roger Ingham (ed.) Football Hooliganism, Londres, 1978;Ian Taylor, «Football Mad: a Speculative Sociology of Football Hooliganism»,em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres,1971; e «Soccer Consciousness and Soccer Hooliganism», em Stanley Cohen(ed.), Images of Deviance, Harmondsworth, 1971.

8A negligencia quanto ao desporto e talvez mais comum entre sociologos daeducagao na Gra-Bretanha do que nos Estados Unidos, porque ai existemanalises bastante profundas do desporto em Willard Waller, The Sociology ofTeaching, Nova lorque, 1932; e James S. Coleman, The Adolescent Society, Novalorque, 1961.

*Termo ingles que significa «vadios». No entanto, a expressao inglesa ge-neralizou-se e passou a designar, na Europa, os elementos jovens do sexo mas-culino que fazem parte do publico do futebol e estao directamente associados aosdistiirbios, entre adeptos, que ocorrem por ocasiao destes acontecimentos despor-tivos. (N. da T.)

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das dissertagoes teoricas que elaborou, como um tema que mere-cesse uma discussao sistematica. Para ele, como para outros, osvalores e o quadro das oportunidades no seio da sociologia determi-naram que os trabalhos se efectuassem em areas mais convencio-nais, tendo resultado disso o facto de o estudo sociologico do des-porto ter sido abandonado, na maior parte, as maos dos que nao saosociologos. Tambem aqui existiram excepgoes notaveis. For exem-plo, Pierre Bourdieu9 e Gregory P. Stone10 deram importantescontributes neste campo.

No entanto, continua a ser verdade afirmar-se que poucos dosprincipais sociologos se comprometeram com um trabalho sis-tematico de investigate do desporto, se ocuparam com a suateorizagao ou debate nos seus livros de textos e outros trabalhos, ouintegraram o estudo do desporto nos cursos onde ensinam.

As possiveis razoes que explicam este desprezo da sociologianao sao muito dificeis de encontrar. As reflexoes de David Lock-wood sobre os motivos por que «o conceito de raga nao tinha re-presentado um papel central no desenvolvimento da moderna teoriasocial» podem fornecer algumas indicates sobre o assunto. Lock-wood afirma que «e inevitavel o facto de a raga nao ter emergidocomo um conceito-chave na explicate sociologica» porque o de-senvolvimento da tradigao sociologica «impediu, do exterior, oestudo de aspectos biologicos e, em vez disso, conduziu a atengaopara estes aspectos basicos e universais do sistema social como areligiao e a divisao do trabalho...». Lockwood defende que estatendencia se formou porque nao existia «nenhum problema racial,susceptivel de comparagao com aquele que o presente conhece, nasituagao historica em que a base da estrutura da teoria sociologicase consolidou»u.

Independentemente de saber como ou ate onde e que isto sepode aplicar ao estudo sociologico da raga ou das relates raciais,esta analise parece, a primeira vista, poder ajustar-se, em termospotenciais, a negligencia da sociologia em relagao ao desporto. De

9Pierre Bourdieu, «Sport and Social Class», Social Science Information, Vol.17, n.° 6, 1978.

10Ver, por exemplo, Gregory P. Stone, «American Sports: Play and Dis-play», em Dunning, The Sociology of Sport.

nDavid Lockwood, «Race, Conflict and Plural Society», em Sami Zubaida(ed.), Race and Racialism, Londres, 1970, pp. 57-72.

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facto, no tempo em que os contornos basicos da moderna sociologiase estabeleceram12, tal como a raga, o desporto nao era — ou, maispropriamente, nao era considerado pelos «fundadores» — o espagode problemas sociais serios. Alem disso, muitos teriam argumenta-do que o desporto, tambem, nao constitufa nem uma propriedadebasica nem universal do «sistema social». Contudo, embora asestruturas destas actividades e o seu significado variem para aquelesque nelas participam, ate hoje nenhuma sociedade humana existiuque nao tivesse algo de equivalente ao desporto moderno. Maissignificative ainda e o facto de muitos desportos possuirem, decerto modo, raizes religiosas, e a analise de Durkheim sobre a«efervescencia colectiVa» suscitada nos rituais religiosos dos abo-rigenes australianos pode ser transferida, mutatis mutandis, para aemogao e o excitamento criados atraves dos desportos modernos13.Ate agora, apesar da evidencia dos factos, poucas tentativas foramrealizadas para integrar o estudo do desporto quer no quadro dareligiao14, quer no da divisao do trabalho15. O que sugere que aemergencia daquilo que se tornou o foco basico das preocupagoesda sociologia moderna, mais do que parece sugerir a analise deLockwood16, foi um processo que nao se encontrava isento de in-fluencias, o que, em termos de Elias, sao as «avaliagoes he-teronimas». De modo resumido, parecia que os sociologos actuaisrevelavam os seus valores de compromisso, entre outras maneiras,pelo facto de os paradigmas dominantes a que aderem limitarem oseu campo de visao a um conjunto comparativamente estreito de

12Na Gra-Bretanha do seculo XIX, pelo rnenos, os conflitos quanto a ten-tativas no sentido de persuadirem as classes trabalhadoras a desistirem do que eraconsiderado como desportos e actividades de lazer «Barbaras» e a adoptaremformas de recreagao mais «racionais» constituiram um problema social de con-sideravel dimensao.

13Ver Emile Durkheim, The Elementary Forms of the Religious Life, Londres,1976.

14Foi levada a efeito uma tentativa semelhante por Robert Coles no seu«Foot ball as a Surrogate Religion», em M. Hill (ed.), A Sociological Yearbook ofReligion in Britain, n.° 3, 1975.

13Para um debate sobre o desporto e a divisao do trabalho, ver Bero Rigauer,Sport and Work, Nova lorque, 1981.

16Para uma discussao sobre esta questao, ver Norbert Elias, «Problems ofInvolvement and Detachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, n.° 3, 1956,pp. 226-52. Ver tambem a sua obra What is Sociology!

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actividades socials, apesar do empenho da maioria quanto ao idealde «neutralidade etica» ou da «liberdade corno um valor» e daideia de sociologia enquanto ciencia que trata das sociedades emtodas as suas dimensoes. O abandono da sociologia do desporto ternsido uma das consequencias dessa situagao. Alem do mais, a socio-logia orientou-se para o campo restrito dos aspectos «serio» e«racional» da vida, o que teve como efeito que o divertimento, oprazer, o jogo, as emogoes e as tendencias «irracionais» e «incons-cientes» do homem e da mulher tivessem merecido escassa atengaono ambito da teoria e da investigagao sociologicas17. Desporto,guerra e emogoes podem parecer um saco de farrapos de topicosesquecidos, mas, se reflectirmos um pouco sobre isso, verificamosque existem, possivelmente, sobreposigoes significativas entre eles.Deste modo, o desporto e a guerra envolvem formas de conflito quese encontram entrelagadas, de maneira subtil, com formas de inter-dependencia, de cooperagao e com a formagao do «nosso grupo»*e do «grupo deles»18. Alias, tanto um como o outro podem desen-cadear quer emogoes de prazer quer de sofrimento e compreendemuma mistura complexa e variavel de comportamento racional eirracional. A existencia de ideologias diametralmente opostas —que sublinham, por um lado, que o desporto pode constituir umsubstitute da guerra19 e, por outro, que este fenomeno e o veiculoideal de treino militar, devido a dureza e a agressividade demons-tradas pelos que nele participam — e tambem muito sugestivaquanto ao caracter homologo e, talvez, da inter-relagao das duasesferas. Num piano mais elevado de generalizagao, uma das impli-cagoes desta discussao consiste nas orientagoes dominadas por valo-res que informam os paradigmas dominantes da sociologia contem-poranea, que se inclinaram no sentido de equacionar «o sistema

17Tentativas para destruir o modelo habitual quanto a alguns destes aspec-tos podem encontrar-se em Christopher Rojek, «Emancipation and Demorali-zation: Contrasting Approaches in the Sociology of Leisure», Leisure Studies,Vol. 2, n.° 2, 1983, pp. 83-96; e John D. Ferguson, «Emotions in SportSociology», International Review of Sport Sociology, 4 (16), 1981, pp. 15-25.

18Estes termos sao introduzidos por Norbert Elias em What is Sociology?,p. 122 e seguintes.

19Tambem foi igualmente sugerido com bastante frequencia que o desportopoderia constituir um substitute da delinquencia.

*We-group e they-group, sem tradugao precisa. (N.da T.)

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social» com o Estado-nagao contemporaneo e, correspondente-mente, conduziram a negligencia das relagoes internacionais en-quanto foco de teorizagao e de investigate.

Permitam-me agora que elabore uma reflexao sobre algumasdas vias pelas quais os valores heteronimos, que restringiram ocampo de visao dos sociologos, podem ter contribuido para o des-prezo da sociologia do desporto.

Nas minhas primeiras afirma^oes esta implfcita a ideia de queos sociologos tern esquecido o desporto, principalmente porqueso alguns conseguiram distanciar-se o suficiente dos valores domi-nantes e das formas de pensamento caracteristicas das sociedadesocidentais, enfim, para terem a capacidade de compreender o signi-ficado social do desporto, os problemas que este coloca ou o campode acgao que oferece para a exploragao de areas da estrutura sociale do comportamento que, na maior parte, sao ignoradas nas teoriasconvencionais. O desporto parece ter sido ignorado como umobjecto de reflexao sociologica e de investigate, em especial,porque e considerado como algo que se encontra situado no ladoque se avalia de modo negativo no complexo dicotomico de sobre-posigao convencionalmente aceite, como, por exemplo, entre osfenomenos de «trabalho» e «lazer», «espirito» e «corpo», «serie-dade» e «prazer», «economico» e «nao economico». Isto e, noquadro da tendencia que orienta o pensamento reducionista edualista ocidental, o desporto e entendido como uma coisa vulgar,uma actividade de lazer orientada para o prazer, que envolve ocorpo mais do que a mente, e sem valor economico. Em consequen-cia disso, o desporto nao e considerado como um fenomeno quelevante problemas sociologicos de significado equivalente aos quehabitualmente estao associados com os negocios «serios» da vidaeconomica e politica.

No entanto, apesar do desprezo verificado quando se comparamestas areas, o desporto demonstra com toda a clareza que constituium campo de consideravel significado social, o que — de acordocom o grau de pretensao, que os sociologos levam tao a serio,segundo o qual a sua disciplina e uma ciencia de compreensao da

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sociedade, que estuda as sociedades em todos os seus aspectos —reclama teorizagao e investigagao sociologica.

Existem muitos indicadores do significado social do desporto.Pelo menos, nos circulos masculines das sociedades industrials doOcidente, por exemplo, enquanto tema de interesse e de discussao,o desporto e um assunto que rivaliza com o sexo. Alias, hoje emdia, em paises de todo o mundo, o desporto e quase ubiquo comoactividade de lazer. Laurence Kitchin chegou a sugerir de umdesporto, o futebol, que, «para alem da ciencia, ele e o unico idio-ma comum»20, e poucos duvidariam da importancia internacionalde acontecimentos com os Jogos Olimpicos e o Campeonato doMundo. Estes factos estao repletos de oportunidades para a inves-tigagao sociologica. O mesmo se verifica, tambem, quanto a utili-zagao dos boicotes desportivos como uma arma no seio das relagoesinternacionais. Existem outras areas, igualmente, a merecer inves-tigagao, quer sincronica quer diacronica, como sejam: o desportoenquanto «lazer» e o desporto como «trabalho»; padroes de empre-go e modelos de mobilidade social no desporto e em seu redor;amadorismo, profissionalismo e «shamadorismo» no desporto; asrelagoes entre o desporto e a industria; a economia do desporto;a comercializagao do desporto; o papel do Estado no desporto; apolitica e o desporto; a politica do desporto; padroes de adminis-tragao, organizagao e controlo nas organizagoes desportivas interna-cionais, nacionais e regionais; as relagoes entre sectores no ambitodestes diferentes niveis de organizagao; os padroes de controlo dasorganizagoes desportivas nas sociedades «capitalistas» e «socialistas»e os padroes de autoridade nas primeiras; o desporto nos paises doTerceiro Mundo; os meios de comunicagao social e o desporto; o des-porto e a educagao; o desporto e as classes; o desporto e a raga; osexo e o desporto; o desporto e a violencia; as multidoes do desportoe o comportamento desordeiro que por vezes desencadeiam; emuitos mais. Finalmente, o desporto pode ser utilizado como umaespecie de «laboratorio natural» para a exploragao de propriedadesdas relagoes sociais, como, por exemplo, a competigao e a coopera-gao, o conflito e a harmonia, que parecem ser, segundo a logica eos valores correntes, alternativas que se excluem mutuamente masque, neste contexto, no que se refere a estrutura intrmseca

20Laurence Kitchin, «The Contenders», Listener, 27 de Outubro de 1966.

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do desporto, possuem uma interdependencia evidente e muitocomplexa.

Julgo ter atingido o momento em que posso resumir as prin-cipais caracterfsticas da distinta teoria sociologica de Elias. Comose podera ver, no fundamental trata-se de uma teoria em que atentativa de superar o jugo das avaliagoes heteronimas e das ten-dencias dominantes de pensamento dicotomico e dualista foi bemsucedida, tendo em vista desenvolver, no sentido do que Eliasdesigna «o desvio no sentido da distanciagao», a compreensao dosseres humanos e das sociedades que constituem21. Alias, como odemonstram nitidamente os trabalhos incluidos neste volume,e uma teoria que permite avaliar o significado social do desporto eque, nessa linha, se esforga, entre outras coisas, por estabelecer osfundament os da teoria sociologica das emogoes. Esta teoria procuratambem sublinhar o controlo individual e social da violencia e osprocessos de longa duragao que podem ser observados a este respei-to. Em sintese, e uma teoria, acima de tudo, de desenvolvimento.Contudo, antes de me alargar sobre esta e outras questoes, vouapresentar alguns dados biograficos de Elias e situar a sua teoria noquadro do «mapa sociologico».

Norbert Elias nasceu em 1897, sendo de ascendencia germano--judaica. Iniciou a sua carreira de sociologo em 1925, em Heidel-berg, como amigo e colaborador de Karl Manheim, tendo-se con-vertido, na sequencia disso, em seu assistente, no Departamento deSociologia da Universidade de Frankfurt22. Nessa altura, comoagora — embora partilhasse o mesmo .edificio e abordasse, ate certoponto, problemas similares23 —, o Departamento de Sociologia de

21A ideia de «desvio no sentido do distanciamento» e proposta por Elias em«Problems of Involvement and Detachment».

22Ver Johan Goudsblom, «Responses to Norbert Elias's Work in England,Germany, the Netherlands and France», em Gleichmann, Goudsblom e Korte,Human Figurations, pp. 37-97.

23Ver Use Seglow, «Work at a Research Programme», em Gleichmann,Goudsblom e Korte, Human Figurations, pp. 16-21.

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Frankfurt afastava-se do mais conhecido Instituto de InvestigagaoSocial de Adorno e Horkheimer, que foi a base institucional dachamada «Escola de Frankfurt». Menciono este facto so para situar,num local especifico, a emergencia das smteses de Elias sobre odesenvolvimento, numa conjuntura historico-politica particular enum estadio especial do desenvolvimento da propria sociologia.Com maior rigor, Elias iniciava a elaboragao da sua teoria emFrankfurt, quando os nazis chegaram ao poder. Alias, neste estadiocritico e frutuoso da sua carreira sociologica, aventurava-se numaquestao especifica a que os alemaes dao o nome de methodenstreit— a «luta pelo metodo» — que foi a pratica pela qual variasescolas se debateram, ao longo dos anos, no sentido de determinarque metodos «cientificos» eram apropriados ao estudo dos seres hu-manos e das sociedades que estes formam, e que conceitos e meto-dos eram os mais adequados para o efeito. Em seguida, irei focar ascaracteristicas sociologicas da smtese que Elias esta a desenvolver.No entanto, antes de aprofundar estes aspectos, talvez merega apena assinalar que Elias e um humanista que detesta a violencia eque o seu interesse constante pelas relates entre violencia e civi-lizagao nao e so «academico» ou «intelectual». Para ser mais exac-to, surge, pelo menos em parte, da sua experiencia na Alemanha,na decada de 1920 e infcios de 1930, do facto de a sua mae termorrido em Auschwitz e do seu exilio, primeiro em Franga e maistarde em Inglaterra. O que significa que o seu interesse sociologicopela violencia — em todas as suas forma^oes e manifestagoes —radica num profundo desejo de alargar o nosso conhecimento sobreas suas raizes sociais e psicologicas, na esperanga de que essa com-preensao ajude as pessoas a conciliar as suas vidas — os seuspadroes de vida em comum — segundo formas que Ihes permitamevitar toda a especie de tragedias violentas com que a humanidadetern sido particularmente afectada. Mas deixem-me voltar a consi-derar a smtese de Elias e o que ela implica.

Johan Goudsblom, num convincente relato circunstanciado,observou com razao que a preocupagao de Elias consiste no estudo«global»* dos seres humanos e nao apenas de aspectos particularesdas suas vidas, como ideias, valores e normas, modos de produgao

*ln the round. (N. daT.)

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ou instintos e sentimentos e a sua sublimagao24. Ou seja, Elias atri-bui nitida prioridade a sintese em relagao a analise, e esforga-se porevitar a compartimentalizagao das pessoas e das sociedades huma-nas segundo categorias como «economico», «politico» e «social»— como se «o economico» e «o politico» nao fizessem parte, dealgum modo, da «sociedade» — ou «biologico», «psicologico» e«sociologico» — como se as pessoas pudessem existir sem corpos,como se os seus «espiritos» fossem de alguma maneira fenomenosnao ffsicos ou biologicos, ou como se «as sociedades» pudessemexistir, de certa forma, independentemente e separadas do homeme da mulher individuals que as constituem. Contudo, para atingirestes objectivos, uma parte importante do trabalho de Elias consistena tentativa de resolver o dualismo que, de modo geral, separa asociologia das outras disciplinas que com ela se relacionam, aspectoque tern constituido um dos principals centros de tensao no metho-denstreit. Refiro-me a tendencia conceptual para reduzir o estudodas pessoas e das sociedades a um ou a outro piano, num con juntode sobreposigoes dicotomicas, orientagao que levou, no passadocomo no presente, a formagao de escolas que se contestam commaior ou menor clareza a proposito de questoes como «materialis-mo» e «idealismo», «racionalismo» e «anti-racionalismo», «opera-gao» e «estrutura», «voluntarismo» e «determinismo» e muitasoutras25. Estas escolas encaminham-se no sentido de se comprome-terem firmemente com uma, ou duas, perspectivas das multiplasdimensoes do mundo social, e este e um dos pontos de desacordode Elias, tendo em vista a necessidade de resolver os dualismos quese encontram na base dessas escolas — uma tarefa que so pode serbem sucedida por meio da constante fertilizagao cruzada entre oraciocinio teorico e a investigagao empirica — algo que e indis-pensavel realizar no estadio actual de desenvolvimento da sociolo-gia, a fim de facilitar-se o mais vasto crescimento. Este crescimen-

24Goudsblom, «Responses to Norbert Ella's Work», p. 79-25Uma lista mais completa de tais dualismos incluiria: envolvimento -versus

distanciamento (valor-predisposigao versus valor-liberdade ou neutralidade eti-ca); subjectividade versus objectividade; nominalismo versus realismo; indugaoversus dedugao; analise versus sintese (atomismo versus holismo); absolutismoversus relativismo; natureza versus sociedade; individuo versus sociedade;mudanga versus estrutura (dinamica versus estatica); harmoriia versus conflito;consenso versus for^a; ordem versus desordem (estrutura versus caos).

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to compreendera o aperfeigoamento de teorias e de modelos quepossuam uma «forma» mais adequada aquilo que possa ser de factoobservado, e ajudara a combater a tendencia no sentido da decom-posigao e fragmentagao entre escolas que se atacam mutuamente,o que tern sido corrente no desenvolvimento da sociologia e, talvez,no quadro de outras ciencias ligadas ao estudo dos seres humanos.A smtese de Elias e uma tentativa para orientar as ciencias huma-nas atraves do labirinto constituido por este conflito entre uma ouduas dimensoes — mesmo parciais — de problemas e solugoes. Emparticular, o objective e contribuir para o desenvolvimento de umasintese mais adequada ao objecto — uma smtese baseada, igual-mente, na teoria e na observagao — e para um quadro das pessoase das sociedades, atraves do qual estas possam ser descritas comosao realmente e nao como se supoe que sejam, segundo o discursode politicos, ideologos, filosofos, teologos ou homens de leis.

Um dos objectives e contribuir para o aperfeigoamento de ummetodo que seja adequado ao estudo da integragao natural do nivelhumano-social, um metodo nao «cienticista» no sentido em que seentende erradamente o metodo, apenas porque se demonstrou queele estaria apropriado ao estudo de outros niveis de integragaonatural. De acordo com Elias, para alcangar estes objectives, enecessario desenvolver, acima de tudo, um instrumento conceptuale uma terminologia que se ajustem, de forma mais profunda do queaquela que ate aqui se conseguiu, a dinamica e as caracteristicas dasrelagoes dos seres humanos e das suas sociedades. Mas permitamque eu seja um pouco mais concrete e discuta um ou dois aspectosda teoria emergente de Elias. No espago de que aqui disponho,poderei apenas debater uma ou duas pequenas questoes deste todocomplexo e em desenvolvimento.

Consideremos, por exemplo, a posigao de Elias quanto a dico-tomia26 «naturalismo/antinaturalismo». De acordo com o que Eliasdefende, os seres humanos e as suas sociedades constituem parte da«natureza». No entanto, a «natureza» nao e um tecido homogeneomas um todo diferenciado e estruturado, compreendendo uma seriede niveis emergentes. Estes niveis estao inter-relacionados, porem

26Ver, por exemplo, Norbert Elias, «The Science Towards a Theory», emRichard Whitley (ed.), Social Process of Scientific Development, Londres, 1974,pp. 21-42.

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sao relativamente autonomos. Em primeiro lugar, variam em ter-mos de graus de estruturagao dos elementos e, em segundo lugar,a medida que o padrao que estes formam se transforma e evolui.Basicamente, existem tres niveis: o nivel inorganico, o nivel orga-nico e o nivel humano-social. Todos se podem submeter ao estudocientifico, mas os metodos adequados a cada um destes niveis naosao necessariamente apropriados aos outros. Deste modo, o nivelhumano-social emerge dos niveis inorganico e organico e, por isso,e sempre influenciado por processos que se realizam a estes niveis(por exemplo, gravidez, nascimento, crescimento e morte). Toda-via, ao mesmo tempo, ele e relativamente autonomo e possui umnumero de propriedades que e unico, por exemplo, linguagens,codigos morais, Estados, greves, parentescos, casamentos, econo-mias, crises economicas, guerras, formas «pre-desportivas» deconcursos agonisticos e desportos27. De acordo com Elias, esteconjunto unico de propriedades emergentes da integragao naturaldo nivel humano-social caracteriza-se por regularidades propriasque nao podem ser explicadas de forma reducionista, isto e, emtermos de metodos, conceitos e modelos derivados do estudo defenomenos dos niveis inorganico e organico.

No entanto, verifica-se a tendencia para que isto nao seja reco-| nhecido pelos filosofos. Popper, por exemplo, que continua a serI altamente considerado em alguns circulos sociologicos, defende que /

so as explicates em termos de leis_<<gerais>^i^<uniyers^s>>^ere- I; cem estatuto cientifico28. Elias submete esta perspectiva a multi-|\ plas criticas, demonstrando que o conceito de leis universais emer-

giu de um estadio inicial do desenvolvimento da ciencia, ou seja,quando a fisica classica se encontrava em pleno processo de liber-tagao das concepgoes teologicas e metafisicas29. Da mesma maneira,

! tal como Elias demonstra, o conceito de leis universais constituiuma tentatiya_para descobrir algo imutavel e eterno para alem de

I mudangas observaveis, mas falta-lhe a forma adequada ao objectoi dado que, para explicar qualquer mudanga, tern de Fazer-se referen-

27Sobre a discussao do «desporto» como um termo global, e referindo-se aactividades que sao especificas das sociedades modernas, ver o ensaio de NorbertElias «The Genesis of Sports as a Sociological Problem», Cap. Ill deste volume.

28K. R. Popper, The Poverty of Historicism, Londres, 1957.29Elias na edigao de Whitley, Social Process of Scientific Development, p. 23.

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cia a alguma mudan$a prioritaria e nao a alguma «primeira causa»estatica, inalteravel e eterna. No entanto, segundo Elias, o reco-nhecimento do facto nao constitui uma observagao de que o con-ceito de leis nao possui, num sentido global, adequagao ao objectoquando este diz respeito a fenpmenos estruturados de forma vaga edesenvolvendo-se lentamente, como os gases, mas nao possuem acapacidade de se adequarem ao objecto no caso de fenomenos cadavez mais estruturados, desenvolvendo-se rapidamente, como acon-tece com os que dizem respeito aos organismos e as sociedades. Osmodelos de estrutura e/ou processo devem ter precedencia relativa-mente as generalizagoes da lei. Sao exemplos disso: o modelo dedupla espiral de DNA; a teoria da evolugao de Darwin; a teoria domodo de produgao capitalista de Marx; e a propria teoria de Eliasquanto a relagao entre o processo de civilizagao e a formagao doEstado30. Segundo Elias, uma das razoes que estao na base da faltade adequagao ao objecto do conceito de leis universais, a nivelhumano e social, e a relativa velocidade a que o desenvolvimentodas sociedades — um tipo de fenomeno que e altamente estrutu-rado — acontece. Como tal, a este nivel do conhecimento, o conceitorepresenta um bloqueio. Outro obstaculo relacionado com este e oque deriva de algumas caracteristicas de linguagem. Na verdade,procuramos exprimir movimento constante ou mudangas continuasde acordo com formas que implicam que ai existe um objectoisolado em estado de repouso e, entao, acrescenta-se um verbo paraexpressar o facto de que este objecto isolado se movimenta ou setransforma. Dizemos, por exemplo, «o vento sopra», como se ovento fosse uma coisa em repouso, e que, num dado momento,comega a soprar. Isto e, falamos como se o vento estivesse separadodo soprar, como se o vento pudesse existir se nao soprasse31.

Em sociologia, a separagao conceptual de «estrutura» e «mu-danga», «estrutura» e «processo», e «estrutura» e «actividade» ou«acgao», e um exemplo desta tendencia. Deste modo dizemos, porexemplo, que «a estrutura do desporto na Gra-Bretanha se transfor-rriouentre 1850 e 19<50», como se esta «estrutura» fosse uma «coisa>>que de alguma maneira esta separada das pessoas envolvidas nodesporto e das alteragoes nas suas formas de pratica desportiva.

p. 40.31Elias, What is Sociology!, p. 112.

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| Estas formas dicotomicas e reificadas de conceptualizagao sugeremque podem existir estruturas sociais sem^acgao, sem^ransfbrmagqes^

| sem processes, uma nogao que nao tern consistencia perante aquik)que pode observar-se. Elias refere-se a esta tendencia como zustan-^dsreduktion, um termo alemao que significa, liferalmente, « estado

{de redujao», nomeadamente, a reduglo^onaspFual de processes ,observaveis em estado de repouso, embora Mennell e Morrissey otenham traduzido, nao sem razao, por «processo de redu£ao»32.

De acordo com Elias, a tendencia conceptual para separar os«objectos» do pensamento, incluindo pessoas e as relagoes em queestas se encontram envolvidas, esta intimamente relacionada comisso. Neste caso, as duas orientagoes conceptuais — «estado deredugao» ou «processo de redugao» e a separagao dos objectos dasrelagoes — tiveram consequencias infelizes para a sociologia. Naverdade, contribufram para uma forma de conceptualizagao dupla-mente inadequada, por exemplo, para a tendencia em conceptuali-zar «objectos» do pensamento sociologico como sendo, por umlado, estaticos e, por outro, desligados e separados das relagoes emque se encontram envolvidos33. De modo a contribuir para a reso-lugao do que Elias considera como a propensao constante parareificar e separar em termos conceptuais individuos e sociedades,enquanto se reduzem ambos, ao mesmo tempo, a objectos isoladosem estado de repouso, Elias criou os conceitos relacionados de«conflguragoes»34 e homines aperti ou «seres humanos abertos»35.O primeiro refere-se a teia de relagoes de individuos interdepen-dentes que se encontram ligados entre si a varios niveis e de diver-sas maneiras. O ultimo refere-se ao caracter aberto, pessoal e, porinerencia, «orientado para os outros» dos atomos individuals queestao compreendidos nestas configuragoes36. Estes dois termos naose referem a objectos que existem de modo independente mas de-notam niveis diferentes, ainda que inseparaveis, do mundo huma-

p. 133 e seguintes.p. 15.pp. 125, 135.

36O termo other-directed [«Orientado para os outros». (N. da T.)} e usadoaqui num sentido geral e nao com o sentido especifico introduzido por DavidRiesman, em The Lonely Crowd.

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no. Contudo, as configurates nao sao apenas amontoados de ato-mos individuals «orientados para os outros»: as acgoes de umajDluralidade de pessoas interdependentes interferem de maneira aformar uma estrutura entrela<g;ada^de^numerosas propriedades emer-gentes, tais como relagoes de forga, eixos de tensao, sistemas deglasses e de estratificagao, desportos, guerras e crises economicas.Uma vez que o poder, segundo Elias, e uma propriedade funda-mental de qualquer configura^ao, destacarei a discussao quanto aeste problema, fazendo-lhe uma referenda especial. Em seguida,analisarei, de modo resumido, o seu conceito de «dinamica dasconfiguragoes».

Elias desenvolveu um conceito" fundamental de relagoes depoder que se afasta da tendencia constante de o reificar, de o tratarcomo uma «coisa» que alguns possuem num sentido absoluto e deque outros se encontram absolutamente destituidos37. Alias, o seuconceito baseia-se no firme reconhecimento do caracter polimorfo emultifacetado do poder e, como tal, pode servir de corrector daorientagao habitual de o reduzir a uma ou a outra concepgao uni-dimensional, por exemplo, a perspectiva marxista que o reduz apropriedade e ao controlo dos meios de produgao e, nessa base,suportando a construgao de uma teoria «do tipo de leis». «Poder»,como Elias o define,

e uma caractenstica... de todas as relagoes humanas... Nos depende-mos dos outros; os outros dependem de nos. Sempre que somos maisdependentes dos outros do que estes o sao de nos, eles possuem podersobre nos, quer nos tenhamos tornado dependentes deles pela suautilizagao de for^a, ou pela nossa necessidade de sermos amados, pelanossa necessidade de dinheiro, cura, estatuto, carreira, ou simples-mente por excitagao38.

Enquanto representarmos para o outro uma parte de uma rela-gao, como uma fungao e, por isso, como um valor, um individuo dequalquer sexo nao esta desprovido de poder, por rnaior que seja adiscrepancia na relagao de forgas estabelecida entre os dois. Do quefoi apresentado ate aqui, pode verificar-se que a teoria das «confi-

37Elias, What is Sociology?, p. 74 e seguintes.pp. 74, 93.

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guragoes» e do «desenvolvimento» de Elias rejeita a forma deabordagem mais comum, de tipo analitico, segundo a qual cadasociedade se fragmenta em partes de «factores», «variaveis» ou«esferas», como o «factor polftico», a «variavel educativa» ou a«esfera economica». De acordo com esta forma de procedimento,procura-se, entao, determinar qual o «peso causal» relative queexiste no processo social, ou em certos aspectos deste, dos «facto-res», «variaveis» ou «esferas». O que aqui esta subjacente nao etanto uma rejeigao total do «factor teorizador», mas antes umrecurso da sociologia no sentido de encontrar o equilibrio entre aanalise e a smtese, de modo a favorecer esta ultima. Isso implicauma preocupagao maior na determinagao da posigao estrutural de«factores» particulares em configuragoes mais vastas e em relagaoa estrutura dessas configuragoes per se do que tern sido evidenciadaate agora em muitas teorias sociologicas. Com efeito, o que foiexigido foi uma sensibilidade e um conhecimento mais elevados,pois da mesma maneira que a estrutura da molecula de DNA,estudada por Crick e Watson, nao e apenas uma fungao dos seusconstituintes particulares, ou das suas quantidades, mas antes dasua combinagao como uma dupla espiral, tambem a estrutura dasconfiguragoes humanas — por exemplo, a sua ligagao enquantoconfigurates de tribos, cidades-Estado ou Estado-nagao — e umafungao nao so das caracteristicas quantitativas, como da sua dimen-sao ou das particularidades dos individuos que as constituem, mas,tambem, da forma segundo a qual os seus constituintes individualsse relacionam ou combinam. Alem disso, em contraste com as suasequivalentes fisico-quimicas, nas configuragoes sociais existe umatendencia para as qualidades constituintes variarem em fungao das«totalidades» de que representam uma parte.

Daqui se deduz que nao podem efectuar-se generalizagoes uni-versais, por exemplo, sobre a proeminencia da «esfera economica»e o «modo de produgao» na dinamica social — pelo menos, gene-ralizagoes nao universais de caracter nao tautologico, que vao paraalem daquilo que as pessoas necessitam para seu alimento —porque a «esfera economica» e o «modo de produgao» nao saomanifestamente os mesmos em todos os tipos de configuragoessociais. Distinguem-se, por exemplo, nos graus em que se encon-tram separados de modo institucional da «esfera politica» e da«esfera religiosa», o que significa dizer, em termos da sua autono-

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mia relativa. Diferenciam-se, tambem, segundo o papel representa-do nesse ambito pela violencia manifesta e pela forga. Mas, paraos objectivos do presente, isso tern menos importancia do que ofacto de a sintese de Elias, nao obstante a critica que faz das teoriasunidimensionais, nao poder constituir uma forma de «interac-cionismo vazio», uma perspectiva que considera que nas socieda-des humanas e nos processos sociais «qualquer coisa e tao impor-tante como qualquer outra». Nada poderia afastar-se mais daverdade, uma vez que a posigao que Elias defende, na realidade,e a de que a questao da importancia relativa e um problemaempirico e tern de ser definida em termos estruturais e de relagao,;"cpmo no caso do significado estrategico de instituigoes particularesde controlo de recursos valiosos e de gestao dos problemas corren-tes. Dado que esses recursos, problemas e institutes sao cruciaisnas questoes do desenvolvimento especifico, e impossivel fazeracerca delas generalizagoes universais significativas; deste modo, oEstado e uma instituigao estrategica nas sociedades industrials, noentanto, em tipos especificos de sociedades tribais, ele nem sequerexiste. Alias, nas sociedades industrials, a luta pelo controlo doEstado, em particular o duplo monopolio da forga e dos impostos,e, na verdade, um aspecto chave do processo social; em especial,desde que as sociedades-Estado se estabeleceram em redes interna-cionais, o Estado goza de um grau de autonomia em relagao aeconomia ou ao modo de produgao de uma sociedade. Elias ecritico, por exemplo, relativamente a propensao da teoria marxistapara tratar sociedades particulares como se estas existissem por simesmas e se desenvolvessem apenas de acordo com a sua dinamicaendogena39. Tal como o demonstra, a consideragao das relagoesintersociais isoladamente leva a conclusao de que as sociedadeshumanas formam unidades de «ataque e de defesa» ou de «sobre-vivencia» e que estas constituem uma das bases para a emergenciado Estado40.

Na perspectiva de Elias, pode dizer-se que, a par da disputapara controlar as institutes industrials, financeiras e educativas

39A este respeito, algumas excepgoes sao apresentadas pelo trabalho de Im-manuel Wallerstein, a «teoria da dependencia», de Andre Gunder Frank, eoutros. O seu trabalho, contudo, tende ainda a ser economicista.

40Elias, What is Sociology?, pp. 138-9.

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— e, nas sociedades-Estado menos desenvolvidas, para dominartambem as institutes religiosas —, a luta quanto ao controlo doEstado constitui uma das principals caracteristicas de comporta-mento da dinamica de todas as sociedades-Estado. Esta luta, porassim dizer, e canalizada pela « configurable anatomica» da socie-dade, o que e o mesmo que dizer: 1) pela sua «divisao do trabalho»ou, nos termos mais precisos e menos economicistas de Elias, peladimensao e pela estrutura dos seus «cadeias de interdependencia»41;2) pelo equilibrio entre as pressoes «centrfpetas» e «centrffugas»nomeadamente, o grau de eficacia com que ocorreu a centralizagaoestavel do Estado; 3) pela forma adquirida pelo Estado (por exem-plo, se e «capitalista» ou «socialista») e pelo grau em que im-pregnou outras institutes; 4) se a sociedade possui, por exemplo,uma economia baseada na troca de generos ou de dinheiro e,possuindo a ultima forma, se essa economia esta integrada emestruturas intersociais, e ate onde; e, 5) o equilibrio de poder estru-turalmente determinado entre os grupos constituintes. Este equi-librio e afectado, no fundamental, pelo grau em que a cadeia deinterdependencias facilita a «democratizagao funcional», nomeada-mente, o exercicio de formas de controlo reciproco no interior dosgrupos e entre estes42. O equilibrio tambem e influenciado pelograu segundo o qual a posigao dos grupos no sistema global deinterdependencias favorece a comunicagao e a organizagao entreos seus membros e Ihes permite o acesso a instituigoes-chave e aosseus recursos, incluindo o acesso ao conhecimento estrategicamentesignificative.

41O conceito de interdependency chains [«Cadeias de interdependencia».(N. da T.)] refere-se aos lac,os que existem entre seres humanos unidos por meiode um sistema de diferenciagao funcional. Tais lagos podem existir quer entresociedades quer dentro das sociedades. O conceito e semelhante aos conceitosmais vulgares de «divisao do trabalho» e «diferenciac.ao de papel», mas faltam--Ihe as conotagoes economicistas do primeiro e a enfase formalista do ultimo.Tambem e usado num sentido nao harmonico e sem uma conotagao de igual-dade, isto e, as interdependencias tern tendencia a envolver urn elemento deconflito e podem variar ao longo de um continum «simetria-assimetria». Final-mente, o termo chains transporta consigo uma conotac.ao do caracter constrange-dor das liga^oes sociais.

42Para uma discussao do conceito de democratizac.ao funcional, ver Elias,What is Sociology?, pp. 63-4 e 99-100.

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A expressao «dinamica imanente das configurates» refere-seao processo de comportamento que adquire grande parte da suaenergia a partir dessas lutas. Trata-se de um processo que e cana-lizado pela estrutura social das configurates, mas que, ao mesmotempo, e transfbrmado por elas. A longo prazo, possui um caracter«cego» e «nao planeado», em grande medida porque e o resultadode imimeros entrelagamentos, de acgoes nao intencionais de grupose de individuos que as realizam43. Contudo, embora nao planeado,este processo possui uma estrutura determinada, que adquiriu a for-ma do «processo de civilizagao» nas sociedades europeias, desde aIdade Media. Os principais elementos deste processo de civilizagaoforam: a formagao do Estado, o que significa dizer o aumento da cen-tralizagao politica e administrativa e da pacificagao sob o seu con-trolo, processo em que a monopolizagao do direito de utilizagao daforga fisica e da imposigao de impostos, efectuada pelo Estado,constitui uma componente decisiva; um aumento das cadeias deinterdependent; uma mudanga que e niveladora no quadro doequilfbrio de poderes entre classes sociais e outros grupos, o que eo mesmo que dizer pelo processo de «democratizagao funcional»;a elaboragao e o refinamento das condutas e dos padroes sociais; umaumento concomitante da pressao social sobre as pessoas para exer-cerem o autocontrolo na sexualidade, agressao, emogoes de um modogeral e, cada vez mais, na area das relagoes sociais; e, a nivel dapersonalidade, um aumento da importancia da consciencia («super-ego») como reguladora do comportamento. Dado que a teoria doprocesso de civilizagao foi interpretada algumas vezes como sepossuisse uma orientagao simples, unilinear, progressiva e irre-versivel, direi uma ou duas palavras sobre a teoria de Elias, antesde concluir este prefacio com uma apresentagao dos trabalhosreunidos nesta obra.

A interpretagao da teoria de Elias torna-se mais clara atraves deum conceito, introduzido em What is Sociology?, utilizado como ummeio para determinar e medir o estadio de desenvolvimento que asociedade atingiu, um conceito que Elias designa por «triade doscontrolos basicos». De forma mais precisa, como Elias demonstra,

43Para uma analise dos processes sociais «cegos» e «nao planeados», ver,acima de tudo, as obras de Elias The Civilizing Process e State Formation andCivilization.

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PREFACIO 31

o estadio de desenvolvimento de uma sociedade pode determinar--se pela dimensao:1) das hipoteses de controlo das relagoes de acontecimentos extra2

-humanos, isto e, sobre aquilo a que nos referimos, por vezes, deum modo vago, como «acontecimentos naturais»;

2) das hipoteses de controlo das relagoes inter-humanas, isto e,sobre aquilo a que nos referimos habitualmente como «relatessociais»;

3) do que cada membro individual aprendeu, desde a infancia, nosentido de exercer o autocontrolo44.

O desenvolvimento cientifico e tecnologico corresponde a pri-meira destas tres formas de controlo basico; o desenvolvimento daorganizagao social ao segundo; e o processo de civilizagao ao tercei-ro. De acordo com Elias, em qualquer dos estadios considerados,todas as formas de controlo sao interdependentes, quer no seudesenvolvimento quer no seu funcionamento. Todavia, previneacerca da «ideia mecanicista de que a interdependencia dos trestipos de controlo e compreendida em termos de aumento paralelonas tres formas». De maneira mais precisa45, o desenvolvimento dostres tipos de controlo nao ocorre em todos os estadios na mesmaproporgao, e o desenvolvimento de um tipo de controlo basico podecontradizer, impedir ou ameagar o desenvolvimento dos outros.Por exemplo, como Elias afirma, «e bastante caractenstico das so-ciedades modernas o facto de a dimensao das suas hipoteses decontrolo sobre as relagoes extra-humanas naturais ser superior ecrescer com maior rapidez do que a dimensao relativa as hipotesesde controlo das relagoes inter-humanas sociais»46*. Dizendo o mes-mo, de outro modo, o desenvolvimento das ciencias «naturais»

44Para uma explicagao deste conceito, ver Elias, What is Sociology?, pp. 156--7. De modo a conservar estritamente autenticas as formulagoes de Elias, tive deconfiar, em certa medida, no original alemao. Ver Was ist Sociology?, Munique,1970, pp. 173-4.

4^Was ist Sociologie?, p. 173. A discussao correspondente aparece na p. 156da tradugao inglesa.

46Was ist SociologieP, p. 173. A discussao correspondente surge na p. 156 datradugao inglesa.

*Ver, tambem, na p. 161 da tradugao portuguesa de 0 que E a Sociologia?,.Lisboa, Edigoes 70. (N. da T.)

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avangou rnais e corn maior rapidez do que o desenvolvimento dasciencias «sociais» e, em consequencia disso, a nossa capacidadeJecontrolo das relagoes extra-humanas e jjuperior a nossa capacidadede controlo das sociedades. Um corolario desta situagao e o facto deque, quanto menos submissa for para o controlo humano determi-nada esfera de acontecimentos, mais emocional e repleto de fantasiatende a ser o pensamento sobre ela. E, quanto mais emocional erepleto de fantasia for o pensamento sobre determinada esfera deacoritecimentos, menor capacidade se possui para construir modelosdas relagoes com maior adequagao ao objecto e, desse modo, de oscontrolar. Em resumo, eles ficam presos num processo de retorno*negativo, ou no que Elias designa por «configura^ao duplamentelimitada»47. Na verdade, o facto de as chamadas ciencias naturaisse terem desenvolvido mais rapidamente do que as ciencias sociais,atraves da aceleragao das mudangas tecnologicas e sociais, e deterem aumentado, desta maneira, as incertezas e os medos daspessoas contribuiu de modo activo para uma das principals «con-figuragoes duplamente limitadas» em que hoje estamos aprisiona-dos. Contribuiu tambem para o medo e as tensoes que se produzi-ram, nestas condi^oes, pela autorizagao de fabrico de armas — querbiologicas ou nucleares — com capacidade de destruir a nossacivilizagao e, talvez, por intermedio de um «inverno nuclear», dedestruir por completo a vida na Terra. A existencia dessas armasintensifica os medos e os receios mutuos dos antagonistas no qua-dro da actual «guerra fria», de tal maneira que os encerra, cada vezmais, numa «configura^ao duplamente limitada» de escaladamutua dos medos e das hostilidades. E, quanto mais se muniremde armas, maior e a hostilidade e a suspeita com que se encarame, a partir desse momento, aumentam, de modo reciproco, as suashostilidades e suspeitas, e assim por diante, numa escalada emespiral. E obvio, a questao e que nao existe, a nivel internacional,um «monopolio de violencia» equivalente ao que existe no quadrodos Estados-nagoes, que possuem efeitos pacificadores e civilizado-res nas relagoes sociais, o que significa que as relagoes internacio-

47Este conceito e introduzido por Elias no seu trabalho Engagement und Dis-tanziemng, Frankfurt, 1983, pp. 79 e seguintes. Uma tradu^ao inglesa, sob otltulo Involvement and Detachment, esta planeada para aparecer em 1986.

^Feed-back. (N. da T.)

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nais continuam a «reger-se», de varias formas, a um nivel de civi-lizagao relativamente mais baixo. O que se traduz no seguinte:como resultado da ausencia de um monopolio da violencia estavele eficaz, as relagoes internacionais, comparadas com as relagoessociais «domesticas» nos Estados-nagoes mais avangados, caracteri-zam-se por um nivel muito elevado de tensoes incontroladas.E quando, como frequentemente acontece, estas tensoes se decla-ram num estado de guerra, produzem-se efeitos de «descivilizagao»com vastas ramificagoes, nao so em relagao aos que combatem di-rectamente e as suas vitimas imediatas mas, tambem, como a ex-periencia americana no Viet name o demons trou claramente, emrelagao as pessoas que ficaram no pais.

Para os objectives actuals, este breve resumo, e necessariamenteabstracto, da teoria das «configuragoes» e do «desenvolvimento»que Elias aprofundou sera suficiente. Deixem-me voltar agora aostrabalhos deste volume como exemplos e ampliagoes da sua abor-dagem especifica. Como se podera verificar, a relagao de oposigao,a que atras nos referimos, entre «tensoes contrpladas» que se en-contram no desporto e «tensoes incontroladas» que sao referidas aproposito dele constitui uma questao central.

«A Busca da Excitagao no Lazer» e «O Lazer no Espectro doTempo Livre» constituem, nos seus aspectos principals, exemplosda abordagem caracteristicas de Elias. Em primeiro lugar, porqueabandonam as limitagoes que sao impostas a teorizagao e investiga-gao do lazer atraves da, 1) tradicional dicotomia do «trabalho--lazer», e da, 2) tendencia dominante para compreender as tensoescomo unicamente negativas, como algo inteiramente «mau». Emsegundo lugar, constituem exemplos dessa forma de abordagem, nosentido em que langam as bases de uma adequada teoria do lazer,na medida em que procuram subtrair-se as restrigoes impostas pelaactual divisao do trabalho academico e, em particular, libertar-sedas propensoes para a compartimentalizagao do estudo dos sereshumanos que resulta dos -inumeros e descoordenados inqueritosefectuados sobre esta materia e problemas relacionados com ela, porsociologos, psicologos e biologos. O problema do lazer, diz-se, so

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pode ser abordado de forma adequada se tais llmitagoes forarnabandonadas e se os seres humanos envolvidos no problema foremestudados «de modo global». Ou seja, as caracteristicas e as fungoesespecificas das actividades de lazer de diversos tipos so podemcompreender-se se forem consideradas em relagao nao so com aocupagao professional mas, tambem, com as rotinas do tempo livre.Alias, dado que a sua principal fungao parece ser a de activarformas de excitagao agradaveis, estas nao podem ser devidamentecompreendidas por meio de uma abordagem sociologica que igno-re as suas dimensoes psicologicas e fisiologicas. De facto, estesdois trabalhos constituem as bases para uma teoria multidisciplinardasemogoes—sociologica, psicologicaefisiologica.Contribuem, tam-bem, para a teoria do processo de civilizagao atraves da apresenta-gao de algumas das vias atraves das quais as sociedades enfrentamcom exito a rotina que o processo de civilizagao desencadeia.

Os trabalhos de Norbert Elias «A Genese do Desporto: UmProblema Sociol6gico» e o «Ensaio sobre o Desporto e a Violencia»contribuem, igualmente, para a teoria do processo de civilizagao. Oprimeiro analisa os concursos de jogos da Grecia Antiga e demons-tra que estes eram menos civilizados que os desportos modernos.Perante a ausencia, nas antigas cidades gregas, deste tipo de con-trolo relativamente firme, central e estavel (isto e, do Estado) sobreos meios de violencia, como aquele que gozam os modernos Esta-dos-nagoes, de acordo com a teoria do processo de civilizagao seriaisso que se poderia esperar. No «Ensaio sobre o Desporto e aViolencia» esta teoria submete-se a um desenvolvimento maisalargado, atraves de uma analise sobre a caga a raposa, um desportoque muita gente pode considerar hoje como uma contradigao dateoria. Contudo, por meio de uma analise minuciosa de fontesprimarias, Elias demonstra que a caga a raposa, tal como esta sedesenvolveu em Inglaterra no seculo XVIII, evoluiu para a formaque entao existia como um aspecto de uma orientagao civilizadora.Apresenta, tambem, novos esclarecimentos sobre as condigoesprevias desta tendencia e, de uma maneira geral, sobre o desenvol-vimento do desporto em Inglaterra. Finalmente, atraves de umacompreensao precisa exposta em «A Busca da Excitagao no Lazer»e «A Dinamica dos Grupos Desportivos — Uma Referencia Espe-cial ao Futebol», avanga, pela primeira vez, com elementos de umateoria sociologica mais geral do desporto.

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«O Futebol Popular na Gra-Bretanha Medieval e nos Imciosdos Tempos Modernos» apresenta urna analise sociologica bastanteaprofundada do desenvolvimento dos antecedentes do futebol e doraguebi. Constitui, de igual modo, uma contribuigao para a teoriado processo de civilizagao. «A Dinamica dos Grupos Desportivos— Uma Referencia Especial ao Futebol» e, tambem, uma contri-buigao para esta teoria. Naquele artigo, desenvolve-se a critica datendencia corrente que considera o processo social como cooperagaoe competigao, harmonia e conflito, em termos de oposigao di-cotomica, e conceptualiza os grupos desportivos como «grupos emtensao controlada» nos quais o «equilibrio de tensao» tern de seratingido entre opostos, num «complexo de polaridades inde-pendentes». «A Dinamica do Desporto Moderno» procura aprofun-dar esta teoria do desporto, mas e, principalmente, uma tentativapara construir uma explicagao configuracional do fenomeno respei-tante ao crescente significado social do desporto nas sociedadesmodernas e da tendencia observada nessas sociedades para o despor-to se caracterizar pela luta dos resultados.

«As Ligagoes Sociais e a Violencia no Desporto» desenvolveuma tipologia preliminar da violencia e propoe uma explicagao,com base no conceito de «configuragao» da mudanga observada, nalonga duragao, no equilibrio entre as formas de violencia «afectiva»(«expressiva») e «racional» («instrumental») do desporto, nos pafsesocidentais. «A Violencia dos Espectadores nos Desafios de Futebol»(elaborado por Eric Dunning em colaboragao com Patrick Murphye John Williams) aplica a perspectiva de Elias ao problema do«hooliganismo do futebol» na Gra-Bretanha. Este trabalho analisao problema na perspectiva do desenvolvimento e propoe uma expli-cagao configuracional da sociogenese do «estilo masculino agressi-vo» das comunidades das classes mais baixas dos trabalhadores, oqual, como se afirma, acabou neste pais por estar habitualmente as-sociado ao futebol. No final, em «O Desporto como Uma AreaMasculina Reservada», desenvolvem-se e aplicam-se os contornosde uma explicagao configuracional quanto a mudanga de equilibriode poder entre os sexos a partir de alteragoes especificas observadasna identidade e comportamento masculino, que, segundo ahipotese apresentada, pode ser definida pelo enfraquecimento do«patriarcado» e pelo crescente poder das mulheres.

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Nenhum dos trabalhos aqui apresentados pretende ser, demodo algum, a «ultima palavra» sobre a materia a que respeita.Nem nenhum deles, tao-pouco, deve ser entendido como tal. Todossao a consequencia de uma sintese emergente que procura tragar orumo de um novo caminho para a teoria e investigagao sociologica— em geral, e nao apenas dos temas do desporto e do lazer.Representam uma forma de abordagem no quadro do estudo dosproblemas sociologicos que irao, temos esperanga, diminuir aspossibilidades de disputas estereis as quais caracterizaram, comtanta frequencia, a sociologia no passado. Tambem, com boas pers-pectivas, poderao aumentar, ao mesmo tempo, as nossas possibili-dades de concentragao nos «objectos» da investigagao sociologica,nomeadamente nos seres humanos e nas sociedades que estes for-mam. Desta maneira, e na medida em que se mostrarem a alturados seus objectivos, contribuirao para revelar algo mais das com-plexidades do mundo humano-social real, e para estarmos menossujeitos a uma linguagem incompreensivel desnecessaria e aossofismas que, ate agora, conduziram a ruma dos resultados dealgumas pretensas teorias sociologicas.

Seria absurdo, decerto, afirrnar que todos os aspectos da sinteseemergente de Elias sao novos. Nao e esse o caso. Noutros lugarespodein encontrar-se outras enfases. Assim, podem ver-se elementossimilares para uma abordagem configuracional — ainda que emambos os casos mais estatica — em certos trabalhos de Simmel ou,mais recentemente, em algumas formas de analise «em rede»*. Damesma maneira, existe nos nossos dias um vasto consenso entresociologos quanto a necessidade de uma smtese entre a sociologiae a historia, mais do que existia nos anos 50 e 60, quando formasestaticas de funcionalismo e aquilo que C. Wright Mills chamou o«empiricismo abstracto» se inclinaram para um qualquer dominiosupremo48.

O que e novo e a synthesis, a reuniao de varios estudos numcon junto coerente que e l ) conduzido por uma teoria central —

48C. Wright Mills, The Sociological Imagination, Hardmonsworth, 1970,pp. 60 e seguintes.

*Network analysis. (N. da T.)

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a teoria do processo de civiliza^ao; 2) simultaneamente, e de modoequivalente, teorica e empfrica, no sentido em que transcende adicotomia tradicional entre teoria e investigagao, razao e observa-£ao; e, 3) ambas, consideradas segundo a perspectiva configuracio-nal e do desenvolvimento; alem disso, 4) tratam os seres humanose as sociedades de uma maneira « global», contribuindo assim paraevitar a compartimentaliza^ao e a fragmenta^ao que tende a resul-tar da actual divisao do trabalho academico. Esperamos que ostrabalhos apresentados nesta obra possam ajudar a clarificar, maisdo que ate agora tern sido feito por um grande numero de so-ciologos de lingua inglesa, o que a sintese «eliasiana» pretende eo que realmente implica. Acreditamos que estes trabalhos ajudaraotambem a persuadir mais sociologos «dorninantes» que o desporto,o lazer e a sua constru^ao social e respectivas inter-relagoes consti-tuem materias interessantes e importantes para a teorizagao e paraa investigagao e, nessa via, podem contribuir para retirar a socio-logia do lazer e do desporto do esquecimento em que parece terpermanecido ate hoje.

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INTRODUgAO

Norbert Elias

Como podera verificar-se, alguns dos trabalhos apresentadosnesta obra constituem o resultado da colaboragao levada a efeitoentre Eric Dunning e eu proprio. Agora que, pela primeira vez, oproduto desta cooperagao e reunido num volume, valorizado emgrande parte pelo trabalho do primeiro, gostaria de contribuir paraa apresentagao e explicagao de alguns dos principals problemaslevantados por esta obra1.

Quando iniciamos este estudo, a sociologia do desporto dava osprimeiros passos. Lembro-me bem de Eric Dunning debater comi-go a questao de saber se o desporto, e particularmente o futebol,poderia ser considerado pelos especialistas das ciencias socials comoum tema de investigate respeitavel e, em especial, de uma tese demestrado. Penso que contribuimos um pouco para que assim ti-vesse sucedido.

As investigates sociologicas sobre o problema do desporto terna responsabilidade de explicar alguns dos seus aspectos que nao seconheciam antes ou que, se eram conhecidos, o seriam apenas deuma forma muito vaga. Nesses casos, a tarefa consistia em darmaior seguranga ao saber. Tinhamos a profunda consciencia de quea compreensao do desporto contribufa para o conhecimento da so-ciedade.

Varios tipos de desporto integram um elemento de competigao.Sao confrontos que envolvem forga fisica ou proezas de tipo naomilitar. Para reduzir os danos fisicos ao minimo, existem regras queobrigam os adversaries a adoptar um determinado tipo de compor-tamento. Deste modo, por tras destes estudos do desporto, existe

Stephen Mennell e Eric Dunning ajudaram a aperfeigoar o manuscrito, RudolfKniyfF a realiza-lo. Estou-lhes profundamente reconhecido.

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sempre a pergunta: que especie de sociedade e esta onde cada vezmais pessoas utilizam parte do seu tempo de lazer na participagaoou na assistencia a estes confrontos nao violentos de habilidadescorporais a que chamamos «desporto»? fi claro que, em algunsdesportos, existem areas pouco nftidas onde a violencia se pratica.Mas, na maioria dos confrontos desportivos, as regras existem coma finalidade de manter essas praticas sob controlo. Pode perguntar--se: que especie de sociedade e esta onde as pessoas, em numerocada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quercomo actores ou espectadores, em provas ffsicas e confrontos detensoes entre individuos ou equipas, e na excitagao criada por estascompetigoes realizadas sob condigoes onde nao se verifica derramede sangue, nem sao provocados ferimentos serios nos jogadores?

Muitas investigates continuam ainda por fazer ate ser possfvelencontrar uma solugao nao controversa sobre um problema comoeste. Contudo, ha que o dizer, essa e a tarefa da pesquisa so-ciologica. As ciencias sociais, e a sociologia em particular, estao emrisco de se desintegrarem num amontoado de especializagoes pro-fissionais sem ligagao entre si. Espero que ainda continue a serpossivel o entendimento entre elas, situagao para a qual os traba-Ihos apresentados neste volume contem algumas contribuigoesmodestas nao so quanto ao conhecimento do desporto mas, tam-bem, quanto a compreensao das sociedades humanas.

Tanto quanto me parece, a dificuldade que aqui se encontraesta intimamente relacionada com uma certa incerteza que existeentre os sociologos quanto ao objective da investigagao cientffica.Esta finalidade, tal como eu a entendo, e a mesma em todas asciencias. O fim, apresentando-se a questao de uma maneira simplese rapida, e tornar conhecida qualquer coisa previamente desconhe-cida para os seres humanos. E alargar o conhecimento humano,torna-lo mais seguro ou mais ajustado e, de certo modo, em termosmais tecnicos, alargar o fundo dos simbolos humanos a areas doconhecimento ainda nao abrangidas por ele. Como disse, a finali-dade e a descoberta. Esta simples finalidade essencial tern sido bas-tante obscurecida por discussoes formais sobre o «metodo» deinvestigagao cientffica. Esta mudanga de enfase, da discussaodo objectivo e da fungao da investigagao cientffica para a discussaodo metodo, e, em termos sociologicos, sintomatica de uma luta depoderes. Os cientistas das areas das ciencias naturais, juntamence

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INTRODUCE AO 41

1 com o tipo de filosofbs da ciencia, que estao profundamentej empenhados na crenga do primado do tipo de leis das ciencias

i i naturais, usaram todo o seu poder intelectual e social com o fim de:! convencerem os outros de que o «metodo» destas ciencias, e, em

1 particular, o da fisica classica, constituia o unico metodo legitimo-de descoberta cientifica. Os defensores desta perspectiva possuem,de um modo geral, uma experiencia muito limitada de investigagaonas ciencias sociais. A sua estrategia de investigacjio e acima detudo filosofica ou orientada para uma «historia das ideias» tradicio-nal. No entanto, e precise dizer claramente e sem equivoco quee possivel fazer progredir o conhecimento e realizar descobertasno campo da sociologia com metodos que podem ser muito dife-rentes dos que sao utilizados pelas ciencias naturais. O que legi-itima uma investigac,ao cientifica nao e o metodo mas, sim, adescoberta.

Como exemplo esclarecedor, utilizarei uma das minhas propriasexperiencias. Talvez contribua para a melhor compreensao dosresultados de uma investigagao apresentada nesta obra. Uma pes-

anos, agora publicada sob o tftulo geral de^Jdemonstra, para o dizer de maneira breve,

que os modelos sociais de conduta e de sensibilidade, particular-mente em alguns circulos das classes sociais altas, comegam atransformar-se muito drasticamente, numa direc^ao especifica,desde o seculo XVI em diante. O domfnio da conduta e da sensi-bilidade tornou-se mais rigoroso, mais diferenciado e abrangendotudo, mas, tambem, mais regular, mais moderado e banindo querexcesses de autopunigao quer de autocomplacencia. A mudanga en-controu a sua expressao num termo novo, langado por Erasmo deRoterdao e utilizado em muitos outros paises como simbolo de umnovo refinamento das maneiras, o termo «civilidade», que maistarde deu origem ao verbo «civilizar». Investigates posteriorestornam provavel que o processo de formagao do Estado, e, emparticular, a sujeigao da classe guerreira a um controlo mais severo,a «curializagao» dos nobres nos paises continentais, possuia algo decomum com a mudanga verificada no codigo de sensibilidade e deconduta.

De forma identica, a investigagao sobre o desenvolvimento do

2Norbert Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978.

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desporto mostrou que existia uma transfbrmagao global do codigode conduta e de sensibilidade na mesma direcgao. Se compararmosos jogos populates realizados com bola nos fmais da Idade Media,ou ate nos inicios dos tempos modernos, com o futebol e o raguebi,os dois ramos do futebol ingles que emergiram no seculo XIX, podenotar-se que existe um aumento da sensibilidade em relagao aviolencia. A mesma mudanga de orientagao pode ser observada nocaso do desenvolvimento do boxe. As formas mais antigas depugilato, uma maneira popular de resolver conflitos entre oshomens, nao eram inteiramente desprovidos de regras. Porem, ouso dos punhos desprotegidos era acompanhado, frequentemente,pela utilizagao das pernas como uma arma. O padrao popular deluta desarmada envolvendo os punhos, ainda que nao estivessetotalmente desprovido de regras, era bastante flexivel. A luta comos nos dos dedos desprotegidos, como muitos outros combatescorporais, assumiu as caracteristicas de um desporto em Inglaterra,onde foi, pela primeira vez, sujeito a um rigoroso conjunto deregras que, entre outras coisas, eliminava por completo, o uso daspernas como armas. O aumento da sensibilidade revela-se pelaintrodugao das luvas e, com o tempo, pelo acolchoamento destas ea introdugao de varias categorias de jogadores de boxe, o que ga-rantia um mvel superior de igualdade de oportunidades. De facto,a forma popular de luta so assumiu as caracteristicas de um«desporto» quando se verificou a conjugagao entre o desenvolvi-mento de maior diferenciagao e, de certo modo, de formas maisestritas de um conjunto de regras, e o aumento de protecgao dosjogadores quanto aos graves danos que podiam advir dos confron-tos. Estas caracteristicas do boxe enquanto desporto permitemexplicar o motivo por que a forma inglesa de boxe foi adoptadacomo padrao em muitos outros paises, substituindo, muitas vezes,formas de pugilato tradicionais, especificas de uma regiao, comosucedeu em Franga. Do mesmo modo e em grande medida poresta razao, outros tipos de confrontos fisicos com as caracteristi-cas de desportos foram exportados de Inglaterra e adoptados poroutros paises, entre eles as corridas a cavalo, o tenis, a corridae outros generos de provas atleticas. A transi^ao dos passatemposa desportos, a «desportivizacao», se e que possoHjtilizar esta«=3*=Sfe^^SS!r-_ --3=^2f«. -^ v-^xmtasfv-^ - --«"--» assays,- -_ ~ jaitjbaiiwpLw —- ^•H»»«=»~«' -=-=»•«»

expressao como abreviatura de transformacaoaos passatempos emA ^^*~> "."l -^^r^^- - - —^vgsum. -- ~ -*--«-» - w^™ - -

desportos, ocornda na sociedade inglesa, e a exporta^ao de alguns«*= twr«_~j«*£s«* w»«LJS5K <F'*feUJjyi.w-v«r - - — , ^jjjg^^pscasssatsajss^sss^SlftMBBj-

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INTRODU^AO 43

dificil observar e compreender as caracterfsticas especificasdos «desportos» sem efectuar uma abordagem na perspectiva dodesenvolvimento e, deste modo, utilizando o metodo comparativo.Ate hoje, estas duas vias de estudo foram largamente ignoradas.Existe, pois, campo para a descoberta. Segundo creio, os sociologostern de descobrir por si proprios quais sao os metodos de investi-gagao mais adequados a realizagao de descobertas no seu campoparticular de pesquisas. A minha experiencia demonstra, por razoes ^que nao preciso de referir aqui, que, para introduzir progresses no Vestudo da sociedade humana, e indispensavel uma abordagem naperspectiva do desenvolvimento. Sociologos de espfrito filosofico,ou que efectuam a analise da «historia das ideias», terao dificulda-des, decerto, em compreender que a minha convicgao quanto a uti-lidade de uma abordagem no sentido do desenvolvimento adquiriuforma atraves do proprio trabalho de investigagao. Nao se trata deuma doutrina filosofica, nem de um axioma escolhido em conse-quencia de uma predilecgao pessoal. O que nao se pode refutar com x

argumentos fllosoficos, desprovidos de preocupagoes pela evidencia yempirica. Isso so podera ser contestado por intermedio da demons-tragao elaborada com o auxilio da prova adequada que, tal como no ^ ^caso dos avangos de civilizagao, em termos de longa duragao, nao ^*^;ocorreram as mudangas de direcgao verificadas no codigo de condu- - vta humana e de sensibilidade que revelei. /

Alias, uma outra pesquisa orientou-se no mesmo sentido.Pediram-me que escrevesse um artigo sobre o tempo. Iniciei-o e fuiconduzido pelos intrigantes problemas que uma investigagao so-ciologica sobre o assunto sugere. Explorei essas questoes em siproprias e no ambito de um perfodo consideravel sem qualquerconsciencia de que o estudo do tempo, e especialmente a analise dodesenvolvimento do tempo social na longa duragao, fornecia, umavez mais, a demonstragao de mudangas realizadas na estrutura dapersonalidade social, na mesma direcgao das que havia conceptua-lizado no processo de civilizagao. Embora, retrospectivamente,parega obvio o facto de serem as condigoes sociais que atribuem aoconceito do tempo o seu primeiro significado, estas condigoes naose alteram simplesmente de uma maneira fortuita, caracteristica deuma descrigao historica, mas sofreram, em vez disso (ainda que

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com muitos altos e baixos), mudangas observadas na longa duragao,numa orientagao especffica e com uma ordem de sucessao clara-mente identificavel.

O sentido das mudangas no uso do tempo, quer ao nivel socialquer ao nivel ffsico do universe, como meio de orientagao, e osentido das alteragoes no seu uso, como um meio regulador daconduta humana, completam e confirmam aquilo que eu havia ditoanteriorniente sobre a natureza e a direcgao do processo de civili-zagao3. Em poucas palavras, a regularnentagao do tempo, exigidapela vida numa comunidade relativamente indiferenciada de ca-gadores ou de agricultores, compreendendo duzentas pessoas nomaximo, e diferente da que existe numa comunidade industrial quecompreende muitos milhares, ou mesmo milhoes de pessoas. Paraas primeiras, as necessidades de orientagao quanto ao tempo eramas que se prendiam a pequenas referencias e sinais que se repetiam,como o nascer do sol, de manha, o por do sol, a noite, ou a chegadada lua nova, Os membros da segunda comunidade necessitam, parasua orientagao e para regularem o seu comportamento, de instru-mentos que diferenciam o tempo por minutos. Perdem o autocarrose estiverem dois segundos atrasados! Para a vida que a maioriadeles tem nao e suficiente ter uma parcela de informagao publicado tempo na esquina da rua mais proxima. A maioria transportaconsigo um relogio de pulso. A sua vida, com estes instrumentos,atinge facilmente a medida do tempo que regula o seu comporta-mento de dia ou de noite. Para eles, ha muito que passou o tempoem que, para alguem estar perfeitamente regulado, bastava ouvir,de hora a hora, os sons do relogio da torre mais proxima.

Mencionei, resumidamente, tres tipos de testemunhos dasmudangas verificadas, em termos de longa duragao, nos padroes deconduta e de sensibilidade do genero e na direcgao conceptualizadaaqui como processo de civilizagao. Alguns dos trabalhos reunidosneste volume serao, espero, mais bem compreendidos, se dispuser-mos do conhecimento do contexto mais alargado a que pertencem.Deste modo, como e o caso do artigo sobre a genese do desportoou daquele sobre o futebol popular, ha a possibilidade de se con-tribuir para a elaboragao de uma visao mais akrgada sobre o desen-

3Norbert Elias, Uber die Zeit< Frankfurt, 1984.

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volvimento e as caracteristicas do desportq. Mas podem servir,tambem, para o conhecimento das mudangas nos habitos das pes-'soas e das sociedades que elas constituem. Talvez va longe de maisao sugerir que esses artigos, assim como outros reunidos nestevolume, podem estimular reflexoes sobre as pessoas consideradascomo individuos e as pessoas entendidas como sociedades, ou, naversao mais tradicional e, de algum modo, a mais enganadora,sobre as relagoes entre «individuo» e «sociedade»,

No decurso do seculo XX, as competigoes fisicas, na formaaltamente regulamentada a que chamamos «desporto» chegaram aassumir-se como representagao simbolica da forma nao violenta enao militar de competigao entre Estados, e nao nos devemos esque-cer de que o desporto foi, desde o primeiro momento, e continuaa ser, uma competigao de esforgos dos seres humanos que exclui,tanto quanto possivel, acgoes violentas que possam provocar agres-soes serias nos competidores. O facto de a escalada de tensao entrenagoes, conduzir no piano das competigoes desportivas, muitasvezes, os atletas participantes a agredirem-se, devido ao excesso deesforgos ou ao uso de esteroides, e urna caracteristica do desenvol-vimento actual, Esta situagao e um indicador do aumento daimportancia atribuida as proezas no desporto, compreendidas comosimbolo do estatuto das nagoes. Mas isso nao nos preocupa aqui,excepto, talvez, como sintoma de um rumo seguido na longadura^ao, no decurso do qual o balango do pendulo, em vez de semanter moderado, atinge, em certos casos, formas extremas. Quan-do isso se verifica, a pressao social exercida sobre as actividadesdesportivas no sentido do autocontrolo conduz estas a um nivel quechega a levar o atleta a prejudicar-se a si proprio, na medida emque tenta evitar agredir os outros.

Neste contexto, o que merece alguma discussao e a questao desaber por que razoes e que a civiliza^ao dos jogos de competigao ea restrigao da violencia efectuada sobre os outros, alcan^adas at ravesde regras sociais que exigem uma certa grandeza de autocontrolo,se desenvolveram, em primeiro lugar, em Inglaterra. A aceitagaorelativamente rapida dos modelos do desporto ingles pelos outrospaises parece indicar que ai existia tambem a necessidade decompetigoes que envolvessem esforgos fisicos reclamando umagrande capacidade de sublimagao, uma firme regulamentagao emenor violencia, e, contudo, mantendo-se agradaveis.

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Evidentemente, esta necessidade tornou-se conhecida pela rapi-da e facil adopgao de alguns dos varios desportos ingleses, emboranao de todos, realizada por outras sociedades e, em certos casos,pelo seu desenvolvimento posterior nesses locais, de acordo comcondigoes sociais especificas. Subsiste a questao de saber por querazoes e que se manifestaram em Inglaterra, em primeiro lugar,modelos de confronto fisico nao violento, e ai foram representadasde modo simbolico, com um evidente sentido de novidade e distin-gao, atraves de um uso novo e mais especializado de um antigoconceito de «desporto». Por que razao e que confrontos altamenteregulamentados, exigindo esfor^os fisicos e competencia tecnica,caracterizados na sua forma de espectaculo como «desporto», apa-recem primeiro durante o seculo XVIII entre as classes inglesasaltas, a aristocracia proprietaria de terras e a pequena nobreza?

Desde esses tempos, o termo desporto nunca esteve confinadoapenas ao participante isolado: incluiu sempre confrontos realizadospara satisfagao de espectadores, e o esforgo fisico principal tantopodia ser dos animais como dos seres humanos. Um jogo decriquete podia ser organizado entre os servos de dois cavalheirosproprietaries de terras. No entanto, em certas ocasioes, jovenscavalheiros tambem podiam participar no jogo. Neste periodo, osproprietarios de terras abastados de Inglaterra, nobres e cavalheirosja nao tinham qualquer receio de revolta das classes agrarias maisbaixas. As enclosures* eliminaram por completo a influencia doscamponeses livres ingleses enquanto classe social distinta. Emgeral, os servidores e os outros que dependiam dos proprietariosabastados tinham consciencia do seu lugar. Isso tornava as relagoesmais faceis. E, ao mesmo tempo, explica porque e que, em certoscasos, as regras do costume dos jogos populares, modificadas deacordo com as necessidades dos cavalheiros, desempenharam o seupapel no desenvolvimento dos desportos.

Neste volume pode encontrar-se um breve estudo de um dospassatempos que assumiram, durante o seculo XVIII, entre as classesde proprietarios de terras ingleses, as caracteristicas de um despor-to: a caga a raposa. Era considerada entao um desporto e ja mostra-

*«Veda£oes». A introdugao das enclosures corresponde a um fenomeno deprofundas mudangas economicas e sociais que ocorreu em Inglaterra nesteperiodo. (N. daT.)

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INTRODU^AO 47

va, com grande clareza, algumas das caracteristicas que distin-guiam passatempos do tipo conhecido como desporto dos outrosque nao possuiam esses tragos. Da forma como surgiu nesse tempo,a caga a raposa em Inglaterra constituia um tipo altamente regu-lamentado de caga, bastante associada ao codigo especifico demaneiras. Pode gostar-se, ou nao, de cagar. Mas, quer se goste ounao, a caga a raposa fornece um quadro vivo de um dos primeirosestadios do desenvolvimento do desporto e pode assim contribuirpara uma melhor compreensao da genese e das caracteristicas dodesporto em geral. E esta a tarefa do capitulo sobre a caga a raposaincluido nesta obra. Perante as caracteristicas do nosso tempo, podenao ser facil, de facto, estudar este tipo de caga de acordo com umprocesso social, como qualquer outro desporto colectivo, segundouma configuragao em mudanga contmua formada pelos sereshumanos como, por exemplo, o comportamento num jogo defutebol.

Nao desconhego as dificuldades inerentes a uma abordagemque requer elevado nivel de distanciamento, que exige o afastamen-to de cada um do seu objecto de estudo, o que nao e ainda muitocomum nos trabalhos sociologicos. Mas deve considerar-se que issoe produtivo. Abre perspectivas obscurecidas por um excessivoenvolvimento do investigador4. Vejamos, por exemplo, a mudan<~aparticular na natureza do prazer sentido pelos participantes, que sedescobre ao comparar o padrao caracteristico da caga a raposa emInglaterra e as primeiras formas de caga. Segundo a feigao inicial,o prazer de matar, combinado talvez com o de comer o animal quese havia morto, esconde outros aspectos da caga. Como tenteidemonstrar, a caga a raposa integra uma mudanga na natureza doprazer que era — e continua a ser — algo caracteristico de muit&outras variedades de desporto. Assim, quando se assiste a um jogode futebol, nao e apenas o climax representado pela vitoria danossa equipa que oferece emogao e prazer. Com efeito, se o jogo e,em si mesmo, desinteressante, ate o triunfo da vitoria pode ser, de

4Pode encontrar-se uma discussao bastante extensa sobre os problemas doenvolvimentoedodistanciamento em Norbert Elias,« Problems of Involvement andDetachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, n.°3,1956, pp. 226-52. Para umapesquisa mais vasta, ver Norbert Elias, Engagement und Distanzierung, Frankfurt,1983.

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certo modo, uma desilusao. Isso tambem e verdade quando umaequipa e de tal maneira superior a outra que marca urn golo aseguir a outro. Neste caso, o proprio confronto e demasiado efeme-ro e nao se desenvolve como devia ser: esta situagao tambem edecepcionante.

A caga a raposa revela o mesmo padrao. A rnorte da raposa era,de algum modo, desvalorizada, porque esta nao surgia como prato,a mesa de jantar: embora cagada, ela nao era comida pelos sereshumanos. O climax da caga, a vitoria sobre a raposa, so se tornourealmente um prazer quando se assegurava urn periodo de anteci-pagao suficientemente longo. Tal como no caso do futebol, sem umperiodo de antecedencia do prazer bastante extenso e excitante, oclimax da vitoria perde alguma coisa da sua sedugao. Ainda quepouco notada, esta enorme enfase colocada na agradavel tensao--excitagao da fase que antecede o prazer, isto e, a tentativa deprolongar o ponto essencial do prazer da vitoria no confrontosimulado do desporto, era sintomatica de uma mudanga de grandealcance na estrutura da personalidade dos seres humanos. For suavez, isto estava fortemente relacionado com mudangas especificasverificadas na estrutura da sociedade em geral.

\V V

Desde a primeira edigao do artigo sobre «A Genese do Despor-to: Um Problema Sociologico», que chama a atengao para a origeminglesa do desporto, pediram-me, com frequencia, mais informa-goes que pudessem ajudar a explicar este facto. Quanto a estaquestao, apresentei uma breve resposta preliminar no trabalhosobre a caga a raposa, incluido neste volume, e aproveito a oportu-nidade oferecida por esta introdugao para fornecer, pelo menos, umesbogo sumario, indicando um dos aspectos centrais da relagaoentre o desenvolvimento dos passatempos com as caracteristicas dedesportos e o desenvolvimento da estrutura de poder da sociedadeinglesa. Dificilmente se podera encontrar melhor esclarecimentopara um dos principals objectives desta obra —jiemonstra|^que-osJ^ffldos ^^jdesEorto^ue nao se jam sinmltaneamente estudos^da \sociedade sao analises desryi^a^.d^ppjtit^xtoA^^ aumento da

que temas como «desporto» ou

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«sociedade» paregam assumir uma identidade_prppria. Existem"'"^sjpeciafisfasndorestudo da sociedade, especialistas do estudo dapersonalidade e "muitos outros, cada grupo a trabalhar como seestivesse na sua propria torre de marfim. Dentro dos seus limites,cada grupo produz, sem diivida, important^ resultados de pesqui-sa, mas existem varios problemas que nao podem ser exploradosdentro das fronteiras de uma unica especialidade. A relagao entreo desenvolvimento da estrutura de poder inglesa e o desenvolviTmento dos passatempos com caracteristicas de desportos, no seculoXVIII, constitui um bom exemplo./ A emergencia do desporto como uma forma de confronto fisicoI de tipo relativamente nao violento encontrava-se, no essencial, re-

lacionada com um raro desenvolvimento da sociedade consideradasob a perspectiva global: os ciclos de violjmcia abrandaram e osconflitos de interesse e de confianga eram resolvidos de um modoque permitia aos dois principais contendores pelo poder governa-mental solucionarem as suas diferengas por intermedio de processesinteiramente nao violentos, e segundo regras concertadas queambas as partes respeitavam.

Os ciclos de violencia sao configurates formadas por doisou mais grupos, processes de sujeigoes reciprocas que situamestes grupos numa posigao de medo e de desconfianga mutua,passando cada um a assumir como coisa natural o facto de os seusmembros poderem estar armados ou serem mortos pelo outro gru-po caso este tenha a oportunidade e os meios para o efectuar.Uma configuragao de grupos humanos com estas caracteristicaspossui, habitualmente, um forte impulse de auto-escalada. Podeterminar num acesso particularmente virulento conduzindo avitoria de um ou de outro. Pode levar a desfechos tais como umenfraquecimento crescente ou a destruigao reciproca de todos osseus participates.

Tanto quanto se pode assinalar uma data especifica para o iniciode um ciclo deste tipo, em Inglaterra comegou um ciclo de violen-cia no ano de 1641, quando o rei Carlos I, a frente de um grupode cortesaos, entrou na Camara dos Comuns para prender algunsmembros do Parlamento que se haviam oposto aos seus desejos.Estes conseguiram fugir, mas, a partir desse dia, a tentativa do reiao recorrer a violencia arrastou consigo mais violencia do outrolado. Deste modo, comegou o processo revolucionario no decurso do

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qual o rei foi executado pelos puritanos. Cromwell, o seu lider,tomou o lugar do rei e o ciclo de violencia prosseguiu, ainda quede forma menos violenta e explosiva, embora tenham existidotentativas de acalmar o odio, o medo e a desconfianga que muitosmembros das classes altas sentiam pelos puritanos das classe mediae das classes mais baixas. Os puritanos, derrotados, nao so ficaramsujeitos a obrigagoes legais como foram assolados por perseguigoese, por vezes, atacados violentamente. Estas condigoes ofereceramum incentive muito forte a emigragao para as colonias na America.Aqueles que permaneceram, os ingleses «dissidentes», aprenderama viver na sombra do seu passado revolucionario. Apesar de teremdiminuido bastante as suas hipoteses de chegar ao poder, muitosmembros no seio do grupo dos proprietarios de terras das classesaltas continuaram a considera-los como possiveis conspiradores deuma rebeliao. !

Ao procurar descobrir por que motivos a moderagao da violen-cia nos passatempos, que e uma das caracterfsticas especificas dodesporto, apareceu em primeiro lugar, no seculo XVIII, entre osingleses das classes mais altas, nao se pode evitar uma consideragaomais atenta sobre o desenvolvimento, na sociedade global, dastensoes e da violencia que envolviam estas classes. Quando um paispassou por ciclos de violencia, de que as revolugoes sao exemplos,e necessario, em geral, muito tempo ate que os grupos que estive-ram envolvidos numa tal experiencia a possam esquecer. Muitasgeragoes podem passar ate que os grupos adversarios confiem denovo o suficiente um no outro, de forma a viverem pacificamentee permitirem, se acaso forem membros do mesmo Estado, umregime parlamentar que funcione como deve ser. Um regime destegenero apresenta exigencias muito especificas aos que dele fazemparte. A condescendencia para com estas imposigoes nao e facil.Contudo, e frequente julgar-se que assim e. De um modo geral,acredita-se que todas as formas de sociedade podem facilmenteadoptar e manter a democracia no sentido de um regime multipar-tidario, seja qual for o nfvel de tensoes que existam no seu interiorou da capacidade dos seus membros para as conservarem. De facto,sao necessarias condigoes especiais para que semelhante regime sedesenvolva e se perpetue. Isso e delicado e so pode continuar afuncionar enquanto essas condigoes existirem em toda a sociedade.Um regime parlamentar esta em risco de ruptura se as tensoes

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sociais se aproximarem ou atingirem os limiares de violencia. Foroutras palavras, o seu funcionamento depende da eficiencia domonopolio de violencia fisica de um pais, da estabilidade da paci-ficagao interna dessa sociedade. Porem, esta estabilidade depende,ate certo ponto, dos niveis de constrangimento individual dos sereshumanos que integram essas sociedades. Por outro lado, este nivelnao e o mesmo para os membros de todas as sociedades humanas.Em geral, pode dizer-se que os membros das sociedades do passadopossuiam um limiar de violencia inferior ao dos membros dassociedades mais recentes. Mas, entre os ultimos, podem observar--se diferengas consideraveis na capacidade de tolerar tensoes, tradu-zindo aspectos do que e designado, com frequencia, pelo «caracternacional». E, desde que a contengao de tensoes constitua uma parteintegrante do regime parlamentar, dando lugar a numerosos con-frontos nao violentos, de acordo com as regras solidamente estabe-lecidas, o nivel de tolerancia a tensao, que faz parte do costumesocial de um povo, constitui um apoio ao funcionamento de seme-Ihante regime.

Neste aspecto, o regime parlamentar apresenta certas afinidadescom os jogos desportivos. Esta aproximagao nao e acidental. Umtipo especifico de actividades de lazer, como, por exemplo, a caga,o boxe, a corrida e alguns jogos de bola, assumiu as caracteristicasde desporto e, de facto, foi designado por desporto pela primeiravez em Inglaterra, durante o seculo XVIII, isto e, no mesmo periodoem que as antigas assembleias de estado, a Camara dos Lordes e aCamara dos Comuns, representando camadas da sociedade restritase privilegiadas, constituiram a principal area de confronto onde sedeterminou quern deveria formar governo. Entre as principalsnecessidades do regime parlamentar, tal como este emergiu nodecurso do seculo XVIII, encontra-se a capacidade de uma facgao oupartido no governo dominar os seus adversaries atraves de um cargopublico sem usar a violencia, desde que as regras do jogo parlamen-tar assim o exigissem, como sucede no caso de uma importantevotagao no Parlamento ou uma eleigao na sociedade serem contraisso. Esta regra basica so tinha oportunidade de ser respeitadaenquanto a hostilidade e o odio dos grupos oponentes no pais e dosseus representantes no Parlamento nao se aproximassem ou trans-gredissem os limiares de violencia. Para entregar, de modo pacffico,a um grupo de rivais ou inimigos os imensos recursos de poder que

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os departamentos governamentais colocavam nas maos dos seusocupantes tinha de existir uma grande confianga neles; havia depossuir-se a certeza de que, uma vez no poder, os adversaries naoseriarn vingativos. Teria de haver a certeza absoluta de que os rivaisou inimigos nao utilizariam os recursos do governo para acusar,perseguir, fazer ameagas ou forgar a partir para o exilio, aprisionarou matar os seus ocupantes anteriores.

No final do seculo XVII, algumas figuras proeminentes como omarques de Halifax, a quern chamavam, de modo significative,o Rectificador', tentaram sarar as feridas, moderar a desconfianga, omedo e o odio deixados pela revolugao puritana, provocados emespecial pela execugao do rei e tambem pelas sucessivas tentativas,levadas a efeito pelos Stuarts e seus seguidores, de estabeleceremem Inglaterra um regime despota semelhante ao de Luis XIV emFranca, no qual a influencia das assembleias de estado seria virtual-mente abolida. Nos inicios do seculo XVIII, o profundo medo e odiogerados pelos violentos acontecimentos do seculo XVII continua-vam muito vivos. Os puritanos dissidentes mantinham-se associa-dos a rebeliao e a ditadura, os reis Stuart e os seus seguidoresjacobitas* as tentativas de introdugao de um regime catolico. Entreos dois extremos situava-se a trave mestra do grupo mais poderosodo pais, o dos proprietaries de terras do Reino Unido, que chegoua dominar as duas camaras do Parlamento. Mas eles estavam divi-didos entre si. Como se pode esperar num caso destes, os whigs,dominados por uma aristocracia muito rica e de ascendencia totai-mente recente, eram mais firmes na sua oposigao, nos seus senti-mentos de antipatia contra os pretendentes Stuart, e inclinavam-semais para serem clementes em relagao aos dissidentes. Os tones queintegravam uma proporgao superior de familias da pequenanobreza sem titulos, com frequencia muito mais antigas do queas grandes familias aristocraticas whig, mas com herdades maispequenas, eram mais inflexiveis na sua hostilidade contra os dissi-dentes, embora conservassem, muitas vezes, uma ligagao sentimen-tal corn a dinastia Stuart. Contudo, no fundamental, mesmo estes,tal como os whigs, opunham-se aos Stuarts, inclinados para o abso-lutismo e o catolicismo.

*Termo peio qual se designavam os partidarios de Jaime II apos a sua abdica-o. (N. da T.)

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Assim, em Inglaterra, durante o seculo XVIII, a principal divi-sao politica era a que existia entre facgoes de grupos proprietariosrurais, entre whigs e tories, cuja rivalidade nao se encontrava enrai-zada num antagonismo entre classes sociais diferentes, com umestilo de vida, objectives sociais e interesses economicos tambemdiferentes. Este facto desempenhou, sem duvida, um papel signifi-cative na transformagao das tradicionais camaras de estado inglesasem camaras de Parlamento no sentido corrente da palavra e, porconseguinte, no desenvolvimento do governo parlamentar. Emmuitos paises continentais existiarn divisoes fortes e declaradasentre a classe media urbana e os proprietarios rurais da nobreza. EmFranga, a descendencia dos primeiros, uma classe hereditaria deproprietarios de cargos publicos, encabegada por uma «nobreza deoffcio» (noblesse de robe)* cujos membros permaneciam, sob a pers-pectiva legal, homens do povo, interpos-se entre a classe comerciale a aristocracia proprietaria rural. Em Inglaterra, uma posigaosemelhante era assumida pela pequena nobreza sem titulo**, comogrupo intermediario entre os artifices urbanos, comerciantes emercadores, por um lado, e a aristocracia proprietaria de terras, poroutro. Era uma fbrmagao social unica, tao caracteristica do desen-volvimento e da estrutura da sociedade inglesa como a noblesse derobe o era na estrutura social francesa e no seu proprio desenvolvi-mento. Uma classe de proprietarios rurais que nao pertencia anobreza nao se poderia ter desenvolvido em Franga ou, pelo mesmomotivo, na Alemanha, porque nesses paises a posse de terras, rela-cionada, em certa medida, com a tradigao feudal que ligava apossessao de grandes propriedades rurais a servigos de guerra pres-tados ao soberano, ou estava reservada aos nobres, ou transportavacom ela o direito ao titulo e aos privilegios do estatuto de nobre.Em Inglaterra, a situagao nao era essa.

Nao e necessario considerar aqui o encadeamento total dascircunstancias que conduziram ao aparecimento desta formagaototal unica, a pequena nobreza inglesa. Mas, sem fazermos referen-da a isso, nao se pode compreender correctamente a natureza doprocesso de pacifica^ao pelo qual passou Inglaterra no decurso doseculo XVIII, e que se encontrava intimamente associado a emer-

*Emfrances no original (N. da T.)**Gentry (N. da T.)

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gencia do governo parlamentar em Inglaterra e, tambem, aos pas-satempos existentes sob a forma de desportos.

A presenga de uma classe de proprietarios rurais que nao per-tencia aos pares do reino e que nao se sentava na Camara dosLordes, mas que se encontrava representada em numero consi-deravel na Camara dos Comuns, teve consequencias importantes naforma que tomou o processo de distribuigao das oportunidades depoder no pais. Os interesses dos proprietarios, em varios dos maisimportantes paises continentais, eram representados, habitual -mente pelas camaras de estado dos nobres, enquanto a assembleiados comuns representava, em geral, os interesses dos grupos urba-nos e, algumas vezes, dos camponeses. Mas em Inglaterra, devido,em parte a existencia da pequena nobreza, os interesses dos pro-prietarios tambem estavam fortemente representados na Camarados Comuns. Nos finais do seculo XVIII, os representantes dapequena nobreza detinham dois quintos dos lugares nos Comuns.A outra quinta parte era detida pelos filhos mais novos das famfliasaristocraticas de pares irlandeses que, legalmente, tinham o estatu-to de homens do povo. For outras palavras, os interesses dos pro-prietarios nao dominavam apenas a Camara dos Lordes mas tam-bem a Camara dos Comuns. O desaparecimento dos camponesesingleses como classe social foi, em certa medida, devido ao facto deas oportunidades de poder dos soberanos ingleses, depois de Isa-bel I, nunca terem sido tao grandes como as dos seus equivalentescontinentais. Isso ficou a dever-se igualmente a menor dependenciaque os monarcas ingleses tinham em relagao aos camponeses natu-rais do pais, enquanto campo de recrutamento para os seus exerci-tos. De certo modo, os governsntes continentais protegiam os seuscamponeses contra a tentativa dos nobres se apropriarem das suasterras por meio das enclosures, embora existissem excepgoes. Epossivel que a aceleragao do movimento de implantagao de enclosu-res, na ultima fase do seculo XVIII, e o novo metodo que consistiaem faze-lo por meio de leis privadas no Parlamento em Inglaterra,fosse sintomatico do interesse comum que as classes proprietariasde terras, whigs e tories, nobres e cavalheiros, tinham em relagao aosgrupos de pequenos proprietarios que, juntamente com as suasfamflias, e talvez com um pequeno numero de trabalhadores, fa-ziam uma boa parte do trabalho exigido pelos proprietarios deterras.

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O trabalho manual permanente constituia a caracteristica quedistinguia um campones proprietario rural ,de um cavalheiro lavra-dor. Demonstrava o elevado poder da razao dos proprietarios ruraisingleses _das_classes mais ~aitas, que conseguiram aniquilar os cam-poneses livresj^jgleses, ao obrigarem o poder dos reis a inclinar-sepor meio da^sua sujeigao ao controlo do Parlamento, ao subjugaremos puritanos e, tambem, ao manterem um determinado grau decontrolo sobre as corporagoes urbanas, incluindo as da capital. Essesinteresses dos -proprietarios rurais, grupos de cavalheiros e nobrescom terras em controlarem nao so a Camara dos Lordes mas tam-bem a Camara dos Comuns tern de ser entendido como um factorimportante na posigao dominante que as classes de proprietariosmantiveram no pais, durante a maior parte do tempo, no seculoXVIII e nos inicios do seculo XIX. Como foi que, entre eles, ocorreua transformagao dos passatempos mais antigos em desportos e umfacto de alguma relevancia neste contexto. Pode dizer-se que aemergencia do desporto em Inglaterra, durante o seculo XVIII,constituiu uma parte integrante da pacificagao levada a cabo pelasclasses mais altas inglesas.

O mesmo se pode dizer da transformagao das tradicionais as-sembleias de estado inglesas3, que em muitos aspectos se asseme-Ihavam as assembleias de estado de outros paises, num parlamen-to de duas fileiras no sentido moderno da palavra e, desse modo,numa parte integral do governo parlamentar que dificilmente tinhaparalelo no tempo, em qualquer outro lugar. O crescimento destaforma de governo estava profundamente ligado a forte oposigao dasclasses proprietarias de terras em Inglaterra. Existiam entre elasmuitas divisoes. As mais evidentes eram as diferengas de hierarquiae de propriedade. Grandes proprietarios rurais, sendo a maior parteduques e condes, podiam ter cada um mais de dez mil e talvezcerca de vinte mil acres, dos quais gozavam rendimentos maisvastos do que os que eram usufruidos por muitos dos mais peque-nos soberanos que governavam no continente, e bastante maiselevados do que os rendimentos que tinham os mercadores ingleses

5Se utilizarmos o termo «parlamento» indiscriminadamente, tanto para asinstitutes medievais como as instituic.oes representativas modernas, e se evitarmoso termo «assembleias de estado», facilmente pode deixar de se notar a mudanc.ainovadora do Parlamento no seculo XVIII.

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mais ricos. No outro limite da escala os fidalgos rurais podiampossuir mil acres ou menos e viver no quadro de uma pobreza dis-tinta. Mas eles estavam unidos nao so pelos seus interesses comuns,enquanto proprietarios rurais independentes, como tambem pelasconven^oes sociais que dominavam a sociedade dos que tinhamterras, uma tradigao cultural propria que distinguia as classes comterras, nobreza e pequena aristocracia, das outras classes sociais,cujos membros masculinos, em termos de categoria social, assimcomo pelas suas maneiras, nao eram considerados «cavalheiros».

Esta unidade de base das classes proprietarias de terras foi,certamente, uma das condigoes que permitiram que, em Inglaterra,durante o seculo XVIII, se acalmassem gradualmente as grandestensoes provenientes do seculo XVII caracterfsticas de um periodode perturbagoes revolucionarias, com a sua heran^a de odio e demedo, apesar das profundas divisoes existentes no seio dessas clas-ses, entre as quais os whigs e os tones foram as mais consequentes.As facgoes hostis, unidas por um codigo de sensibilidade e deconduta «proprio de cavalheiros», aprenderam a confiar o suflcienteuns nos outros, determinando o aparecimento de um tipo de con-fronto nao violento no Parlamento. No decurso do seculo XVIII, asduas principals facgoes das classes dos proprietarios rurais inglesesmodificaram tanto o seu caracter quanto a sua fun^ao. Os whigs eos tories reuniam no seu seio membros da aristocracia e da peque-na nobreza. Seria falso atribuir esta divisao social das classes comterras apenas a uma separagao em termos da sua categoria e bens.Mas talvez se possa afirmar que, por tradigao, os aristocratas detin-ham uma posigao dominante entre os whigsy enquanto os cavalhei-ros que nao pertenciam aos pares do reino, ainda que pudessem tersido cavaleiros ou baronetes, predominavam entre os tories.

Alguns dos problemas que originalmente os dividiram per-deram o seu significado inicial ou desapareceram no decurso deseculo XVIII. Ao longo do tempo, tornou-se evidente que os Stuartsnunca mais voltariam. Os hanoverianos tinham vindo para ficar.Os dissidentes nao possuiani, como era obvio, a capacidade nem aintengao de derrubar o governo pela for^a. As duas fac^oes here-ditarias das classes mais altas acabavam por se legitimar e identi-ficar gradualmente, como representativas de diferentes principiospoliticos ou filosoficos, sendo os predecessores dos programas dospartidos. Em norne destes principios, as duas facgoes competiam

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INTRODU^AO 57

entre si no Parlamento para acederem aos cargos governamentais e,durante o tempo de eleigoes, em todo o pais. Competiam entre sisegundo regras que haviam acordado e conforme as necessidades deum codigo de sensibilidade e de conduta proprio de cavalheiros,que os whigs e os tones partilhavam. Neste perfodo, o respeito pelasformalidades do Parlamento e a obediencia ao codigo proprio decavalheiros estavam associados entre si.

Para que as geragoes posteriores o possam compreender, pois afamiliaridade pode obscurece-lo, e necessario sublinhar que a lutacompetitiva nao violenta, entre dois grupos essencialmente hostis,pelo direito de formar governo era alguma coisa absolutamentenova no tempo. Observa-se aqui^um aspedesenvolvimento social que, com frequencia, e mal compreendido.

lOs seres humanos podem ser conduzidos, amiude, por circuns-tancias coincidentes, para novas disposigoes institucionais ou com-binagoes de organizagoes, que, se funcionarem bem, aparecem;rapidamente aos participantes como sendo tao evidentes que asconsideram «naturais» ou simplesmente «racionais». Foi assim >que, durante o seculo XVIII, os grupos dirigentes de Inglaterra semovimentaram no sentido de qualquer coisa de original, o governode tipo parlamentar, e sem notarem a inovagao em causa.

Durante o primeiro quarto do seculo XVIII ate cerca de 1722,quando Robert Walpole adquiriu o controlo do governo, as tensoesem Inglaterra mantinham-se muito elevadas. O profundo ressenti-mento e a desconfianga entre facgoes hostis da sociedade inglesa, aheranga da turbulencia do seculo XVII, continuavam demasiadovivas. Os dissidentes, herdeiros da revolugao puritana, emboradificilmente pudessem ser uma forga politica activa, continuavama trazer consigo o estigma do seu passado revolucionario. Os cava-lheiros torus acreditavam com firmeza que os dissidentes planea-vam, uma vez mais, um violento derrube da monarquia e do gover-no. Por seu lado, ainda nao podiam esquecer a sua associagao adinastia Stuart e as conspiracies reais ou imaginarias, para voltar aconduzir, pela forga, um Stuart ao trono. Nos inicios do seculo XVIII,as mudangas de governo de whigs para tones ou de tories para whigscontinuavam a despertar o medo de que um dos governos no poderpudesse ser muito vingativo para com os seus adversaries. Nenhumdos lados poderia ter a certeza de que o outro, uma vez no poder,nao os perseguisse, enviasse para a prisao ou, sob qualquer pretexto,

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os conduzisse a morte. For este motivo, quando a rainha Anadesignou um governo tory, os seus membrps comportaram-se comgrande espfrito de vinganga para com os seus predecessores whigs.Procuraram humilhar o-mais que podiam os dirigentes whigs maisnotaveis. Depois da morte da rainha, uma eleigao colocou de novoos whigs no poder. Estes, por seu lado, comegaram a perseguir e ahumilhar os seus inimigos tories. Em consequencia disso, os dirigen-tes tones fugiram para o continente, uniram-se ao pretendenteStuart e iniciaram o projecto da invasao de Inglaterra e, atraves daforga, do derrube do governo Whig.

Robert Walpole, que chegou ao poder em 1722, comegou adirigir os acontecimentos, evitando a violencia. Ele possuia, emrazoavel medida, a competencia diplomatica e de manipulagaonecessarias ao lider do governo parlamentar e deu um forte impulseao desenvolvimento nesse sentido. Mas, por vezes, era capaz detratar asp&ramente um adversario tory. Antes de chegar ao poder,ele os seus amigos movimentaram-se de forma a conduzir um lidertory ao exilio, acusando-o de participagao num conluio dos Stuart.Cerca de meio seculo depois, um orador da Camara dos Comunsadvertiu os. membros do Parlamento de que o objecto dos debates,enquanto orientagao da politica ministerial6, nao deveria ser o devincar diferengas, mas o de tomar decisoes de comum acordo. Maistarde ainda, Burke justificava a existencia de duas facgoes diferentespela necessidade de uma oposigao regular. Sugeriu mesmo que sepodia organizar a oposigao ao governo existente, pois, dessa manei-ra, haveria sempre um governo alternativo aquele que estivesse nolugar.

Em menos de cem anos, duas facgoes das classes mais altas,whigs e tories^ que numa epoca conturbada se haviam tratadomutuamente com dureza e, por vezes, violentamente, transforma-ram-se em partidos das classes mais altas, confiando apenas numeleitorado relativamente pequeno de grupos privilegiados e lutandoentre si por meios de que nao se podem excluir a negociagao devotos e o suborno, mas que eram, completamente, isentos de vio-lencia. Isto constituia um exemplo notavel de um avango de civi-lizagao. A pacificagao das classes mais altas e, de facto, de uma

6J. H. Plumb, England in the Eighteenth Century, Harmondsworth, 1950.

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grande parte da sociedade inglesa desempenhou um papel nessemovimento. O mesmo determinou a crescente prosperidade dasclasses proprietarias rurais.

As manifestagoes deste impulse sao faceis de reconhecer.A entrega pacifica do governo a um adversario pressupunha umelevado nivel de automoderagao. O mesmo determinou a boavontade de um governo em nao usar os seus grandes recursos dopoder na humilhagao ou destruifao de predecessores hostis ouopositores. A este respeito, a emergencia de um governo parlamen-tar em Inglaterra, no decurso do seculo XVIII, com uma rotagaoregular de grupos rivais de acordo com regras combinadas, podeservir como ensinamento. Foi um dos raros exemplos de um ciclode violencia, cumprido no quadro de um processo de dupla mode-ragao, enleando dois ou mais grupos numa situagao de medoreciproco da violencia de cada um, que se resolveu atraves de umcompromisso sem vencedores ou vencidos absolutos. Como ambosos grupos perderam gradualmente a sua desconfianga mutua edesistiram da violencia e respectivas tecnicas, tiveram de aprender,por esse facto, ao mesmo tempo, a desenvolver novas competenciastecnicas e estrategicas exigidas pelo confronto nao violento. Astecnicas militares deram lugar as tecnicas verbais do debate feitasde retorica e de persuasao, a maior parte das quais exigia mais /contengao geral, identificando de modo nitido, esta mudanga com/um avango de civilizagao. Foi esta alteragao, a maior sensibilidadejquanto a utilizagao da violencia, que, reflectida nos habitos sociaisdos individuos, encontrou tambem expressao no desenvolvimentodos seus divertimentos. A <<parlarnentarizagao>> das classesjjnglesasque possufam terras teve a suaJfos seus^passatempos7.

A transformagao do regime parlamentar, tal como se verificouno caso dos divertimentos, teve os seus aspectos economicos.O crescimento da comercializagao contribuiu para a prosperidadedos mais abastados e, mais modestamente, para a dos pequenos

7Pec.o que me perdoem o uso de neologismos. Mas, sem duvida, que tambemo termo «industrializagao» fez com que as pessoas sentissem mal-estar quando eraum neologismo. Que melhor maneira existe para facilitar a consciencia do facto doque considerar que a emergencia do governo parlamentar e do desporto no seculoXVIII teve o caracter de um processo?

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proprietaries rurais. Esse aspecto ajudou, tambem, a moderar aspaixoes sectarias. Mas e um erro considerar os aspectos economicosdo desenvolvimento sob uma forma isolada. E muito diffcil sabercomo teriam as classes proprietarias rurais mais altas inglesas usadoas oportunidades economicas que o comercio Ihes oferecia se a lutapelo poder tivesse tornado um rumo diferente, se, como os seusequivalentes Franceses, estivessem submetidos ao governo de reisabsolutos e dos seus ministros, em vez de terem ascendido a umaposigao de paridade, e mesmo de superioridade, em relagao ao reie a corte, enquanto oligarquia mais ou menos autogovernada.A emergencia do governo parlamentar baseou-se no processo deformagao do Estado de Inglaterra8, e, em particular, a mudanga noequilibrio de poder entre o rei e os proprietaries rurais das classesmais altas desempenhou um papel activo, e nao meramente depen-dente, no desenvolvimento da sociedade inglesa.

Ao procurar saber porque e que os divertimentos, sob a formade desportos, se desenvolveram em Inglaterra, nao se pode deixarde dizer que o desenvolvimento do governo parlamentar e, dessemodo, de uma aristocracia e de uma pequena nobreza autogoverna-da, desempenharam um papel importante no processo. Algumaspalavras podem ser ditas sobre a tarefa que impus a mim proprionesta parte da introdu^ao. Assinalei o problema colocado relativa-mente a origem inglesa do desporto. A considerate de tal proble-ma nao implica louvor nem reprovagao. Tragar as origens e odesenvolvimento de institutes aparentemente tao evidentes paraquern nelas vive e um trabalho excitante e que, por si mesmo,recompensa. Mas isso nao pode realizar-se facilmente nem com ho-rizontes pouco claros, is to e, nao se pode concretizar se o desportofor encarado, a maneira de alguns especialistas, como se fosse umainstituigao social do nosso tempo que se constitui em completaautonomia e independentemente de outros aspectos do desenvolvi-mento das sociedades. O desporto e um empreendimento de sereshumanos e muitas das acgoes humanas, que sao exploradas acade-micamente em termos de objectos de estudo diferentes e como seexistissem em compartimentos separados, sao, de facto, empreendi-mentos dos mesmos seres humanos. As mesmas pessoas que, en-

8Cf P. Corrigan e D. Sayer, The Great Arch, Oxford e Nova lorque, 1985, p. 88e seguintes.

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INTRODU^AO 61

quanto poiiticos, elegem on se assumem como membros do Parla-mento, podem tambem ganhar as suas vidas por meio do trabalhocomo entidades economicas, rezarem como seres religiosos, ouandarem de barco ou esquiar no seu tempo de lazer como despor-tistas. Por esse motivo,, se e certo que, no decurso do seculo XVIII,o conceito de desporto passou a estar associado aos divertimentosdas classes inglesas mais altas, como se fosse uma especie de marcadistintiva, nao se pode limitar a sua investigagao isolando-o deoutros aspectos da realidade. Ha que considerar as riquezas, odesenvolvimento e, em particular, as mudangas verificadas na es-trutura da personalidade e na sensibilidade em relagao a violenciados seres humanos que integram estas classes. Se, entao, se desco-brir que, durante o seculo XVIII, em Inglaterra, a riqueza das classesrepercutia-se num pronunciado impulso do seu longo processo depacificagao, pode bem sentir-se que se esta no caminho certo.

Contudo, para adquirir maior seguranga quanto a este proble-ma, a comparagao constituiu urn auxilio positivo. As caracterfsticasdo desenvolvimento ingles podem observar-se numa perspectivamelhor se for possivel analisar um desenvolvimento comparavel emFranga. Indiquei, noutro lugar, o papel desempenhado pela cortedo rei, em Franga, como um processo de civilizagao9. Mencionei, deforma abreviada, a pacifkagao dos guerreiros. Uma classe poderosade nobres guerreiros proprietaries rurais, donos de grandes proprie-dades, razoavelmente independentes, transformou-se numa classede cortesaos e de funcionarios militares, totalmente dependentes dorei, ou nobres de provincia, privados quase por completo das suasfungoes militares. Esta transformagao representou um aspectocentral na pacificagao e na civilizagao da sociedade francesa. A cortedo rei frances, particularmente no seculo XVII, constituiu o princi-pal processo de civilizagao das classes mais altas francesas. Era aique o caracter de civilizagao se revelava na sua totalidade como umimpulso nao so em relagao a maiores constrangimentos mas, tam-bem, relativamente a padroes mais diferenciados de conduta e desensibilidade e de sublimagao. A aprendizagem das competenciastecnicas altamente especializadas do cortesao e a aquisigao doshabitos sociais do homem de corte eram exigencias indispensaveis,as condigoes de sobrevivencia social e de sucesso nos confrontos da

9Norbert Elias, The Court Society, Oxford, 1983.

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vida na corte. Esta reclamava um padrao caracterfstico de individuona sua globalidade, tanto dos movimentos como da aparencia e dasensibilidade, segundo modelos e padroes que distinguiam os cor-tesaos dos individuos dos grupos. Os testemunhos encontrados nasfontes dessa epoca mostram, com grande clareza, de que modo equando mudaram os padroes e, desta maneira, os sentimentos daspessoas, por exemplo, quanto a vergonha e a repulsa, primeiro nasociedade de corte e, em seguida, tambem num circulo mais alar-gado, na direcgao caracterfstica de um avango de civilizagao. EmFranga, foi a turbulencia do seculo XVI que deu lugar, no seculoXVII, a um periodo de pacificagao interna. Nesse caso, o ciclo deviolencia terminou por uma serie de vitorias que revelaram asuperioridade inequivoca dos recursos do poder do rei e dos seusrepresentantes em comparagao com os das duas classes mais altas deproprietaries rurais e da classe media urbana. Foi por essa razaoque, no seculo XVII, em Franga, a corte do rei se tornou o maior etalvez o mais poderoso processo de civilizagao.

Como se pode observar, o contraste com o desenvolvimento e ascaracteristicas das classes proprietarias de terras nao podia sermaior. As consequencias destas diferengas entre as riquezas e ascaracteristicas das classes de categoria mais alta, no seculo XVIII, eno seculo XVII, em Franga, fazem-se sentir actualmente nas diferen-gas entre as linguas francesa e inglesa e entre os habitos sociaisrespectivos, por vezes chamados o «caracter nacional» de cada umdestes dois povos.

Da mesma maneira que o impulse de pacificagao e de civiliza-gao do seculo XVII em Franga nao foi o inicio de um processo nessadirecgao, tambem em Inglaterra o avango comparavel verificado noseculo XVIII nao foi o unico entre varios impulses desse genero,embora tenha sido talvez o mais decisivo. Os esforgos bem sucedi-dos de Henrique VIII para submeter os seus baroes foi um passoneste sentido. A energica vida de corte no tempo da rainha Isa-bel I teve uma fungao similar. Mas, no seculo XVIII, a longa lutapelo poder, por um lado, entre os monarcas e os seus representan-tes e, por outro, a classe mais elevada com terras e a classe mediaurbana teve como consequencia que as classes proprietarias deterras, aristocracia e pequena nobreza, adquiriram paridade, senaomesmo supremacia, em relagao ao rei e a corte. A sua posigaodominante nas duas Camaras do Parlamento, e em todos os gover-

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nos, tambem Ihes deu uma posigao dominante em relagao a classemedia urbana. Contudo, a superioridade dos seus recursos de podernao era suficientemente grande para tratar com indiferenga osinteresses do rei e da corte ou os das corporagoes urbanas. Conservaro controlo do pais sern recorrer a sublevagoes violentas, das quaismuitas pessoas se cansaram ao longo da sua vida, impunha umacuidadosa apreciagao dos seus interesses em relagao a esses grupose um vivo compromisso. O regime parlamentar desenvolveu-sedurante o seculo XVIII em resposta a um equilfbrio de poder do rei,equilibrio esse que garantia que os reis de Inglaterra, de mododiferente aquele dos reis de Franga, nunca transformariam as suasclasses mais altas em cortesaos, nem governariam de modo tiranicosobre os seus interesses. Mas os recursos do poder do monarca, noseculo XVIII, continuavam a ser bastante consideraveis e assimpermaneceram por mais algum tempo. Os ministros tinham deproteger cuidadosamente a vontade do rei, bem como a das outraspessoas influentes na corte. Por outro lado, no seculo XVIII, os reisde Inglaterra ja nao eram suficientemente poderosos para assegurarque a corte fosse o fulcro das questoes do pais, o centro a partir doqual o pais era governado, onde todas as decisoes eram tomadas, atemesmo nos aspectos relatives ao bom gosto. Muitas destas fungoeshaviam sido transferidas para as residencias palacianas dos nobresmais importantes e, acima de tudo, para o Parlamento. A transfor-magao das tradicionais assembleias de estado de Inglaterra, emcamaras do Parlamento, no sentido moderno do termo, denotavanao so uma mudanga institucional mas, tambem, uma transforma-gao da estrutura da personalidade das classes inglesas mais altas.O desenvolvimento nao planeado que permitiu as classes mais altasde proprietaries ingleses desafiar todas as tentativas esbogadas pararestabelecer um regime autocratico, quer de baixo quer de cima, depuritanos ou de reis, deu um forte estimulo aos grupos que emer-giram dessas lutas, praticamente como as classes dominantes nosentido de atenuar o ciclo de violencia, moderar as querelas entrefacgoes e aprender, em vez disso, a lutar apenas por meio de formasnao violentas, de acordo com regras mutuamente estabelecidas.Esta foi uma das grandes diferengas entre o desenvolvimento dasclasses mais altas francesas e inglesas. Em Franga, a supremacia dorei, o modo autocratico de governo, nao permitiu que os desenten-dimentos e lutas entre facgoes revelassem as suas intengoes. Em

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Inglaterra, o regime parlamentar nao so autorizava os confrontosabertos entre fac^oes rivals mas tornava necessaria a sua declara^ao.A sobrevivencia social e, por certo, o exito social numa sociedadeparlamentar dependia da capacidade de lutar, nao com punhais ouespadas, mas com o poder do argumento, a habilidade da persuasao,a arte do compromisso. Por maior que fosse a tentagao de batalhaseleitorais ou de confrontos parlamentares, esperava-se que os cava-Iheiros nunca perdessem, involuntariamente, a serenidade e nuncarecorressem a violencia entre iguais, mas que agissem de acordocom as normas regulamentadas de um duelo. Pode ver-se, de ime-diato, a afinidade que existia entre os debates parlamentares e osconfrontos desportivos. Estes ultimos eram tambem competigoesnas quais os cavalheiros reprimiam o recurso a violencia ou, no casodos espectadores desportivos, como, por exemplo, nas corridas decavalos ou no boxe, onde se procurava eliminar ou moderar, sempreque possfvel, a violencia.

Se compararmos o desenvolvimento da Inglaterra com o daFranga, existem aspectos do desporto que podem ser compreendi-dos com maior clareza. Em Franga, o processo de formagao doEstado, que, sob as institutes, dissimulava a ascensao dos reisrelativamente aos nobres e homens do povo, originou, como referiantes, a acentuada divisao entre a nobreza de corte e a nobreza deprovincia. A ultima possuia um estatuto vincadamente inferior aoda primeira porque nao tinha acesso aos lugares do poder, aoscentros de refinamento. Em Inglaterra, o diferente equilibrio depoder que existia entre os reis e as classes proprietarias de terrasteve como resultado uma tradigao segundo a qual, ja no seculoXVII, se estabeleciam, pelo menos entre os sec tores mais ricos daaristocracia e da pequena nobreza, lagos estreitos entre a vida rurale a vida na corte e, no seculo XVIII, em Londres, quando o Parla-mento se reunia, entre a vida do campo e a vida social das familiasmais ricas de proprietarios. A instituigao que ligava a vida rural avida urbana era the London Season*. Todas as familias do campo quedispunham dos meios para o efeito iam, durante a «estagao», paraLondres, ai viviam alguns meses nas suas casas de cidade, gozavamos prazeres da vida urbana — o jogo, os debates e os mexericos da

*«A estagao londrina». (N. da T.)

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sociedade. Desta forma, o modo de vida da aristocracia e da peque-na nobreza com terras ou, pelo menos, dos seus sectores abastados,ligava a vida da cidade a vida do campo, e deste modo podeexplicar-se porque e que, no seculo XVIII, divertimentos de ar livretais como o criquete, que associava costumes rurais e maneiras dasclasses mais altas, ou a realizagao de confrontos urbanos como oboxe, que adaptou o costume das classes de niveis mais baixos aogosto das classes mais altas, sofreram a transformagao particular ve-rificada nos desportos. Esta tradigao persistiu mesmo quando a in-fluencia formativa das classes com terras sobre o desenvolvimentodo desporto havia terminado e transitara para as maos das classesurbanas industrials.

Outro aspecto do que habitualmente e designado por «desen-volvimento politico» relaciona-se com o desenvolvimento do des-porto e merece ser aqui referido. Mais uma vez, ao comparar-se odesenvolvimento ingles com o frances, isso torna-se mais claro. Talcomo em muitas outras monarquias autocraticas, em Franga, odireito dos subditos quanto a formar associates por sua propriainiciativa estava, em geral, naturalmente limitado senao mesmoabolido. Em Inglaterra, os cavalheiros reuniam-se como entendiam.Uma das manifestagoes do direito dos cavalheiros a reunir-se livre-mente foi a instituigao de «clubes». Um dos aspectos significativosdesta facilidade de reuniao foi o facto de este termo ter sido adop-tado pelos Franceses quando, tambem eles, foram capazes de recla-mar o direito de livre associagao. A tradigao francesa de direito au-tocratico nao havia dado origem a nenhum procedimento anteriordeste tipo, nem a um conceito especifico para este genero de asso-ciagoes.

A formagao de clubes, levada a efeito por pessoas interessadascomo espectadoras ou executantes numa ou noutra das suas varie-dades, representou um papel crucial no desenvolvimento do des-porto. Na fase anterior ao desporto, divertimentos como a caga euma diversidade de jogos de bola eram regulamentados de acordocom as tradigoes locais que variavam com frequencia, de umalocalidade para outra. Talvez algumas das aldeias mais antigas, umpatrono local, quern sabe, tenham procurado assegurar que oscostumes tradicionais fossem respeitados pelas geragoes mais novas;talvez ninguem o tenha feito.

Uma das caracteristicas que distinguem os divertimentos emer-1

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gentes com o cunho de desportos era o facto de serem regulamen-tados, para alem do nivel local, por meio de uma dessas associateslivres de cavalheiros que acabei de referir, os clubes. O recentedesenvolvimento do criquete e um exemplo tipico. Quando setornou um habito organizar confrontos de jogos ultrapassando onivel local, devido a deslocagao das equipas de criquete de um localpara o outro, tornou-se necessario garantir a uniformidade do jogo.Numa fase inicial, talvez dentro de um condado, os cavalheirosformavam, deste modo, um clube regional, cujos membros concor-davam na unificagao das tradigoes locais. A este nivel elevado deintegragao, o acordo quanto as regras, a concordancia quanto a suaalteragao, caso se verificasse nao serem totalmente satisfatorias,representou uma condigao importante no desenvolvimento de umdivertimento tradicional na direcgao do desporto. O acordo quantoao quadro das regras e quanto aos costumes sociais associados aojogo seguia habitualmente de mao dada, com o desenvolvimentode um orgao fiscalizador que garantia o respeito pelas regras edesignava os juizes para os jogos, se fossem necessaries. Isto foio primeiro passo no caminho para um desenvolvimento que hojee habitualmente considerado garantido e, como resultado dessaatitude, faltam conceitos apropriados. Pode dizer-se que as varian-tes de desporto comegam a assumir um caracter proprio, que se ma-nifesta e se sobrepoe as pessoas que o jogam. Ao nivel dos confron-tos de ar livre das tradigoes locais, sem regras solidas e fixas, o jogoe os jogadores continuavam a ser bastante identicos. Uma impro-visao, a extravagancia de um jogador que pudesse agradar aosoutros, podia alterar o padrao tradicional do jogo. O mais elevadonivel de organizagao de um clube regulador e supervisor dotava ojogo de um grau de autonomia em relagao aos jogadores. E essaautonomia desenvolveu-se, como agente de controlo, para um nivelmais elevado de integragao, tomou o controlo efectivo do jogo,como quando, por exemplo, um clube de Londres, o M C C, retirouo controlo efectivo do criquete aos clubes regionais. Nao e ne-cessario ir mais longe. Nao seria dificil demonstrar como e quandoe que o desenvolvimento do desporto ingles atingiu o nivel devarios clubes locais, de uma associagao nacional coordenadorade todos os clubes locais e, em alguns casos, o desenvolvimento devarias associates nacionais numa associagao internacional a coor-dena-las.

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Esta breve visao do desenvolvimento organizativo pode ajudara precisar o aspecto do desporto a que acabei de me referir. Podedizer-se que^qualquer vjTiedbide^d£^desporto_possui uma fisionomiapropria. Ela atrai as

. sso a.cpntece porque ppssui uma certa^ autono-nao so aos individuos que jogam num determinado

mornenfo^mas, tambem,ja socieda^ onde sg^desenvplyeu. E pordos desportos que se desenvolveram, inicial-

mente, em Inglaterra, puderam transferir-se e ser adoptados poroutras sociedades como se fizessem parte delas. O reconhecimentodeste facto abre um vasto campo de futuras investigates. Porquee que, por exemplo, algumas das variedades iniciais de desportosingleses, tais como o futebol e o tenis, foram adoptadas por muitassociedades diferentes, em todo o mundo, enquanto a expansao docriquete se confinou principalmente a um circulo exclusive dospaises da Commonwealth? Porque e que uma variedade do futebol,o raguebi, nao se expandiu tao largamente como o futebol? Porquee que os EUA, sem abandonarem por complete as variantesdo desporto ingles, desenvolveram a sua propria variedade defutebol?

A compreensao da^relativa autonomia do desporto pode contri-bujjTpara uma anSis^lna^T^rc^^dri^eqmvjlentesTTIHeia de que as investigates sociologicas possmamum caracter necessariamente reducionista tern sido difundida.A demonstragao de que alguns aspectos da sociedade, tais como aciencia ou a arte, podem ser explicados numa perspectiva econo-mica, parece esgotar o programa de trabalho dos sociologos. O queeu aqui tenho referido de uma forma resumida e um vasto piano deacgao para a sociologia. Procurarei mostrar a teia de factos ou, pelomenos, de alguns dos seus aspectos que contribuiram para a forma-gao do desporto em Inglaterra. No ambito deste ultimo, muitosdestes factos eram coincidentes. Por esse motivo, se alguem tentadar uma ideia de algumas das razoes por que o desporto se desen-volveu em Inglaterra, como eu aqui o flz, apresenta o quadro de umdesenvolvimento, de uma sequencia ordenada de passos numadirecgao particular; mas, tal como disse antes, ao mostrar que oultimo passo, no caso do desporto, foi precedido por uma sucessaode passos anteriores enquanto sua condigao necessaria, dificilmentese pode dizer que, partindo da sucessao dos acontecimentos ante-

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riores, o ultimo passo estava prestes a emergir10. Neste caso tambem,a ligagao entre aquilo que e designado com frequencia por diferen-tes esferas do desenvolvimento social, por exemplo, entre o regimeparlamentar das classes mais altas e os divertimentos das classesmais baixas na forma de desportos, nao possui o caracter de umarelagao causal. Vejrificou^jipenas queo jpaesmp grupp^jdgjgessoasque^ partki^oj^no^vango_da_pacificagao e no>jmmento ^da, tegula-rizagao dos confrontos entre facgoes no Parlamento era resjxmsavelpelo jiumento da pacificagao e da regujarizaja^dos seus diverti^mentos. Dificilmente se podera dizer que, neste caso, a parlamen^tarizagao das antigas camaras inglesas dos Lordes e dos Comuns foia causa da qual o desporto seria o efeito. Tal comq^emergiram noseculo^XVIII, querjo^ dejj:grt^^uer o ParlauSiehto eTafiT cajrac-^

^r^kos^dajnesma^modificagao na estrutura do poHeFem Ingla-terra e nos Jhabkos sociais desse grupo de individuos que emergiu"de lutas^nteriores como o grupo dirigente. "™

Diz-se, por vezes, que o desporto possui uma fungao comple-mentar nas sociedades altamente industrializadas — a de permitira pratica de actividades fisicas a uma populac.ao com varias profis-soes sedentarias e, por esse motivo, com insuficientes oportunidadesde se exercitar sob o ponto de vista corporal. Este pode ser umaspecto de complementaridade, mas existem outros que tern des-pertado menor atengao, ainda que, em termos da sua importanciapara os seres humanos, possam ser de signifkado nao menor. Julgoque a sua descoberta conduz ao esclarecimento de alguns aspectosdo desporto e de outras ocupagoes do tempo de lazer que, de certomodo, tern sido negligenciadas.

Nas sociedades avangadas do nosso tempo, muitas profissoes,muitas relagoes privadas e actividades, so proporcionam satisfagao setodas as pessoas envolvidas conseguirem rnanter uma razoavel har-monia e um controlo estavel dos seus impulses libidinais, afectivose emocionais mais espontaneos, assim como os dos seus estados deespirito flutuantes. Nestas sociedades, a sobrevivencia social e o

10Ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, p. 158 e seguintes.

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sucesso dependem, por outras palavras, em certa medida, de umaarmadura segura, nem demasiado fragil nem demasiado forte, deautocontrolo individual. Nas sociedades como estas ha um campode acgao muito limitado para a demonstragao de sentimentos fortes,de acentuadas antipatias e de aversoes relativamente a outras pes-soas, para a entrega a intensos acessos de colera, a um odio feroz ouao impulso de atingir a cabega de alguem. As pessoas que se agitamdemasiado, sob o dominio de sentimentos que nao podem contro-lar, sao casos para hospital ou para prisoes. Determinadas condigoesde elevada excitagao sao consideradas como anormais em qualquerpessoa e, no caso de multidoes, como um perigoso preludio de vio-lencia. No entanto, a contengao de sentimentos fortes, no sentidode alguem preservar um controlo regular firme e completo dos im-pulsos, afectos e emogoes e um factor de origem de novas tensoes.

Algumas pessoas tern sorte. Possuem a capacidade de facil-mente transformarem e canalizarem os seus impulsos e sentimentospara actividades que sao, ao mesmo tempo, beneficas para os outrose satisfatorias para si proprias. Noutros casos, porem, revelam di-ficuldades, senao mesmo impossibilidade em conciliar as exigenciasda vida em comum, que exige uma restrigao regular e bem mode-rada de cada individuo, a acgao-contengao designada por «conscien-cia» ou «razao», com as necessidades de satisfagao dos seus instin-tos e impulsos afectivos e emocionais. Nestes casos, os dois tipos denecessidades — ou algumas delas — mantem-se em permanenteconflito. Em geral, nas sociedades onde grande parte dos elevadospadroes de civilizagao sao salvaguardados e assegurados por meio deum estado interno de acentuado controlo efectivo da violenciafisica, as tensoes pessoais resultantes desse genero de conflito, numapalavra, as tensoes, determinadas por essa dificuldade, estao muitoespalhadas.

Ate onde se pode verificar, a maioria das sociedades humanasdesenvolve algumas contramedidas em oposigao as tensoes do stressque elas proprias criam. No caso das sociedades que atingiram umnivel relativamente avangado de civilizagao, isto e, com relativaestabilidade e com forte necessidade de sublimagao, as restrigoesharmoniosas e moderadas, na sua globalidade, podem ser observa-das, habitualmente, numa consideravel multiplicidade de activida-des de lazer, que desempenham essa fungao, e de que o desporto euma variante. Mas, para cumprir a fungao de libertagao das tensoes

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derivadas das pressoes, estas actividades devem conformar-se asensibilidade existente face a violencia fisica que e caracteristica doshabitos socials das pessoas no ultimo estadio de um processo decivilizagao. Ao comparar as actividades de lazer contemporaneascom as dos primeiros estadios, pode notar-se facilmente que apenassobreviveram aquelas que conseguiram adaptar-se a repugnancianormalmente muito forte dos seres humanos em relagao a possibi-lidade de infligirem ferimentos ffsicos aos outros. Durante seculos,os combates de gladiadores, ou entre seres humanos e animaisferozes, constituiram um divertimento apreciado pelas populatesurbanas do Imperio Romano, e as diversoes medievais da queimados gatos, a suspensao publica na forca ou a luta de galos teriam,provavelmente, desencadeado um diminuto prazer as audienciascontemporaneas, e poderiam ser sentidas por algumas pessoas comoalgo intoleravel e horrivel.

A variedade das actividades de lazer nas sociedades mais dife-renciadas e muito grande, as diferengas entre elas sao acentuadas.Alem disso, a maioria possui, em comum, caracteristicas estruturaisbasicas. E estes tragos comuns apontam para a fungao que preen-chem como actividades de lazer em sociedades de um tipo dediferenciagao elevado e complexo. Enquanto, nestas sociedades, asrotinas publicas ou privadas da vida exigem que as pessoas mante-nham um perfeito dominio sobre os seus estados de espirito e sobreos seus impulsos, afectos e emogoes, as ocupagoes de lazer e dealgumas formas reminiscentes da sua realidade exterior autorizam--nas, de um modo geral, a fluir mais livremente num quadroimaginario especialmente criado por estas actividades. Enquanto,no caso das ultimas, o conjunto de oportunidades de manifestagoesde sentimentos e pouco claro, ou confinado a sectores especiais,as actividades de lazer destinam-se a apelar directamente para ossentimentos das pessoas e anima-las, ainda que segundo maneirase graus variados. Enquanto a excitagao e bastante reprimida naocupagao daquilo que se encara habitualmente como as actividadesserias da vida — excepto a excitagao sexual, que esta mais estrita-mente confinada a privacidade —, muitas ocupagoes de lazer for-necem um quadro imaginario que se destina a autorizar o excita-mento, ao representar, de alguma forma, o que tern origem emmuitas situagoes da vida real, embora sem os seus perigos e riscos.Filmes, dangas, pinturas, jogos de cartas, corridas de cavalos,

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operas, historias policiais e jogos de futebol — estas e muitasoutras actividades de lazer pertencem a esta categoria.

Se perguntarmos de que modo e que se animam os sentimentos,como e que a excitagao e favorecida pelas actividades de lazer,descobre-se que isso e dinamizado, habitualmente, por meio dacriagao de tensoes. Perigo imaginario, medo ou prazer mimetico,tristeza e alegria sao produzidos e possivelmente resolvidos noquadro dos divertimentos. Diferentes estados de espfritos sao evo-cados e talvez colocados em contraste, como a angustia e a exalta-gao, a agitagao e a paz de espirito. Deste modo, os sentimentosdinamizados numa situagao imaginaria de uma actividade humanade lazer tern afinidades com os que sao desencadeados em situagoesreais da vida — e isso que a expressao «mimetica» indica — , maso ultimo esta associado aos riscos e perigos sem fim da fragil vidahumana, enquanto o primeiro sustenta, momentaneamente, o fardode riscos e de ameagas, grandes e pequenas, que rodeia a existenciahumana. Uma tragedia representada num teatro, tal comoAristoteles revelou, pode evocar nos espectadores sentimentos demedo e de piedade, que estao profundamente relacionados comaqueles que sao experimentados pelos seres humanos quando saotestemunhas proximas da condigao real de outros, presos tragica-mente nas ciladas das suas vidas. Porem, o quadro imaginario datragedia teatral e construido por humanos. A opressao do sentimen-to produzido pelo fardo irredimivel do sofrimento humano na vidae iluminado, o sentimento e em si mesmo purificado pelos simbolosmimeticos da musica ou da poesia, dos movimentos do corpo oumascaras, e pela tensao mimetica experimentada por aqueles quetestemunharam o sofrimento humano e a dor, num quadro ima-ginario da construgao humana de uma tragedia. Desta maneira,uma crianga langada ao ar em seguranga nos bragos estendidos dopai pode sentir o prazer da excitagao mimetica do perigo e domedo, sabendo que o medo e imaginario e que existe seguranga nosbra^os do seu pai. Do mesmo modo,^os£S£^t^ores^um jogo defut eboljgodementre duas equipas, eyohjJii£lx3j^^de logo, sabendo qiie^nenhum mal-acont-eGera^os ji^ga^orcs^^^^asi jjxesm€)Sv^Ial como na vida real, podem agitar-se entre esperangasde sucesso e medos de derrota; e, nesse caso, activam-se sentimen-tos muito fortes, num quadro imaginario, e a sua manifestagao

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aberta na companhia de muitas outras pessoas pode ser a maisagradavel e libertadora de todas, porque na sociedade, de um modogeral, as pessoas estao mais isoladas e tern poucas oportunidadespara manifestagoes colectivas de sentimentos intensos.

E, contudo, se as tensoes despertam numa sociedade mais alar-gada, se ai as restrigoes sobre os sentimentos intensos enfraqueceme o nivel de hostilidade e odio entre os diferentes grupos se elevaa serio, a linha divisoria que separa o jogo e aquilo que nao e jogo,confrontos mimeticos e reais, pode ficar pouco nitida. Nesses casos,a derrota no terreno de jogo pode evocar a amarga sensagao dederrota na vida real e um apelo de vinganga. Uma vitoria mime-tica pode apelar a continuagao do triunfo numa batalha fora doterreno de jogo.

O reconhecimento do facto de os divertimentos com as carac-teristicas de desportos terem tornado forma definida em Inglaterra,em ligagao com o apaziguamento de um ciclo de violencia e a suaresolugao num confronto politico nao violento, de acordo com re-gras, torna mais facil a compreensao de que o desporto altera a suafungao e o seu caracter se, uma vez mais, a mare das tensoes e daviolencia dentro ou entre Estados se elevar. Caso isso acontega, astensoes mimeticas e a excitagao controlada que com elas se relacio-na podem perder as suas caracterfsticas especificas, bem como aoportunidade de uma resolugao agradavel das tensoes, as quaisestao no fulcro do desporto de lazer e de muitas outras actividadesdeste tipo. Na sociedade global, estas tendem a atenuar-se ou afundir-se com tensoes de tipo diferente. As proezas desportivas quehoje culminam nos Jogos Olfmpicos fornecem exemplos notaveis.Ai a luta pelos recordes mundiais suscitou uma direcgao diferenteao desenvolvimento do desporto. As tensoes mimeticas do lazerdesportivo sao dominadas e padronizadas por tensoes globais e riva-lidades entre varios Estados, sob a forma de um acontecimentodesportivo. Quando assim sucede, o desporto assume um caracterque, em certos aspectos, e nitidamente diferente daquele que serevela enquanto ocupa^ao de lazer. So neste caso e que as tensoesmimeticas conservam autonomia, um grau de distingao em relagaoao tipo de tensoes caracterfsticas das situagoes da «vida real».Contudo, dentro de certos limites, um tipo de realizagao desportivapode conservar as suas fungoes como ocupagao de lazer: quandoassume a qualidade de desporto espectaculo. Considerado nesta

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perspectiva, o desporto pode resultar numa agradavel excitagaomimetica, que e susceptivel de contrabalangar as tensoes, normal-mente desagradaveis, das pressoes derivadas do stress inerente associedades, proporcionando uma forma de restauragao de energias.

Um dos principals tragos fisionor^^jLgresratarcm

rer superiQrsssaafc=aualquer outra_ ___ . . ^^^^^^^^^^ea^^

que se possaTImaginar. Muitas dessas ocupagoes de lazer,entre as quais o desporto nas suas formas de pratica ou de es-pectaculo, sao entao consideradas como meios de produzir umdescontrolo de emogoes agradavel e controlado. Com frequencia,elas oferecem (embora nem sempre) tensoes mimeticas agradaveisque conduzem a uma excitagao crescente e a um climax de senti-mentos de extase, com a ajuda dos quais a tensao pode ser resolvidacom facilidade, como no caso de a sua equipa veneer uma provadesportiva. Nesta linha, as tensoes mimeticas das actividades delazer e a excitagao com elas relacionada, isenta de perigo ou deculpa, podem servir como um antidoto das tensoes provenientes dostress que, no quadro da repressao global estavel e harmoniosacaracteristica das sociedades complexas, se veriflca entre os

Jndividuos.A grande variedade das actividades de lazer, em geral, e dos

desportos, em particular, que as sociedades complexas tern paraoferecer permite aos individuos uma vasta possibilidade de esco-Ihas. Uma ou outra podem ser adoptadas, de acordo com os tem-peramentos, constituigao fisica, necessidades libidinais, afectivas ouemocionais. Algumas destas actividades de lazer podem evocar, deforma mimetica, arrependimento ou medo, tanto quanto alegria etriunfo, afeigao e amor ou odio. No contexto de uma pega ou de umconcerto, de um quadro ou de um jogo, ao permitir-se que estessentimentos fluam livremente no seu contexto simbolico, alivia-seo fardo global que e inerente a vida das pessoas, fora do ambito dolazer.

Poucas sociedades humanas existem, se e que existe alguma,que nao possuam um equivalente as nossas actividades de lazer, quenao tenham dangas, confrontos simulados, exibigoes acrobaticas oumusicais, cerimonias de invocagao dos espiritos — em resumo, seminstitutes sociais que proporcionam, por assim dizer, a renovagaoemocional por meio do equilibrio entre os esforgos e as pressoes da

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vida ordinaria, com as suas lutas a serio, os perigos, os riscos e osseus constrangimentos. No entanto, a natureza e a fun^ao destasformas de restrigao sao facilmente mal compreendidas. Com fre-quencia, sao consideradas como um corolario da vida social. Dadoque os seres humanos vivem uns com os outros, julga-se que devempossuir controlo sobre si proprios, impor restrigoes as manifesta^oesdas suas energias, afectos e emogoes. Mas os seres humanos, parabeneficio pessoal, tambem tern de aprender a colocar esses impulsessob o seu proprio controlo. Uma pessoa que seja incapaz de o fazerconstitui um perigo nao so para os outros mas tambem para sipropria. A incapacidade de controlar estes impulses e, pelo menos,tao dolorosa e tao escusada como a necessidade de os controlardemasiado.

Os seres humanos possuem restrigoes dos seus poderosos afec-tos, das suas impetuosas energias instintivas, que nao sao aprendi-das. For este motivo, a vida social dos seres humanos, a sua vida emcomum, pode oferecer pouca satisfagao se os membros de umasociedade seguirem os seus proprios afectos e impulsos sem quais-quer constrangimentos. Contudo, os seres humanos sao organizadosde uma maneira tao curiosa que a mobilizagao e a padronizagao dassuas disposi^oes naturais, no sentido de se constrangerem por meiode aprendizagem, e indispensavel nao so para a sobrevivencia dosgrupos humanos como, tambem, para a sobrevivencia de cada umdos seus membros. Alguem que seja incapaz de adquirir o auto-dominio, um ser humano que nao consiga reprimir os seus impul-sos continuara a merce das suas proprias manifestagoes. Uma pessoaincapaz de controlar qualquer necessidade primaria interior ou umaexcitagao animada por acontecimentos externos nao pode harmoni-zar os impulsos insatisfeitos com as fontes da sua satisfagao, naopode ajustar os afectos as realidades de uma situagao e, por essemotivo, sofrera bastante devido a dor, a pressao irresistivel dosimpulsos espontaneos vindos do seu interior mas orientados para oexterior. Sendo incontrolaveis e, portanto, desajustados, estesimpulsos, ou antes, as pessoas dominadas por eles, hao-de falhar ouerrar os seus alvos e, por isso acabavam por frustrar a descoberta dasatisfagao. De facto, tal pessoa nao sobrevivera durante muitotempo para alem da sua primeira infancia e se, por acaso, o fizerdificilmente sera humana.

Por outras palavras, a aprendizagem do autodominio e uma

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condigao humana universal, uma condigao comum da humanidade.Sem ela as pessoas, enquanto seres individuals, nao chegariam atornar-se humanas, assim como as sociedades, que rapidamente sedesintegrariam. O que pode mudar, e aquilo que de facto mudoudurante o longo desenvolvimento da humanidade, sao os padroessociais de autodominio e a maneira segundo a qual eles se forjamno sentido de activar e modelar o potencial natural dos individuos,no sentido de retardar, suprimir, transformar, em resumo, decontrolar de varias formas energias elementares e outros impulsesespontaneos. O que mudou, em suma, foram as operagoes decontrolo engendradas no decurso do processo de aprendizagemindividual de uma crianga e con,hecidas actualmente por designa-goes tais como «razao» ou «consciencia», «ego» ou «superego». Asua estrutura e padrao, as suas fronteiras e, em con junto, a suarelagao com os impulsos libidinais, e outros em grande medida naoaprendidos, sao nitidamente diferentes em estadios distintos nodesenvolvimento da humanidade e, desse modo, no decurso do seuprocesso de civilizagao. Com efeito, as modificagoes deste generoconstituem o fulcro estrutural deste processo demonstravel, assimcomo dos ligeiros arranques de civilizagao ou de descivilizagao quese podem observar.

E por esse motivo que, no desenvolvimento social da especiehumana, nao existe o ponto zero da civilizagao, nenhum momentodo qual se possa dizer que foi aqui que a barbaric chegou emabsoluto ao fim, ou foi aqui que, entre os humanos, a vida civili-zada comegou. Dito de outra maneira, o processo de civilizagao eum processo social sem inicio absoluto. Uma sequencia de mudan-gas puramente sociais, sem correspondentes modificagoes biologicasda especie, foi desencadeada sem descontinuidade absoluta, emconsequencia de uma evolugao biosocial e, finalmente, biologica.Em contraste com esta ultima, o processo de civilizagao, tal comooutras sequencias sociais de mudanga de uma direcgao particular,pode seguir um mecanismo inverse. Um processo de civilizagaopode ser adquirido, pode ate ser acompanhado, por avangos dedirecgao oposta, pelo processo de descivilizagao.

Contudo, a direcgao de um processo de civilizagao e frequente-mente mal compreendida. Como o desporto esta intimamenteligado as condigoes de civilizagao na sociedade em geral e, destemodo, aos efeitos reciprocos dos impulsos de civilizagao e de des-

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civilizagao, facto que hoje e bem visivel, podem ser uteis algumaspalavras introdutorias sobre a orientagao de tal processo. Uma dasideias que podem ocorrer facilmente quando se menciona a orien-tagao de um processo de civilizagao e a das mudangas no sentido deum maior autocontrolo. Embora isto seja uma simplificagao gros-seira, nao se pode dizer que seja errado. Termos de comparagao taiscomo «maior» ou «menor» nao tern necessariamente de se referira relagoes de quantidades mas podem sem dificuldade dar a impres-sao de que e esse o seu significado. Por esse motivo, se nestecontexto se fala de «maior autocontrolo» ou de «menor autocontro-lo» pode parecer que tal se faz, da mesma maneira, quando se falade beber mais ou menos vinho. As actuais limitagoes da linguatornam um pouco mais diffcil o encontro de expressoes menosequfvocas. Alias, se alguem referir que a direcgao do processo decivilizagao nao se pode apresentar, de modo adequado, como umamudanga em termos de quantidade, a unica alternativa que os usosactuais da linguagem e do pensamento oferece e a hipotese de asupor como uma mudanga de qualidade. Este e um dos varios casosem que estas utilizagoes demonstram perfeitamente a marca doconhecimento acerca da natureza fisica. O estudo da natureza terndado uma base solida a ideia de que a redugao da qualidade aquantidade e o unico caminho para a descoberta e, por esse motivo,o unico tipo de procedimento cientffico valido. Mesmo no caso desubstancias altamente organizadas, tais como os cromossomas, issoja nao e inteiramente verdade. A este nivel, os modelos de confi-guragao tern de completar em termos e quantidades as representa-£oes simbolicas das qualidades. O uso linguistico correcto, quepropoe a qualidade como a unica alternativa para a quantidade,comega a revelar as suas limitagoes. E tal facto ainda e mais reve-lador no que diz respeito ao estudo dos grupos sociais. Se se utilizaro desenvolvimento comparado da humanidade, como mais tarde oumais cedo se tera de fazer, como uma grade basica de referendapara estudos sociologicos, se se estender ao longo caminho percor-rido pelos seres humanos desde o tempo das cavernas, como as uni-dades de sobrevivencia de um perfodo anterior, ate ao tempo dasEstados-nagoes industriais, como as unidades de sobrevivencia deum perfodo posterior, a mudanga na quantidade de pessoas queformam uma unidade de sobrevivencia em qualquer lado e, quasede certeza, um criterio relevante desse desenvolvimento. Porem,

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nao se ira muito longe se entao se procurarem as «qualidades»destes grupos de seres humanos que possam ser reduzidas a quan-tidades. O termo «qualidade», que possui um significado muitoprecise se alguem se refere a substancias fisicas, ja nao possui umsignificado igualmente precise se alguem menciona as sociedadeshumanas. A espontaneidade com que «qualidade» ocorre ao pensa-mento como a unica alternativa linguistica correcta para «quanti-dade» e uma das muitas circunstancias que mostra que, no estudodas sociedades humanas, nos encontramos presentemente prisionei-ros de linguagens cujas influencias mais decisivas na nossa forma-gao foram experiencias de tipo fisico ou metafisico. Nem todos osidiomas se encontram correctamente ajustados ao estudo dos sereshumanos, quer como individuos quer como sociedades. Se se utili-zarem os exemplos mencionados antes, os primeiros e os ultimostipos conhecidos de sociedade humana, e facil reconhecer que o quese oferece como alternativa a disparidades nas dimensoes, na quan-tidade de pessoas que constituem estes grupos, nao sao tanto dife-rengas nas qualidades do grupo mas antes as que existem na estru-tura desses grupos, na maneira como as pessoas se encontram liga-das umas as outras ou, por outras palavras, nas configuragoes queformam entre si e com a natureza nao humana. Neste caso, o termoconfiguragao e designado de modo a evitar a ideia, inerente amuitos termos tradicionais, de que as pessoas e as sociedades saosubstancialmente diferentes. Os dois conceitos denotam apenasdiferengas na perspectiva de um observador que, em determinadomomento, observa as pessoas que constituem um grupo e, noutracircunstancia, o grupo que elas formam entre si. Ao compreender^ 5bC0bs grupos humanos, pequenos ou grandes, como configuragoes que Vp ;/«. Llos seres fiumano^cBnTeitos-ao^dldos^pBservaveis do que o p^ermite a habitual pola^-rizagao do individuo e da sociedade. E aceitavel dizer-se queTasestruturas sociais sad estfuturas formadas por seres humanos. Isso

, tambem indicaria que o estudo das sociedades enqimnto_acumI gao de individuospafTconhecer as "qualidades daj jgciedades^masnar as suas estruturas ou as configuragoes ^humanos. Pode verificar-se que o termo estrutura resiste um poucb*a esta uniao com seres humanos. E mais facil referir configuragoesde seres humanos, por exemplo, no caso da configuragao dinamica

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formada pelas duas equipas de jogadores no terreno de futebol.Contudo, configuragao e uma nova expressao nao totalmentecompreendida. O seu uso necessita de uma medida de distancia-mento justa. O melhor que se pode fazer, neste ambito, e referirexemplos que podem servir como um modo de comunicagao maisaceitavel do que afirmagoes gerais que incluem um termo naofamiliar.

Os exemplos abundam. So e necessario voltar ao que foi ditoantes sobre a sociogenese do desporto, acerca do avango de civili-zagao do qual o desporto constitui um aspecto e sobre as suascategorias distintivas em relagao aos divertimentos de um estadioanterior do desenvolvimento.

Pode ver-se ai que as regras para confrontos nao violentos entrefacgoes rivais no Parlamento e para a entrega pacifica do podergovernamental a uma facgao vitoriosa ou partido emergiam mais oumenos ao mesmo tempo que o aumento de rigor introduzido narestrigao da violencia, na maior exigencia de autocontrolo indivi-dual e na tecnica de sublimagao, que atribui caracteristicas dedesporto as provas que envolvem forga muscular e agilidade, reali-zadas no quadro do lazer. For esse motivo, ao afirmar-se que osconfrontos do Parlamento ou dos desportos exigem maior autocon-trolo do que os confrontos politicos de um periodo anterior, regu-lamentados com menor rigidez e, com frequencia, mais violentos,tal nao se aplica a uma modificagao na quantidade do autocontrolo,a qual poderia ser medida, de forma aceitavel, isoladamente; nemse reporta a uma modificagao na qualidade dos seres humanos queformam entre si configurates tais como o Parlamento ou as equi-pas de criquete, que eram, como se pode demonstrar, regulamen-tadas de forma mais severa do que aquelas que as precederam eexigiam das pessoas que as constituiam mais rigor, equilfbrio econtrolo estavel de si proprios. Mas nos confrontos parlamentares,embora os confrontos verbais e as intrigas partidarias possam for-necer alguma excitagao agradavel aqueles que nao estao demasiadoenvolvidos, as oportunidades de riqueza, estatuto e poder estavamem jogo. A caga a raposa, tal como emergiu no seculo XVIII, aindaque os proprios cagadores negassem o prazer de matar e emboraestivesse na sua totalidade, mais firmemente regulamentada do queformas de caga anteriores, permitia aos cavalheiros e as senhorascagadores todos os prazeres e o excitamento da perseguigao, por

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assim dizer, de forma mimetica, por meio de um jogo violento,interpretado por eles enquanto espectadores participantes, peloscaes de caga e pela raposa (ver «Ensaio sobre o Desporto e a Vio-lencia» neste volume). Neste caso, tambem, j3 davango de^civilizagao nao se baseavajia m^iisoladas 4e, ,autoconjtt^o~Jm^^por todo o quadro, pela configuracao formada por seres humanos,*<- " ~-'^ -^t-*^*s*"bdi^^ '.g

neste caso juntamente com cavalos.^caes de caca e raposa. /****'— - _-.-*-<• «J-~ %,^0-^j^-^****^^ - 'ihc^***'''*^^ 2

O desporto, tal como outras actividades de lazer, no seu quadroespecifico pode evocar atraves dos seus designios, um tipo especialde tensao, um excitamento agradavel e, assim, autorizar os senti-mentos a fluirem mais livremente. Pode contribuir para perder,talvez para libertar, tensoes provenientes do stress. O quadro dodesporto, como o de muitas outras actividades de lazer, destina-sea movimentar, a estimular as emogoes, a evocar tensoes sob a formade uma excitagao controlada e bem equilibrada, sem riscos e ten-soes habitualmente relacionadas com o excitamento de outras situa-goes da vida, uma excitagao mimetica que pode ser apreciada e quepode ter um efeito libertador, catartico, mesmo se a ressonan-cia emocional ligada ao designio imaginario contiver, como habi-tualmente acontece, elementos de ansiedade, medo — ou deses-pero11.

Mas apesar de o desporto partilhar com muitas outras activida-

nPor vezes, o quadro imaginario do desporto como uma luta que e, em ultimorecurso, um jogo, e como tal relacionado, apesar de diferente, com as lutas reais e oscombates da vida das pessoas, deu origem a sugestao de que o desporto e umaimitagao dos confrontos da vida real. Nao e inteiramente irrelevante que nestecontexto ocorra o problema da imitagao, como acontece no contexto da arte.

O mais antigo e talvez o mais famoso debate sobre o caracter de imitac.ao da artee o que se pode encontrar na obra Poetica de Aristoteles. Surgiram duvidas sobre aautenticidade do texto actual que, de alguma maneira, e fragmentar. Mas aquilo quetemos e suficiente para mostrar que Aristoteles parece ter sido o primeiro a consideraro problema do que e ser a imitagao, por exemplo, de uma tragedia. «A tragedia e umaimitagao nao dos seres humanos mas da acgao e da vida, da felicidade e da miseria»(John Jones, On Aristotle and Greek Tragedy, Londres, 1962, p. 30). Embora o sentidoexacto desta aflrmagao nao seja totalmente claro, parece apontar numa direcgao que,acredito, continua a proporcionar, pelo menos, parte da resposta ao problema docaracter mimetico das actividades do lazer. Nas suas ligoes sobre algumas dasocupagoes de lazer dos Atenienses, Aristoteles empregou, e talvez tenha criado, doisdos conceitos que sao dos mais uteis para as investigates nesta area de problemas.

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des de lazer o seu caracter mimetico, ter a capacidade de estimularemogoes semelhantes aquelas que sao experimentadas noutras si-tuagoes e ate a possibilidade de catarse, apresenta diferengas rela-tivamente a maior parte delas e, em especial, as artes, pelo papelrepresentado em todos os desportos pelas lutas in toto entre sereshumanos. Em todas as formas de desporto, os seres humanos lutamentre si directa ou indirectamente. Algumas formas de desportocujas intengoes se parecem profundamente com as de um confront oreal entre grupos hostis, tern uma propensao muito forte paradesencadear emogoes, para evocar excitagao. For esse motivo, elasrepresentam um^j^xen^^ de um dosprincipals problemas de muitos desportos: como conciliar, for m odos objectiyos do desporto, duas fungoes ^gntr^itorias_r--_por3i|n^lado, o prazer de desencadear sentimentos humanos, a^evqcagapplena de uma excitagao agradavel, e, por outro, aj:onservagao deum con j unto jie dispositivos de vigilancia para manter^o -agradavej^

controlo.O problema dos desportos centrados em simulagoes de confron-

tos pode talvez sobressair com maior nitidez se lembrarmos, umavez mais, que o desporto partilha com muitas ocupagoes de lazer do

Refiro-me aos conceitos de rnimese e de catarse. Nao se pode ter a certeza do seusentido original. Mas talvez seja possfvel sugerir o que podem significar hoje.«Mimesis» teria adquirido um sentido mais nitido se nao fosse usado somente comouma expressao mais culta de «imita^ao». A Madonna de Rafael, o Auto-Retrato deRembrandt e os Girassois de Van Gogh nao sao simplesmente imitagoes da coisa real.O que se pode dizer e que elementos do objecto vivido entram na vivencia darepresentagao do mesmo objecto numa pintura. Mas a vivencia do objecto pintado,ainda que em alguns aspectos se assemelhe a vivencia do objecto da vida real,dificilmente pode ser designado uma imitagao da experiencia do objecto da vidareal. Ao ser pintado, o objecto e transposto para o interior de um quadro diferente.A vivencia do objecto e, em particular, o complexo de sentimentos a ele associadoe, por assim dizer, como se alguem passasse da contemplagao do objecto real paraa contemplac.ao do mesmo objecto como parte de uma pintura, transposto para ointerior de uma montagem diferente. Os aspectos-sentidos da vivencia sofrem,particularmente, neste caso, uma transformagao bastante caracteristica, uma meta-basis eis allo genos {Em alemao no original. (N. da T.)}. O termo mimese pode servircomo um simbolo conceptual que explica essa transformagao. Usado neste sentido,preencheria uma lacuna.

Algo muito semelhante acontece se compararmos uma luta fisica real entreseres humanos numa prova desportiva. O caracter mimetico de uma prova despor-

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nosso tempo a fimgao de controlar uma agradavel ausencia decontrolo de sentimentos. Um concerto tambem pode cumprir essafungao. Mas, neste caso, o movimento fisico dos executantes, excep-to talvez os do maestro, nao estao no centro da atengao. A audienciatern de conservar os seus movimentos sob rigoroso controlo demodo a que nao parta dela nenhum ruido que perturbe os sonsproduzidos pela orquestra. Na verdade, ao longo de anos, ternaumentado nitidamente a tendencia para restringir os movimentosdos espectadores. Um jorro subito de auto-escalada da civilizagaopode estar a ocorrer neste caso. Actualmente, o codigo de condutadaqueles que vao aos concertos limita os aplausos, remetendo-ospara o final de uma sinfonia ou qualquer pega de musica comandamentos multiplos. O aplauso no fim de um andamento erefreado, se nao mesmo censurado. No tempo de Haydn ou Bee-thoven, contudo, o aplauso depois de cada andamento nao so severificava como era esperado. Muitos andamentos tinham tambema intengao de favorecer os aplausos, como forma bem-vinda delibertar a excitagao da tensao produzida pela musica. Hoje, aaudiencia permanece em silencio no fim do andamento que haviasido escrito e reclamava o aplauso.

tiva como uma corrida de cavalos, um combate de boxe ou um jogo de futebol edevido ao facto de aspectos da vivencia-sentida associados a luta fisica real entraremno campo da vivencia-sentida de uma luta «de imitagao» propria de um desporto.Mas, na experiencia dos desportos, a vivencia-sentida de uma luta fisica real edeslocada para um mecanismo diferente. O desporto permite as pessoas a experien-cia da excitagao total de uma luta sem os seus perigos e riscos. O elemento do medona excitagao, ainda que nao desaparega por completo, e bastante reduzido, e o prazerda excitagao do combate e, por esse motivo, elevado. A partir dai, se falarmos dosaspectos «mimeticos» do desporto, referimo-nos ao facto de que ele imita, de formaselectiva, uma luta da vida real. O esquema de um jogo desportivo e a destreza deum homem ou de uma mulher desportista permitem que o prazer do confronto sedesenvolva sem ferimentos ou mortes.

E neste contexto, tambem, que o conceito de catarse de Aristoteles podepreencher uma lacuna no nosso equipamento conceptual. Os confront os do desportopermitem alcangar a vitoria sobre os outros atraves de uma luta fisica sem provocardanos ffsicos. O desfecho da tensao do confronto e o esforgo para atingir a vitoriapodem ter um efeito alegre e purificador. E possivel usufruir da confirmac.ao do seuproprio valor sem ma consciencia, um aumento justificado do amor proprio, nacerteza de que a luta foi justa. Nessa linha, o desporto proporciona amor proprio semma consciencia.

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82 A BUSCA DA EXCITA^AO

A descrigao que se segue proporciona um quadro nitido de umasituagao equivalente. Mostra, tambem, que a fungao de produziruma excitagao emocional controlada mas agradavel nao se limita aodesporto:

O pulso acelera; a mao esquerda do musico torna-se uma manchaassim que os dedos do pianista correm de um lado para o outro doteclado. O momento construfdo para a serie final e acordes triunfan-tes: Ta tab! Turn tummmm! O violinista esboga uma longa e intensainflexao para baixo; ao desprender os seus brakes estes voam, exul-tando, para o ar.

Entao: incomodo silencio, um pouco de tosse, algumas mudan-gas de posigao nos lugares; o solista olha para o chao; o brago inclina--se timidamente para baixo. Para retomar a sintoniza^ao, uma notaou acorde do pianista, assim que os executantes retomam alento dointenso excitamento que construiram sem que se desprendesse umaresposta de confirmagao.

Onde estamos? Num grande auditorio, entre uma sofisticada as-sistencia. De outro modo, algumas pessoas que tenham sido estimu-ladas por toda esta actuagao teriam feito aquilo que parecia obvio, eos seus vizinhos conhecedores te-los-iam feito calar imediatamente.E porque? Porque e apenas o final do primeiro andamento emboraa musica diga «aplauda, por favor», o decoro, num concerto nosfinais do seculo XX, diz «Por favor, aguarde12.»

A restrigao imposta desta maneira a uma audiencia e tantomaior quanto mais intensamente forem estimuladas as suas emo-goes. E, no entanto, ate onde for possivel, nenhum miisculo se devemovimentar. Devem mover-se sem se deslocarem. So no final e quea assistencia pode denunciar, pela forga e duragao dos seus ges-tos, dos seus aplausos, o quanto esteve antes tab comovida emsilencio13.

12Will Crutchfield, «To Applaud or Not to Applaud», International HeraldTribune, 1-2 de Junho de 1985.

13Uma variedade de exemplos demonstra que, no decurso de um avango decivilizagao, os movimentos tendem a ser refreados, por yezes, refmados. Emsociedades que se encontram num estadio anterior de um processo de civilizagao, odiscurso dos movimentos tende a associar-se de forma mais profunda aos movimen-tos dos membros ou de outras partes do corpo de uma pessoa. Num estadio posteriorde um processo de civilizagao, gestos efusivos e que chamam a atengao sao, de umamaneira geral, condenados. O discurso dos movimentos tende a ser isolado. No

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INTRODU^AO 83

No caso de um jogo de futebol, movimento e emogao estaointimamente ligados um ao outro, pelo menos na situagao dosjogadores. Mesmo o publico tern um campo de possibilidadesmaior para transmitir os seus sentimentos entre si e aos jogadores,por intermedio de movimentos, incluindo os da lingua, dos labiose das cordas vocals. Porem, nao so o futebol, mas o desporto, deuma maneira geral, possui o caracter de um combate mimeticocontrolado e nao violento. Uma fase de luta, ou conflito de tensaoe excitagao, que pode ser exigente em termos de esforgos fisicos ede tecnica mas que pode tambem ser, em si mesmo, hilariante,uma libertagao das tensoes e dificuldades da rotina exterior ao lazere, habitualmente, seguida de uma fase de decisao e de alivio doconflito de tensoes, quer seja pelo jubilo da vitoria ou pelo desapon-tamento da derrota.

O desporto pode traduzir-se num combate entre seres humanosque lutam individualmente ou em equipas. Pode ser uma luta decavaleiros e de uma matilha de caes em perseguigao de uma raposaveloz. Pode assumir a forma de uma corrida de esqui, desde o cimoda montanha ate ao vale, um tipo de desporto que nao e so um

desenvolvimento do desporto, podem encontrar-se tambem exemplos desta tenden-cia. Por exemplo, em Franga e no Japao, formas anteriores daquilo a que noschamamos «boxe» autorizavam o uso das pernas ou dos bragos como armas. Naforma inglesa, o boxe limitava o uso das pernas a tarefa da movimentagao de um ladopara o outro. Por outro lado, as regras do futebol ingles proibem a utilizagao dosbracks e das maos (a todos os jogadores, excepto ao guarda-redes, e nos langamentoslaterals de «reposic.ao» da bola em jogo) como meios de movimentar a bola e limitaras pernas e pes a func.ao de propulsao. Os psicologos investigam, com frequencia, asemogoes dos indivfduos da sua propria sociedade, como se elas tivessem apenas umcaracter fisiologico, como se nao fossem muito afectadas pelos contra-impulsosincrustados sob a forma de controlos sociais aprendidos. Em qualquer caso, na suaforma primaria, as emogoes estao profundamente ligadas aos movimentos. Os bebesou as criangas revelam isso com bastante clareza. So gradualmente e que o potencialhumane natural para as restrigoes e activado, e so quando os contra-impulsosaprendidos se interpoem entre os impulses de sentimentos e os orgaos motores e queos primeiros assumem o caracter das emogoes depois observadas nos indivfduos maisvelhos de sociedades em que um elevado nivel de restrigoes civilizadoras constituiuma parte integral dos habitos sociais da maioria dos adultos que sao considerados«normals». Duvido que seja possfvel uma adequada teoria das emogoes enquantoos psicologos procederern como se a sua disciplina fosse uma ciencia natural. Semuma teoria do desenvolvimento social em geral, e em particular de processesde civiliza^ao, nao se pode explorar de modo adequado semelhantes aspectos dosseres humanos.

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confronto entre seres humanos mas e, tambem, um desafio com apropria montanha coberta de neve. Assim e o montanhismo, emque os seres humanos podem ser derrotados por uma montanha ou,

f> depois de muitos esforgos, podem atingir o topo e gozar a suaj vitoria. O desporto e sempre, em todas as^sua^variedades, uma luta/ controlada, rium quaHfo^] montanha. o mar, a raposa ou outros serei por exemplo, o futeBol. E a imaginagao humana que faz de o factode os homens conduzirem uma bola de couro — apenas com os pes— o objecto de uma contenda animada mas controlada, entre doisgrupos de seres humanos. O problema para resolver, aqui como nosoutros jogos desportivos, reside em saber como manter um reduzi-do grau de riscos e de ferimentos nos jogadores e, alem disso, comosustentar, a um nivel elevado, o prazer desencadeado pelo exci-tamento da oposigao. Se a estrutura de regras e de tecnicas queproporciona o quadro imaginario do desporto e capaz de o assegu-rar, na pratica, assim como aos respectivos equillbrios, pode dizer--se que atingiu a maturidade. As variedades do futebol ingles al-cangaram esta condigao depois de um periodo de crescimento e deharmonizagao funcional, e os seus designios chegaram muitas vezesa proporcionar regularmente aos jogadores uma boa oportunidadede conflito de tensao nao violento, bastante duradouro para seraprazivel e, tambem, uma boa ocasiao de libertar e concluir tensoessob a forma de vitoria ou derrota14. Se muitos jogos terminam emempate, isto e, sem que a tensao seja resolvida por meio da vitoria,isso significa que as regras do jogo necessitam de ser rectificadas.Da mesma forma, um jogo desportivo pode ficar comprometido sea vitoria for conseguida, demasiadas vezes, depressa de mais. Nestascircunstancias, a tensao agradavel provocada pela excitagao estaausente ou e excessivamente breve15. Pode afirmar-se assim que ofutebol, como outras modalidades de desportos de lazer, se apoia noequilfbrio precario entre o enfado e a violencia. O drama de umbom jogo de futebol, segundo a forma atraves da qual se manifesta,

14Ver a obra de Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen andPlayers: a Sociological Study of the Development of Rugby Football, Oxford, 1979-

15No artigo «A Dinamica dos Grupos Desportivos — Uma Referenda Especialao Futebol» (ver pp. 291-297), e apresentado um exame mais minucioso dosequillbrios desenvolvidos no quadro dos objectives de um desporto como o futebol.

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INTRODU^AO 85

possui qualquer coisa de comum com uma boa pega teatral. Aitambem e construida durante algum tempo uma agradavel tensaomimetica, talvez a excitagao, orientada para o climax e, destemodo, para a resolugao da tensao. Porem, uma pega teatral e, emmuitos casos, o resultado do trabalho delineado por uma determi-nada pessoa, enquanto muitas formas de desporto atingiram a ma-turidade no decurso de um desenvolvimento social nao planeado.

A maneira de introdugao, foram aqui apresentados algunsaspectos da sociogenese do desporto. Isso pode ser encarado comoum produto derivado que langou tambem algum esclarecimentosobre a natureza do proprio desenvolvimento social. Nao deixa deser elucidative observar como alguma coisa, de inicio perfeitamenteinovadora e, a sua maneira, bastante perfeita, como o criquete, ofutebol, o tenis e outras variedades de desporto, tomou forma nodecurso de um desenvolvimento nao intencional de longa duragao.Tambem se pode dizer o mesmo do jogo de xadrez, das variantesinglesa ou alema, ou das formas iniciais do governo parlamentar.Muito se tern escrito sobre a origem individual daquilo que sechama «ideias». Tentar saber quern expressou uma ideia, em pri-meiro lugar, e um tema muito considerado como materia de inves-tigagao. Um passatempo de caracter competitive, favorito dehomens e de mulheres cultas, e a descoberta de que uma certa ideiatera visto a luz do dia mais cedo do que se acreditava anterior-mente, de acordo com o consenso de especialistas. Todavia, muitosaspectos das sociedades humanas nao podem ser explicados segundoo modelo de explicagao da historia-das-ideias. Quern falou primeiroa lingua inglesa e uma pergunta sem sentido. Nem tao-pouco ternsentido perguntar: quern foi o primeiro ingles a conceber a ideia degoverno parlamentar ou, neste caso, do criquete ou do futebol?Estes e muitos outros aspectos da sociedade humana nao podemexplicar-se em termos de ideias de individuos considerados isolada-mente, nem sequer em termos de uma acumulagao dessas ideias.Pelo contrario, exigem uma explicagao em termos de desenvolvi-mento social.

Num outro local, utilizei um exemplo simples para indicar umdos aspectos cruciais da diferenga entre os dois tipos de explica-gao16. Usei um tipo especial de modelo de jogo para mostrar que

6Ver Elias, What is Sociology ?, p. 71 e seguintes.

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um movimento efectuado durante o jogo — digamos, o vigesimomovimento de um jogo de xadrez — nao pode mais explicar-se emtermos dos pianos e das intengoes de um ou de outro jogador. Ainterligagao dos seus pianos e das suas acgoes tern como resultadoum padrao nao intencional e talvez nao previsto por nenhum deles.Contudo, embora nao desejado, esse padrao e o respectivo processodo jogo podem, em retrospectiva, ser claramente reconhecidoscomo algo estruturado. E por essa razao, que sem irmos mais longe,a simples declaragao de que acgoes intencionais podem ter conse-quencias nao intencionais e um pouco mais do que um paliativopara a nossa ignorancia. Imaginem a interligagao de pianos e deacgoes, nao de dois, mas de dois mil ou de dois milhoes de joga-dores interdependentes. O processo de comportamentos que seencontra neste caso nao acontece independentemente dos in-dividuos cujos pianos e acgoes o mantem em movimento. Porem,ele tern uma estrutura e reclama uma explica^ao sui generis. Naopode explicar-se em termos de «ideias» ou de «acgoes» de in-dividuos isolados.

Expressoes como «processo social» ou «desenvolvimento social»sao simplesmente simbolos conceptuais que reflectem o modosingular de existencia deste continuo entrelagar de pianos e deacgoes de seres humanos em grupos. Estes conceitos sao designadospara ajudar na exploragao do unico tipo de estrutura que resultadesta interligagao de acgoes individuals e de experiencias, da inter-dependencia funcional de actores individuals nos seus varios agru-pamentos. O divulgado termo «interacgao» nao presta justiga aoentretecer de experiencias nem tao-pouco as acgoes das pessoas. Eleesta demasiado associado ao modelo de explicagao tradicional queconsidera a sociedade como uma unidade puramente cumulativa deum certo numero de seres humanos encarados individualmente eisolados a partida.

A observagao das condutas num jogo de futebol pode ser umcontribute valioso como introdugao para se compreender tais ter-mos enquanto interligagoes de pianos e de acgoes. Cada equipapode ter planeado a sua estrategia de acordo com o conhecimentoque possui de si propria e das competencias tecnicas e pontos fracosdos seus opositores. Todavia, no decurso do jogo, produzem-se,com frequencia, configurates que nao foram intencionais ou pre-vistas por cada um dos lados. De facto, o modelo dinamico formado

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INTRODU^AO 87

pelos jogadores e bola num jogo de futebol pode servir comoexplicate grafica nao so do conceito de «configuragao social» mas,tambem, do conceito de «processo social». O processo do jogo eexactamente este: uma configuragao dinamica de seres humanoscujas acgoes e experiencias se interligam continuamente, represen-tando um processo social em miniatura. Um dos aspectos maisesclarecedores do modelo profundamente dinamico de um jogo defutebol e o facto de este ser constituido pelos jogadores de ambos oslados, em movimento.

Se concentrarmos a atengao apenas nas actividades dos jogado-res de uma equipa e nao observarmos as actividades de outra, naopodemos seguir o jogo. A observagao das acgoes e das experienciasdos elementos de uma equipa, que se procura observar de maneiraisolada e independente das acgoes e das percepgoes da outra equipa,permanecerao incompreensiveis. No comportamento em jogo, asduas equipas constituem, entre si, uma unica configuragao. Exige--se a capacidade de distanciagao de si proprio em relagao ao jogo,de modo a reconhecer-se que as acgoes de cada lado se interligamconstantemente com as dos seus adversarios e, por esse motivo, eque os dois polos opositores formam uma unica configuragao. Omesmo sucede com os Estados antagonistas. Os processos sociaissao, com frequencia, incontrolaveis porque sao alimentados pelahostilidade. Os partidarios de uma ou de outra facgao podemconfundir, facilmente, esse facto.

No caso de um jogo de futebol, possivelmente, nao e muitodificil reconhecer a interdependent dos adversarios, a interligagaodas suas acgoes e, desse modo, o facto de os grupos rivais consti-tuirem uma unica configura^ao. Talvez, no tempo presente, sejamuito mais dificil reconhecer isto na sociedade em geral, ondeigualmente, numerosos grupos sao totalmente interdependentes ena qual, tambem, as acgoes e sentimentos reciprocos nao podem serreconhecidos se nao compreenderem os oponentes em, causa comouma unica configuragao. A este respeito, talvez o exemplo maiselucidativo seja a corrida aos armamentos entre duas superpoten-cias. E um exemplo de um processo autoperpetuado, o qual naopode ser compreendido se alguem tentar perceber cada um doslados de maneira isolada, isto e, independentemente do outro.Nesta situagao, o equivalente de um processo de jogo, a corrida emauto-escalada aos armamentos, tern, tambem, uma relativa autono-

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mia em relagao aos objectivos e intengoes dos grupos de dirigentesdos dois lados. Cada parte pode acreditar ser um agente livre, masambos sao, de facto, cativos do processo de jogo que, tambem nestecaso, provavelmente, toma um curso que nao era intencional paranenhum dos lados.

A dificuldade reside no envolvimento pessoal forte e profundoa favor de um sector ou de outro, facto que impede a percepgaoquer da configuragao em mudanga constituida pelas duas partescomo da sua dinamica relativamente autonoma que conduz osinimigos interdependentes, encerrados nas suas posigoes, para si-tuagoes que nenhum deles tinha a intengao de seguir. Para percebera configuragao em mudanga dos adversaries interligados numprocesso unitario, e indispensavel um grau de distanciamentobastante elevado. Isso pode perceber-se com maior facilidade naobservagao de um jogo de futebol. Mesmo para os sociologos, nocaso de adversaries politicos, continua a ser muito dificil atingirum distanciamento maior e compreender os dois lados como umprocesso.

Neste contexto, outro exemplo de alguma relevancia e o pro-blema da violencia no futebol. Nao existem diividas de que o jogoendureceu, mas os jogadores, de um modo geral, mantem a praticada violencia dentro de certos limites. As penalizagoes devidas aclara falta de respeito pelas regras sao muito severas, a fim deimpedirem os excesses cometidos atraves de infracgoes de auto-dominio e de agressoes dos jogadores. Mas mesmo o endurecimen-to do jogo nao pode ser explicado se os desafios de futebol profis-sional forem considerados isoladamente. As razoes tern de serencontradas, quase por certo, no nfvel crescente das tensoes queexistem na sociedade em geral. O mesmo se pode dizer dos actosde violencia cometidos, com bastante regularidade, por espectado-res. Procurei demonstrar que o desporto e, em particular, os jogosde competigao realizados por jogadores profissionais perante umpublico amador envolvem um controlado mas agradavel descontro-lo de afectos e de emogoes. A excitagao contida forma uma parteintegrante do prazer do desporto, porem, o que acontece se ascondigoes na sociedade em geral nao dotam todos os sectores comformas de controlo suficientemente fortes de modo a conterem aexcitagao, se as tensoes na sociedade em geral se tornarem taointensas que anulem as formas de controlo individual contra a

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violencia e, de facto, introduzem um jacto de descivilizagao, seinduzern sectores de uma populagao a sentirem a violencia comoalgo agradavel?

Nao e, de modo algum, somente no contexto do desporto quequestoes como estas assumem relevancia. As formas parlamenta-res de governo tambem funcionam razoavelmente bem nas socie-dades onde um autocontrolo estavel e harmonioso constitui parteintegrante dos habitos sociais da maioria da populagao. Se, emdeterminados sectores, a capacidade para a estabilidade do auto-dominio enfraquece, se a consciencia que inibe as pessoas decometerem actos de violencia esta corroida, devido talvez a umciclo em escalada de violencia, tambem o governo parlamentarpode ser corroido. Se a inimizade e o odio de diferentes sectoresda popula^ao aumentam ate um certo nivel, a rota^ao pacificados governos, de acordo com regras estabelecidas, nao pode con-tinuar a funcionar devidamente. Nem semelhante regime parla-mentar pode funcionar facilmente numa sociedade com uma longatradigao autocrat ica, onde o con junto da populagao se habituoua ser constrangido, em grande medida, por formas de controloexternas e nunca dispos de uma oportunidade para desenvolvero seu autoconstrangimento individual que e indispensavel para ofuncionamento regular de um regime multipartidario, no qualo confronto entre partidos e, desse modo, as oportunidades degoverno estao estritamente limitados a utilizagao de estrategiasde nao violencia.

Nesta linha, o inflamar periodico de estrategias violentas nocaso do publico de futebol pode ser considerado, talvez, numcontexto mais alargado, como um sintoma de algum defeito nasociedade em geral, mais do que apenas neste aspecto particular, aqual sente prazer em cometer actos de violencia — um defeito quese aninhou sob esta forma.

A interrogagao sobre as razoes por que alguns grupos de espec-tadores cometem semelhantes actos foi largamente estudada porEric Dunning e pelos seus colegas. Eles contribuiram muito paraa compreensao deste problema. Alguns dos resultados das suasinvestigates podem encontrar-se neste volume. Talvez eu possaacrescentar uma ou outra coisa. As observagoes que pretendo fazerestao relacionadas com uma investigagao realizada por mim ha umcerto tempo, em colaboragao com John Scotson. Chamava-se The

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Established and the Outsiders11. Trata-se de uma investigagao muitorecente sobre as relagoes entre um grupo de familias instaladasdesde ha muito tempo e os habitantes de bairros vizinhos, querevela as atitudes de desprezo da parte das familias dos ocupantesantigos em relagao aos outros habitantes dos bairros e uma fortetendencia para cerrar fileiras contra eles, para os excluir de qual-quer tipo de contacto social com o grupo instalado. Esta situagaoera tanto mais surpreendente na medida em que ambos os gruposde familias eram ingleses e ambos pertenciam a classe operaria.Com excepgao de um grupo relativamente pequeno de familias quevivia nos bairros que pertenciam aquilo que Eric Dunning e os seuscolaboradores chamaram os «mais rudes» das classes de trabalhado-res, nao existiam diferengas visiveis nos respectivos padroes dehigiene ou moralidade. As suas vidas familiares eram menos orde-nadas, as suas casas menos asseadas do que as das outras familiasnos bairros. As suas criangas eram tambem mais «rudes» e contro-ladas com menos facilidade do que todas as outras criangas davizinhanga. Um olhar mais atento sobre este grupo de criangas e deadolescentes revelava as suas dificuldades. Na vizinhanga eramtratados por todos como marginais. Sabiam muito bem que os seuspais tambem eram tratados com desprezo por toda a vizinhanga.Provavelmente, nao deve ser facil para as criangas o desenvolvimen-to de auto-estima solida e alguns sentimentos de orgulho, se elasvirem, dia apos dia, que os seus proprios pais sao considerados compouco aprego por todas as outras pessoas. As proprias criangas eramrecebidas com um olhar frio e repelidas para longe, sempre queapareciam. Deste modo, faziam questao de se mostrar, com especialprazer, nesses lugares onde eram menos desejadas. Preferiam ospatios situados nas ruas onde viviam as familias antigas. Ai reve-lavam-se o mais ruidosamente que podiam e desfrutavam da aten-gao que recebiam quando os vizinhos tentavam livrar-se delas.Foram a um clube de juventude que ai existia e, depois de algumastentativas desordenadas para se distrairem com brinquedos e equi-pamentos, comegaram, tanto quanto podiam, a incomodar e a des-truir tudo o que era possivel.

Neste caso, e bem evidente que uma explicagao em termos de

17Norbert Elias e John L. Scotson, The Established and the Outsiders, Londres,1965.

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«agressividade» destes jovens nao vai muito longe. Porque saoagressivos? A referenda ao desemprego nao nos levaria longe. Oexemplo pode ajudar como indicador de que, em casos semelhantes,explicates em termos de uma causa isolada, ou mesmo de um feixemais completo de causas isoladas, sao inadequados. Em casos comoeste, a explicagao necessita de incluir a situagao humana das pessoasenvolvidas e a sua experiencia desse facto. Na verdade, se nao sefizer referenda a relagao instalados-marginais e ao impacte disso naestrutura da personalidade dos marginais, nao se pode compreendero comportamento agressivo e destrutivo dessas pessoas. Para se sermais claro, uma explicagao em termos de «agressividade» podeparecer a descoberta de um remedio adequado mais do que umaexplicagao em termos de relagao entre instalados-marginais. Masisso acontece pelo facto de se atribuir a um sintoma a aparencia deuma causa.

A maioria dos que se relacionam com a violencia no futebolparece ser proveniente do nivel mais baixo das classes trabalhado-ras. Mas, para compreender a relagao, ha que proceder a tradu^aodo estatuto que possuem para a experiencia das suas vidas. A maiorparte nao so provem de familias consideradas com pouco aprego nasua sociedade mas sao, tambem, encarados sem estima pela maioriados que se situam entre os instalados. O desemprego, sem duvida,tern muito a ver com isso. Mas e a experiencia humana, carac-teristica deste con junto social, que tern de ser sentida e evocada, sepretendemos encontrar a explicagao para a erupgao da violencia.Estes jovens, na sua vida normal, pertencem a um pequeno grupode estatuto mais baixo. Na sua sociedade conservam uma posigaomuito inferior. Sempre que contactam com o mundo instalado,sentem a sua inferioridade. O desprezo da sociedade e provavel-mente agravado porque os mais novos sabem que Ihe pertencem.Sabem que existem outros marginais de origem exterior e de aspec-to estranho. Esses nao interessam; podem ser tratados com despre-zo. Mas eles proprios sentem que sao daqui; sabem que sao ingle-ses, ou escoceses, ou galeses. E, no entanto, sao tratados como sefossem elementos externos. Existe pouca excitagao na sua vidanormal; talvez nao exista nenhum desporto nem entusiasmo para opraticarem. Podem estar sem trabalho, se e que alguma vez otiveram. De um modo geral, a vida e particularmente monotona.Nada de especial acontece. Talvez uma rapariga, talvez um filme.

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Nao existem perspectivas; nao tern objectivos. Deste modo, odesafio de futebol entre equipas locais surge como o maior, o maisexcitante dos acontecimentos numa vida que, de qualquer maneira,e, acima de tudo, vazia. Entao, pode mostrar-se a todo o mundoque se faz parte dele. E pode voltar-se as costas a sociedade que naoo parece notar. E nao parece preocupar-se. Ja no caminho para ojogo, no seu proprio pais ou no estrangeiro, nao se esta mais sozi-nho, nao se esta mais com um pequeno grupo de amigos diarios.Agora sao centenas, ate mesmo milhares, do seu genero. Esta situa-gao da forga a uma pessoa. Na vida quotidiana de uma multidao,cada um passa a ter poder. Na estagao do comboio, no caminhopara o jogo e, ainda mais, no campo de futebol, pode chamar-se aatengao sobre si proprio. Qualquer um pode atrever-se a fazer coisasque nem sequer se atreveria a fazer se estivesse so. E, deste modo,sem saber exactamente o que esta a fazer, mas gozando com a exci-tagao desencadeada, volta as costas ao sistema. Cada um pode vin-gar-se de uma vida vazia e sem esperanga. A vinganga e um motivoforte. Rasgam-se os compartimentos dos comboios; quebram-se me-sas e garrafas nos bares. E, depois, no campo de futebol encontram--se milhares e milhares, muitos mais do que a policia, os represen-tantes da ordem estabelecida. Ou ainda jmelhor, sao estrangeiros.E possivel fazer troga deles. Fazer parte de uma multidao transmitecoragem. Faz com que aqueles que nao tern poder paregam podero-sos. E assim acontece, pessoas que normalmente levam uma vidahumilde e decerto frustrante, voltam-lhe as costas por meio do ridi-culo. Perdem o autodommio que, em geral, limita a excitagao cria-da pelo confronto entre duas equipas de futebol. Procuram a exci-tagao de uma luta real desenvolvida sob condigoes tais que permiteo envolvimento sem que corram grandes riscos. Aqueles que habi-tualmente sao marginais, tornam-se, por um breve e ilusoriomomento, os chefes; os oprimidos destacam-se. De forma resumida,creio que a violencia no futebol, qualquer que possa ser a suaexplicagao, deve ser tambem considerada como uma sindroma, comouma forma de comportamento e de sentimento caracteristica de jo-vens marginais quando podem reunir-se e formar uma grande massa.

Le Bon, no seu estudo bem conhecido, The Crowd*, tomoucomo ponto de partida os tumultos dos Franceses, principalmente,

*Psychologie des Foules na versao francesa original. (N. da T.)

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segundo parece, os da populagao parisiense18. Nesse tempo, osdisturbios provocados pela fome dos mais pobres continuavam aocorrer com grande frequencia. Eles ofendiam e amedrontavamcidadaos respeitaveis e, embora a figura de instalados e marginalsestivesse fora do seu horizonte, permitiram a Le Bon observaralguns aspectos das desordens que ainda se verificam na violenciados espectadores de futebol. Talvez seja interessante reflectir sobreo facto de as desordens internas terem desaparecido completamentenos paises mais desenvolvidos e organizados, enquanto os disturbiosdo futebol persistem. Algumas das injustices que se encontravamna origem do primeiro tipo de violencia, tais como o perigo defome, podem ter desaparecido em grande medida destas sociedadesde abundancia. Outras injustices, nao menos prementes, encontramagora a sua expressao nos disturbios. A falta de pao, que foi maisou menos remediada, e agora seguida pela ausencia de sentido. Apartir das areas cinzentas de marginais que se formam a volta damaior parte das grandes cidades mais desenvolvidas, as pessoas, emespecial os jovens, olham atraves das janelas para o mundo estabe-lecido. Podem ver que e possivel uma vida com mais sentido e maisrealizada do que a sua propria vida. Seja qual for o seu sentidointrinseco, isso possui um significado para eles e sabem, ou talvezapenas possam sentir, que estao privados disso para toda a vida. Eembora por vezes acreditem que Ihes foi feita uma grande injusti-ga, nem sempre e claro saber por quern foi cometida. Por essemotivo, a vinganga e, com frequencia, o seu grito de guerra. Umdia a gota de agua transborda e eles procuram vingar-se sobrealguem.

Estas observances sobre a violencia no futebol chamam a aten-gao, uma vez mais, para uma das principals questoes deste volume,a complementaridade do desporto como ocupagao de lazer dospraticantes ou dos espectadores e as condigoes da vida das pessoasfora do lazer. A complementaridade que se observa entre as viola-goes do controlo da violencia em acontecimentos desportivos e avulgar existencia social dos jovens marginais das classes trabalhado-ras e, a este respeito, nao menos reveladora da complementaridadeque existe entre a excitagao agradavel controlada, proporcionada

18Gustave le Bon, The Crvwdy Nova lorque, I960 (publicado pela primeira ve2em 1895).

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pelas lutas regulamentadas, com firmeza, de um desporto de lazer,e o bem moderado controlo de emogoes que se torna uma segundanatureza, uma caracterfstica quase inevitavel do habito social dosmembros das sociedades mais complexas, em todas as actividadesfora do lazer. Quanto a este aspecto, a genese do desporto naInglaterra do seculo XVIII e altamente reveladora, enquanto partede um impulso muito pronunciado de pacificagao. A restrigao daviolencia na arena polftica que, no caso das classes inglesas maisaltas, muito mais do que na dos seus pares Franceses e alemaes, teveo caracter de uma autopacificagao, uma restrigao imposta nao porum principe e os seus ministros mas pelos membros de uma oligar-quia autogovernada sobre si propria e sobre os outros, teve a suacontrapartida na maior sensibilidade a respeito da violencia, mesmonos divertimentos destas classes. Existe uma boa razao para pensarque estes divertimentos regulamentados com maior rigor, cada vezmais conhecidos no tempo por desportos, comegaram a adquiriruma importancia crescente devido a sua complementaridade face aautopacificagao dessas classes. O lazer desportivo proporcionava--Ihes, e, tanto quanto se pode ver, continua a proporcionar hoje, asolugao para o problema humano de particular significado nassociedades, no quadro de um nfvel elevado de pacificagao, e, porisso, com uma sensibilidade comparativa elevada dos seus membroscontra a violencia e, de facto, contra todos os generos de ferimentosffsicos inflingidos pelos seres humanos uns aos outros. O problemaresolvido pelos divertimentos sobre a forma de desportos consistiaem encontrar a maneira de experimentar a plena alegria de umcombate sem magoar seres humanos, is to e, com um minimo deferimentos ffsicos. Pode bem perguntar-se por que motivo e que aluta, que esta no fulcro de todo o desporto, proporciona umaexcitagao que e sentida como agradavel.

Uma tensao que causa prazer, uma agradavel excitagao queculmina num clfmax deleitante e a libertagao de tensao, e bemconhecida como o trago caracterfstico do acto sexual. Podemos sertentados a considerar a agradavel tensao e a excitagao de uma lutaque culmina em vitoria como um derivativo das forgas naturais emacgao. Isto nao e improvavel, mas talvez nao seja suficiente. Estoumais inclinado a considerar a agradavel excitagao desencadeadanum confronto como a satisfagao de uma necessidade basica, porcerto induzida socialmente de uma necessidade humana em si

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mesma, particularmente se o confronto exige esforgos corporals,como se verifica no caso do desporto. For outras palavras, o queprocure dizer e que a sociedade que nao oferece aos seus membros,e, em especial, aos mais jovens, oportunidades suficientes para aexcitagao agradavel de uma luta que nao exige, mas pode envolver,forga e tecnica corporal pode, indevidamente, arriscar-se a entorpe-cer a vida dos seus membros; pode nao proporcionar correct!voscomplementares suficientes para as tensoes nao excitantes produzi-das pelas rotinas regulares da vida social.

Isto nao e, apresso-me a acrescentar, uma afirmagao filosofica.A importancia dada a luta e a agradavel excitagao que ela origina,que proporciona um complemento imprescindivel as restrigoes davida, igualmente indispensaveis, nao foi uma opgao pessoal. Se eufosse livre de escolher o meu mundo, provavelmente nao teriaescolhido uma humanidade onde as lutas entre seres humanos saoconsideradas excitantes e agradaveis. E nao teria por certo escolhidoapresenta-lo atraves de uma teoria. Teria talvez optado por dizer:evitem a luta. Vamos viver em paz. Mas acontece que, enquantocientista, nao posso apresentar o mundo tal como eu gostaria queele fosse. Nao sou livre de o apresentar de outra maneira para alemdaquela que descobri. E descobri que os seres humanos, tal comoeu os posso observar, para alem da excitagao agradavel do sexo tam-bem necessitam de outras formas de excitamento deleitante, sendoa excitagao da luta uma delas, e que, na nossa sociedade, quando seatingiu um nivel razoavelmente elevado de pacificagao, esse pro-blema foi ate certo ponto resolvido pela provisao de combatesmimeticos, confrontos realizados por meio do jogo num context oque pode originar uma excitagao agradavel, desencadeada pelocombate, com o minimo de ferimentos nos seres humanos. Talcomo a quadratura do cfrculo, e uma tarefa quase impossivel.Apesar disso, foi resolvida sem planeamento, como se fosse poracidente.

Nas ciencias humanas do nosso tempo, toma-se, com frequen-cia, por certeza que os impulses humanos e outros impulsos espon-taneos constituem uma parte da natureza humana, mas que o seucontrolo e uma propriedade socialmente adquirida e, como tal, naofaz parte da natureza humana. De facto, o constrangimento dosimpulsos e frequentemente considerado, nos nossos dias, comooposto a natureza humana, isto e, «antinatural.» Contudo, ne-

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nhum controlo podia ser, decerto, adquirido por meio de aprendi-zagem e integrado na estrutura humana como uma das suas forrnaspermanentes, se a const ituigao natural dos seres humanos naopossuisse, como parte integral, uma disposigao biologica de contro-lo dos impulsos e se os impulsos humanos e outros impulses ele-mentares nao possuissem, pela sua propria natureza, um potencialpara serem contidos, desviados e transformados de variadas manei-ras. De facto, a disposigao natural dos seres humanos no sentido docontrolo dos impulsos tern de considerar-se entre as suas proprie-dades especificas, uma das quais possui uma importancia muitogrande na sobrevivencia. Dado que Ihes faltam formas de controloinstintivas ou inatas, a vida em grupos — a vida social tal como nosa conhecemos — seria impossivel entre seres humanos se estes naopossuissem uma disposigao natural para aprenderem o controlo dosimpulsos e, deste modo, para se civilizarem a si proprios e entre si.Nem, como indiquei, um ser humano poderia sobreviver indivi-dualmente sem uma disposigao natural para controlar, retardar,transformar, em resumo, para padronizar impulsos espontaneossegundo uma grande variedade de maneiras, por meio de impulsosopostos apreendidos. Ninguem poderia adquirir as caracteristicasessenciais de um ser humano se alguem se mantivesse, como umrecem-nascido, totalmente a merce de impulsos. Neste ambito,existe, perante nos, um trabalho de pesquisa a realizar. Porque amobilizagao e a padronizagao do controlo dos impulsos tern sidomal compreendida. O conhecimento destes processos continua noseu estado inicial. No que se refere a este assunto, basta colocar oproblema com clareza. Uma parte integral da constituigao naturaldos seres humanos traduz-se na capacidade de aprender formas decontrolo social. Nos primeiros anos de vida de uma pessoa, aconstituigao natural dos seres humanos remete, de modo evidente,a aprendizagem do controlo de impulsos para um piano bastantefirme.

Alem disso, a constituigao natural dos seres humanos equipou--os com instituigoes especiais de libertagao, e estas disposigoes, que,nao sendo aprendidas, sao unicamente activadas, aqui e agora, porsituagoes sociais especificas ou por processos de aprendizagemsocial, proporcionam alivio do stress provocados pelas tensoes quepodem surgir se as operagoes de controlo lutarem, temporaria oupermanentemente, contra os impulsos, e os impulsos contra os

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controlos. Neste contexto, a descoberta de instituigoes biologicas ede disposigoes planeadas para proporcionarem aiivio e, por vezes,uma sensagao de libertagao das pressoes derivadas do acentuar dastensoes possui um significado particular. A excitagao agradavelmotivada pelo combate simulado de um confronto desportivo e umexemplo elucidative de uma instituigao que utiliza uma formanatural especifica para contra-atacar, e talvez resoiver, as tensoesprovocadas, as quais se desencadeiam em ligagao com o controlodos impulses. Ha uma piada muito conhecida sobre um estrangeiroque, ao ouvir falar de um jogo de futebol, disse: «Porque e que naodao uma bola de couro a cada lado e acabam com isso?» Seja qualfor o combate mimetico, um jogo de futebol ou de basebol, umtorneio de tenis, um desafio de hoquei no gelo, uma corrida debicicleta, um combate de boxe, uma corrida de esqui ou qualqueroutra variedade de confrontos desportivos que abundam no nossomundo, e apesar de todos os excessos e distorgoes, pode observar--se, muitas vezes, o efeito de alivio, a libertagao das tensoes prove-nientes do stress, que e favorecida, em primeiro lugar, pelo espec-taculo da simulagao do combate e, depois, pelo seu climax delibertagao das tensoes, com a vitoria de um ou de outro lado. Nestecaso, a libertagao das tensoes por intermedio da vitoria nao foialcangada por actos de violencia, infligindo sofrimentos fisicos oucausando a morte de outros seres humanos. Creio que a satisfagaode uma necessidade humana atraves do prazer, e, em particular, porintermedio da agradavel excitagao que equilibra o controlo regulardos sentimentos na vida exterior ao lazer, e uma das fungoes basicasque a sociedade humana possui para a sua satisfagao.

O desporto nao e, decerto, a unica forma pela qual a disposigaobiologica de libertagao das tensoes provenientes do excesso de stresspode ser socialmente activada e padronizada. Uma destas disposi-goes humanas naturais mais elementares e universais e a propensaopara o riso. Como o sorriso, o riso e basicamente, uma forma pre--verbal de comunicagao que nao e aprendida e, desse modo, pre-sume-se que, em termos evolutivos, e bastante antigo. E flexivel,is to e, modifica-se atraves da experiencia, embora nao seja, de modoalgum, na mesma medida da instituigao biologica que forma a basenatural da comunicagao verbal. O riso, como uma instituigaobiologica, ainda que seja, sem duvida, derivado de antecedentespre-humanos, e caracteristico da singularidade do ser humano.

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Revela, de modo grafico, o fornecimento, por intermedio de insti-tuigoes biologicas, de formas e de processes de contrabalangar astensoes e cargas do controlo dos impulses.

Pode ser que problemas como os que aqui foram abordados naotenham encontrado a atengao que merecem porque a maioria dosgrupos de especialistas neste campo, biologos e psicologos, terntendencia para considerar, principalmente, como natural nos sereshumanos, as caracteristicas constitucionais que estes partilham comoutros animals19. Em consequencia disso, estao mais ocupados comum conceito de evolugao entendida como um processo linear doque com caracteristicas que, embora sejam o resultado genetico deum desenvolvimento continuo, possuem o caracter de uma ruptura,de novos aspectos para os quais nao se pode encontrar equivalentenos estadios anteriores do processo evolutivo. Tanto as disposigoesbiologicas para o controlo dos impulses, que tern de ser activadaspor meio de aprendizagem, como as disposigoes biologicas tendoem vista a liberta^ao das tensoes e do stress pertencem a esta cate-goria. Ambas sao caracteristicas da factura resultante da evolugaodo nivel humano.

A forma segundo a qual a procura de excitagoes agradaveis,contrabalangando as tensoes e as dificuldades da vida exterior aolazer, encontra expressao em institutes sociais e costumes podevariar muito de sociedade para sociedade. Os combates de vida oude morte entre gladiadores, ou entre animais selvagens e sereshumanos, representaram na sociedade romana um papel com-paravel ao das corridas de cavalos, desafios de futebol ou torneiosde tenis, nas sociedades actuals. Numa perspectiva de tempo breve,pode acontecer que a atengao se fixe apenas no facto de, em algunsdesportos, o modelo de restrigao quanto a violencia se ter reduzido.Faz-nos esquecer que, considerado numa perspectiva de longaduragao, o modelo de restrigao nos divertimentos e hoje muitoelevado. O mesmo se passa quanto a transformagao em termos desublimagao. Ou seja, do nivel de competencia tecnica necessario aum executante professional numa das inumeras ocupagoes de tempode lazer.

E possivel que o aparecimento do profissionalismo no desporto

19Estou consciente do facto de que existem ai excepgoes, entre as quais o ensaiode Julian Huxley The Uniqueness of Man e um exemplo que nao se esquece.

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INTRODU^AO 99

tenha desviado a atengao do desporto de lazer. As actividadesdesportivas realizadas por nao profissionais mostram, inevitavel-mente, um nivel de tecnica inferior ao que e realizado por profis-sionais nessas modalidades. Por outro lado, o desporto realizadocom fins profissionais pode ser desprovido de alegria para aquelesque o praticam; pode estar sujeito ao mesmo tipo de constrangi-mentos que conhecem outras actividades profissionais. E, assim,pode resultar um nivel de perfeigao que dificilmente podera seralcangado por pessoas que se dedicam as actividades desportivas noseu tempo de lazer e apenas por prazer.

E, no entanto, o desporto-lazer, quer a nivel da pratica quer doespectaculo, esta muito divulgado nas sociedades mais abastadas donosso tempo. Comparado com o desporto profissional e de altonivel, pode chamar a atengao como instituigao social. Contudo,como podera suceder com outras ocupagoes de lazer, a sua impor-tancia pode bem aumentar se o tempo de trabalho continuar adecrescer. Deste modo, procurarei esclarecer, de forma breve, quaisas suas fungoes sociais e individuals. Um jogo de tenis, num jardimsuburbano, uma longa corrida de esqui pelo Parsenne a baixo ouum jogo de criquete no relvado da vila, num dia de sol de Verao— qualquer destas praticas desportivas pode ser uma experienciaplena de prazer. Pode ainda ser mais agradavel se a nossa equipaconseguir a vitoria. E, assim, se foi um bom jogo, em si propriobastante agradavel, mesmo em caso de derrota sera um grandeprazer.

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CAP1TULO I

A bmca dia excita^m no lazer

Norbert Elias e Eric

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A excitagao que as pessoas procuram no seu lazer e, em certosaspectos, singular1. Trata-se, em geral, de uma excitagao agradavel.Embora possua algumas caracteristicas basicas em comum com aexcitagao que as pessoas experimentam em situagoes criticas serias,revela qualidades especificas.

Em comparagao com as sociedades menos desenvolvidas, veri-fica-se que nas sociedades industriais mais avangadas sao menos fre-quentes as situates criticas serias que originam comportamentosde excitagao nos individuos. Outro aspecto do mesmo desenvolvi-mento e a progressiva capacidade das pessoas para agirem dessamaneira, em publiox Nesta linha, segundo essas contradigoes,aumentou o controlo social e o autodominio da excitagao exagerada.Nas sociedades industriais mais avan^adas, ainda que esta situagaonao se tenha verificado no quadro das suas relagoes entre si, algu-mas das circunstancias mais elementares de crise da humanidade,como a fome, as inundagoes, as epidemias e a violencia efectuadapor pessoas de condigao social mais elevada ou por estranhos, foramsubmetidas progressivamente a um rigoroso controlo, mais acen-tuado do que havia sucedido no passado. E o mesmo aconteceu comas paixoes. Explosoes incontroladas ou incontrolaveis de forte exci-tagao colectiva tornaram-se menos frequentes. Os individuos que

e a versao revista de uma comunicac,ao («The Quest for Excitement inUnexciting Societies»), que foi proferida, em 1967, na conferencia anual da BritishSociological Association, em Londres, e publicada pela primeira vez em Sport andLeisure, n° 2, 1969.

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agem de forma bastante excitada, sujeitam-se a serem conduzidosa um hospital ou a prisao. A organizagao social do controlo da ex-citagao individual, no sentido de conter excitagoes apaixonadas empiiblico, e ate em privado, tornou-se mais forte e mais efectiva. Acomparagao e significativa. Nas sociedades contemporaneas alta-mente desenvolvidas, os padroes de controlo da excita^ao, tal comoa excitagao de uma maneira geral, podem parecer desequilibradose reduzidos se considerados em si mesmos. A diferenga so se revelacom toda a nitidez quando se utiliza uma medida de comparagaoque os confronta com os padroes de controlo das sociedades numestadio de desenvolvimento anterior.

Estudos comparativos sistematicos mostram que nao so aumen-tou o controlo publico e privado de acgoes fortemente emotivasmas tambem que as situagoes de crise publicas e privadas, com aprogressiva diferenciagao das sociedades, se tornaram mais diferen-ciadas do que era habitual suceder. As crises publicas tornaram-semais impessoais. Nesta sociedade de grande dimensao, muitasdestas situagoes — na sua maioria, de facto, excluidas das guer-ras — e a transformagao, comparativamente rara, das tensoes e con-flitos internos e dos grupos em violencia aberta nao estimulamqualquer excitagao espontanea, embora a organiza^ao cuidadosa e apropaganda possam simula-lo. Nas sociedades industrials avanga-das, as mas colheitas locais deixaram de ser uma catastrofe suscitan-do o desespero da fome e da morte. Nem as colheitas abundantespermitem grandes jubilos. Os seus equivalentes nestas sociedadessao as flutuagoes economicas e as crises que, nas sociedades cada vezmais ricas do nosso tempo, se encontram menos abertas ao despo-letar de excitagoes fortes e espontaneas. As flutuagoes deste tipo,em comparagao com as que ocorrem nas sociedades predominante-mente agrarias, sao mais impessoais. As oscilagoes de sentimento,as tristezas e as alegrias relacionadas com elas sao diferentes. Nestassociedades industrials avangadas, as pessoas podem nao ser indife-rentes face ao desemprego, mas sao menos sensfveis a fome e asprivagoes. Os altos e baixos deste tipo tern o caracter de vagascomparativamente longas, lentas e baixas, de mudangas que severificam a partir de uma atmosfera relativamente equilibrada debem-estar e de prosperidade para uma atmosfera tambem modera-da de abatimento e depressao, quando comparado com as vagascurtas, rapidas e altas de regozijo e de depressao, com transigoes

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relativamente rapidas e siibitas de um extreme ao outro, quepodem observar-se nas sociedades menos diferenciadas e de tonicarural, por exemplo, nos casos de superabundancia e de femes.

Mesmo nas situagoes de grandes crises da vida privada dosindividuos, quando ocorrem erupgoes repentinas de sentimentosfortes, estas escondem-se, de um modo geral, na intimidade docirculo mais mtimo. Rituals socials e cerimonias de casamentos efunerais, por ocasiao do nascimento das criangas ou da entrada namaioridade e situates semelhantes, dificilmente proporcionam jaassinalavel excitagao publica como acontecia nas sociedades maissimples. Enorme medo e profimda alegria, acentuado odio e extre-mo amor, tern de apresentar-se sob outra aparencia. So as criangassaltam e dangam com excitagao, apenas estas nao sao censuradas deimediato como descontroladas ou anormais, se choram e solugampublicamente, em lagrimas desencadeadas pelos seus sofrimentossiibitos, se entram em panico num medo selvagem, ou se cerram ospunhos com firmeza e batem ou mordem o odiado inimigo, numtotal abandono quando se excitam. Ver homens e mulheres adultosagitarem-se em lagrimas e abandonarem-se as suas amargas triste-zas em publico, ou entrarem em panico dominados por um medoselvagem, ou a baterem-se uns aos outros de forma selvagemdebaixo do impacte da sua excitagao violenta, deixou de ser enca-rado como normal. Habitualmente e motivo de embarago paraquern assiste e, com frequencia, motivo de vergonha ou arrependi-mento para aqueles que se permitiram ser dominados pela excita-gao. Para serem considerados normais, espera-se que os adultosvivendo nas nossas sociedades controlem, a tempo, a sua excitagao.Em geral, aprenderam a nao se expor demasiado. Com grandefrequencia ja nao sao capazes de revelar mesmo nada de si proprios.O controlo que exercem sobre si tornou-se, de certo modo, au-tomatico. O controlo — em parte — ja nao se encontra sob o seudommio. Tornou-se um aspecto da estrutura profunda da suapersonalidade.

Nas sociedades industrials avangadas, as actividades de lazerconstituem um enclave para o desencadear, aprovado no quadro

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social, do comportamento moderadamente excitado em publico. Ocaracter e as fungoes especiflcas que o lazer tern nestas sociedadesnao pode compreender-se se nao se esta ciente que, em geral, onivel publico e mesmo privado do controlo emocional se tornouelevado em comparagao com o das sociedades menos diferenciadas.Tanto quanto e possivel afirmar-se, pode encontrar-se certo tipo derestrigoes sociais e individuais em todas as sociedades humanas,mas as restrigoes relativamente fortes e dominadas de forma equi-librada, caracterfstica dos individuos nas sociedades mais diferen-ciadas e complexas, como foi apresentado noutro lugar2, emergiramno decurso de uma transformagao das estruturas sociais e indivi-duais. E sintomatico de um processo de civilizagao bastante longoque permane^am, por sua vez, nunia interdependencia circular como avango da eficacia da organizagao especializada de controlo dassociedades complexas, da organizagao do Estado.

Tanto quanto se ve, as actividades de lazer enquanto area socialde libertagao das restrigoes do nao lazer podem encontrar-se nassociedades em todos os estadios de desenvolvimento. Os festivais aDionisio dos antigos gregos — a excitagao religiosa ou «entusias-mo», como Aristoteles Ihe chamou — e os carnavais das comuni-dades medievais constituem exemplos. Nos primeiros tempos, nu-merosos tipos de actividades religiosas possuiam fungoes analogasas que as actividades de lazer tern hoje — varias actividades delazer do nosso tempo, em particular as de tipo «mimetico», pos-suem fungoes semelhantes aquelas que alguns tipos de actividadesreligiosas tinham nesses tempos. Mas enquanto parecem existirpressoes e restrigoes, assim como areas especiais de lazer para alivioe libertagao das mesmas, em todas as sociedades conhecidas, o seucaracter e o equilibrio global existente entre elas modifica-se aolongo de um processo de civilizagao. No decurso de tal processo,generalizam-se as restri^oes sobre o comportamento dos individuos.Tornam-se mais equilibradas, oscilam menos entre os extremes etornam-se interiorizadas, constituindo uma armadura pessoal, maisou menos automatica, de autocontrolo. Contudo, a analise profundado processo de civilizagao na longa duragao indica que os desenvol-

2Ver Norbert Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978; e State Formation andCivilization, Oxford, 1982.

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CAPfTULO I 105

vimentos sociais registados nessa direcgao produzem movimentosopostos no sentido de um equilfbrio da libertagao das restri^oessociais e individuals, Podem observar-se movimentos opostos deequilfbrio deste tipo em certas areas da vida contemporanea, entreelas, no campo do lazer. Novos desenvolvimentos na musica e noteatro e novas formas de cantar e de dangar sao exemplos disso.Talvez a participa^ao mais activa dos espectadores nos aconteci-mentos desportivos, que se observa mesmo em paises que tradicio-nalmente sao bastante reservados, como a Inglaterra, possa consti-tuir outro exemplo. Representam uma interrupgao moderada nomanto habitual das restrigoes e, em particular, no caso dos jovens,urn alargamento do alcance e da profiindidade da excitagao mani-festa.

Nas sociedades contemporaneas deste tipo, como se pode obser-var, ja nao e a organizagao das actividades religiosas e crengas queproporciona a esfera de acgao para uma equilibrada relaxagao dasrestrigoes. Mas, seja qual for o seu caracter, a excita^ao e a emogaocompensadora, reclamadas em algumas actividades de lazer, nestassociedades — em ligagao com mudangas especificas na sua estru-tura e, em especial, na distribuigao de poder entre diferentesgrupos de idade — sao limitadas igualmente por restrigoes civili-zadoras.

Simultaneamente, a maior tolerancia publica, nos tempos re-centes, quanto a exteriorizagao de manifesta excitagao apenas de-monstra, de uma forma mais pronunciada e directa, a fungao geraldas actividades de lazer, em particular as da categoria especifica deque falamos. Dado que nao existe um termo sociologico precisepara este tipo, chamamos-lhe «mimetico». A maior parte das acti-vidades de lazer, embora nao todas, pertence a esta categoria, dodesporto a musica, da caga e pesca a corrida e pintura, dos jogos deazar ao xadrez, da nata^ao a danga rock e muitas outras. Aqui, comonoutras situagoes, a busca de excitagao, o «entusiasmo» de Aris-toteles, e, nas nossas actividades de lazer complementar relativa-mente ao controlo e restrigao da emotividade manifesta na nossavida ordinaria. Uma nao se pode compreender sem a outra.

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3

A polarizagao que come^a agora a emergir aqui difere de ma-neira consideravel da orientagao dominante, no momento actual,quanto as questoes do lazer — ou seja, a que se situa na discussaodos problemas entre o lazer e o trabalho. Hoje em dia, a nogao deque as actividades de lazer podem ser explicadas como complemen-tares do trabalho parece ser, com frequencia, evidente. Isso rara-mente e considerado problematico; e habitual ser tratado como umponto de partida obvio para a investigate. O divulgado estereotipotradicional, expresso em frases que rapidamente chegam aos labios,tais como «trabalho e lazer», foi elevado, deste modo, sem examecritico, ao estatuto de axioma cientifico. Alem disso, a familiari-dade tende a obscurecer a imprecisao dos dois conceitos de «lazer»e «trabalho». Da forma como o problema se situa no presente, ascaracterfsticas que os distinguem um do outro estao longe de sernitidas. Ambos os conceitos foram distorcidos por uma heranga dejuizos de valor. O trabalho, de acordo com a tradi^ao, classifica-sea um nivel superior, como um dever moral e um fim em si mesmo;o lazer classifica-se a um nivel inferior, como uma forma de pregui-ga e indulgencia. Este, alias, e identificado com frequencia com oprazer, ao qual tambem se atribui uma avaliagao negativa na escalade valores nominal das sociedades industrials. Apesar da recentepreocupagao com os problemas da satisfagao no trabalho, de umamaneira geral, como uma heranga de Adao, este e considerado, porinerencia, a antitese do prazer. O raciocfnio de Kant, segundo oqual o trabalho a partir do momento em que e fonte de deleitedeixa de ser moral, conserva um vago eco na polarizagao contem-poranea do «trabalho» e «lazer», sendo o ultimo dominado peloprazer e o primeiro totalmente desprovido do mesmo. Contudo, nassocieda4es-Estado profimdamente organizadas do nosso tempo,onde a pressao de formas de controlo externo e interno de um tiporelativamente permanente e extensivel a tudo, a satisfagao do lazer— ou a falta desta — pode ser da maior importancia para o bem--estar das pessoas enquanto individuos ou sociedades, mais do quenos permitiria crer o valor relativamente inferior que ate agora seassocia ao lazer. Como se pode ver, a continuidade da tendenciapara considerar as actividades de lazer como um mero acessorio dotrabalho deve-se mais a sobrevivencia de um esquema de valores

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CAPITULO I 107

tradicional do que a qualquer outro exame sistematico dos doisconceitos e das estruturas socials e fungoes das actividades huma-nas a que se referem.

Se comegarmos a examina-los, e facil reconhecer que ate mesmonas discussoes sociologicas os conceitos de «trabalho» e de «lazer»sao, com frequencia, usados de uma forma vaga. As utilizagoesactuais causam dificuldades quando se trata de decidir se os deveresde uma dona de casa, ou, do mesmo modo, os trabalhos de jardi-nagem de um professor, devem ser classificados como trabalho, oua pratica de um jogador de futebol profissidnal ser consideradacomo lazer. Se o trabalho teorico e empirico na sociologia do lazernao esta tab avangado como seria de desejar, isso deve-se, emgrande medida, a heranga destes valores e as ambiguidades concep-tuais que daf resultam.

4

Na polarizagao convencional do trabalho e lazer, o termo«trabalho» refere-se habitualmente a uma unica forma especifica detrabalho — o tipo de trabalho que as pessoas executam como modode ganhar a vida. Nas sociedades mais diferenciadas e urbanizadas,este e um tempo rigidamente regulado e, na maior parte dos casos,um tipo de trabalho altamente especializado. Em paralelo, no seutempo livre, os membros destas sociedades tern em geral de fazeruma boa parte de trabalho sem remunerate. So uma porgao do seutempo livre pode ser votada ao lazer, no sentido de uma ocupagaoescolhida livremente e nao remunerada — escolhida, antes de tudo,porque e agradavel para si mesmo. Nas sociedades como as nossas,cerca de metade do tempo livre dos individuos e, em geral, dedi-cado ao trabalho. Um dos primeiros passos para o estudo maisadequado do lazer nos factos observaveis traduz-se na exigencia deuma distingao mais penetrante e na definigao mais nitida das rela-goes entre o tempo livre e lazer. Tempo livre, de acordo com osactuais usos lingufsticos, e todo o tempo liberto das ocupagoes detrabalho. Nas sociedades como as nossas, so parte dele pode servotado as actividides de lazer. Podem distinguir-se cinco esferasdiferentes no tempo livre das pessoas, as quais se confundem e sesobrepoem de varias maneiras, mas que, todavia, representam cate-

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gorias diferentes de actividades, que, ate certo ponto, levantamproblemas diferentes.

Actividades de tempo livre: dassificagdo prdiminar*

1) Trabalho privado e administra$ao familiar — A esta categoriaperterice a maioria das actividades da familia, incluindo apropria provisao da casa. Todas as ocupagoes maiores ou meno-res, as variadas transacgoes financeiras pessoais, os pianos parao future pertencem a esta categoria. O mesmo se verifica no quediz respeito a orientagao dos proprios filhos, toda a estrategiafamiliar, incluindo as controversias e as inumeras tarefas relacio-nadas com essas questoes. Todas estas actividades exigem apti-does especiais que tern de ser aprendidas. Esta esfera, em con-junto, tende a ocupar mais tempo a medida que o padrao devida se eleva. Com excepgao de alguns problemas, tais como asdespesas com as actividades familiares, a area do trabalho pri-vado e da organizagao familiar continua bastante inexploradaenquanto campo de investigagao. Muitas das actividades rela-cionadas com ele constituem trabalho duro. Muito deste traba-lho tern de ser realizado, quer se goste ou nao. Depois de algumtempo, em maior ou menor dimensao, tende a fazer parte da ro-tina de cada familia. Dificilmente poderemos chamar-lhe lazer.

2) Repouso — A esta categoria de actividades pertence o estarsentado e o estar a fumar ou a tricotar, os devaneios, as futili-dades sobre a casa, o nao fazer nada em particular e, acima detudo, o dormir. Pode considerar-se este grupo de actividades noambito do lazer, mas sao nitidamente distintas de um grandenumero de outras actividades de lazer mencionadas maisadiante como representativas da classe mimetica, tais como odesporto e o teatro.

3) Provimento das necessidades biologicas — Para nao deixar lugar amal-entendidos: todas as necessidades biologicas as quais haque atender, no nosso tempo livre e noutras circunstancias,

3Este e o esbo^o preliminar do qual emergiu, depois de uma serie de exames,a tipologia mais precisa e compreensiva do «espectfo do tempo livre». Ver CapftuloII deste volume.

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estao socialmente padronizados — comer e beber, bem comodefecar, fazer amor, tal como dormir. Estas necessidades reapa-recem: procura-se satisfaze-las, Surgem: exigem satisfa^ao.A satisfagao e agradavel. Estao apaziguadas e eliminadas, paradespertarem de novo, mais tarde, quando o ritmo se repete.Comer, beber e fazer amor irradiam para outras categorias,directa ou indirectamente, em particular para a categoria dasociabilidade. Todas podem estar — e habitualmente assim e— ate certo ponto, submetidas a rotina, mas podem ser, epoderiam ser, de facto, realizadas sem rotina, de tempos atempos, de uma forma mais deliberada do que com frequenciae o caso. Ao mesmo tempo, todas elas tern em comum com acategoria mimetica o seguinte: podem proporcionar um acen-tuado prazer, desde que se seja capaz de obter satisfagao, deuma maneira nao rotineira, como comer fora de casa, a fim deintroduzir-se a mudanga.

4) Sociabilidade — Tambem nao e trabalho, embora possa envolveresforgos consideraveis. Evolui desde uma sociabilidade muitoformal ate uma sociabilidade bastante informal, com numerosasescalas intermedias. A esta categoria pertencem actividades quese relacionam com o trabalho, tais como visitar colegas ou su-periores hierarquicos, sair numa excursao da flrma, assim comooutras que nao estao relacionadas com o trabalho, tais como ira um bar, a um clube, a um restaurante ou a uma festa, falarde futilidades com os vizinhos, estar com outras pessoas semfazer nada de mais, como um fim em si mesmo. As categoriasde sociabilidade como uma forma de passar o seu tempo livre,tanto quanto se pode ver, diferem grandemente nos diferentesestratos da sociedade. Tal como sucede em 1) e 2), esta catego-ria de actividades de tempo livre continua largamente inexplo-rada.

5) A categoria das actividades mimeticas ou jogo4 — Numerosas inves-

4O termo play pode ser aplicado com varios sentidos e o caracter vago comque e usado com frequencia abre o caminho a dificuldades especificas e a equivocos.Embora tenhamos procurado indicar claramente o sentido em que usamos o termo,parece util ter a disposicjio um termo mais especifico para o tipo de actividades detempo livre a que nos referirnos no ponto 5. A escolha do termo «mimetico» tornar--se-a mais clara no decurso do nosso ensaio.

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tigagoes e discussoes acerca das actividades de lazer incidemsobre actividades deste tipo. Essa investigate preocupa-se, emparticular, com esta categoria; ainda que um numero crescentede pesquisas Ihe seja dedicado, as caracteristicas distintivasdesta categoria de actividades nao surgem a nossa compreensao,em nenhuma delas, com muita clareza. Tem-se dedicado muitaatengao a aspectos ou a problemas singulares, relativarnentepequenos para a estrutura basica, para as caracteristicas comunsdesta categoria de actividades. As proprias actividades apresen-tam uma enorme diversidade. A esta categoria pertencem acti-vidades de lazer, tais como a ida ao teatro ou a um concerto, ascorridas ou ao cinema, a caga, a pesca, jogar bridge, fazermontanhismo, apostar, dangar ou ver televisao. As actividadesdeste tipo sao actividades de tempo livre que possuem ocaracter de lazer, quer se tome parte nelas como actor ou comoespectador, desde que nao se participe como se participassenuma ocupagao especializada atraves da qual se ganha a vida;neste caso, deixam de ser actividades de lazer e tornam-se umaforma de trabalho, implicando todas as obrigagoes e restrigoescaracteristicas do trabalho em sociedades do tipo da nossa —mesmo que as actividades como estas possam ser sentidas comosendo muito agradaveis.

Esta tipologia, provisoria como e, pode servir como um pontode partida para numerosas elucidagoes teoricas. Ilustra as insufi-ciencias, quer para fins praticos quer para fins de estudo, de umaconceptualizagao que utiliza o termo «tempo livre» e «lazer» maisou menos como sinonimos. A tipologia mostra, de forma muitonitida, que uma parte consideravel do nosso tempo livre nao sepode identificar com o lazer. So por esta razao, a polarizagao dolazer e do trabalho na sua forma tradicional e inadequada. Sugereque todo o tempo que nao e despendido no trabalho, no sentido deuma ocupagao de trabalho remunerado, ou seja, todo o tempo livre,pode ser dedicado a actividades de lazer.

Como esta classificagao sugere, o trabalho, no sentido de umaprofissao, e apenas uma das esferas que reclamam a subordinagaoregular e equilibrada dos sentimentos pessoais, por mais fortes eapaixonados que possam ser, as necessidades sociais impessoais e atarefas. Em sociedades como as nossas, o manto relativamente

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equilibrado das restrigoes estende-se ate ao campo das actividadesde tempo livre. Com diferengas de grau, a restrigao impregnanumerosas relagoes sociais privadas estabelecidas com pessoas forado proprio circulo familiar. Mesmo ai, a esfera de acgao socialmenteconsentida para o atenuar das restrigoes e relativamente pequena.O controlo social, ate mesmo o controlo do Estado, modera as rela-goes entre marido e mulher, pais e filhos. As explosoes apaixonadas,a total ausencia de controlo dos excitamentos, tornaram-se cada vezmais raras, ate mesmo no seio do proprio circulo familiar. Nascomplexas sociedades industrials com uma elevada diferenciagao defungoes sociais, a correspondencia altamente independente de todasas actividades, tanto publicas como privadas, profissionais e naoprofissionais, exige e produz uma cobertura global das restrigoes.A uniformidade e o rigor do leque de restrigoes podem ser umpouco atenuados na relagao mais intima, mas, comparado com associedades mais simples, o manto perdeu o seu caracter segmentar.Ja nao tern as fendas e aberturas que permitem a indulgencia semrestrigoes que se encontra nas sociedades menos diferenciadas, entreoutras razoes devido as diferengas mais vincadas que existem nopoder e no estatuto dos diferentes estratos sociais; estas diferengaspermitem uma esfera de acgao mais vasta quanto a moderagaoemocional e a ausencia de restrigoes, por exemplo, na conduta deum chefe nas relagoes com os seus escravos ou servidores ou na deum pater familias nas relagoes com a sua mulher e com os seusfilhos. O leque de restrigoes nas sociedades menos desiguais, comoas nossas, estende-se, agora com pequenas diferengas relativas degrau, a todas as relagoes humanas. A estrutura destas sociedadespermite um reduzido campo de acgao, mesmo as pessoas maispoderosas, para explosoes apaixonadas de excitagao espontanea eirreflectida. Ate estas raramente podem abrandar a circunspecgaoe a previsao, que sao concomitantes as restrigoes emocionais,sem colocarem em perigo as suas posigoes na sociedade5. As restri-goes emocionais do trabalho profissional alargam-se a um habitode restrigao inabalavel, incluindo a vida nao profissional daspessoas.

As fungoes especificas do desporto, teatro, corridas, festas e de

5Ver Elias, The Civilizing Process, para urn tratamento mais extenso desteproblema.

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todas as outras actividades e acontecimentos de uma maneira geralassociados ao termo «lazer», em especial de todas as actividadesmimeticas e dos acontecimentos do mesmo genero, tern de ser esta-belecidas relativamente a esta ubiquidade e estabilidade de contro-lo das excitagoes. E com esta polaridade que nos preocupamos aqui.Sob a forma de factos de lazer, em particular os da classe mimetica,a nossa sociedade satisfaz a necessidade de experimentar em publicoa explosao de fortes emogoes — um tipo de excitagao que naoperturba nem coloca em risco a relativa ordem da vida social, comosucede com as excitagoes de tipo serio.

Pode bem acontecer que algumas pessoas assinalem uma notade ironia na descrigao que e feka do nosso tipo de sociedade, comosendo «mon6tonas». O que foi dito pode contribuir pafa precisaro sentido em que o termo e utilizado. Refere-se ao tipo de restri-goes impostas no nosso tipo de sociedade, sob a forma de excitagaoespontanea, elementar e irreflectida, na alegria como na tristeza, noamor como no odio. Os excesses das explosoes fortes e apaixonadasforam amortecidos por restrigoes embutidas conservadas pelo con-trolo social, que, em parte, sao incrustadas de modo tao profundoque nao podem ser abaladas.

Contudo, o termo «excitante» e usado hoje, habitualrnente,num sentido menos especffico e mais figurativo. Poderiam surgirmal-entendidos se nao dissessernos que, neste sentido mais vasto efigurativo, as nossas sociedades estao longe de ser insipidas. Nestaperspectiva, nao seria totalmente injustificado considerar as socie-dades em que vivemos como das mais excitantes no quadro dodesenvolvimento da humanidade. Talvez uma citagao possa contri-buir para ilustrar este outro sentido. E retirada de um artigo deJean-Luc Godard:

Estou particularmente satisfeito por viver.., hoje, no nosso tempo,porque as rnudangas sao enormes. Para um peintre en lettres* isto eprofandamente excitante. Na Europa, e especialmente em Franga,

*Em frances no texto original.

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tudo esta hoje em movimento. Mas e precise estar atento ao que sepassa. A juventude, o desenvolvimento das cidades, das provmcias,da industrializagao — vivemos num tempo extraordinario. Paramim, a representagao da vida rnoderna nao consiste apenas em certasinvengoes ou no desenvolvimento industrial, segundo o modo comoalguns jornais pretendem, ela consiste, sim, na representagao destametamorfose total6.

Este tipo de excitagao pode ser compartilhado por muitos denos. Provavelrnente sera verdade afirmar que, desde a Renascenga,poucas epocas ofereceram uma oportumdade tao grande para expe-riencias com novos pensamentos e formas e para a gradual liberta-gao da imaginagao das grilhetas habituais, Apesar da ameaga deguerra, existern grandes promessas no ar, e isso e excitante.

Mas a excitagao de que falamos neste ensaio e de um generodiferente. E menos reflectida, menos dependente da previsao, doconhecimento e da capacidade para libertar cada um, por poucotempo, das cargas opressivas de sofrimento e perigo que nos ro-deiam. Nos estamos preocupados com a excitagao espontanea eelementar que provavelmente tern sido inimiga da vida ordeira,atraves da historia humana. Numa sociedade em que as inclinagoespara as excitagoes serias e de tipo ameagador diminuiram, a fungaocompensadora da excitagao-jogo aumentou. Com o auxilio destetipo de excitagao, a esfera mimetica oferece uma vez mais a opor-tunidade, por assim dizer, de um novo «desanuviar» no seio da so-ciedade que, pelo contrario, na vida social comuin possui umconteudo uniforme. Quanto a alguns aspectos, sobre os quais maishavera a dizer adiante, a excitagao-jogo difere do outro tipo. E umaexcitagao que procuramos voluntariamente. Para a experimentar,temos muitas vezes que pagar. E, em contraste com o outro tipo,e sempre uma excitagao agradavel sob uma forma que, dentro decertos limites, pode ser desfrutada com a anuencia social e da nossapropria consciencia,

E possivel justificar que a nossa sociedade permite um razoavelcampo de acgao para excitagoes agradaveis de um tipo totalmenterealista, fora da esfera mimetica. E obvio que se pense na excitagao

6Jean-Luc Godard, Le Nouvel Qbservateur? 1966. Ver tarnbem Die Zeit, 10 deMargode 1967.

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inerente as relagoes homem e mulher. Talvez possamos ilustrarmelhor a linha de pensamento que tern sido seguida ate agoraconsiderando este desafio. Na nossa sociedade, a grande excitagaoinerente ao encontro dos sexos foi limitada de uma maneira muitoespecifica. Nesta esfera, tambem, a paixao brutal e a excita^aoconstituem um grande perigo. Neste caso, podemos esquece-lastambem porque entre as formas de controlo desenvolvidas nestassociedades mais complexas, onde a perda de controlos tende a serclassificada quer como aberrante quer como criminosa, um nivelbastante elevado de restrigao tornou-se uma segunda natureza. Adescoberta do outro sexo, a maior e a mais excitante das experien-cias, de acordo com as normas e tradigoes da nossa sociedade, e re-gulamehtada de modo a ser um acontecimento unico na vidapessoal. A maior excitagao possivel socialmente reconhecida, sim-bolizada pelo conceito de amor, e ajustada a ordem da nossa vida,limitando-a, em principio, pelo menos, a uma unica experiencia navida de cada pessoa. Talvez nada ilustre melhor a fungao peculiarda esfera mimetica na nossa sociedade do que a parte importanteque a representagao do amor desempenha em numerosos dos seusprodutos. A necessidade aparentemente interminavel de represen-tagao de historias de amor em filmes, pegas de teatro e novelas, naoe suficientemente explicada pela simples referenda a propensao li-bidinosa das pessoas. O que estas representagoes mimeticas propor-cionam e a renovagao da excitagao especifica associada a primeira,e talvez mais tarde com uma outra, uma grande ligagao de umhomem e de uma mulher, que se encontra inacessivel a muitaspessoas na vida real. Para esclarecermos o nosso problema, e funda-mental proceder a distingao, neste contexto, entre a satisfagao,incluindo a satisfagao sexual, inerente a uma vida de casado dura-doura e bem organizada, e a excita^ao especifica inerente a ligagaode amor unica, que e fresca e nova. Aquilo que inumeras represen-tagoes mimeticas do amor proporcionam e a experiencia ou o revi-ver desta excitagao, atraves de todas as extensoes e conflitos nosentido da satisfagao que e agradavel, quer o resultado final dahistoria seja feliz ou triste. A experiencia mimetica do amor movi-menta e anima emogoes que se podem tornar sem importancia navida quotidiana, mesmo que nao fake satisfagao sexual, no sentidovulgar.

A partir deste exemplo, pode ver-se melhor por que motivo nao

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e suficiente estudar o trabalho professional isolado enquanto polooposto do lazer, ou tentar explicar as caracterfsticas e as fungoes dasactividades de lazer das pessoas fazendo referenda apenas as carac-terfsticas e fungoes do trabalho professional. Nas sociedades relati-vamente bem organizadas como as nossas, a rotina abrange todas asesferas da vida, incluindo as de maior intimidade7. Nao se confinaao trabalho numa fabrica ou num escritorio administrative e deoutras actividades similares. A menos que o organismo seja inter-mitentemente congestionado e agitado por algumas experienciasexcitantes com a ajuda de sentimentos fortes, a rotina global e asrestrigoes, como condigoes de ordem e de seguranga, estao emcondigoes de engendrar uma secura de emogoes, um sentimento demonotonia, do qual a monotonia emocional e apenas um exemplo.Porque nao e na qualidade do trabalho, mas antes na qualidade dossentimentos engendrados nos que o executam, que se avalia ocaracter da monotonia. A estimulagao emocional peculiar e a reno-vagao de energias proporcionada pelas actividades de lazer da cate-goria mimetica, culminando numa tensao agradavel, representamum equivalente mais ou menos institucionalizado face ao poder ea uniformidade das restrigoes emocionais exigidas por todos ostipos de acgoes intencionais dos individuos nas sociedades mais di-ferenciadas e civilizadas. A agradavel excitagao-prazer que as pes-soas procuram nas suas horas de lazer, representa assim, ao mesmotempo, o complemento e a antitese da tendencia habitual perantea banalidade das valencias emocionais que se deparam nas preme-ditadas rotinas «racionais» da vida8; enquanto a estrutura das

7O conceito de «rotina» aqui usado difere, em certos aspectos essenciais, doconceito utilizado por Joffre Dumazedier na sua Toward a Society of Leisure, Novalorque e Londres, 1967, e por Georges Friedmann na sua Industrial Society, Glencoe,Illinois, 1955. Estes autores utilizam o termo para se referirem, principalmente, amaneira como a mecanizagao e a racionalizagao conduzem a monotonia e ao caracterrepetitivo nas tarefas do trabalho que originam sensagoes de aborrecimento naquelesque as realizam. Contudo, tal como aqui e aplicado, o conceito refere-se ao controlosocial e individual dos sentimentos, a rotina que desempenha um papel em todas assituagoes em que as pessoas tern de subordinar, por instantes, sentimentos e impulsesao conjunto de exigencias que se exerceu sobre elas directa ou indirectamente, pelasexpectativas sugeridas aos outros dada a sua posigao social.

8Norbert Elias, «Sociology and Psychiatry», em S. H. Foukles (ed.), Psychiatryin a Changing Society, Londres, 1969. Ver tambem Norbert Elias, What is Sociology?,Londres, 1978.

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proprias organizagoes e das institutes mimeticas representa aantitese e o complemento das rotinas formalmente impessoais e dasinstitutes orientadas para o trabalho, que deixam pouco espa^o asemogoes apaixonadas ou as oscilagoes de disposigaa Como umcomplemento ao mundo prerneditado, as actividades altamente im-pessoais orientadas para o trabalho, as institutes de lazer, quersejam teatros, concertos, corridas ou jogos de criquete, nao sao maisdo que forrnas de representagao de um mundo de fantasia «irreal».A esfera mimetica constitui uma parte distinta e integral da«realidade» social.

Considerando esta polarizagao como ponto de partida, podere-mos ver, com maior clareza, o problema basico que se nos deparamao estudar o lazer. Este resolve-se discorrendo, em ternios gerais, aproposito de duas questdes interdependentes:

1) Quais sao as caracteristicas das necessidades individuais de lazerdesenvolvidas nas sociedades mais complexas e civilizadas donosso tempo?

2) Para a satisfagao destas necessidades, quais sao as caracteristicasdos factos especificos de lazer desenvolvidos nas sociedadesdeste tipo?

No sentido de facilitar um exame mais rigoroso e mais distan-ciado, parece util destacar a necessidade de um tipo particular deexcitagao agradavel e coioca-la no centro da primeira questao. Podedemonstrar-se que esta necessidade se encontra no fulcro da maiorparte das necessidades de diversao. A excitagab e, por assim dizer,o condimento de todas as satisfies proprias dos divertimentos.

Talvez nao seja tab facil compreender os objectives e as impli-ca^oes da segunda questao. Uma das razoes por que parece conve-niente usar um termo especifico para todos os factos de lazer quepodem ser justamente classificados como mimeticos foi o reconhe-cimento de que todos esses factos possuem uma estrutura particularque Ihes perrnite satisfazer as necessidades especfficas de lazer.Parece util pensar, como inerentes as suas estruturas, as carac-

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teristicas que fazem com que as actividades de lazer, como despor-tos, concertos, cinema e televisao, sirvam para prover as necessida-des de satisfagao do lazer. Nao sera presungoso afirmar que, emboraseja habitual falar da estrutura das fabricas ou das familias, aindanao se atingiu o momento em que seja um habito falar de lazer.Uma vez alcangado este ponto, nao sera diffcil verificar que o fulcrodo problema do lazer se encontra na relagao entre a estrutura dasnecessidades caracteristicas do lazer, do nosso tipo de sociedades ea estrutura dos factos designados para a satisfagao dessas necessida-des,

Primeiro, fomos confrontados com este problema nos nossosestudos do futebol. No decurso desses estudos foi impossivel deixarde notar que um grupo particular de dinamicas, um equilibrio detensao especiflco do jogo, em resumo, a estrutura que poderia serorganizada com nitidez, era vivida como imensamente excitante eagradavel, enquanto outro tipo de configuragao, tambem abertapara esclarecer a analise configuracional, era considerado comodesinteressante e decepcionante. Foi neste contexto que nos con-frontamos, pela primeira vez, com o problema que, mutatis mutan-dis, se pode levantar a respeito de todos os factos mimeticos: oproblema que ja formulamos, o da correspondencia que existe entreas necessidades de lazer socialmente elaboradas e a estrutura dosfactos de lazer socialmente instituidos, que sao designados para asatisfagao das mesmas. Nao estamos a sugerir que o motivo e oesclarecimento do problema sejam, por si proprios, suficientes paraindicar uma solugao definitiva. E um problema complexo e algu-mas das dificuldades que se encontram na sua exploragao tern deser determinadas de um modo explicito. Mas, enquanto nao suge-rimos que podemos, ou iremos, apresentar uma solugao completaneste ensaio, aquilo que esperamos e ser capazes de dar algunspassos no sentido da resolugao do problema.

Uma das maiores dificuldades deste tipo de questoes, e prova-velmente uma das razoes por que ate agora se fizeram tao poucosprogresses neste campo, reside no facto de este ser um problemaque ultrapassa as fronteiras de diversas ciencias. E controverso saberse Ihe poderemos chamar um problema interdisciplinar porque naosurge como tal, quando se prossegue uma pesquisa estritamentedentro das fronteiras tradicionais de qualquer uma das cienciashumianas. O problema possui os seus aspectos fisiologico, psi-

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cologico e sociologico. Mas, embora estas distingoes sejam suficien-temente reals em termos dos limites disciplinares actuals, elasandam, com frequencia, associadas a ilusao de que o objecto decada uma destas disciplinas possui uma existencia separada. Emtermos da realidade que defmimos com a finalidade de a explorar,as areas com as quais estas tres especialidades estao envolvidas,ainda que distintas, sao inseparaveis e interdependentes. Todas es-tao relacionadas com seres humanos e estes nao sao constituidos porcompartimentos estanques e independentes. O que foi separado,para efeitos de estudo, deve ser reunido de novo para o mesmo fim.

1) Alguns aspectos fisiologicos da sindroma da excitagao foramestudados por especialistas, tais como Walter B. Cannon e ou-tros9. Estes autores fornecem um quadro das principals mu-dangas somaticas de animais e de seres humanos, quandoconfrontados com uma situagao critica subita. O quadro e su-ficientemente claro para nos permitir sugerir, pelo menosatraves de tentativas, algumas das possibilidades de correspon-dencia entre as estruturas organicas de uma reacgao desencadea-da pela excitagao e as estruturas sociais dos factos que as legi-timam. Mas as pesquisas fisiologicas tem-se concentrado sobretipos de excitagao mais desagradaveis. Os resultados tern sidoresumidos com a ajuda de conceitos como reaches de «emer-gencia» ou de «alarme»10. O quadro fisiologico da excitagao foiestudado quase inteiramente a proposito da fome, do medo, daraiva e, em geral, como uma reacgao especifica ao perigo subito.Parece-nos que sabemos relativamente pouco sobre a sindromada excitagao associada ao prazer. Mas, apesar destas limitagoes,as investigates fisiologicas mostram, como nada mais o pode

9W. B. Cannon, The Wisdom of the Body, Londres, 1947; ver tambem o seu BodilyChanges in Pain, Hunger, Fear and Rage, Nova lorque, 1929- Para leituras suplemen-tares ver M. L. Reymert (ed.), Feelings and Emotions: the Moosehart Symposium, Novalorque, 1950; A. Simon, C. Herbert e R. Strauss, The Physiology of Emotions,Springfield, Illinois, 1961; I. J. Saul, «Physiological Effects of Emotional Tension»,em J. M. Hunt (ed.), Personality and the Behaviour Disorders, Nova lorque, Vol. 1,1954.

10Ver, por exemplo, P. C. Constantinides e N. Carey, «The Alarm Reaction»,em D. K. Candland (ed.), Emotion: Bodily Change, Nova lorque, 1962.

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fazer, a sindroma da excitagao como uma «alteragao de veloci-dade» na massa de espectadores, que nos conceptualizamoscomo excitagao.

2) Tanto quanto se sabe, os aspectos psicologicos da smdroma daexcitagao foram estudados somente em areas proximas do nivelfisiologico, em criangas de idades muito baixas. Existem provasde que a reacgao generalizada de excitagao e uma das primeirasa ocorrer nas criangas com menos de sete anos de idade11.Estudos sobre a excitagao na infancia sugerem que o embalar eoutros movimentos ritmicos estao entre as primeiras manifesta-goes de uma smdroma da excitagao. Estas podem ter um efeitocalmante e podem estar relacionadas com sensagoes agradaveis.Provavelmente, nao sera demasiado rebuscado admitir que umtipo de actividades de lazer agradavel, a excitagao ludica atravesde movimentos ritmicos repetitivos, em algumas formas dedanga, deriva de uma excitagao muito elementar que se podeobservar na infancia.

Para alem disso, os psicologos contribuiram muito poucopara a compreensao destes problemas. Os estudos sistematicosexperimentais sobre o controlo, bem como os estudos dos mo-vimentos opostos no sentido de uma libertagao dos controlos ede todas as questoes da dinamica de equilibrio de tensao,rela-cionadas com movimentos, no sentido de um controlo superior,e os movimentos opostos correspondentes, mantem-se umcampo em aberto. Quanto a esta questao, tivemos de confiar nosnossos proprios recursos.

3) Pode dizer-se mais ou menos o mesmo a respeito do estudosociologico dos factos de lazer. A estrutura destes factos sociaise, particularmente, as qualidades que encontram ressonancia nasatisfagao desencadeada pela representagao de actores e de es-pectadores, atingindo com frequencia o climax, estao em grandeparte inexploradas. Ja nos referimos a tentativa que efectuamospara clarificar este tipo de estruturas a respeito do futebol.

HVer, porexemplo, K. M. B. Bridges, The Social and Emotional Development of thePre-School Child, Londres, 1931.

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7

Para uma melhor compreensao das dificuldades que se deparamno tratamento de problemas que nao se ajustam perfeitamente aoslimites de uma ou outra das especialidades academicas actuals,talvez possa ser util considerarmos a maneira segundo a qualmuitos dos mesmos problemas foram abordados num estadio emque esta divisao do trabalho, este fraccionamento na busca doconhecimento em diferentes especialidades, ainda nao tinha ocorri-do. Num estadio anterior, esses problemas erarn considerados noquadro da matriz global da filosofia. Um dos melhores exemplosdessa abordagem de pre-especializagao deste mesmo problemapode ericontrar-se em Aristoteles. Ainda que isso possa parecerestranho, e talvez um pouco suspeito nesta fase cientifica, o factode ser referida a abordagem aristotelica dos problemas da excitagaodo lazer numa investigagao sociologica, um resumo breve e neces-sariamente apressado das suas hipoteses pode mostrar as vantagensdesta referencia.

De acordo com a estrutura diferente da sociedade grega, oconceito de «lazer» nao possuia exactamente o mesmo sentido donosso. O facto de se poderem ver numa melhor perspectiva aslimitagoes dos nossos proprios conceitos, de certo rnodo estereoti-pados, de lazer e de trabalho constitui uma vantagem acrescidadesta rapida perspectiva, permitindo que sejam confrontados comos conceitos correspondentes de outra sociedade.

Aristoteles dedicou grande atengao ao estudo daquilo quepoderia ter designado por problemas do lazer12. Os tradutores,contudo, tern obscurecido a realidade e o esquema de valores dife-rentes representado pela sua maneira de pensar e de escrever; de ummodo geral, procuram traduzir nao so as nossas palavras para assuas mas, tambem, a nossa maneira de pensar, sem qualquer com-

12Sobre a sua posigao quanto a musica, ver em particular Aristoteles, Pol. VIIe VIII. A respeito das suas perspectivas quanto aos afectos ern geral, ver Pol. I.Catarse (purga.<~ao) psicologica (extatica) e catarse sornatica assemelham-se em algunsaspectos e diferem noutros. Semelhan^as: a expulsao de substancias perturbadorascontribui para restaurar o equillbrio perdido. Diferengas: a catarse extatica produzapenas um restabelecimento temporario e e sempre acompanbada de sensagoesagradaveis.

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preensao clara do caracter dissemelhante da sua experiencia numasociedade distinta. Consideremos as proprias palavras queAristoteles usou para discutir problemas do lazer e trabalho. A pa-lavra grega para designar «lazer» e o antepassado directo da nossapalavra «escola». E schole. O termo podia ainda referir-se as ocupa-goes dos homens de lazer, aquilo com que preenchiam o seu tempode lazer — a conversar, em debates cultos e discussoes, em confe-rencias, ou num grupo ao qual se oferecia as conferencias. Nestaperspectiva, aproximou-se gradualmente do sentido do nosso termo«escola». Mas so se aproximou dele. Porque aprender era e conser-vava-se ainda, em larga medida, um privilegio dos «homens delazer».

Contudo, os membros da classe de lazer grega tinham inumerascoisas para fazer, o que os mantinha afastados da schole, entendidacomo lazer, como a administragao das suas propriedades, osnegocios civicos, a guerra e o servigo militar. Estas e muitas outrasocupagoes preenchiam grande parte do seu tempo, e quando sereferiam a elas usavam o termo proprio para designar trabalho.Nada ilustra melhor a diferenga entre o seu quadro de valores e onosso do que a sua palavra para significar o trabalho de um cava-leiro. So o podiam expressar negativamente, formando uma palavraque significava «nao ter lazer» — ascholia. Sem referencia as pala-vras gregas actuais, nao se podem compreender declaragoes deAristoteles tais como esta: «Trabalhamos para ter lazer», que querdizer simplesmente: trabalhamos com o fim de termos tempo paracoisas melhores e mais significativas.

Apenas se conservam13 fragmentos da teoria de lazer deAristoteles, mas, geralmente, estes sao bastantes esclarecedores.A sua teoria baseia-se no efeito da miisica e da tragedia nas pessoas.Hoje podem ainda verificar-se hesitagoes quanto a explicagao dosefeitos dos factos de lazer como estes, que se situam num pontomuito elevado da nossa escala de valores, em termos modelados apartir dos efeitos de uma purificagao. Aristoteles, para quern difi-cilmente estes efeitos seriam menos importantes, nao teve hesita-goes em faze-lo. De facto, uma das principals diferengas entre a

13A versao que existe da Poetica de Aristoteles e somente um fragmento da obraoriginal.

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abordagem cientifica contemporanea dos problemas humanos e ade Aristoteles, e de varios outros filosofos da Antiguidade, era esta:muitos cientistas contemporaneos das ciencias humanas parecemter olhado com desprezo os paradigmas obsidiantes das ciencias naohumanas, acima de tudo os da fisica. Talvez o fundo do conheci-mento empirico mais seguro, para o qual muitos dos maiorespensadores da Antiguidade olhavam como modelo, tenha sido amedicina. Nao surpreende, porem, que Aristoteles, ao determinaros efeitos da musica e do drama nas pessoas, formulasse a sua in-terpretagao a partir das observagoes factuais dos fisicos. A sua teoriasobre os efeitos da musica e do drama tern, como pega central, oconceito de catarse. Esta palavra derivava do conceito medico utili-zado em liga^ao com o expulsar de substancias nocivas do corpo,com a limpeza do corpo por meio de uma purga. Aristoteles suge-riu que, num sentido figurado, a musica e a tragedia provocavamalgo similar nas pessoas. Possuiam, tambem, um efeito curativodesencadeado nao atraves dos intestinos, mas atraves de «ummovimento da alma» (kinesis tes psyches). Se as pessoas estao dema-siado excitadas ou tensas, a musica excitante podera ajudar aacalma-las. Se estao entorpecidas com o desespero e o desanimo,podem encontrar alivio na estimulagao dos seus sentimentos atravesde musicas melancolicas. A essencia do efeito curativo destes actosmimeticos consiste no facto de a excitagao que produzem, em con-traste com a excitagao de situagoes criticas serias, ser agradavel.Aristoteles usou explicitamente, neste contexto, o termo pharmakon.Ainda podemos ver aquilo que foi talvez suprimido, ou na maiorparte esquecido na tradigao do pensamento europeu, apesar daabsorgao do pensamento de Aristoteles pelas tradigoes da igrejacrista: que o prazer sob uma forma comparativamente moderada,proporcionada pelos factos mimeticos, pode ter um efeito curativo.Sem o elemento hedonista do «entusiasmo», da excitagao produzi-da pela musica e pelo drama, nenhuma catarse e possivel.

Seria importante considerar outros aspectos da teoria deAristoteles sobre os efeitos do lazer nas pessoas. Aquilo que se dissepode ser suficiente para mostrar que neste estadio ainda se podiaanalisar com bastante clareza um problema que e muito mais dificilde observar no estadio de desenvolvimento onde o estudo dos sereshumanos se encontra nitidamente dividido entre numerosas espe-cialidades diferentes, cuja relagao entre si e incerta e onde falta

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qualquer esquema redentor de integragao. Talvez seja util tambem— nurn periodo em que ate mesmo nas teorias cientificas da psi-cologia e da sociologia os problemas do prazer, em geral, e osproblemas de excitagao agradavel, em particular, se chegarem a serabordados, se encontram em condigoes de serem tratados com omaior cuidado — ver como Aristoteles considerou tao seriamenteo efeito restaurador da satisfagao do lazer. Dado o fundo muitomaior do conhecimento factual disponivel hoje em dia, nao sur-preende que possamos avangar. Mas, como ponto de partida, a suaabordagem e sugestiva. E dificil acreditar que seja possivel desen-volver uma adequada teoria do lazer sem prestar atengao aos aspec-tos agradaveis das actividades de lazer.

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Aristoteles propunha na sua tese que o prazer e um ingredientenecessario ao efeito curativo, catartico, das ocupagoes de lazer, quese encontravam em destaque no seu pensamento, sem fazer qual-quer referenda particular a esse facto. Dirigia-se de forma polemicaa outros filosofos gregos, como Platao e os estoicos, que se inclina-vam no sentido de considerarem os sentimentos das pessoas comdesconfianga, senao mesmo com desprezo, mas ele nao teve decombater uma heranga social de tabus. Dentro do contexto de umatradigao como a nossa, as discussoes sobre problemas de prazertendem a ser desequilibradas: a propensao para banir o prazer comotema de conversas serias ou de investigagao corresponde a^tenden-cia para vincar excessivamente a sua relevancia, o que e carac-teristico do esforgo que e necessario fazer quando alguem se aproxi-ma de uma zona de tabus. Pode bem acontecer que seja devido aestas dificuldades para encontrar o equilibrio certo que, mesmohoje, com frequencia, a fungao das actividades de lazer nao econsiderada como significativa, se e que chega a ser mencionada.

No entanto, mesmo na tradigao europeia, nos seculos passados,a tese aristotelica auxiliou, de tempos a tempos, aqueles quecombatiam a tendencia para diminuir ou suprimir as actividadesque favoreciam o prazer, tal como aquelas para se confrontarem soba forma de jogos. Milton e um exemplo. Quando os seus amigospuritanos procuravam suprimir nao so os brilhantes entretenimen-

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tos teatrais, mas ate mesmo a representa^ao de tragedias, ele escre-veu o seguiinte:

«A tragedia, tal como era elaborada antigamente, foi mantida parasempre o mais grave, o mais moralista e o mais util de todos ospoemas; por isso, afirmoti Aristoteles, possuia o poder de despertara piedade e o medo, de pnrifkar o espirito destes e elas paixoes, istoe, no sentido de as moderar e redozir a justa medida com uma especiede prazer, desetieadeado pela leitiira on pelo visao destas paixoes bemimitadas. Nem a natureza pretende, com a sua influencia, faze-lomelhor: por isso, no pensamento da inedicina, as coisas de matiz equalidade melancolica sao usadas contra a melancolia, a tristezacontra a tristeza, sao um sal para modifkar humores.14

O efeito catartico das fortes paixoes despertadas pela represen-tagao e como tal difundido com prazer, por mais desagradaveis eterrfveis que pudessem ser as mesmas paixoes na vida real — oproblema e a tese aristotelicos — era conhecido das pessoas cultasdo tempo de Milton. A sua concordancia com a medicina ho-meopatica continua ainda a fazer com que soem a algo familiar econvincente. Face as tecnicas de investigate muito mais desenvol-vidas do nosso tempo e do fundo de conhecimento muito maior queesta hoje disponfvel, a teoria de Aristoteles pode julgar-se simplese sem subtileza, mas ela fbrnece ao pensamento aspectos do proble-ma do lazer que hoje sao frequentemente esquecidos. Um deles eo de que grande parte dos factos de lazer desperta emogoes queestao relacionadas com aquelas que as pessoas experimentam nou-tras esferas: despertam medo e compaixao ou ciume e odio porsimpatia com os outros, mas de uma rnaneira que nao e serianienteperturbante e perigosa, como e o caso, com frequencia, na vida real.Na esfera mimetica sao, por assim dizer, transpostos numa com-binagao diferente. Perdem o seu ferrao, Confundem-se com «umaespecie de prazer».

O termo «mimetico» refere-se a este aspecto de um tipo defactos e experiencias de lazer. O seu sentido literal e «irnitativo»,mas ja na Antiguidade era usado nuni sentido mais alargado e

14John Milton, prefacio para Samson Agonhtes, Obras Reunidas, Vol. 1, II Parte,Nova lorque, 1931,p. 331.

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figurado. Referia-se a todas as especies de formas artisticas na suarelagao com a «realidade», quer possuissem um caracter de repre-sentagao ou nao.

Contudo, o aspecto mimetko que e uma caracteristica comumde todos os factos de lazer classificados sob esse nome, destacado ouminimizado segundo as avaliagoes correntes, desde as tragedias esinfonias ate ao poquer e a roleta, nao significa que se trate de re-presentagoes de factos da «vida real», mas antes que as ernogoes —os sentimentos desencadeados por elas — estao relacionadas com asque se experimentam em situagpes da «vida real» transpostasapenas e combinadas com uma «especie de prazer». Social e indi-vidualmente, possuem uma fungao e um efeito diferente sobre aspessoas. A comparagao entre a excitagao gerada pelas situagoes da«vida real» e aquela despertada pelos factos de lazer revela, deforma bastante clara, quer as similariedades quer as diferengas. Em-bora a investigagao fisiologica nao se encontre bem esclarecidanestas linhas, existe uma certa razao para pensar que os aspectos fi-siologicos basicos de uma sindroma da excitagao sao os mesmos nosdois casos. Seria interessante e recompensador descobrir quais sao asdiferengas especificas. Psicologica e sociologicamente, a diferen^a emais facil de reconhecer. Na excitagao seria, nao mimetica, aspessoas podem perder o autocontrolo e tornarem-se uma amea^a,tanto para si proprias como para os outros. A excitagao mimeticae, na perspectiva social e individual, desprovida de perigo e podeter um efeito catartico. Mas a ultima forma pode transformar-se naprimeira. Exemplos disso sao as multidoes excitadas do futebol ouos fas da musica pop que se tornarn impossiveis de dominar.13

Deste modo o termo «mimetico» e usado aqui num sentidoespecifico. Pode ser aplicado para se referir, essencialmente, a rela-gao entre os proprios factos mimeticos e certas situagoes crfticasserias as quais parecem assemelhar-se, mas, na verdade, a relagao aque se refere o termo «mimetico», tal como ele e aqui utilizado e,em prirneiro lugar, a relagao entre os sentimentos mimeticos e as

15Nao e possfvel apresentar aqui com rninucia as conduces em que e provavelque isto acontega, ainda que a partir de tais premissas elas possarn ser susceptiveisde analise. Talvez seja suficiente dizer que um dos factores de semelhante metabasiseis allo genos, para uma tal transigao, de uma para outra categoria, e a relativa faltade autonomia de um facto mimetico em relagao aos factos na sociedade em geral.

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situagoes serias especificas da vida. Assim, os conflitos, as vitoriase as derrotas, representadas de forma dramatica e tragica, numaactuagao teatral como A Mulher Troiana de Euripides, podem criar,ou nao, qualquer relagao directa com as situates da vida de umpublico do seculo XX, mas os sentimentos a que apelam podem serimediatos, intensos, espontaneos e, se e que se pode usar estaexpressao, totalmente contemporaneos. Sao eles, os sentimentosmotivados por toda a serie de factos caracteristicos da esfera destenome, que tern, de uma maneira divertida e agradavel, uma seme-Ihanga com os sentimentos experimentados em situagoes criticasserias, mesmo se os proprios sentimentos mimeticos nao se asseme-Iharem, de modo algum, aos factos «reais». O padrao e o caracterdos factos de representa^ao nao sao, certamente, os mesmos, emtodas as sociedades. A forga e o padrao das necessidades emocionaisdiferem de acordo com o estadio que a sociedade atingiu numprocesso de civilizagao. Os factos mimeticos que servem estasnecessidades diferem de acordo com eles. Mas o facto de algunstipos de factos mimeticos, tais como as pegas teatrais ou composi-goes musicais, poderem ser apreciadas em sociedades de tiposmuito diferentes constitui um dos dados que indicam por quemotivo a alusao a imitagao contida no termo «mimetico» seria malentendida, se fosse interpretada de maneira a signiflcar imitagao desituagoes da vida real por meio dos proprios factos mimeticos. Comfrequencia, esta rela^ao e muito tenue, ao mesmo tempo que existeuma relagao muito especial e muito directa entre os sentimentoscom os quais os factos mimeticos estao de acordo e os sentimentosque se encontram em harmonia com situagoes criticas serias.

De facto, nao e so a maneira segundo a qual as pessoas dopassado consideravam o divertimento e o prazer como ingredientesessenciais na ressonancia emocional dos factos que tornam o regres-so as suas reflexoes valioso mas, tambem, a sua compreensao doparadoxo aparente que a ressonancia emocional dos factos de lazerapresenta. Aristoteles refere a capacidade das tragedias de desper-tarem o medo e o sofrimento por simpatia, a compaixao a que daorigem. Santo Agostinho, nas suas Confissoes, ao reprovar a si

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mesmo o facto de haver frequentado teatros e outros divertimentos,interrogava-se sobre a questao muito incisiva de saber porque seriaque assistimos aos divertimentos que estimulam em nos medo, an-siedade, raiva, colera e muitos outros sentimentos que, se pudesse-mos, teriamos evitado na vida real, como a praga.16 A luz de seme-Ihantes reflexoes de epocas passadas, algumas das maneiras depensar do nosso proprio tempo constituem uma leitura impar. Naoe raro, nos nossos dias, encontrar essas explicates dos factos delazer como formas de «recuperagao do trabalho», «descontracgao dafadiga da vida diaria» e, acima de tudo, «libertagao das tensoes».Aqui estao dois exemplos. M. H. e E. S. Neumayer, a esteproposito, afirmaram que os factos de lazer sao:

Actividades que distraem o corpo e o espirito, resultando na recrea-£ao das energias perdidas de cada individuo, atraves da descontrac-C,ao das ocupagoes mais serias da vida. Quando uma pessoa estacansada do trabalho fisico e mental e continua sem vontade dedormir, reage bem a recreagao activa.17

E G. T. W. Patrick afirmava que:

Todos os jogos sao passatempos, mas nem todos os passatempos saojogo. Alguns deles parecem satisfazer meramente uma ansia de

16Santo Agostinho, Conftssoes, III, ii. 2.Rapienbant me spectacula theatrica plena imaginibus misererium mearum et

fomitibus ignis mei. Quid est, quod ibi homo uult dolere cum spectat luctuosa ettragica, quae tamen pati ipse nollet? Et tamen pati uult ex eis dolorem spectator etdolor ipse est voluptus eius. Quid est nisi miserabilis insania? Nam eo magis eismonetur quisque, quo minus a talibus affectibus sanus et, quamquam, cum ipsepatitur, miseria, cum aliis compatitur, misericordia dici solet. Sed qualis tandemmisericordia in rebus fictis et scenicis? Em Latim no original (N. da T.)

A questao aplica-se nao so as tragedias, mas a urn campo mais vasto dedivertimentos. Aos combates de gladiadores e de animais selvagens nos circos dascidades romanas, caracteristicos do nfvel de civilizagao na sociedade romana; aoscombates de boxe, incluindo luta, corridas de automoveis, saltos de esqui ou basebol,bem como a representa^oes teatrais de todo o genero, caracteristicas do nfvel decivilizagao nas sociedades avangadas do seculo XX. Aplica-se, em resume, asactuates mimeticas de todos os tipos e a toda a variedade de emogoes envolvidas.

11 Leisure and Recreation, Nova lorque, 1931, p. 249-

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excitacao. Porque sera que, dado o facto de toda a nossa vidamoderna ser tao excitante, comparada com outras formas de vidaanteriores, no nosso tempo de Iazer procuramos passatempos excitan-tes?.., Felizmente, os psicoiogos resolveram o problema por nos eagora compreendemos bastante bem a psicologia do jogo. Aprende-mos que nao e a excitagao no jogo, mas a liberta^ao de outras formasde actividades mentals que se esgotam na nossa vida diaria de tra-balho mon6tono.18»

Nao so as observagoes dos antigos mas, tambem, quase todasaquelas que caracterizam o nosso proprio tempo acentuam o factode que aquilo que as pessoas procuram nas suas actividades mime-ticas de Iazer nao e o atenuar das tensoes mas, pelo contrario, umtipo especifico de tensao, uma forma de excitagao relacionada, comfrequencia, como notou Santo Agostinho, com o medo, a tristeza eoutras emogoes que procurariamos evitar na vida quotidiana.Podfamos dar uma grande variedade de exemplos, de forma a mos-trar que o aumento das tensoes e um ingrediente essencial em todosos tipos de divertimentos de Iazer integrados na esfera mimetica,mas talvez seja suflciente, para os objectives actuais, apresentar trestipos diferentes de factos mimeticos. Aqui esta a representagao sin-tetica de um poeta, de um modelo de comportamento da multidao,durante uma actuagao dos Beatles:

Os Beatles no Shea Stadium

Sons preliminaresdominam as sessentamil pessoas num unicocorpoululandona margemdo conhecimento

Nervos inquietos esperamacordes exploratorios,a imersao e imediatao climax prolongado

«The Play of a Nation», Scientific Monthly, XIII, 1921, pp. 351-3.

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Raparigas bdquicas derramamfremsim vibrante,ou desmaiam, os bragos caidosPaces distorcidasesgares para crerbatem contra uma veda$aoarranham, soltam,corpos esguios arqueadosbrac^os suplicantes procuram

Este poema descreve muito bem um padrao particular que serepete num grande numero de acontecimentos mimeticos: o per-curso gradual para atingir a tensao e a excitagao, como o poeta diz,um climax prolongado, no caso de uma audiencia de musicapop, dequase delirio, que lentamente entao se resolve a si proprio. Podeencontrar-se um padrao similar em muitas pegas de teatro, umcrescendo gradual de tensoes conduzindo, atraves de um climax, auma forma de tensao-resolugao. Considere-se, como exemplo oresumo da pega de teatro e da reacgao do publico na seguintecritica:

Nao foi uma noite muito confortavel que nos deram... Mas, para osque estavam preparados para isso, foi magniflcamente gratificante. Ocampo de batalha, e claro, era a vida de casado, e a primeira exigenciade uma criagao digna do seu autor era a presen^a de dois actorescapazes de dar mais for^a as representagoes, mais do que as da vida,como Edgar, o marido, e Alice, a mulher, que durante toda a pegadefrontam a ultima e tempestuosa cena de guerra em que estaoenvolvidos nos vinte e cinco anos de casamento. Podia admitir-se,com total conflanga, que Edgar, comandante de um pequeno desta-camento de tropas, numa ilha onde o odio e a frustragao tinhamtodas as oportunidades para se inflamarem e para se transforma-rem em violencia, seria um papel que daria a Sir Laurence Olivierocasiao para afastar todas as dificuldades e oferecer uma representa-gao esmagadora.

Antecipadamente, nao se poderia ter tanta certeza de que a

19David Kerr, «The Beatles at Shea Stadiurn», Twentieh Century, Autumn,1966, p. 48.

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menina Geraldine McEwan seria capaz de desencadear for^a suflcientepara conduzir a sua actuagao de forma conveniente para a inevitavelvitoria de Strindberg da astucia da rnulher sobre o poder do hornern.Contudo, ela consegui-o. Os seus efeitos nao foram diminufdos ouprejudicados pelas explosoes ocasionais de risos na audiencia. Eraobvio que as gargalhadas ocorriam nao por troc,a, mas porque aspessoas necessitavam de alguma libertagao da tensao sentida.20

A libertagao de tensao, referida nesta recensao crftica, e muitomais especifica e possui um caracter de prova superior ao do vagoe mal defmido conceito de libertagao de tensao utilizado, com fre-quencia, como uma hipotese de explicagao para as actividades delazer. A tensao aqui mencionada e a que foi desenvolvida peloproprio facto de lazer. O riso a que se alude possui a fungao de umavalvula de seguranga. Ele impede a tensao mimetica de se tornarexcessiva. No quadro social habitual de um teatro, uma audiencianao se pode abandonar a si mesma, como o publico do Shea Sta-dium. Aparentemente, uma audiencia de teatro e, em geral, maisrefreada. Os movimentos que constituem uma parte integral dasindroma espontanea da excitagao sao limitados com maior rigidezaquilo que, de modo habitual, chamamos o nivel de sensibilidade.Existem diferengas consideraveis, como e evidente, entre diferentesgrupos de idade e categorias diferentes na franqueza com quemost ram a sua tensao e excitagao atraves de movimentos corporais.Existem diferengas em todo o quadro social dos diversos factosmimeticos. Todos oferecem um grande campo de acgao para ainvestigagao sociologica. Mas, acima de tudo, isto e evidente: parauma explicagao de problemas deste tipo, nao e suflciente confiarnas hipoteses em termos de «libertagao das tensoes» ou «recupera-gao do trabalho», as quais podiam ser mais adequadas se a maiorparte das pessoas gastasse o seu tempo livre em actividades carac-teristicas da esfera 2), se apenas desse uma volta, se descontraisseou descansasse.

20Critica de W. A. Darlington, The Dance of Death, de Strindberg, no Teatro OldVic, com Geraldine McEwan e Sir Laurence Olivier, Daily Telegraph, 23 de Fevereirode 1967.

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Tomamos contacto, pela primeira vez, com este problema, aproposito do estudo do futebol. Numa fase posterior, teremos deconsiderar as diferengas entre categorias de factos mimeticos quesituamos mais acima ou mais abaixo na ordem hierarquica que Ihesfor atribuida. Mas, para chegarmos a um estadio de investigagaoem que isso seria possfvel, e necessario, em primeiro lugar, deter-minar com a maior precisao as caracteristicas que todos os factosmimeticos tern em comum. Talvez se veja melhor o problema seacrescentarmos um exemplo de futebol aos que ja foram apresen-tados. As pessoas podem falar em termos diferentes da excitagaoagradavel que procuram em todos os passatempos. Depois de umaactuagao dos Beatles, os jovens podem dizer que «foram postos narua». Depois de uma pega de que gostaram, as pessoas mais velhase serenas podem dizer «fiquei bastante emocionado». Os adeptosde futebol podem dizer que ficaram «arrebatados». Mas, ainda queexistam diferengas que devam ser exploradas, encontra-se semprepresente um forte elemento de excitagao agradavel e, como umingrediente necessario do prazer, um grau de ansiedade e de medo,quer seja uma tensao-excitagao derivada da ida as corridas, especial-mente quando se experimenta uma pequena agitagao ao lado, querseja a mais serena, mas a mais profunda excitagao derivada daaudigao da Nona Sinfonia de Beethoven, quando o coro, cantando«An die Freude» de Schiller, atinge o seu tremendo climax.

Existem grandes variagoes na maneira como a excitagao agra-davel, a deleitante vibragao das emogoes proporcionadas pelas acti-vidades de lazer, se pode expressar e, ate que se estudem com maiordetalhe as ligagoes entre a estrutura das actividades de lazer e daressonancia emocional que provocam em act ores ou espect adores,seria premature avangar explicates, ainda que a titulo experimen-tal, para as variedades de prazer proporcionadas.

Com todas as limitagoes, descobrimos que o estudo do futeboladapta-se muito bem, e talvez melhor do que muitos outros, a umesclarecimento de, pelo menos, alguns dos problemas basicos que seencontram no campo mimetico. Aqui pode estudar-se, de formarigorosa, a complexa correspondencia que existe entre a dinamicado proprio facto mimetico e a dinamica psicologica dos especta-dores.

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Considere-se o seguinte extracto de um dos nossos estudos decaso:

A equipa da casa marcou inesperadamente o primeiro golo. A mul-tidao comprimida, constituida na sua esmagadora maioria por adep-tos da equipa da casa, rejubilava. Ondularam as suas bandeiras ecegarregas de forma excitada e cantararn, alto e triunfalmente, emapoio dos seus favorites. O grupo bastante mais pequeno de adeptosque tinha viajado com a equipa visitante, no principio tambemruidoso e excitado, flcou em silencio, atordoado.

A equipa convidada, considerada na regiao como, de longe, amelhor, nao contra-atacou de imediato. Concentrou-se numa marca-gjio cerrada ao ataque da equipa da casa, de tal modo que o seuavanc, ado-cent ro e, de vez em quando, ate os seus pontas vinhamatras jogar a defesa. Primeiro, algumas vezes e, depois, cada vez mais,os apoiantes da equipa convidada comegaram a cantar em unissono:«Ataca! Ataca!... Ataca! Ataca! Ataca!» Mas os jogadores tinhamevidenternente o seu piano e estavam a espera do seu momento.O coro oposto dos adeptos da casa aceitou o desafio. Cantaram: «N6ssomos os campeoes», trogando da equipa rival e incitando a suapropria equipa.

Durante algum tempo, o jogo oscilava de modo indeciso, paraum lado e para outro. O seu vigor era reduzido. A tensao entre osespectadores que agitavam as bandeiras era igual a do jogo. Aspessoas encolhiam os ombros. Comegavam a flcar descontentes.Falavam sobre o jogo da semana anterior. De repente, a atengaoregressou. A bola foi chutada pelo medio da equipa visitante paralonge da baliza; fora recebida, por um companheiro desmarcado, numespa^o livre. Centrou rapidamente, antes que a equipa da casa opudesse impedir. O avangado-centro tinha a baliza aberta a suafrente. Nao dando nenhuma oportunidade ao guarda-redes, ponta-peou a bola, com forga e precisao, para dentro da rede. Poucos oteriam esperado. Gritos de radiante surpresa chegaram dos apoiantesda equipa visitante, misturados com manifestagoes irritadas do outrolado. Houve ai uma breve troca de palavras nas bancadas, com ironiase agitagao de bandeiras. Tres rapazes excitados correram para felicitaros seus herois e foram perseguidos pela policia. Podiam ouvir-sealguns dos adeptos a praguejar pelo canto da boca. Outros batiamcom as maos na cabega em desespero, blasfemavam de maneiraaudrvel. Um a um, e so faltavam vinte minutos!

Se alguem olhasse para o rosto dos jogadores da equipa da casaquando tomaram de novo as suas posigoes, podia notar que estavam

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series e determinados. O jogo tornou-se mais rapido e agressivo.O avangado-centro da equipa visitante, mais uma vez ao ataque,levou uma canelada dentro da area de grande penalidade, mes-mo quando parecia certo que ia marcar. Soou o apito do arbitro.O medio-direito concentrou-se, o destino do jogo estava aos seus pes.Um silencio caiu sobre a multidao. Falhpu: a bola bateu num postee foi rapidamente afastada para longe pela equipa da casa. Houvesinais de amolecimento e assuada dos seus apoiantes. Entao, surgiuuma grande confusao em frente da baliza da equipa da casa: foidesfeita e langaram a bola para fora, com uma combinagao inteligentede passes e dribles. Agora tomavam a iniciativa. Na multidao, cabe-gas e corpos agitavam-se de um lado para o outro acompanhando omovimento da bola. Ouviram-se alguns gritos daqui e dali, tornan-do-se cada vez mais altos com o aumento do estado de tensao dojogo. A posse da bola alternava e deslocava-se rapidamente de umlimite do campo ate ao outro. A tensao cresceu, tornou-se quase in-suportavel. As pessoas esqueciam-se do lugar onde se encontravam.Eram empurradas e empurravam para tras, eram outra vez empurra-das para tras e para diante, para cima e para baixo das bancadas.Exist ia um confronto no lado esquerdo da baliza da equipa visitante,um centre rapido e um golpe de cabega. De repente, a bola estavana baliza e a alegria, o jubilo dos adeptos da equipa da casa subiunum estrondo enorme que se podia ouvir em metade da cidade, umsinal para todos: «Ganhamos!».

Pode nao ser facil encontrar um consenso nitido a respeito dascaracteristicas dos jogos ou sinfonias que proporcionam um maiorou menor grau de satisfagao ao publico, embora as dificuldades naosejam insuperaveis, mesmo no caso de concertos, apesar da maiorcomplexidade dos problemas. A respeito de jogos-desporto taiscomo o futebol a questao e simples. Se seguirmos o jogo regular-mente pode aprender a ver-se, pelo menos em tragos gerais, quetipo de configuragao de jogo proporciona o prazer Optimo: e umconfronto prolongado no campo de futebol entre duas equipas bempreparadas em tecnica e for^a. Um jogo que uma grande multidaode espectadores segue com excitagao crescente, produzida nao sopelo proprio confronto mas, tambem, pela perfcia demonstradapelos jogadores. Um jogo que oscila de um lado para o outro, noqual as equipas estao tao bem equilibradas entre si que uma e,depois a outra, marcam, e a determinagao de cada uma das equipaspara marcar o golo decisive cresce a medida que o tempo passa.

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A tensao do jogo comunica-se visivelmente aos espectadores. A suatensao, a sua excita^ao crescente comunica-se, em contrapartida,aos jogadores, e assim por diante, ate que a tensao atinge um pontoem que apenas se pode suportar e conter, no limite, sem ficarincontrolada. Se, desta maneira, a excitagao se aproxima do climaxe se entao ai, de repente, a sua equipa marca o golo decisivo, aexcitagao resolve-se deste modo a si mesma na felicidade do triunfoe do jubilo, este e um grande jogo que ha-de ser recordado e sobreo qual cada um falara por muito tempo — um jogo realmenteagradavel.

Existem muitos «matizes» e graus de prazer e de satisfagao queo cognoscenti pode encontrar nestas actividades de lazer. Nem todas,de modo^algum, proporcionam uma satisfagao optima. Um jogomuito excitante pode ser perdido pela sua equipa. Nesse caso, aspessoas continuarao em geral a levar ainda para casa o gosto da suaexcitagao agradavel, mas este divertimento nao sera tao puro comono primeiro caso. Mas um jogo muito bom pode acabar numempate. Nesta situagao, entra-se numa area de controversia. O con-senso — muito elevado nos casos que temos mencionado — parecediminuir logo que se atinge o unico limite da escala que men-cionamos, onde se encontra de novo um vincado nivel de consenso.No futebol, como em todos os outros factos mimeticos, existemsem duvida insucessos. Para uma pesquisa sobre os prazeres dolazer, nao e menos relevante estudar o caracter distintivo dos fra-cassos do que estudar aqueles que proporcionam uma satisfagao. Osjogos que nao satisfazem sao, por exemplo, aqueles em que umaequipa e tao superior a outra que a tensao esta ausente; sabe-se, deantemao, quern vai ganhar. Dificilmente existe ai qualquer surpre-sa e sem ela nao ha excita^ao. As pessoas nao sentem grande prazerem semelhante jogo. Poderiamos dar outros exemplos, mas foramreferidos os essenciais.

Nao seria dificil, pois, situar os factos mimeticos de um tipoparticular ao longo de uma escala. Um dos seus polos pode serrepresentado pelos factos de lazer que proporcionam um prazerOptimo, o outro, por aqueles que, com um nivel elevado de consen-so, sao considerados um fracasso. A maioria dos factos, como eevidente, ficaria situada entre os dois polos, mas uma boa parte dainformagao pode obter-se a partir de uma analise dos dois extremos.Poderia servir-nos, em certa medida, como um estudo-piloto para

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a preparagao de estudos numa escala mais alargada. A investigagaosobre a estrutura dos factos que proporcionam satisfagao maxima eminima contribui por si mesma, em larga medida, para a com-preensao da correspondencia entre a dinamica social de um tipoparticular de facto de lazer como o futebol e a dinamica individualque conduz a uma maior ou menor satisfagao da parte dos partici-pantes individuais. Embora estivessemos aptos para classificar oultimo como psicologico e o primeiro como sociologico, eles exis-tem, na verdade, de modo totalmente inseparavel, para o maior oumenor prazer daqueles que participam num tipo particular de factode lazer, como actores ou como espectadores, e a raison d'etre*da existencia desses factos. Aquilo que fornece o criterio para aestrutura distintiva dos factos de lazer, para distinguir aquelesque sao bem sucedidos e os que sao um fracasso. Uma vez maispode imaginar-se o desenvolvimento dos factos de lazer que, pelasua parte, tornam sensfvel e educam o seu piiblico para uma maiorpercepgao e enriquecimento. Desta forma, as divisoes academicasnao podem impedir o reconhecimento da fntima relagao existenteentre aquilo que, de outra maneira, pode ser separado sob a formade problemas fisiologicos, psicologicos e sociologicos.

Nao seria muito diffcil referir tipos de investigates a respeitodo futebol e de outros desportos que permitiriam atacar o mesmoproblema a partir dos niveis individual e social ao mesmo tempo,desde que se estivesse preparado para utilizar um quadro tecnicomais complicado. Aquilo que foi dito aponta nessa direcgao. Seriaperfeitamente possfvel, por exemplo, pelo menos ao nivel fi-siologico, por meio de medidas efectuadas as variances de pulsagoes,ritmos cardfacos e de respiragao dos espectadores durante um jogode futebol, determinar os aspectos mais elementares de subida edescida das ondas de excitagao assinaladas entre eles. Seria igual-mente possfvel, em particular se forem utilizados filmes, determi-nar as vagas de elevagao e quebra no equilibrio de tensao de umjogo. Podia tentar encontrar-se quais, e de que modos, os aspectosfisiologicos de prazer e de excitagao dos espectadores sao diferentesperante jogos ao nfvel Optimo e aqueles que estao no limite opostoda escala. Nem seria diffcil apontar um con junto de pesquisas, de

*Em Frances no texto original. (N. da T.)

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136 A BUSCA DA EXCITA^AO NO LAZER

forma a aumentar o nosso conhecimento acerca das corresponden-cias entre a dinamica social dos jogos e a dinamica individual e damultidao de espectadores.

Estes exemplos indicam um dos caminhos em que investigatesempiricas, no campo relativamente controlavel do desporto, po-diam servir como modelos para pesquisas sobre outras actividadesde lazer, desde corridas de caes a tragedias, desde artefactos apoesia. De_um modo geral, continuamos num estadio em queJ- — ^_ _^i=l______^^^^ ,— •-—-~>--~^^^^=_«J_«_»-=--———-.——-——_—-^_^_- i, . ^^ »

ideias acerca daquilo que as pessoas devem fazer com o seu^temgpIrvrejDodem ter precedencia relativamente aos estudos sobre o que jjelas fazem de facto. For este motivo, trabalhos anteriores nemsempre se baseiam num conhecimento seguro da natureza e da(estrutura das actividades de lazer existentes tal como elas realmente ||\sao.

11

Do mesmo modo, ninguem pode dizer que possuimos ja umrazoavel conhecimento adequado sobre as necessidades a que res-pondem as actividades de lazer. Tentamos assinalar, a este respei-to, o que nos parece ser o problema central e fizemos uma propostainicial mostrando a direcgao a partir da qual se pode encontrar umaresposta. Mesmo que esta seja insuficiente, parece util como ummeio de colocar o problema numa perspectiva mais clara. Reuni-mos varios exemplos de diferentes tipos mimeticos, indicando comocaracteristica comum nao a libertagao de tensao mas, antes, a pro-dugao de tensoes de um tipo particular, o desenvolvimento de umaagradavel tensao-excitagao, como a pega fundamental de satisfagaono lazer.

Na nossa sociedade, como em muitas outras, faz-se sentir umanecessidade corrente de motivagao de fortes emogoes que apareceme, se encontram satisfagao, desaparecem, para so voltarem a mani-festar-se algum tempo depois. Seja qual for a relagao que estanecessidade possa ter com outras necessidades mais elementarescomo a fome, a sede e o sexo — todos os dados acentuam o factode -que esta representa um fenomeno muito mais complexo, umfenomeno muito menos puramente biologico —, pode bem consi-

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derar-se que o desprezo quanto a atengao dedicada a esta necessi-dade constitui uma das maiores lacunas na abordagem dos proble-mas da saude mental.

Em certa medida, o problema e obscurecido pelo sentido nega-tivo com que o conceito de tensao e utilizado, tanto no discursosociologico como no psicologico. Sublinhamos ja o facto de um jogode futebol constituir, em si mesmo, uma forma de dinamica degrupo com uma determinada produgao de tensao21. Se esta tensao,se o tonus do jogo se torna demasiado fraco, o seu valor enquantofacto de lazer diminui. O jogo nao tera interesse e sera magador. Sea tensao se torna demasiado elevada, pode proporcionar bastanteexcitagao aos espectadores, mas tambem ocasiona, de forma identi-ca, graves riscos para jogadores e espectadores. Passa da esferamimetica para a esfera nao mimetica da crise grave. Ja neste con-texto ha que abandonar-se o sentido negative do conceito conven-cional de tensao e substitui-lo por outro que permita uma tensaooptima normal que pode, no decurso da configuragao dinamica,tornar-se demasiado alta ou demasiado baixa.

Este conceito mais dinamico de tensao aplica-se nao so ao jogode futebol enquanto tal, mas tambem aos participantes. Os in-dividuos tambem podem viver com uma tensao produzida que emais elevada ou mais baixa do que o normal, mas so nao possuemtensao quando morrem. Em sociedades como as nossas, que exigemuma disciplina emocional global e circunspecgao, a serie de senti-mentos agradaveis fortes manifestamente expresses e severamentevedada. Para muitas pessoas nao e apenas na sua vida profissional,mas tambem nas suas vidas privadas, que um dia e igual ao outro.Para muitas delas nunca acontece nada de interessante, nada denovo. A sua tensao, o seu tonus, a sua vitalidade, ou o que quer queseja que se Ihe possa chamar, e, antes do mais, baixo. De umamaneira simples ou complexa, a um nivel baixo ou a nivel elevado,as actividades de lazer proporcionam, por um breve tempo, aerupgao de sentimentos agradaveis fortes que, com frequencia,estao ausentes nas suas rotinas habituais da vida. A sua fungao naoe simplesmente, como muitas vezes se pensa, uma libertagao dastensoes, mas a renovagao dessa medida de tensao, que e um ingre-

21Ver Cap. VI deste volume.

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diente essencial da saiide mental. O caracter essencial do seu efeitocatartico e a restauragao do tonus mental normal atraves de umaperturbagao temporaria e passageira da excitagao agradavel.

O efeito pode nao ser totalmente compreendido a menos que seconsidere o risco muito elevado que as pessoas correm se se permi-tirem ficar excitadas. E a antitese do autodominio, da condutaracional ou razoavel. Aqueles que sao responsaveis pela lei e pelaordem, tal como se pode descobrir se estudarmos o desenvolvimen-to do futebol, lutaram muitas vezes amargamente contra o aumentosubito da excitagao nas pessoas e, em particular, da excitagao colec-tiva, como uma grave perturbagao social. A agradavel excitagao queas pessoas experimentam em relagao a factos mimeticos representa,deste modo, um enclave social onde a excitagao pode ser desfrutadasem as suas perigosas implicates sociais e individuals, a qualmuitas vezes e fruida a par de outras formas de aumentar o prazer.Isto significa que nesta perspectiva, e dentro de certos limites, umaoutra forma perigosa de elevagao siibita de sentimentos fortes podefruir-se se houver a aprovagao dos companheiros. ^ambiguidadepeculiar que circunda a excitagao do lazer pode observar^s^jrutida-mente, no nosso tempo, quando as pessoas oferecem a si proprias,em termos de experiencias, novos horizontes de excitagap. Sem umanitida compreensao da fungao da excitagao mimejtica^as^activida^des de lazer, sera dificil estabelecer as suas implicagoes individualse sociais a partir dos factos,

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CAPITULO II

0 lazer no espectro do tempo livre

Norbert Elias e Eric Dunning

1

O facto de as decisoes humanas se entrelagarem nao e nitido,provavelmente, senao para um filosofo1. Mas a maneira segundo aqual o fazem e diferente no trabalho profissional e nas actividadesde tempo livre das pessoas. Alias, em relagao a estas ultimas, e di-ferente nas actividades que sao ou nao dedicadas ao lazer. Em certosaspectos, todas as actividades de um individuo tern outros in-dividuos como quadro de referenda; noutras, o quadro de referen-da e o proprio agente. No caso das actividades de trabalho, oequilibrio entre estes dois aspectos inclina-se a favor do primeiro,no caso das actividades de lazer, a favor do ultimo. O que significaque, no trabalho profissional, tal como ele esta estruturado nasnossas sociedades, as decisoes das pessoas no sentido de fazerem istoou aquilo sao sempre tomadas, em grande medida, tendo emconsideragao outros de quern se possa dizer «eles», ou jnesmo, arespeito de unidades mais impessoais, das quais se possa dizer«esse», embora, na verdade, o aspecto «eu» nunca se encontreausente por completo2. Nas decisoes sobre actividades de lazer,como veremos, as referencias aos outros sao mais relevantes do quepode parecer a primeira vista, a consideragao por si proprio pode termais peso do que a que tera no caso do trabalho profissional ou no

^oi publicado um extracto desta comunicac.ao na obra de Rolf Abonico eKatarina Pfister-Binz, Sociology of Sport: Theoretical Foundations and Research Methods,Basle, 1972.

2Para um debate sobre os pronomes pessoais como um modelo configuracional,ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, p. 122 e seguintes.

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140 0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE

das actividades de tempo livre que nao possuem o caracter de lazer.Quando se trata da escolha das suas proprias actividades de lazer,a consideragao pelo seu proprio prazer, pela sua propria satisfagao,pode ser soberana dentro de certos limites socialmente estabeleci-dos. Que tipos de satisfagao propprcionam e como as desencadeiamsao as questoes que continuam por esclarecer.

Na actual literatura sociologica, pode notar-se uma tendenciapara considerar o lazer como um rnero acessorio do trabalho3. A sa-tisfagao agradavel, proporcionada pelas actividades de lazer, tendea ser considerada como um meio para atingir um determinado fim— o de perrnitir o alfvio das tensoes e de melhorar as capacidadesdas pessoas para ele. Contudo, se perguntarmos, desde logo, qual ea fungao "do lazer relativamente ao trabalho, a possibilidade deresposta torna-se dificil. SujaliabiLJSJEK^de trabalho o lazer e a unica esfera publica em que as decisoesindividuals podem ser tomadas considerando, antes de tudo, asatisfagao agradavel de cada um constitui ja um passo em frente nosentido do afastamento desse bloqueio. E um avango no sentido dacrftica da abordagem sociologica, tanto teorica como empirica, quee dominante quanto aos problemas do lazer/ Nao pretendemossobrecarregar este ensaio com a elaboragao de semelhante crftica.Parece mais adequado utilizar o espago disponivel para indicar, deuma forma positiva, ate onde se pode chegar se estas limitagoesforem abandonadas. J^rem,_j£lvezj^resump de alguns,

(f l)jO predominio de uma abordagem dos problemas do lazer cen-trado no trabalho garante uma certa consistencia no tratamen-to dos mesmos, mas esta solidez e, em larga medida, devida aum sistema de valores e de crengas aceite vulgarmente e que, noentanto, nao e indiscutivel. Nao seria totalmente injustificadoafirmar que e nisso que reside a consistencia de uma ideologiado lazer: a essencia actual, as coisas boas e validas na vida deuma pessoa, que parecem ser a sua propria essencia, e o trabalho

3Para examples representatives desta bibliografia, ver Stanley Parker, TheFuture of Work and Leisure, Londres, 1971; Joffre Dumazedier, Toward a Society ofLeisure, Nova lorque, 1967; The Sociology of Leisure, Amesterdao, 1974; e AlasdairClayre, Work and Play, Londres, 1974.

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CAPITULO II 141

que um individuo realiza. Durante as horas em que nao preci-sam de trabalhar, as pessoas fazem coisas que sao de menor valorou, por inerencia, sem valor, e a sociedade e tolerante face assuas inclinagoes para os prazeres da ociosidade. No fundamen-tal, diz-se que isto e uma mera forma de atenuar a fadiga e atensao do trabalho. De acordo com esta ideologia do lazer, aprincipal fungao das actividades de lazer e a relaxagao dessastensoes.

Para colocar a questao de uma forma mais extrema, enquan-to proposigao cientifica, este tipo de raciocinio, a ideia de que!as actividades de lazer devem ser consideradas como auxiliaresjjdo trabalho, e uma hipotese que exige verificagao. Actualmente,jjninguem parece ter uma ideia muito clara sobre o tipo de;esforgos do trabalho em relagao ao qual as pessoas procuramlalivio nos seus lazeres, a nao ser que o que se pretende dizer sejaapenas fadiga e que, nesse caso, seria melhor ir para a cama doque ir ao teatro ou a um jogo de futebol. E visto que ninguem [sabe que especie de «fadiga» ou de «tensao» o trabalho produznas pessoas, ninguem sabe, tambem, como e que as nossasactividades de lazer actuam de forma a proporcionar relaxagao. |,Em vez da aceitagao cega das hipoteses convencionais integra-

s das na linguagem de todos os dias e, decerto, muito melhor ;criar um novo ponto de partida e cada um dizer a si proprio: »

i estajum problema^ein^er^^> Ninguem deve aceitar atradicional de que a fungao das actividades de lazer se

destina a permitir que as pessoas trabalhem melhor, nem sequera ideia de que a fungao do lazer e uma fun^ao que so existe naperspectiva do trabalho. De modo equivoco, isto parece umjulgamento de valor representado como uma declaragao defacto.^Existe uma boa dose de evidencia sugerindo que as estru-

idad^^]^ ^

ppr direito proprio, in^terdep^ndejnit^ de_a^i^ naolazer, mas,_dp ponto ^jdite^£injcional^dej^alor_^nao subordinadas a elas.Tantoas actividades de lazer como

^_ Ajjuestao reside no facto de descobrirjuais^sao.2) iProvavelmente, isto e um sintoma 3o mesmo quadro de valores

tradicionais que, apesar da importancia crescente que as activi-

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142 0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE

dades de lazer representam na vida actual das pessoas, terncomo efeito que o lazer continue a ser relativamente despreza-do como area de investigagao sociologica. Uma outra manifes-tagao do sentido negativo desta avaliagao pode ser encontradaem declaragoes que sublinham que o lazer e «irreal», «fantasia»ou, simplesmente, uma «perda de tempo», o que implica queso o trabalho e «real»4. Numerosas teorias actuals da sociedaderevelam o impacte destas hipoteses. Os modelos das relateshumanas integrados nos seus conceitos — em conceitos taiscomo «papel», «estrutura», «fungao», «sistema» e muitosoutros, como vulgarmente se usam — desenvolveram-se, antesde tudo, a partir do tipo de relagoes humanas encontrado naqui-lo que pode chamar «as coisas serias da vida», na vida de naolazer. Raramente assinalam tipos de relates de certo mododiferentes que, como veremos, estao por descobrir em muitasactividades de lazer. Sem a consideragao de diferentes tipos derelagoes, como os que estao por descobrir no lazer e no trabalho,as teorias sociologicas dificilmente podem afirmar que domi-

xs^nam os factos observaveis da vida.n 3) A tendencia para explicar as actividades de lazer em termos dav^ sua fungao, como um meio de proporcionar «relaxagao das

tensoes» ou «recuperagao das fadigas do trabalho», e um indi-cador dessa hipotese largamente divulgada nos textos contem-poraneos da sociologia, traduzindo a ideia de que as tensoesdevem ser avaliadas como algo negativo. Elas nao sao entendi-das a partida como factos para serem investigados, mas, antes,como alguma coisa de que as pessoas se devem «ver livres».Deste modo, as investigates que abordam o lazer, acima detudo, como um modo de libertar as tensoes podem induzir emerro; as avaliagoes dos seus proprios autores tomam o lugar deuma investigagao sobre as fungoes. S^^jensoes^evem ser

, como perturbagoes das quais as

4No que diz respeito a afirmagao de que o desporto e «irreal» ver, por exemplo,Gregory P. Stone, «American Sports: Play and Dis-play», Chicago Review, Vol. 9, n.°3 (Fall, 1955), pp. 83-100, reeditado em E. Larrabee e R. Meyersohn (eds.), MassLeisure, Glencoe, Illinois, 1958; e Eric Dunning (ed.) The Sociology of Sport: a Selectionof Readings, Lon.dres, 1971. Ver tambem Peter Mclntosh, Sport in Society, Londres,1963, pp. 119-20; e Roger Caillois, Man, Play and Games, Londres, 1962, pp. 5-6.

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CAPITULO II 143

proprias pesspas se j^o£urani^^tempo de lazer elas yoltafn^s^empre a progKarjimaJjQt£ns^fica-^ao das tenspes? Em vez de condenar as tensoes como algo queprejudica, nao se deveria antes explorar as necessidades que aspessoas revelam por uma dose de tensao, enfim, como umingrediente normal nas suas vidas? Nao se deveria antes tentardistinguir com maior clareza entre tensoes que sao sentidascomo agradaveis e tensoes que sao sentidas como desagra-daveis? E bastante facil ver que um denominador comum detodos os factos de lazer e o de estimular o aparecimento detensao agradavel. Entao, o que significa dizer que a fungao dolazer e proporcionar relaxagao das tensoes? Esta e uma das ques-toes que exigem demonstra^ao.As pesquisas sociologicas de problemas do lazer tendem a serprejudicadas pela consideravel confusao que existe na utilizagaodos termos. As vezes, por exemplo, nao ha uma clara distin-gao entre «lazer» e «tempo livre» como conceitos sociologicos5.Os dois termos sao utilizados, com frequencia, alternadamente.Os tipos de actividades a que se aplicam variam muito. Naoexiste uma classificagao adequada destes tipos. Sem uma classi-ficagao, como tern sucedido ate agora, continua obscuro o lugardo lazer no tempo livre das pessoas e a relagao entre os nu-merosos tipos de actividades de tempo livre. O «espectro dotempo livre» e uma tentativa de proporcionar uma tal classifi-cagao.As deficiencias que mencionamos tiveram consequencias nopiano e na direcgao do estudo sobre os problemas do lazer.Talvez seja suficiente apresentar dois exemplos:a) Os esforgos das investigates sociologicas tendem a concen-trar-se em certas areas-limite das actividades de lazer. Porexemplo, os meios de comunicagao social sao um tema favoritode investigagao. Teatro, desporto, dangas com caracter social, aida ao bar, concertos, touradas e um vasto campo de outrasactividades de lazer raramente tern sido tratadas como temas

5Dumazedier e alguns outros comegaram a delinear semelhante distingao, mascontinua a ser comum, em escritos de sociologia do trabalho onde o Ia2er e referi-do, a dicotomia incorrecta entre «trabalho-lazer» e a tendencia para usar os termos«tempo livre» e «lazer» alternadamente.

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144 0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE

centrais de investigagao. A concentragao da investigagao natelevisao, radio, jornais e outros meios de comunicagao socialpode dever-se, em parte, a sua importancia como meios desocializagao politica e de controlo social e, tambem, a hipotesede que, enquanto actividades de lazer, preenchem uma fracgaode tempo maior do que outras actividades. Contudo, mesmoque fosse este o caso, sem uma investigagao mais alargada naose pode afirmar que o tempo despendido pelas pessoas num tipoespecifico de actividades de tempo livre e, necessariamente,uma medida do significado que ele tern para estas. Nao eimpossivel que os meios de comunicagao social sirvam, comoformas de preencher o tempo, como outra maneira de «seocupar de futilidades», sendo isso uma das razoes para o aumen-to do tempo que Ihe e dedicado, num periodo em que o tempolivre talvez tenha aumentado mais depressa do que a capacidadedas pessoas para o utilizar;

b) Falta uma teoria central do lazer, capaz de servir comoum quadro comum de investigagao relativamente a todas as es-pecies de problemas especificos do lazer. Podera duvidar-se deque esta se desenvolva, enquanto a investigagao empirica esti-ver largamente confinada a areas muito limitadas das activida-des de lazer. Sobre bases tao delicadas, nao se pode nem deter-minar nem explicar as caracteristicas e as fungoes que todas asactividades de lazer possuem em comum. Nao se pode dizer oque e que distingue as actividades de lazer de todas as outrasactividades humanas. Este estudo tenciona ser um passo nessadirecgao. E um movimento no sentido de uma teoria do lazerunificada. Como veremos, por meio da clarificagao das carac-teristicas comuns das actividades de lazer, tambem e possfvelapresentar de forma mais completa as caracteristicas que distin-guem os diferentes tipos de actividades de lazer entre si.

2

0 espectro do lazer do tempo livre

Observances criticas como estas indicam desde ja que e ne-cessaria uma nova orienta^ao do pensamento antes que seja possi-

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CAPITULO II 145

vel compreender as relagoes e as diferengas entre as variadasactividades de tempo livre, entre as quais se inscrevem as activida-des de lazer. O «espectro do tempo livre», que se encontra naspaginas a seguir, e uma tentativa de tragar um breve esbogo destasrelagoes e diferengas. Propoe-se delinear aquilo que ate agora ternfaltado, nomeadamente, uma ampla tipologia compreensiva e de-talhada das actividades de tempo livre. Mostra, em smtese, que asactividades de lazer sao apenas um tipo entre outras. Ao mesmotempo, indica a relagao entre o lazer e outras actividades de tempolivre. Como pode ver-se, a distingao e bastante obvia: todas asactividades de lazer sao actividades de tempo livre, mas nem todasas de tempo livre sao de lazer. Esta afirmagao, considerada de formaisolada, nao e particularmente reveladora. A sua pertinencia so evisivel no contexto do quadro teorico alargado integrado nestepequeno trabalho. Seria bastante estranho que fosse possivel, semum tal esquema teorico, compreender com clareza o facto de queum grande numero de actividades de tempo livre nao sao dedicadasao lazer. Isso nao permitiria, por assim dizer, que se atingisse o alvoem cheio.

Qualquer classificagao de dados observaveis que seja arbitrariae inutil. Se o quadro de classificagao do espectro do tempo livre naocorresponder aos resultados de outras investigates neste campo,pode ser eliminado mas so no caso de estarmos em condigoes de Iheoferecer, em bases novas, um substitute mais adequado. Tal comoesta, o espectro do tempo livre revela, pelo menos, algumas carac-teristicas estruturais que ligam entre si as varias categorias deactividades de tempo livre e que as distinguem de actividades detempo nao livre do trabalho professional. O quadro teorico de basenele integrado emergira, progressivamente, no decurso deste arti-go. Comegamos a organiza-lo em «A Busca da Excitagao no Lazer»(Capitulo I). No presente capftulo, vamos desenvolve-lo tendo ematengao uma classificagao mais compreensiva do lazer e de outrasactividades. Nao se deve pensar que, para desenvolver este quadrode classificagao, a teoria unificadora que suporta o espectro dotempo livre tenha constituido a priori um ponto de partida. Este soemerge, de forma gradual, em constante fertilizagao cruzada comuma classificagao alargada de observances sobre as actividades detempo livre. Tal como Brisaeus afirmou em relagao a Terra, nainvestiga^ao sociologica o pensamento teorico so conserva a sua

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146 0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE

forga enquanto nao perder o contacto com o terreno firme dosfactos empiricos. >

Chamamos a tipologia que se segue um «espectro» devido a osvarios tipos de actividades de tempo livre, como cores no espectrodas cores, se confundirem entre si; sobrepoem-se e fundem-se comfrequencia. Muitas vezes, combinam caracteristicas de varias cate-gorias. Mas as propriedades de tais amalgamas, de todas as frontei-ras e tipos em transigao, so podem ser compreendidas a partir dassuas proprias caracteristicas. Uma vez que se comece de novo e oproblema se encontre definido, a descoberta de caracteristicas es-truturais comuns em actividades de lazer aparentemente diversas,de tragos que as distinguem como actividades de lazer das activi-dades de nao lazer, nao e particularmente dificil. For exemplo,como um indicador da orientagao do fio teorico que percorre oespectro, pode dizer-se que todas as actividades de lazer integramum controlado descontrolo das restrigoes das emogoes. Como sepode ver, as categorias do espectro do tempo livre consideradascomo um todo podem distinguir-se pelo grau de rotina e de des-truigao da rotina ou, por outras palavras, pelo diferente equilibrioentre os dois aspectos que nele se encontram integrados. A destrui-gao da rotina da-se mais rapidamente nas actividades de lazer mas,mesmo ai, e uma questao de equilibrio. A destruigao da rotina e odescontrolo das restrigoes sobre as emogoes estao bastante relacio-nados entre si. Uma caracteristica decisiva das actividades de lazernao so nas sociedades industriais altamente ordenadas mas, tam-bem, tanto quanto se pode ver, em todos os tipos de sociedades, ea de que o descontrolo das restrigoes sobre as emogoes e controla-do, ele mesmo, social e individualmente.

0 espectro do tempo livre 6

1) Rotinas do tempo livrea) Provisao rotineira das proprias necessidades biologicas e cuidados

6Seria possivel esbogar uma tipologia correspondente de formas de ocupagaofora do tempo livre baseadas no mesmo quadro teorico de referenda e apresentar naoso a diferenga mas, tambem, a continuidade do espectro do trabalho e do espectrodo tempo livre. Num dos limites da escala, situam-se tipos de trabalho quase total-

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com o proprio corpo, por exemplo, comer, beber, descansar, dor-mir, fazer amor, fazer exercicios, lavar-se, tomar banho, resolverquestoes relativas a alimentos e a doengas;b) Governo da casa e rotinas familiares, conservar a casa em or-dem, organizar as rotinas, cuidar das lavagens de roupa, com-prar alimentos e roupas, fazer preparativos para uma festa, re-solver assuntos de impostos, administragao da casa e outras for-mas de trabalho (isto e, nao professional) privado para si proprioe para a sua familia; lidar com tensoes e fadigas familiares;alimentar, educar e cuidar das criangas; tratar dos animais.

2) Actividades intermediarias de tempo que servem, principal -mente, necessidades de formagao e, ou tambem, auto-satisfagaoe autodesenvolvimento.a) Trabalho particular (isto e, nao professional) voluntario para ou-tros, por exemplo, participagao em questoes locais, eleigoes,igreja e actividades de caridade;b) Trabalho particular (isto e, nao professional), antes de tudo, parasi proprio, de uma natureza relativamente seria e com frequencia impes-soal, por exemplo, estudo privado com vista a progresses profls-sionais, passatempos tecnicos sem valor proflssional obvio masque exigem perseveranga, estudo especializado e competencia,tais como construir radios ou ser amador de astronomia;c) Trabalho particular (isto e, nao professional), antes de tudo, parasi proprio, de um tipo mais ligeiro e menos exigente, por exemplo, pas-satempos como fotografia amadora, trabalho em madeira ecolecgao de selos;

mente desprovidos de oportunidades intrmsecas e autonomas de ressonanciaemocional agradavel, embora as pessoas consigam, com frequencia, processos de sedesviarem de rotinas de trabalho, aridas, por inerencia, do ponto de vista emocio-nal, atraves de formas especiflcas heteronimas de agradavel desempenho, porexemplo, as conversas futeis de camaradagem, o importunar recem-chegados, o brioquanto a competencia com que se realizam as rotinas, as vitorias em competigoes elutas. No outro limite da escala, situam-se tipos de trabalho proflssional comoportunidades intrmsecas de comunicativa ressonancia emocional, como no caso doensino ou da investiga^ao numa universidade, da participagao em confrontos par-lamentares, de dirigir ou de tocar numa orquestra proflssional, de praticar um des-porto ou actuar sobre o pako como um proflssional, de escrever romances e outrasformas de satisfazer, do ponto de vista proflssional, as necessidades de lazer dos

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148 0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE

d) Actividades religiosas\e) Actividades de formagao de cardcter man voluntdrio, socialmentemenos controlado e com frequencia de cardcter acidental^ ordenadas apartir de formas de conhecimento mais serias, menos divertidas,para formas menos serias e mais interessantes^ de adquirir con-hecimento, com muitas tonalidades interrnedias, tais como aleitura de jornais e de periodicos, audigao de debates politicos,assistencia a conferencias de educagao de adultos, visao de pro-gramas de televisao inforrnativos.

3) Actividades de lazera) Actividades pura ou simplesmente, sociaveis:(i) Participar como convidado em reunioes mais formais, comocasamentos, funerais ou banquetes; ser convidado para jantarem casa de um superior;(ii) Participar em lazer-gemeinschaften* relativamente informal,com um nfvel emocional manifesto e amigavel consideravel-mente acima de outras actividades de tempo livre e de traba-Iho, por exemplo, reunioes no bar ou em festas, encontrosfamiliares, comunidades de conversa banal;b) Actividades de jogo ou « mimeticas »:i) Participar em actividades mimeticas (relativamente) de ele-vado nfvel organizativo, como um membro da organizagao, porexemplo, um teatro amador, clube de criquete, clube de fute-bol. Em tais casos, chega-se ao fulcro das actividades mimeticasde destrui^ao da rotina e de descontrolo e de experiencias,atraves de uma concha de rotinas e de formas de controlo aceitese partilhadas voluntariamente. Nesta categoria, a maior partedas actividades mimeticas envolve um grau de destruigao darotina e de alivio das restrigoes, por meio de movimento docorpo, isto e, por meio da mobilidade corporal;(ii) Participar como espectador em actividades mimeticas bas-tante organizadas sem fazer parte da propria organizagao, compouca ou nenhuma participagao nas suas rotinas e, de acordocom isso, com a destruigao relativamente diminuta da rotina,atraves de movimento, por exemplo, ver fiitebol ou ir a um

*«Lazer-comunitario» (N. da T.)

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iii) participar como actor em actividades mimeticas menos or-ganizadas, por exemplo, danga e montanhismo;c) Miscelanea de actividades de lazer menos especializadas, com o ca-rdeter vincado de agraddvel destruigao da rotina e com frequencia mul-tifuncional, por exemplo, viajar nos feriados, comer fora para va-riar, relagoes de amor destruindo a rotina, cuidados nao rotinei-ros com o corpo, tais como banhos de sol, dar um passeio a pe.

O espectro do tempo livre e um quadro de classificagao queindica os principais tipos de actividades de tempo livre nas nossassociedades. Com o seu auxflio, podem observar-se rapidarnentefactos que estao, com frequencia, obscurecidos pela tendencia paraequacionar o tempo livre enquanto actividades de lazer: algumasactividades de tempo livre tern o caracter de trabalho, ainda queconstituam um tipo que se pode distinguir do trabalho profissio-nal; algumas das actividades de tempo livre, mas de modo algumtodas, sao voluntarias; nem todas sao agradaveis e algumas saoaltamente rotineiras. As caracteristicas especiais das actividades delazer so podem ser compreendidas se forem consideradas, naoapenas em relagao ao trabalho profissional mas, tambem, em rela-gao as varias actividades de nao lazer, no quadro de tempo livre.Desta maneira, o espectro do tempo livre contribui para dar maiorprecisao ao problema do lazer.

O campo de exploragao aberto pelo espectro do tempo livre efrancamente extenso. Como se podexver, para ele e fundamental ograu da rotina caracteristico das suas varias ligagoes. Entendemos«rotinas» como sendo canais correntes de acgao reforgada por inter-dependencia com outros, e impondo ao individuo um grau bastanteelevado de regularidade, estabilidade e controlo emocional naconduta, e que bloqueiam outras linhas de acgao, mesmo que estascorrespondam melhor a disposigao, aos sentimentos, as necessidadesemocionais do momento. O grau de rotina pode variar. Em geral,o trabalho profissional e muito rotineiro e, deste modo, numerosasactividades de tempo livre sao classificadas em 1, sendo um poucomenos aquelas que se classificam em 2 e ainda menos as que seclassificam em 3.

Algumas das outras actividades de tempo livre, como se podever, transformam-se em actividades de lazer. Com o decorrer dotempo nao poderemos deixar de Ihes prestar atengao. Contudo,

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dado que so se pode avangar gradualmente, um numero consi-deravel de problemas levantado pelo espectro do tempo livre naopode ser aqui resolvido.

As caracteristicas distintivas que se encontram no fulcro dasactividades de lazer ja foram mencionadas. Numa sociedade em quea maior parte das actividades estao submetidas a rotina, em ligagaocom uma interdependencia forgada de grande numero de pessoas,e com os tipos correspondentes de objectivos pessoais e impessoaisque reclamam uma elevada subordinate as necessidades emocio-nais imediatas, em relagao aos outros ou a um trabalho impessoal,as actividades de lazer proporcionam — dentro de certos limites —oportunidades para experiencias emocionais que estao excluidas dossectores altamente rotineiros da vida das pessoas. As actividades delazer sao uma categoria de actividades em que a restrigao rotineirade emogoes pode, ate certo ponto, ser publicamente reduzida e comaprovagao social, mais do que qualquer outra. Neste caso, umindividuo pode encontrar oportunidades para um intenso despertarde agradaveis emogoes de nivel medio sem perigo para si proprio,quer se trate de um individuo de sexo masculino ou feminino, esem perigo ou risco persistente para outros, visto que noutras es-feras das actividades da vida, acompanhadas por sentimentos fortese intensos, tao pouco comprometem o individuo para alem domomento do intenso despertar ou o levam a incorrer em gravesperigos e riscos — se nao estao todos bloqueados pela subordinaterotineira dos sentimentos pessoais imediatos e objectivos exterioresa si proprio. Nas actividades de lazer, a consideragao de si proprioe, em especial, da sua satisfagao sob uma forma mais ou menospublica e, ao mesmo tempo, socialmente aprovada, pode ter prio-ridade sobre todas as outras.

O grau de compulsao social, no sentido da participagao, tam-bem e marcadamente mais baixo e a serie de escolhas voluntariasindividuais e, por correspondencia, mais elevada nas actividades delazer do que noutras actividades de tempo livre, em particular asde tipo 1, para nao mencionar as actividades profissionais. Atravesde todo o espectro situa-se um piano inclinado de maior ou menordecrescimo de constrangimento social — com numerosas varieda-des e matizes entre estes tipos de compulsao e de vontade indivi-dual — em relagao as actividades de lazer no limite inferior. Talcomo ficou aqui entendido, as ocupagoes de lazer oferecem um

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campo de acgao mais vasto para um divertimento individual inten-so e relativamente espontaneo de curta duragao do que qualqueroutro tipo de actividades publicas. Representam uma esfera de vidaque oferece mais oportunidades as pessoas de experimentarem umaagradavel estimulagao das emogoes, uma divertida excitagao quepode ser experimentada em publico, partilhada com outros e des-frutada com aprovagao social e boa consciencia. O despertar deemogoes agradaveis nas actividades de lazer esta, em muitos casos,relacionado com tipos especificos de tensao aprazivel, com formasde excita^ao agradavel que sao especificas desta esfera da vida,embora se pudesse esperar que estivessem geneticamente relaciona-das com outros tipos de excitagao. Como veremos, a excita^ao nolazer implica o risco de se transformar a si mesma nos outros tipos.O risco — indo ate ao limite — e essencial para inumeras activi-dades de lazer. Com frequencia, constitui parte integrante doprazer. De que modo e por que motivos e que as institutes efactos de lazer oferecem oportunidades para este tipo de experien-cias e uma questao que exige estudo. Mas pode ja dizer-se que estafungao e um aspecto-chave da maioria senao de todas essas expe-riencias. No con junto das actividades de lazer, todas integram umtipo peculiar de risco. Sao capazes de desafiar a rigorosa ordem davida rotineira das pessoas sem colocar em perigo os meios de sub-sistencia ou o seu estatuto. Permitem as pessoas tornar mais faceisou ridicularizar as normas da sua vida de nao lazer, e todos o fazemsem ofender a consciencia ou a sociedade. Envolvem «brincar comas normas» como um «brincar com o fogo». Por vezes, vao longede mais. A renovagao emocional proporcionada por este acto debrincar com as normas merece um exame mais profundo, quer parao seu proprio conhecimento quer para o beneficio do que, a partirdela, podemos aprender sobre nos proprios.

E facil verificar que as instrugoes e factos de lazer se estruturama fim de proporcionar uma excitagao agradavel ou, pelo menos, umagradavel estimulo das emogoes, em combinagao com um graurelativamente elevado de escolha individual. A questao e a se-guinte: como e que eles actuam no sentido de propiciar este tipo

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de experiencia e porque e que oferecem uma forma de recuperagaoemocional especifica? Porque e que a necessidade deste tipo derenovagao esta tao disseminada e, pelo menos, no nosso tipo desociedade, porque e tao premente que as pessoas gas tern tan todinheiro em busca dela? E que correspondencia existe entre aestrutura das institutes e dos factos de lazer e a estrutura dosseres humanos, das pessoas que procuram estas satisfagoes es-pecificas atraves da participagao neles?

De modo a responder a estas questoes de uma maneira geral,sera util analisar, por momentos, algumas hipoteses mais alargadas,que sao bastante comuns nas teorias sociologicas contemporaneas,antes de as considerarmos de uma forma mais detalhada, com oauxilio de alguns tipos especificos de actividades de lazer. Nao sepode esperar que seja possfvel examinar este tipo de questao semproceder a consideragao critica destas hipoteses. Eis aqui uma dasareas em que se torna visfvel o apoio da sociologia do lazer aosproblemas gerais da teoria sociologica e, num sentido mais vasto,a propria imagem dos seres humanos.

O exame que se torna necessario pode ser realizado, da melhormaneira, em dois passos. O primeiro consiste na reflexao sobrealgumas das teorias sociologicas, traduzidas, com frequencia, pelautilizagao actual de conceitos tais como «normas» e «valores». Deacordo com esta ideia, verifica-se a tendencia para pensar e falar,por exemplo, como se os seres humanos que formam a sociedade seregessem, em todas as suas actividades, por um unico con junto denormas7. E facil ver que, de facto, as pessoas em sociedade seguem,frequentemente, normas diferentes em esferas distintas das suasvidas. As normas, por outras palavras, sao, ate certo ponto, a «es-fera-limite»: determinada conduta, que pode ser normal numa es-fera, pode ser um desvio noutra. Se o lazer for considerado comouma esfera e o nao lazer como outra, isto e precisamente aquilo quese observa: em ambas as esferas os seres humanos seguem certasnormas, mas as normas sao diferentes, por vezes contraditorias.Deste modo, quando Laurel e Hardy trazem uma arvore de Natala um cliente, ela flea presa na porta e atiram a porta ao chao, e ocliente Ihes bate e todos ficam loucos numa orgia de destruigao, nosrimos as gargalhadas, embora, tanto eles como nos, estejamos a agir

7Esta tendencia e, talvez, mais comum no trabalho de Talcott Parsons.

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em oposigao as normas da vida de nao lazer, eles por baterem unsnos outros, nos por nos rirmos devido a isso. Num combate deboxe, as normas da vida de nao lazer, como aquelas que proibema agressao ffsica sobre os outros, sao suspensas e outras normastomam o seu lugar. As comunidades de bebidas desenvolvem,tambem, normas especificas de lazer; por exemplo, que se podebeber mais, mas nao se deve beber menos do que os outros e quese pode ficar um pouco embriagado, mas nao demasiado. Em resu-mo, nao se podem determinar as inter-relagoes funcionais das acti-vidades de lazer e de nao lazer sem integrar nesse modelo teoricoa pluralidade de codigos interdependentes adequados a cada umdeles. Este e o primeiro passo que e necessario dar no sentido dacritica de uma hipotese muito difundida na sociologia contempo-ranea, is to e, a presungao de que as normas de todas as sociedadessao monoliticas e todas formando um so bloco.

Mas ha que ir um pouco mais alem no estudo critico destesconceitos. Num exame mais minucioso, depressa se descobre aforma surpreendente como se mantem o uso destes termos. Nao sepode passar inteiramente por cima deste facto mesmo que nospreocupemos apenas com a sociologia do lazer. Assim, tal comohoje e usado, o termo sociologico «norma» pode bem referir-se auma quantidade de tipos diferentes de fenomenos. Pode referir-sepura e simplesmente a preceitos morais que se considera seremvalidos para todos os seres humanos. Pode referir-se a normasseguidas num grupo nacional particular, mas nao por outros. Podeser aplicado a questoes linguisticas. As pessoas podem dizer: «Vocetern de formar a primeira pessoa do singular dizendo "eu sou" enao "eu ser".» Ou noutros casos (porque as normas gramaticais naosao, de modo algum, o unico tipo de normas linguisticas): «Esta ea forma como deve pronuncia-lo: "Beaver" e nao "Belvoir".»8 Nou-tras circunstancias, a palavra pode referir-se a regras de um jogo.Deste modo, as normas nao tern a forma de preceitos muito gene-ralizados, tais como «os soldados tern de obedecer as ordens dosseus ofkiais-comandantes», que Parsons menciona como um exem-plo do seu conceito de normas9; elas podem, tambem, por exemplo,

8Belvoir Street (pronuncia-se Beaver Street) e uma rua bem conhecida emLeicester.

9Ver Talcott Parsons, The Struture of Social Action, Nova lorque, 1949, p. 75.

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tomar a forma de um quadro de referenda para os movimentosentrelagados dos jogadores num tabuleiro de xadrez ou num campode futebol. Desta forma, num jogo particular pode nao ser possfveldeslocar A se o seu adversario estiver em condigoes de movimentarB, mas pode faze-lo se o seu opositor nao estiver em situagao defazer mover B. Contrariamente as normas do tipo das leis morais,que parecem nao ser delimitadas por configurates especiais, asnormas do tipo daquelas das regras do jogo sao limitadas por umaconfiguragao10. Este e um dos muitos casos que mostra que asafirmagoes sobre aquilo que as pessoas deviam ou nao deviam fazernao necessitam de seguir o modelo altamente organizado que,frequentemente, parece determinar o uso da palavra «norma» nodiscurso sociologico, o modelo de uma lei moral geral para casosindividuals identicos. As normas podem seguir tambem modelosque constituem um nivel inferior de generalidade e um tipo deabstracgao tal como as regras de um jogo. Nao existe razao, exceptono ambito de uma tradigao filosofica nao verificada, que permitaaceitar que menor generalidade significa exactamente o mesmo quemenor valor epistemologico ou cientifico.

As caracteristicas dos diferentes tipos de normas podem seravaliadas, como as do tipo de lei moral e o tipo de regra do jogo,independentemente de quaisquer associates de valor. Ambasconstituem regulamentos sociais de individuos que actuam emgrupos. Todavia, o primeiro tipo e modelado por regulamentosaltamente interiorizados. Como as ordens de consciencia de cadaum, as normas sociais deste tipo parecem nao exigir, nem sequerserem capazes de qualquer outra explicagao adicional. Nao se per-gunta como tiveram origem ou se podem mudar ou desenvolver e,se assim for, o que as leva a isso. Sao entendidas como a origem,a fonte da acgao social, que, mais uma vez, como a nossa propriaconsciencia, parecem nao vir de parte alguma — as quais, emboraobriguem as pessoas a reunir-se em sociedades, parece que naodescendem nem sao dependentes de qualquer outra coisa. Normasdeste tipo possuem o caracter de leis gerais para decisoes que cadaindivfduo tern de tomar por si mesmo, seja de que sexo for, inde-pendentemente de todos os outros.

10Para uma discussao do conceito de configurates, ver Elias, What is Sociology?,p. 13 e seguintes.

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O outro tipo de normas que e util considerar aqui, o tipo denorma concebido atraves das regras de jogo, tern, em muitos aspec-tos, caracterfsticas diferentes. Ainda que ambos representem regu-lamentos de individuos e as do tipo daquelas que constituem asregras do jogo, estao centradas no grupo. Dado que esta centradono individuo, o tipo de normas das leis morais nao se refere expli-citamente a grupos especificos. As normas das regras do jogo, poroutro lado, sao preceitos bastante explicitos para individuos inte-grados em grupos especificos limitados. O primeiro refere-se habi-tualmente a actos singulares de individuos num determinado mo-mento, o ultimo diz respeito as dinamicas de entrelagamento deactos individuais, a estrategias individuals na sequencia do tempoe aos movimentos dos jogadores numa configuragao dinamica depessoas.

Alem disso, de acordo com o modelo de consciencia, as primei-ras sao habitualmente concebidas como absolutas, rigidas e inal-teraveis, e as ultimas representam um quadro flexivel para as acti-vidades do grupo dentro do qual cada jogador, seja do sexo mas-culino ou feminino, pode desenvolver regras proprias ou mesmonovas regras, no quadro de uma progressao. Deste modo, no fute-bol, um jogador de campo ou um guarda-redes podem criar a suapropria tecnica, que desenvolvem e respeitam na situagao concretadas suas experiencias de jogo. Uma determinada equipa especificade jogadores cria a sua propria tradigao, uma maneira de jogarintegrando normas especificas, que sao normas dentro das normas,isto e, no quadro daquelas em que todos os jogos de futebol ou denetball* se realizam. Por seu lado, estas sao regras no ambito deoutras regras de variados niveis, por exemplo, das regras comuns atodos os jogadores amadores, tal como se encontra estabelecido peloComite Olimpico, ou das regras legais de um pais, que integram,por sua vez, algumas prescribes morais nao escritas que se consi-dera serem validas para todos os seres humanos e assim por diante.

A seu tempo veremos, sem duvida, como e inadequado oconceito de nfvel-unico de normas, modelado nas prescribes indi-viduais profundamente interiorizadas. Nao so a analise particular

*Jogo de equipa no qual a bola tern de ser lan^ada de forma a ser introduzidanum aro colocado na horizontal a uma altura relativamente elevada e que possui umarede suspensa. (N. da T.)

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de uma equipa de futebol, mas uma analise mais profunda dasestrategias de entrelagamento de individuos em grupos revela,geralmente, normas de varios niveis — normas dentro de normasou regras dentro de regras — que podem mudar de acordo comnovos desenvolvimentos e experiencias na sociedade. Investigatesempiricas, tais como as do processo de civilizagao e de desenvolvi-mento do futebol, mostram com muita clareza que, de facto, asnormas desenvolvem-se como parte da estrutura da sociedade11. Ateagora, contudo, nas teorias sociologicas, as normas foram habitual-mente tratadas como absolutas, como o final de todas as questoes:e assim que as normas de consciencia sao compreendidas na ime-diaticidade da propria experiencia de cada um, mesrno que se possasaber — ao nivel da reflexao — que elas foram assimiladas e inte-riorizadas atraves da aprendizagem, no decurso de um processo decivilizagao. Nao existe ponto zero, nao existe um inicio para o jogo--envolvimento dos seres humanos e, por isso, tambem nao existeinicio de normas ou regras. Um ser humano envolve-se a partir doexterior num jogo de comportamentos com os outros e, juntarnentecom eles, sejam do sexo masculino ou feminino, pode, consciente-mente ou nao, contribuir para uma mudanga nas regras de acordocom as quais ele se joga.

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O segundo dos dois passos mencionados consiste na utilizagaode jogos como modelo para as relagoes entre as actividades de lazere de nao lazer. Ao proceder desta maneira e encorajado por avalia-goes ocultas e nao testadas, pode ser mais facil compreender arelagao entre aquelas actividades; pode ser menos diffcil perceberque ambas nao sao simplesmente as actividades de individuos, masas actividades de individuos no quadro de grupos especificos. Istoe perfeitamente obvio se alguem estudar as actividades de lazer desociedades menos urbanizadas e menos diferenciadas que sao quasesempre as dos comunitarismos. Isso e menos obvio, mas nao menos

nVer Norbert Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978, e Eric Dunning eKenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players: a Sociological Study of theDevelopment of Rugby Football, Oxford, 1979-

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correcto, a respeito de sociedades urbanas e industrials, ainda queo campo de acgao para a escolha individual a respeito de actividadesde lazer seja muito mais vasto. Contudo, por maior que ele seja, naoe de maneira nenhuma ilimitado. Nas sociedades mais desenvolvi-das, a escolha individual das actividades de lazer tambem dependedas oportunidades construidas antecipadamente, e estas mesmasactividades sao habitualmente moldadas por fortes necessidades deestimulagao social, directamente ou em convivencia com o lazermimetico.

A teoria do lazer aqui exposta permaneceria incompreensivelenquanto nao se percebesse, com toda a clareza, que as actividadesde lazer sao actividades sociais tanto nas sociedades muito diferen-ciadas como nas sociedades mais simples. Mesmo que tomem aforma do isolamento de um indivfduo, elas sao intrinsecamentedirigidas tanto a partir dos outros, como e o caso de alguem, dequalquer sexo, que ouve um disco ou le um livro, ou desse in-dividuo relativamente aos outros —- quer se encontrem presentesem carne e osso ou nao —, como e o caso de alguem que escrevepoesia ou toca violino sozinho. Em resumo, sao comunicagoes rece-bidas ou enviadas por pessoas dentro de configuragoes de grupoespecificas. E isso o que se procura transmitir atraves do modelo dejogos. Com frequencia, o caracter essencialmente social das activi-dades de lazer nao e verificado nas reflexoes que procuram avaliarse as actividades de lazer sao «reais» ou simples «fantasias». Porexemplo, nao e pouco frequente encontrarem-se afirmagoes como asde William Stephenson, de acordo com as quais a distingao entretrabalho e jogo «depende do que e a fantasia e, de certo modo, airrealidade do mundo que constitui o jogo, e o que e real no mundoque const itui o trabalho »12. Tambem se pode referir Roger Caillois,que acentua, frequentemente, a «irrealidade» dos jogos13.

As dificuldades inerentes a toda esta discussao sao essencial-mente devidas a dois factores. O primeiro e a avaliagao implicitaque frequentemente determina aquilo que e considerado como reale aquilo que o nao e. Deste modo, a avaliagao do trabalho como reale do lazer como irreal encontra-se profundamente relacionada com

12 William Stephenson, The Play Theory of Mass Comunication, Chicago, 1967,p. 46.

13 Caillois, Man, Play and Games, pp. 5-6.

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as tradigoes e valores de uma sociedade em que o trabalho e umdos valores mais elevados, enquanto o lazer e, com frequencia,encarado como uma futilidade inutil. Representantes de certassociedades, por exemplo Aristoteles, com um sistema de valoresque avaliava o lazer de forma mais digna do que o trabalho, difi-cilmente teriam concordado com a considerable do lazer como «ir-real». O segundo factor e a incapacidade de levar em linha de contao unico contexto em que o termo «real» possui um significadofactual, o qual pode ser verificado a luz de uma prova susceptivelde demonstragao. Isto e, a utilizagao do conceito «real» comoantonimo daquilo que sao sonhos e fantasias puramente indivi-duals, em particular os sonhos e as fantasias de pessoas doentes, osquais nao se podem comunicar no sentido comum dessa palavra, eque nao fazem sentido para os outros, excepto para um medico.Nesta linha, «realidade» e uma propriedade de todas as actividadeshumanas que se sujeitam a disciplina da comunicagao, enquanto«irrealidade» e uma propriedade de todas as fantasias individualsnao partilhadas por outros. Este esclarecimento nao estipula maisuma divisao estatica e absoluta entre o que e real e o que e irrealdeixa espago para diferentes tipos e niveis de realidade. Isso implicaque todas as actividades humanas que se baseiam na comunicagao,possuindo o caracter de movimentos realizados pelas pessoas numjogo, sao reais.

Os agrupamentos de pessoas no lazer e fora das suas actividadesde lazer sao, sem qualquer duvida, diferentes entre si. E esta adiferenga que nos procuramos expressar ao dizer que o lazer e o naolazer sao jogos realizados por grupos de pessoas entre si, de acordocom regras diferentes. Nao ha duvida de que no lazer as fantasiasde jogo e emogoes de todos os generos sao permitidas em proporgaomuito maior do que na vida de nao lazer das pessoas, mas saofantasias socialmente padronizadas e comunicadas, fantasias crista-lizadas numa pega teatral, numa pintura, num jogo de futebol,numa sinfonia, numa corrida de cavalos, danga ou aposta. Emcontraste com fantasias puramente privadas, nao socializadas, elassao tao reais em termos de participagao de seres humanos como otempo livre em que se dedica atengao aos seus filhos ou a suamulher ou, ne§se caso, ao seu trabalho.

Talvez se torne possivel facilitar a compreensao deste esclareci-mento essencialmente simples por meio de uma ligeira mudanga na

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utilizagao dos termos. Pode hesitar-se em considerar pinturas, ro-mances, pegas de teatro e filmes como «reais» enquanto estes seagruparem teoricamente sob o titulo de «actividades de lazer»; po-de considerar-se mais facil aceita-las como «reais» se elas forem emteoria agrupadas sob o titulo de «cultura». Muitas vezes impede--se a compreensao do que e obvio devido, simplesmente, a diferen-gas de valor ocultas no sentido das palavras.

Mas se o facto de as actividades de lazer e as de nao lazer seremactividades sociais, isto e, jogos realizados por grupos de pessoas,assegura a sua realidade, apesar disso estes sao jogos de um tipodiferente. O estudo a fazer e, porem, determinar a sua interdepen-dencia funcional na sociedade, assim como as suas caracteristicasdistintivas (das quais uma boa parte ja foi referida). Isso contribuipara uma melhor compreensao das nossas sociedades, para se verque, neste caso como noutros, as pessoas jogam entre si, nao so ummas diversos jogos interdependentes com regras diferentes. Osjogos de lazer e de nao lazer sao um exemplo destes jogos comple-mentares. Existem muitos outros. Em certos casos, sao praticadosdois ou mais jogos em simultaneo como, por exemplo, no caso dasrelagoes «formais» e «informais». Diversos outros jogos interdepen-dentes sao jogados em tempos diferentes, como no caso de «jogosde guerra» e «jogos de paz». A relagao entre lazer e nao lazer e doultimo tipo. A estrutura distintiva dos dois tipos de jogos, a suarelagao entre si, bem como as fungoes de cada um deles paraaqueles que jogam, exige um exame mais profundo. Alguns aspec-tos destas diferengas podem ser apresentados com grande brevi-dade. O espectro do tempo livre e os comentarios que se seguempretendem evidencia-los. As actividades dominantes nos jogos denao lazer sao dirigidas por objectives. Possuem o caracter de vec-tores em linha recta. As suas fungoes primarias sao fungoes paraoutros, para «eles» ou para organizagoes impessoais, tais como casasde negocios ou Estados-nagoes, embora elas possam ter tambemfungoes secundarias para si proprio. Isto pode envolver, e de factoassim sucede habitualmente, satisfagao atraves de mensagens e deestimulagao recebida dos outros, mas a satisfagao pessoal paraaqueles que estao envoividos no jogo permanece a sua fungaoprimaria. Neste sentido, pode dizer-se que o lazer constitui umenclave socialmente consentido, de concentragao sobre si proprio,num mundo de nao lazer que necessita e obriga a predominancia

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de actividades centradas nos outros. Enquanto as ultimas sao diri-gidas por objectivos e actuam como vectores, as primeiras, emsentido figurado, possuem o caracter de «ondas». Os sentimentosdespertados pelas actividades de lazer tornam-se tensos entre polosopostos tais como medo e exaltagao, e actuam, por assim dizer, deum lado para o outro. E so a falta de adequagao dos nossos conceitostradicionais e dos nossos utensilios de linguagem que torna dificilexpressar e compreender que, nas ocupagoes de lazer, sentimentosaparentemente antagonicos como o medo e o prazer nao sao apenasopostos um ao outro (como «logicamente» parecem estar) maspartes inseparaveis de um processo de satisfagao de lazer, porque assatisfagoes de lazer so podem ser conceptualizadas como processes.Nesse caso, pode dizer-se que nao e impossivel nenhuma satisfagaoa partir das ocupagoes de lazer sem pequenas fracgoes de medo aalternarem com agradaveis esperangas, breves alvorogos de ansie-dade a alternarem com alvorogos de antecipadas agitagoes de de-lei te e, em alguns casos, atraves de vagas deste genero, resultandonum climax catartico, no qual todos os medos e ansiedades podemresolver-se temporariamente, deixando so por breves momentos, ogosto da fruigao da agradavel satisfagao.

E este o motivo por que as formas de excitagao desempenhamum papel central nas actividades de lazer. So deste modo se podecompreender a fungao do lazer na destruigao da rotina. As rotinasintegram um nivel elevado de seguranga. Sem se expor a si proprioa um certo nivel de inseguranga, a um maior ou menor risco, aincrustagao das rotinas nao se perderia nem se deslocaria, ainda quetemporariamente, e a fungao das actividades de lazer perder-se-ia.

Contudo, as actividades especificas de lazer podem perder a suafungao de destruigao da rotina. Conservam-na somente em relagaoa um dado con junto de rotinas. Actividades que hoje possuem umafungao de destruigao da rotina podem tornar-se rotineiras atraves darepetigao ou atraves de um grau de controlo demasiado rigido e,deste modo, perdem a fungao de proporcionar excitagao. Nessecaso, deixam de proporcionar um grau de inseguranga, de satisfazera expect at iva de algo inesperado e arriscado, a tensao, a excitagaoda ansiedade que as acompanha. Estes altos e baixos, vagas brevesou longas de agradaveis sentimentos antagonistas tais como espe-ranga e medo, exaltagao e abatimento, sao uma das fontes de reno-vagao emocional de que ja falamos antes. Ate mesmo os preparati-

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vos para passar um feriado num lugar que e novo — o que, em facedisso, pode parecer francamente agradavel — implica saborear emantecipagao o inesperado que se pode encontrar ai e, ao mesmotempo, possivelmente no temor de uma ligeira incerteza, a possi-bilidade de encontros desagradaveis ou instalagoes desconforta-veis, ou a esperanga de fazer alguns conhecimentos novos total-mente encantadores. For conseguinte, mesmo neste caso existemfeixes de ansiedade misturados com uma agitagao de antecipadoprazer.

Pode ver-se, desde ja, que a interdependent funcional do lazere do nao lazer (para o qual nao possuimos no presente, nenhumtermo de classifkagao adequado), entre os aspectos que constituema rotina das nossas vidas e os enclaves de destruigao de rotinasituados no seu interior, so podem ser expresses em termos deequilibrio. As proprias actividades de lazer podem tornar-se roti-neiras, podem facilmente, se nao houver mais nada, esvaziar-se dequalquer fimgao.

E as rotinas? Poderemos nos prosseguir uma vida equilibrada-mente rotineira sem enclaves de lazer? Formular esta questao eavangar para o fulcro do problema. Nao pretendemos dizer que naoexistam pessoas que nao vivam de maneira semelhaate. E possivelque nas nossas sociedades grande numero de pessoas viva uma vidatotalmente rotineira, completamente sem interesse e sem qualquerrelevo, nao so as pessoas idosas, entre as quais parecem ser bastantefrequentes as faltas de lazer — em parte, porque, nao obstantecontinuarem vivos, as suas vidas tornam-se gradualmente menos«reais» a medida que deixam de participar nos jogos do trabalhoe tambem nao podem encontrar ou nao podem iniciar uma parti-cipagao adequada nos jogos de lazer —, mas, igualmente, entrepessoas de meia-idade, porem, talvez menos entre os jovens. Existeai uma certa evidencia sugerindo que a ausencia de equilibrio entreactividades de lazer e de actividades de nao lazer implica umdeterminado empobrecimento humano, alguma secura de emogoesque afecta toda a personalidade. Talvez aqui se possa ver com maiornitidez os perigos inerentes a qualquer classificagao das actividadesde lazer como «irreais».

Pode avangar-se mais um passo ao apresentar, pelo menos, ummodelo provisorio das fimgoes de equilibrio das actividades de naolazer e das que pertencem ao lazer nas nossas sociedades. A con-

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ceptualizagao que e dominante em relagao a esta interdependenciaentre lazer e nao lazer, em termos de relaxagao das fadigas e dastensoes, e enganadora porque, entre outras razoes, sugere que otrabalho professional, tal como as actividades de tempo livre pro-fundamente rotineiras, produz tensoes, enquanto a natureza dessastensoes permanece obscura. De modo vago, o termo «tensao » surgeneste contexto com frequencia identificado com fadiga. Nesta base,o caracter das actividades de lazer, o facto de elas proprias criaremtensoes, que respondem a necessidades de estimulagao, a umaprocura de excitagao, como o dissemos antes, permanece incom-preensfvel. Que genero de tensao e esta que e contrabalangadaatraves de outro genero de tensao, e encontra uma fesolugao atravesdela, que e motivada e talvez agradavelmente solucionada pelasactividades de lazer?

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Nao e possivel responder a este tipo de questoes sem ter emconsideragao aspectos de lazer que, segundo as actuais convengoes,permanecem fora do campo de pesquisa da sociologia. O problemaque aqui se nos depara foi sentido do principio ao fim desta inves-tigagao. E tempo de o colocar abertamente. E possivel, e esta aquestao, elaborar uma teoria de lazer razoavelmente adequada noquadro de qualquer ciencia humana particular, como a sociologia,a psicologia ou, neste dominio, a biologia humana, se as suas rela-goes permanecem obscuras, tal como sucede hoje em dia? De facto,os problemas de lazer pertencem a esta vasta classe de problemasque, no estadio actual do desenvolvimento da especializagaocientifica, dizem respeito nao so a dois mas a diversos ramos doconhecimento. Eles nao se ajustam inteiramente ao quadro dereferenda de qualquer uma destas ciencias segundo a maneira comoestas se encontram constituidas no presente, mas pertencem antesao territorio inexplorado da terra de ninguem que existe entre elas.Se a sociologia e considerada como uma ciencia que negligencia as-pectos psicologicos ou biologicos dos seres humanos, se a psicologiaou a biologia humana se consideram ciencias que podem intervirisoladamente, sem ter em atengao os aspectos sociologicos, os pro-blemas do lazer serao deixados de lado. De facto, estes problemas

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mostram de forma clara que as limitagoes inerentes a compartimen-tagao dos seres humanos podem constituir um tema de estudocientifico. O espectro do tempo livre, como um modelo classifica-dor, revelou ja que nunca sera suficiente distinguir diferentesaspectos separados das pessoas sem um quadro global de referendaque assinale as suas relagoes. A concepgao actual das varias cienciasconsidera estes aspectos como se eles existissem, de facto, indepen-dentemente uns dos outros. A separagao e total. Nao existe umquadro global de referencia que indique como e que estes diversosaspectos se ajustam entre si. Ao situar as actividades de lazer noquadro mais alargado do tempo livre, referimos ja que os problemascom que se defronta o investigador, embora reclamem uma distin-gao, nao autorizam a separagao entre os aspectos da realidade quehabitualmente sao estudados por uma das ciencias humanas.

Se as pessoas vao ao teatro, a um baile, a uma festa ou ascorridas, e porque no lazer elas podem, tal como dissemos antes,escolher como se ocupar de uma maneira que favorega a experienciado prazer. Deste modo, o prazer, as perspectivas de um tipo es-pecifico de estimulagao agradavel, e um elemento essencial naestrutura social destas institutes, do teatro, da danga, das festasou corridas e de todas as outras que foram mencionadas no decursodesta investigagao. Os problemas do prazer pertencem, pode dizer--se, ao dominio da psicologia ou da fisiologia; mas integram-se,contudo, na esfera de competencia dos sociologos. Estes procura-ram, em toda a historia da sua ciencia, distinguir os seus propriostipos de problemas daqueles que eram estudados por psicologos ebiologos. Em determinada epoca, tornava-se indispensavel definirque os fenomenos sociais eram um nivel de investigagao com carac-teristicas distintivas proprias. Neste sentido, a luta dos sociologospela relativa autonomia do seu tema revelou-se frutuosa. Admite--se que esta autonomia se encontra agora estabelecida com solidez,permitindo aos sociologos considerar nao so a especificidade dosseus problemas mas, tambem, a sua relagao com os dos camposvizinhos. Nas suas investigagoes, foi frutuoso para os sociologosabstrairem-se dos problemas da psicologia e da biologia que seencontravam e percorrerem, durante algum tempo, um caminhoseparado, tendo em vista um melhor entendimento dos sereshumanos. Mas esta separagao conduziu, como seria inevitavel, aodesprezo de grandes grupos de problemas, um dos quais e o pro-

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blema do lazer. A investigate actual e um exemplo do tipo debloqueios que se encontram ao tentar analisar problemas socio-logicos sem olhar para alem das fronteiras do campo da sua ciencia.No caso dos factos e das institutes de lazer, cuja raison d'etre* euma experiencia psicologica especifica, qualquer tentativa que anao considere e prejudicial a concretizagao do objective. A esterespeito, o estudo da estrutura social e o das emogoes nao podeavangar em compartimentos separados.

Contudo, isso nao significa que um se dilua no outro. For vezes,biologos e psicologos mostram-se inclinados a acreditar que podem,numa fase posterior, responder a todos os problemas sociologicosnos seus proprios — biologicos e psicologicos — termos. Nesteambito, a luta dos sociologos pela autonomia dos seus problemasparticulares foi bem justificada. Talvez se possa pensar que nemtodos os sociologos contemporaneos sao capazes de ver com clarezaa relativa autonomia e irredutibilidade dos problemas sociologicosem relagao aos biologicos e psicologicos14. Existe, evidentemente,uma certa perplexidade quanto a saber como se pode encontrar umcaminho entre a ideia de que o estudo da sociedade e totalmenteautonomo, desprovido por inteiro de relagao com o da psicologia eda biologia, e a ideia de que os problemas da sociedade, enquantocampo de estudo, serao todos resolvidos, mais tarde ou mais cedo,atraves do estudo psicologico e biologico de individuos considera-dos isoladamente.

O estudo do lazer, como dissemos, e um dos numerosos casosem que nao e possivel descurar o problema da relagao entre osfenomenos do nivel social e os que se encontram nos niveis psi-cologico e fisiologico. A este respeito, nao se pode evitar o trabalhode uma analise multipla dos niveis, isto e, o de considerar, pelomenos em tragos gerais, como e que no estudo do lazer os tresniveis — sociologico, psicologico e biologico — se relacionam.

14 Georges Homans, por exemplo, aflrmou na sua Presidential Address to theAmerican Sociological Association, em 1966, que a sociologia nao possui autonomiaenquanto objecto de estudo e que a psicologia e a ciencia social basica. Uma posigaosemelhante e assumida por W. G. Runcinam na sua Sociology in its Place, Cambridge,1970, p. 7.

*Em Frances no original. (N. da T.)

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Sao varias as teorias sobre os aspectos psicologicos e fisiologicosdas emogoes e nao se pode dizer que todas se encontrem de acordoentre si. Mas, para os nossos fins, bastara apontar certos aspectoselementares que estao bast ante bem fundamentados. Na sua formamais simples, verifica-se nas criangas muito novas que as relagoesemocionais parecem possuir o caracter de uma resposta a umaexcitagao indiferenciada, provavelmente relacionada, de acordo comas circunstancias, com sentimentos agradaveis ou desagradaveis,sem qualquer distingao emocional especifica. Reacgoes de medo,amor e raiva, uma vez consideradas como o trio original dasemogoes, emergem provavelmente, de modo gradual, como partede um processo de diferenciagao, a partir do padrao de excitagaogeneralizado.

Mas, seja como for, uma vista de olhos as reacgoes emocionaisdas criangas mais jovens traz ao pensamento, de forma muito clara,um facto que frequentemente nao e notado quando, ao consideraras emogoes, se tern no espirito apenas as emogoes dos adultos. Nasnossas sociedades, de uma maneira geral, os adultos nao revelam assuas emogoes. As criangas de todas as sociedades fazem-no. Paraelas, o estado de sensibilidade ao qual nos referimos como emogaoe um aspecto de um estado dinamizado por todo o organismo, emresposta a uma situagao estimulante. Sentir e agir, nomeadamentemovimentar os seus musculos, os seus bragos e pernas, e talvez todoo corpo, nao estao ainda divorciados. Este, pode dizer-se, e ocaracter primario do estado de sensibilidade a que nos referimoscomo emogao. So gradualmente aparece na experiencia das pessoascomo um estado de sensibilidade, quando elas aprendem a fazeraquilo que as criangas nunca sao capazes de fazer, ou seja, a naomovimentar os seus musculos — nao agir — de acordo com oimpulso emocional para agir. No discurso comum, referimo-nos aspessoas «controlarem os seus sentimentos». De facto, nao contro-lam os seus proprios sentimentos, mas, o movimento, a parte ac-tuante de um estado de agitagao de todo o organismo. O ladosensivel deste estado pode assumir realmente o caracter de emogao,em parte porque ela nao pode ser libertada nos movimentos. Masnos nao suspendemos a sensibilidade. Apenas impedimos ou dife-rimos a nossa acgao de acordo com ela.

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Nas nossas sociedades, os adultos tornaram-se, em regra, taohabituados a nao agirem de acordo com os seus sentimentos queesta restrigao, com frequencia, Ihes parece ser o normal, o estadonatural dos seres humanos, em especial se, em larga medida, aauto-restric,ao se torna automatica. Mesmo que o desejassem, naopodiam abrandar o desenvolvimento interno do controlo. Esquece-ram-se, por completo, como fora diffcil para eles, em tempos, naofazerem aquilo para que sentiam inclinagao, como os adultos seempenhavam, com uma elevagao de sobrancelhas, com palavrasduras e doces, e talvez com algo mais do que palavras, para quecontrolassem as suas acgoes ate que o dominio, de acordo com opadrao habitual na sua sociedade, ja nao exigisse esforgo. Tornara--se uma segunda natureza e surge como parte das suas personali-dades, como algo com que nasceram. O grau e o padrao destetreino para o autocontrolo varia de sociedade para sociedade, deacordo com o estadio do padrao especifico do seu desenvolvimento.Em geral, pode dizer-se que o tipo de socializagao caracterfstico dassociedades altamente industrializadas tern como resultado umainteriorizagao mais forte e mais firme do autocontrolo individual,resultando numa armadura de autodominio, a qual opera de formarelativamente harmoniosa e, em comparagao, de maneira moderada— mas sem demasiadas saidas — em todas as esferas da vida.

Seria um grande contributo para a investigate sociologicasobre os problemas de lazer, — os quais constituem um dos muitosenclaves onde, mesmo em sociedades industrials, as pessoas saocapazes de procurar, ainda com moderagao mas com total aprova-gao publica, excitagao emocional e onde podem mesmo mostra-la,ate um determinado limite, sob uma forma socialmente regulamen-tada — se alguem pudesse realizar inqueritos psicologicos e fisio-logicos sobre os inumeros problemas de autocontrolo que aqui selevantam. Todavia, nao so os sociologos mas, tambem, os psico-logos e os fisiologistas, embora por razoes diferentes, evitam pes-quisas sobre problemas situados entre estes campos. E, na formaactual, ate mesmo a psicologia social oferece um debil contributoquanto a estes problemas. Existe uma vasta literatura na psicologiae na fisiologia sobre as questoes da aprendizagem, mas, em compa-ragao, ela e escassa quando se trata da influencia desta na estrutu-ragao da personalidade. E a fundamentagao do controlo dos impul-ses que se interpoem — como um desenvolvimento assimilado de

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potencialidades humanas nao aprendidas — entre a vaga periodicade inclinagoes e impulsos emocionais dos niveis biologicos maisprofundos e o esqueleto do aparelho motor para o qual eles saodirigidos esta quase inexplorada.

Nao se desconhece totalmente, uma forte evidencia de tipo pre--cientifico apontando nessa direcgao. Existe ai o bastante para nospermitir indicar pelo menos, embora nao para o resolver, e claro, oproblema que mostra as ligagoes entre o fenomeno de controlo dasemogoes socialmente induzido e a provisao especial de renovagaoemocional nas actividades de lazer. Os autocontrolos civilizadores,que desempenham um importante papel na vida das sociedadesdesenvolvidas, nao sao o produto de qualquer planeamento criticoe deliberado. Desenvolveram-se para o modelo que possuem agora,como se mostrou noutro lugar,15 de maneira mais ou menos incons-ciente, durante um longo periodo. Considera-se como adquirido,embora nunca tenha sido demonstrado, que estas formas de contro-lo tern um papel essencial no funcionamento das sociedades indus-trials. A crescente revolta contra alguns desses controlos, em par-ticular entre a geragao mais jovem, contribuira, decerto, para umainvestigagao mais sistematica sobre a questao de saber se os contro-los interiorizados, bem como as restrigoes sociais externas e respec-tivos aspectos, tern fungoes positivas nos mecanismos da sociedadee quais sao aquelas que as nao possuem. Alguns dos problemas delazer que exploramos aqui estao profundamente relacionados comeste tipo de questao. O que acontece numa sociedade onde a pres-sao sobre os indfviduos, tanto as restrigoes sociais como dos auto-controlos internos, se torna tao forte que as suas consequenciasnegativas ultrapassam as suas fungoes posit ivas?

Esta investigagao tern de ficar para mais tarde. Mas esta brevedivagagao sobre alguns aspectos elementares do autocontrolo per-mite avangar um pouco mais, relativamente ao que dissemos antes,sobre a ligagao entre as actividades exteriores ao lazer e as de lazer.Pode lembrar-se que a formulagao mais organizada e certamentenao exaustiva, embora, e claro, nao a unica possivel das diferengasentre dois tipos de actividades, se refere a duas especies de fungoesque todas as actividades desempenham para aqueles que as reali-

15 Ver Elias, The Civilizing Process.

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zam: uma fungao (ou fungoes) para os proprios actores e uma fungao(ou fungoes) para os outros, ainda que por vezes nem sempre sob aforma de fungao para uma unidade social impessoal, tal como anagao. A diferenga entre os dois tipos de actividades a que nosreferimos, para dizer de uma maneira resumida, e a seguinte: nasactividades de nao lazer, a fungao para si proprio e subordinada afungao que ela tem para os outros; nas actividades de lazer, a fungaopara os outros e subordinada a fungao que ela possui para siproprio. Em termos mais psicologicos, isto significa que as activi-dades exteriores ao lazer exigem, desde o princfpio ate ao fim —nao apenas no caso de possuirem o caracter de trabalho profissio-nal, mas tambem se possuirem o caracter de tempo livre de naolazer, de acordo com a forma como foram classificadas no espectrodo tempo livre —, um grau de controlo emocional relativamentemuito elevado, porque a consideragao pelos outros e exigida pelafrequente interdependencia muito complexa destas actividades comas actividades de outros. E por isso que falamos delas como «roti-neiras». Por comparagao com sociedades nao Jescnvolvidas, amaioria das actividades entrelagadas nas nossas sociedades estaobem reguladas e de forma muito segura. So quando se possuiexperiencia — quer seja atraves de participagao di recta quer sejapor participagao indireeta, atraves de estudo — do que significaviver numa sociedade menos regulada, e que se pode estabelecer arelativa ordem das sociedades altamente desenvolvidas e do papelai desempenhado pela interiorizagao comparativamente elevada doscontrolos individuals. Por outro lado, esta interiorizagao, quer tomea forma da consciencia, quer de maior ou menor obsessao pelaordem, ou de qualquer uma das consequencias da socializagaoimplicita, tem, sem duvida, devido a esta absorgao dos controlossociais como parte da personalidade individual, como consequen-cias, frustrates especificas, uma boa dose de angiistia e de sofri-mento e, provavelmente, numerosas doengas. Isto significa que, nassociedades-Estado mais desenvolvidas, um duplo anel de constran-gimento mantem o comportamento dos individuos nos limites daconduta do seu grupo: constrangimentos externos, representados,por exemplo, pela ubiqua ameaga da lei e dos seus agentes, econtrolos externos, traduzidos por acgoes de controlo pessoal comoa consciencia e a razao. Estes termos — que surgem, como tantosoutros, como se fossem quase uma especie de substancias «fantas-

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mas na maquina», em vez de controlos aprendidos dos outros eassimilados como um resultado da socializagao — referem-se pre-cisamente a estes dois tipos de impulses que mencionamos antes eque se interpoem entre os mais elementares, os impulses maisdirectamente biogeneticos aos quais nos referimos como tendencias,sentimentos ou emogoes, e ao aparelho motor. Permitem-nos ocontrolo sobre nos proprios, o que quer dizer, habilitam-nos a naomovimentar os nossos musculos, a nao agir imediatamente quandosentimos tendencia para o fazer, ou a agir de uma maneira diferentedaquela para a qual as nossas inclinagoes espontaneas e emogoes nosconduzem. Nao so nos habilitam a dirigir e a avaliar os nossos mo-vimentos de acordo com a estrutura profundamente complexa dasnossas interdependencias como tambem nos dao maior liberdadeem relagao a perturbagao de impulses momentaneos e, igualmente,um maior campo de acgao para decidir. For outro lado, ao impedirtendencias, sentimentos e emogoes na procura de satisfagao directae imediata, criam tensoes de um tipo especifico. Se, no entanto,considerarmos a literatura psicologica e psiquiatrica sobre os aspec-tos afectivos do comportamento e experiencia humana, podemosnotar que ha um certo tempo, com muito poucas excepgoes, atradugao de factos em teorias e perturbada por um conceito tradi-cional de seres humanos que, tal como o quadro de todas as pro-posigoes teoricas, e mais ou menos tornado como garantido e nuncaverificado, de forma sistematica, quanto a sua aplicabilidade. Ja nosreferimos a isso anteriormente. E a imagem das pessoas como umaespecie de maquina nao social. Ela e algumas vezes representadapela metafora de uma «caixa preta»: podemos observar como acaixa preta actua mas nao sabemos o que se passa dentro dela. Emmuitos casos, a suposigao implicita e de que as pessoas reagem aestimulos com reacgoes especificas. Na base desta suposigao podeser-se conduzido a pensar que os seres humanos nao reagiriam dessamaneira, a menos que o estimulo ou o dispositivo permitisse umareacgao padrao particular. Contudo, existe ai uma grande dose deevidencia, mostrando que os seres humanos nao esperam, de umaforma meramente passiva, por estimulos. De facto, a partir de umamassa crescente de dados disponiveis, e bastante nftido que oorganismo humano reclama estimulagao para funcionar de modosatisfatorio, em particular a estimulagao criada atraves da conviven-cia com outros seres humanos. O significado do conceito de seres

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humanos, que resulta das numerosas experiencias sobre os efeitosdo isolamento extremo, talvez nao tenha sido sempre totalmenteexpresso16. Elas indicam que a necessidade de estimulo de um serhumano por intermedio de outros seres humanos nao se reduz aessa esfera especifica a que chamamos sexualidade. E uma necessi-dade mais ampla, de longe menos especializada, de estimulagaosocial. Na origem, pode ser libidinal ou nao. A sua genese precisade ser explorada; mas, seja ela qual for, a «caixa preta» nao estaadormecida quando nao e estimulada. Cada ser humano, na sua(dele ou dela) constituigao global, e orientado no sentido dos outrosseres humanos — por meio da estimulagao emocional que so osoutros seres humanos podem proporcionar, embora possam sersubstituidos por animais de estimagao ou por colecgoes de selos.Talvez o ponto mais saliente para compreender a interdependenciaentre os aspectos dos seres humanos, estudados por um lado, porpsicologos e por psiquiatras, e por sociologos, por outro, seja acompreensao de que a «caixa preta» nao esta fechada, pelocontrario, esta aberta, emitindo sinais sensiveis prontos a gravarem-se nos outros e para actuar, reciprocamente, da mesma maneira,com os sinais sensiveis que os outros enviam17. De facto, nao sepode compreender por completo a natureza das tendencias eemogoes, a menos que se possua a consciencia de que elas represen-tam uma linha dentro de um movimento de dois sentidos. Cadaser humano, na sua constituigao global, e orientado no sentidodos outros — para a estimula^ao emocional entre seres humanosvivos —, e a estimulagao agradavel deste genero, a estimulagao quese recebe por estar reunido com outros, quer seja de facto quer pormeio da sua propria imaginagao, e um dos elementos mais comunsda satisfagao do lazer. Se procurarmos sintetizar numa metafora adiferenga entre a imagem dos seres humanos apropriada para obser-vagoes como esta e a imagem de seres humanos de que a metaforada «caixa preta» e representativa, haveria de dizer-se que a melhoranalogia — se, de todo, as pessoas tern de ser comparadas com

16Para urn debate de algumas descobertas da investigac.ao sobre problemas deisolamento extremo, ver Peter Watson, War on the Mind: the Military Uses and Abusesof Psychology, Harmondsworth, 1978, Cap. 13.

17Ver a critica do conceito de seres humanos do homo clausus e a sua conceptua-lizagao como homines aperti em Elias, What is Sociology?, p. 119 e seguintes.

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qualquer instrumento mecanico — e o de alguem equipado comum radio transmissor e receptor que envia constantemente mensa-gens que fazem sair respostas, que podem receber, por sua, vez, eas quais ele ou ela, por sua vez, podem responder. Coloquem umacrianga numa sala por alguns dias e vejam o que acontece. Ela«enfraquece» por melhor que seja a alimentagao. A razao e a de queesta necessidade elementar de um tal movimento de «dois senti-dos», de tudo aquilo a que chamamos, ainda de forma muitoimperfeita, «tendencias» ou «emogoes», a necessidade de umaresposta emocional, e suspensa. E de facto notavel que o sofrimen-to e a dor infligidos nas criangas por este corte, ou simplesmenteatraves da nab satisfagao dessa necessidade quase insaciavel deconsolidar os vectores das suas afeigoes no sentido dos outros,favorega uma resposta afectuosa, dirigida para si proprias e que, porsua vez, favorece uma resposta reforgada dos afectos, e sempre porai adiante. Em resume, os vectores enviados no sentido dos outrosem busca de apoio, quer Ihe chamemos «tendencias», «libido»,«afectos» ou «emog6es», sab parte de um processo social interpes-soal. No que diz respeito as criangas, se este processo e interrom-pido ou apenas perturbado, o desenvolvimento de toda a persona-lidade da crianga sera mais ou menos prejudicado. No decurso doprocesso de crescimento, do «processo de civilizagao» a que osindividuos se submetem nas nossas sociedades, os seres humanossao ensinados a controlar com bastante severidade, e em parteautomaticamente, a necessidade sempre inquieta do tipo de esti-mulagao adquirido pelo envio e recepgab de mensagens emocional-mente significativas, que e tab vital para o jovem ser humano comoe a alimentagao. No nosso tipo de sociedade, os adultos, na sua vidade nao lazer, tern de refrear severamente o envio de mensagensemocionais. Nesta esfera das suas vidas, eles sao impedidos deenviar e de receber mensagens no quadro dessas ondas longas. Asactividades de lazer, por outro lado, permitem um certo campo deacgao para enviar e, acima de tudo, receber mensagens atraves dasondas a que nos referimos, de modo imperfeito, como emocional.Mas uma vez que a diminuigao dos controlos nas sociedadeshumanas de todos os generos, senao em especial nas sociedades tabbem ordenadas e complexas como as nossas, compreende sempreriscos, a fungab das actividades de lazer destruidoras do controlo,que abre o caminho para a renovagao das emogoes, e, por seu lado,

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demasiado limitada por regras de prevengao para que possa serassim socialmente toleravel.

De tudo isto emerge, com maior nitidez, um dos aspectoscentrals da relagao entre as actividades do nao lazer e as actividadesde lazer. Talvez isto possa ser sintetizado, de forma conceptual, porreferenda a uma polarizagao que flui atraves de toda a vida comoum equilibrio de tensao dinamico. Referimo-nos ao equilibrio detensao entre o controlo e a estimulagao emocional. A forma comoeste equilibrio de tensao se manifesta varia de sociedade para socie-dade, onde o controlo de todo o continuum de sentimentos e, emparte, bastante interiorizado, desde as tendencias animais ate asmais sublimes emogoes, o controlo externo das emogoes e relativa-mente moderado e a estimulagao emocional favorecida no quadrodas actividades de lazer com a anuencia publica e, em geral, igual-mente moderada quanto ao seu caracter. Em resumo, ambas recla-mam um grau de maturidade emocional consideravel.

Mas a breve referenda ao facto de que a sociabilidade e, podedizer-se, uma caracteristica permanente da vida das criangas, podeservir como uma advertencia quanto a uma das principals fungoesdas actividades de lazer nas nossas sociedades; nomeadamente, queajudam a moderar a grande severidade do autocontrolo conscienteou inconsciente exigido a todos os participates pelo tipo de acti-vidades de nao lazer a que, em geral, temos de nos acomodar, per-mitindo a ocupagao, sob uma forma adulta, em actividades quepredominant na vida das criangas. Os psicanalistas podem falar,num caso destes, de «regressao socialmente autorizada», de corn-portamento infantil, mas declaragoes como estas revelam apenas afalta de adequagao de qualquer teoria psicologica que integre aideia de que o comportamento adulto e um bloco, que segue omesmo padrao em todas as actividades. De facto, por meio da insti-tuigao do lazer, o proprio desenvolvimento social permitiu umcampo de acgao para a diminuigao dos controlos do adulto, umatenue «destruigao dos controlos» dos individuos, por meio de umaexcitagao igualmente moderada — um despertar emocional equili-brado, que pode ajudar a contrariar o efeito sufocante que oscontrolos facilmente podem ter na ausencia de tais institutessociais.

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A relagao entre as actividades de nao lazer e as actividades delazer pode compreender-se melhor como um equilibrio de tensaodinamico. Nas esferas da vida muito rotineiras e bem reguladas, emque a fun^ao para «ele» ou para «eles» domina a fungao para siproprio, satisfazemos, a longo prazo, as exigencias das nossas socie-dades altamente complexas e, desse modo, tambem as nossasproprias. Mas fazemo-lo a custa da satisfagao de numerosas neces-sidades imediatas espontaneas. Nao dizemos a este homem ou aesta mulher — ao nosso patrao, a um cliente, ao nosso colega oumesmo a um subordinado — o quanto nao gostamos deles, comoos desprezamos e abominamos. Nao dizemos a este homem ou aesta mulher — a nossa secretaria, a um colega do nosso departa-mento, ao nosso cliente, ao agente do banco ou de seguros — oquanto gostamos deles, que eles sao atraentes e como gostariamosde passear com eles. Existem cento e uma maneiras de dominarmosas nossas emogoes — por uma boa razao. Se toda a gente atenuasseou eliminasse as restrigoes, toda a estrutura da nossa sociedade sedesfazia, e a satisfagao da qual dependemos a longo termo, a nfvelde conforto, de saude, de consumos varios, de lazer e muitos outrosque sao importantes quando comparados com os de outros paisesmenos desenvolvidos — privilegios que, com frequencia, nao expe-rimentamos como tais —, perder-se-ia.

Na falta de outro modelo preciso de relagao, habituamo-nos apensar que o equilibrio para o tipo de relagao impessoal, queprevalece nos sectores mais rotineiros da nossa vida social, e propor-cionado pela familia. Ate certo ponto, isto esta possivelmentecorrecto. A familia pode fornecer numerosas formas de equilibrioemocional que combatem a relativa restrigao emocional necessariaem particular na vida professional das pessoas. De facto, se afamilia, enquanto instituigao, perdeu um certo numero de fungoes,pode verificar-se que, em ligagao com o processo de urbanizagao eindustrializagao, ela adquiriu fungoes como um dos agentes sociaispara a satisfagao das necessidades instintivas e emocionais no seiode uma sociedade em que, de outro modo, elas seriam fortementecontroladas mais do que acontece em muitos outros tipos de socie-dades. Mas existem varias indicates de que a familia por si mesmanao e suficiente para o provimento de todas as necessidades que, de

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outra forma, sao severamente reprimidas. Uma das razoes consisteno facto de a propria vida familiar ser, nas nossas sociedades, muitorotineira. E, embora ela constitua um espago social para a descon-tracgao especifica aprovada das restrigoes que mantem as nossastendencias sob vigilancia, tambem e necessario reconhecer que elaproduziu, particularmente em relagao ao aumento de igualdade depoder entre os sexos e as geragoes, novos tipos de tensoes. Outrarazao e o facto de que, no quadro da familia, a fungao de equilibrio— a satisfagao das tendencias e emogoes que proporciona — estaassociada a uma obrigagao muito forte e quase inevitavel. Esta obri-gagao caracteriza-se pela existencia de tres niveis. Da ligagao destestres niveis, a de dois e tipica das multiplas obrigagoes nas socieda-des mais desenvolvidas. Marido e mulher, nas suas relagoes, pais emrelagao aos filhos, estao dependentes uns dos outros por todos osgeneros de pressoes sociais, nao so as dos vizinhos ou amigos mas,tambem, as da lei. Marido e mulher estao dependentes um do outroe dos seus filhos, como sabemos, por um «sentido de responsabili-dade» ou, por outras palavras, pela sua propria consciencia. Emcertos casos, estao tambem dependentes, para alem de razoes denatureza emocional, pela afeigao mutua e, talvez, pelo amor quesentem um pelo outro. Muito pouco se conhece sobre a maneiracomo estes tres niveis de obrigagoes familiares afectam cada um.Supoe-se, frequentemente, que a primeira e tambem a segundadestas obrigagoes sao necessarias para que, desse modo, a terceira seforme e se conserve. Se formos honestos para nos proprios, dirfamosque sabemos demasiado pouco sobre a natureza da ligagao emocio-nal duravel de um casal. Embora a satisfagao sexual desempenhe afum papel — e isto e caracteristico da maneira de ser dos sereshumanos —, tal ligagao possui, a longo prazo, um caracter bemdiferente daquele que caracteriza a breve duragao do acto sexual.Em teoria, mal comegamos a atingir a superficie na nossa explora-gao da natureza e das condigoes da obrigagao emocional, a longoprazo, dos seres humanos entre si. Se for mutua, e provavelmentea mais gratificante das experiencias humanas, mas esta afirmagaotern de ser esclarecida dado que, nas situagoes em que o problemado amor esta em causa, e extremamente diffcil progredir da ideiapara o proprio facto. Nem ninguem comegou sequer a explorar arelagao entre os efeitos verificados sobre as obrigagoes institucionaisatraves da propria consciencia de cada um. Ate mesmo, para se

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chegar a este estadio de clarificagao conceptual, se sentiram dificul-dades. Se pudessemos avangar nesta materia, se soubessemos maissobre a interdependencia funcional destas tres camadas de obriga-goes famiHares, poderiamos ser capazes de enfrentar e de analisar amudanga de condigoes da vida familiar de uma forma mais realistado que aquela que e possivel realizar no presente. Mas seja comofor, pode compreender-se melhor o caracter peculiar do lazer comoum enclave onde se pode encontrar um tipo de revigoramento emo-cional sem nenhuma destas obrigagoes desde que o consideremosem relagao a familia, onde o revigoramento de outro tipo diferentese pode encontrar, mas apenas relacionado com obrigagoes emocio-nais e outras.

Sem fazermos referenda ao facto de que as actividades de lazernao exigem obrigagao nao se podem entender perfeitamente asfungoes especificas que estas cumprem na vida das sociedadesindustrials. A satisfagao das emogoes e dos instintos, proporcionadano quadro da familia, esta limitada por fortes restrigoes institucio-nais e normativas. Dado que esta satisfagao se cumpre no longoprazo, pode tornar-se, em certa medida, rotineira. A satisfagaopessoal esta subordinada, em parte, a consideragao dos outros, osquais, por sua vez, alimentam essa satisfagao. A satisfagao propor-cionada pelo lazer esta limitada, em grande medida, ao momento.Ela e extremamente breve. Simultaneamente, esta satisfagao oferecea oportunidade de contrariar a restrigao emocional, a comparativafalta de estimula^ao emocional expressa abertamente, caracteristicados principals sectores de actividades nas sociedades mais diferen-ciadas, atraves de outro tipo de actividades cuja fungao primaria ea de proporcionar prazer a si proprio. As actividades de lazer,desprovidas de qualquer caracter de obriga^ao, podem contrariar asrestrigoes emocionais normals com excepgao daquela que um in-dividuo deseja assumir voluntariamente em qualquer momento.Mas esta clara ausencia de obrigagao, misturada com um elevadograu de estimulagao emocional, que, reunidos, dao a muitas acti-vidades de lazer as caracteristicas a que nos referimos como «jogo»ou «brincadeira», levanta problemas especificos.

Ja nos referimos ao facto de que, nas sociedades mais ou menosordenadas, as situagoes que desencadeiam fortes emogoes sao con-sideradas com desconfianga, em particular por aqueles que saoresponsaveis pela conservagao da boa ordem. O que se afirmou,

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antes, sobre as emogoes serem de natureza a favorecer a transmissaode forgas de acgao explica esta tendencia. Sob o impacte de senti-mentos fortes, as pessoas agem de uma maneira que elas propriasnao podem controlar mais e que, por esse motivo, os guardioes daordem na sociedade tern dificuldade em controlar. Todas as areasdas sociedades complexas, em que a incrustagao das actividades pormeio de extensas cadeias de interdependencias tern de ser preser-vada, sao, por essa razao, limitadas, de um modo geral, por regu-lamenta^oes e sangoes destinadas a impedir o desenvolvimentoincontrolado das emogoes. A forma atraves da qual a maioria dassociedades associa a legitimagao da satisfagao sexual e de outrassatisfagoes emocionais no quadro da famflia, por meio de sociali-zagao, de cren^as, de restrigoes directas e de proibi^oes, impedindoos perigos que podem resultar para os outros de qualquer libertagaode forgas instintivas ou emocionais, ja foi referida. Talvez nemsempre se compreenda perfeitamente que os mesmos problemassurgem a respeito das actividades de lazer. Ja referimos quenumerosos tipos de lazer integram, como uma das suas carac-teristicas principals, um elemento de risco, um «brincar com ofogo». A primeira vista, isto pode parecer um risco so para aquelesque se empenham em qualquer actividade particular — a apostapara o jogador de azar, as corridas de automoveis para o condutor.Mas isso nao e tudo. As actividades de lazer, tal como o procuramosdemonstrar, constituem um enclave onde, ate certo ponto, oscontrolos emocionais podem ser atenuados, e no qual a excitagao eestimulada e abertamente expressa. Nas nossas sociedades tao bemreguladas, a legitimagao de qualquer diminuigao de autocontroloimplica riscos nao so para as proprias pessoas envolvidas mas,tambem, para os outros, para a «boa ordem» da sociedade. Aoinvestigar o desenvolvimento do futebol, por exemplo, constatamoso facto de que, na Idade Media, os reis e as autoridades das cidadestentaram durante seculos proibir o jogo de futebol, entre outrasrazoes porque ele terminava invariavelmente em derramamento desangue ou, se era jogado nas ruas de uma cidade, acabava, pelomenos, com muitas janelas partidas18. A incapacidade das autorida-des em por fim a tudo isto era devida, em grande medida, ao facto

18Ver Cap. V deste volume.

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CAPtTULO II 111

de as pessoas envolvidas terem grande prazer na excitagao propor-cionada pelo jogo e pela diminuigao das restrigoes. Porem, a orga-niza^ao do controlo do Estado nao era suficientemente eficaz paracontrariar a atracgao que a emogao excitante do jogo tinha para osjogadores.

Hoje, a eficacia do poder de restrigao do Estado tornou-semuito maior, mas o facto de ela ser tao elevada nao pode ser esque-cido, se pretendermos compreender algumas das caracteristicas es-truturais e problemas correntes das actividades de lazer do nossotempo. O equilibrio de tensao entre o desejo de revigoramentoemocional dos que se entregam as actividades de lazer e a vigilanciamantida pelas autoridades do Estado, de modo a que nenhum malpossa advir desta relaxa^ao de controlo tanto para os que procuramo lazer como para os outros, e hoje uma caracteristica de organiza-gao e de direcgao das actividades de lazer tao fundamental como eranas sociedades medievais que mencionamos. Mas o facto de o con-trolo do Estado ser muito mais energico teve certas consequenciaspara estas actividades. For agora, e suficiente assinalar que a neces-sidade de um elevado grau de regulagao parece ter influenciadouma tendencia mais acentuada no sentido da sofisticagao e dasublimagao das respostas emocionais presentes nas actividades delazer. O aspecto mimetico das ocupagoes de lazer no nosso temponao pode ser bem compreendido sem referir que o apelo de muitasdelas, embora nao de todas, ja nao e orientado para necessidadesemocionais ou instintivas, na sua forma mais elementar, emborapossa parecer ser exactamente isso, mas, antes, para con juntos deexigencias afectivas, onde misturas de sentimentos compostos en-tram em jogo. Mas o facto de o controlo do Estado ser muito maiseficaz tambem significa que a sua acgao e mais harmoniosa eprevisivel. Ele actua, frequentemente, apenas como um «guardiaonos bastidores», confiando, em grande medida, no autocontrolo do«guardado». Uma analise sociologica das actividades de lazer seriamuito fragmentaria se nao considerasse o facto de que os dois dostres niveis de obriga^oes mencionados antes, em referenda afamflia, tambem desempenham o papel de uma estrutura de con-trolo nas actividades de lazer.

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A luz do quadro teorico que expusemos acima, a unidade estru-tural que existe por tras da variedade das ocupagoes do lazer torna--se mais visfvel. No seu centro permanece a separagao bastanterigida, imposta aos seus membros pelo caracter das sociedadesmuito diferenciadas, entre uma esfera da vida social onde predomi-nam as actividades e experiencias dirigidas para objectivos impes-soais — no qual tern uma estrita prioridade as fungoes de tudoaquilo que alguem faz pelos outros relativamente as fungoes do quese realiza para si proprio e onde as satisfagoes emocionais sao estri-tamente subordinadas a fria reflexao — e uma esfera em que pre-valece a ordem oposta de prioridades: os processos de pensamentorelativamente desprovidos de emogoes e de natureza impessoalestao enfraquecidos, os processos emocionais estao fortalecidos,dando-se maior peso ao que se realiza para si proprio do que ao quese faz para os outros. As actividades de lazer preenchem estasfungoes atraves de uma diversidade de meios. Por carencia deuma palavra melhor chamar-lhe-emos «elementos de lazer». Basi-camente, aqui estao tres: sociabilidade, mobilidade e imaginagao.Se olharmos para as categorias de actividades de lazer indicadas noespectro do tempo livre, pode ver-se, de imediato, que nao hanenhuma actividade onde estas tres formas elementares de activa-gao emocional se encontrem ausentes. Tambem se pode ver quedois ou tres destes elementos se combinam com frequencia embora,um deles possa ser dominante em qualquer das actividades. Cadaum destes elementos pode servir, a sua maneira, como um meio deatenuar os controlos que, na esfera do nao lazer, mantem severa-mente vigiadas as inclinagoes afectivas das pessoas. A consideragaodestes elementos aponta, de novo, para o modelo geral de sereshumanos, isto e, para um equilibrio de tensao instavel entre umaesfera onde a actividade intelectual impessoal e o controlo dasemogoes que a acompanha prevalece sobre a estimulagao das acti-vidades emocionais e outra esfera onde a excitagao agradavel desemelhante processo emocional prevalece e os controlos inibitoriosestao enfraquecidos. Para explicar as fungoes destes elementos delazer, bastara discutir aqui duas das esferas primarias das activida-des de lazer nas nossas sociedades: as que denominamos esferas da«sociabilidade» e «mimetica».

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CAPITULO II 179

1) A sociabilidade como um elemento basico do lazer desem-penha um papel na maioria das actividades de lazer, senao emtodas. O que significa dizer que um elemento do prazer e o senti-mento agradavel vivido pelo facto de se estar na companhia dosoutros sem qualquer obrigagao ou dever para com eles, para alemdaqueles que se tern voluntariamente. Este tipo de estimulagaodesempenha um papel se alguem vai as corridas, a um clube dejogo de azar, a uma cagada, a um pequeno baile e, ate mesmo, sealguem vai a um restaurante com o seu marido ou a sua mulher:mesmo af, como dissemos antes, o facto de comer fora com osoutros, ainda que nao se saiba nada sobre eles, desempenha umpapel no seu prazer, mesmo que seja secundario relativamente aoutros elementos primarios da situa^ao de lazer. A propria sociabi-lidade desempenha um papel primario em encontros, como festas,ida ao bar, visitas a amigos e por ai fora. Podem encontrar-senumerosas observances acidentais sobre sociabilidade na literaturasociologica; contudo, faltam investigates sociologicas baseadasnuma solida teoria do lazer que tenham como seu tema centralproblemas de sociabilidade. E facil verificar a relevancia deste tipode pesquisas para uma teoria da sociedade. Muitas das reunioessociais possuem as caracteristicas do que, na falta de uma palavramelhor, pode ser chamado «\azet-gemeimchaften»\ elas proporcio-nam, de forma evidente, oportunidades para uma integragao maisprofunda e — como intengao — a amigavel emotividade que difereacentuadamente da que e considerada como normal na profissao enoutros contactos de nao lazer entre as pessoas. Estas diferengas denivel emocional entre as reunioes sociais como «ba,t-gemeinschaften»,festas ou bebida com caracter social numa messe de oficiais, e nasreunioes de grupos de nao lazer, como assembleias de fabricas oureunioes de comissoes, sao faceis de observar, mas mais dificeis deconceptualizar. Talvez nao seja inadequado aplicar-lhes, de formaabreviada, o conceito de gemeinschaft* dando-lhe um sentido umpouco diferente em comparagao ao do seu uso tradicional. Atravesdos exemplos dados, e facil abandonar as conotagoes romanticas tra-

*Gemeinschaft designa, de acordo com a perspectiva de Ferdinand Tonnies, todoo tipo de vida dominado por um caracter intimo, privado e reservado, proprio da vidacomunitaria. (N. da T.)

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dicionais associadas ao termo gemeinschafi; Pessoas que no seu tempode lazer considerem ser gratificante reunir-se num «bzr-gemeins-chaft» ou que gostam de ir a festas que encorajam a integragaodentro de um elevado nivel de evidencia e mais ou menos amiga-velmente emotivas, nao pertencem necessariamente ao mesmoquadro de analise daquelas que, de uma maneira romantica, aguar-dam muito tempo por um retorno a aldeia gemeinschaft dos seusprimeiros dias de vida. Esta e uma relagao estrutural de generos —que nao precisa de ser aqui discutida — entre as tendencias nosentido do «l&zer-gemeimcbaft» nas sociedades urbanas industriais ea ansia romantica da «aldeia-gemeimcbaft», mas as diferengas saobastante claras. E duvidoso que os adultos que hoje gostam departicipar num «la.zer-gemeinscbaft» periodico mas transitorio dese-jassem atribuir-lhe um caracter permanente, com excepgao dostipos de relagao emocionalmente mais restritos que predominam nanossa vida de nao lazer. Nao e improvavel que muitas pessoas queapreciam as reunioes sociais do seu tempo de lazer possam naogostar em absoluto delas, se estas se tornarem uma forma de vida.A alternancia caracteristica na vida de muitos, entre a participagaonum «nao lazer gesellschaft»* e num «la.zer-gemeinscbaft» transitorio,assinala o caracter complementar dos dois tipos de relagoes nasnossas sociedades.

Compreendido desta maneira, o termo «lazei;-gememschaft» abreum campo muito vasto de pesquisa. Nas sociedades industriais,estas oportunidades passageiras de maior evidencia afectiva e rela-tivamente espontaneas, embora de integragao variavel, estao entreas instituigoes comuns socialmente estandardizadas, para as quaisse canalizam com grande regularidade muitas exigencias de lazerdas pessoas. Neste caso, em contraste com as instituigoes mimeticasde lazer, as pessoas reunem-se sem possuirem necessariamentequalquer competencia tecnica especializada, sem «actuagao» paraos outros ou para si proprias (embora isso possa acontecer aciden-talmente), so para desfrutarem a companhia uns dos outros, paraterem prazer, isto e, um nivel mais elevado de calor emocional, de

*Gesellscbaft designa, em contraponto, a gemeinschaft e, ainda segundoF. Tonnies, o tipo de vida em sociedade, publica e de caracter social ou associa-tive. (N. da T.)

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CAP ITU LO II

integragao social e de estimulagao atraves da presenga de outros— uma estimulagao divertida, sem obrigagoes serias e os riscos ine-rentes a elas — do que aquele que e possivel experimentar emqualquer outra esfera da vida.

Ao mesmo tempo, a sociabilidade do lazer, assim como asactividades mimeticas, e um indicador de caracteristicas das socie-dades industriais. O «la.zer-gemeinscbaften» opoe-se, em particular, arotina inerente aos contactos relativamente impessoais que saodominantes nas esferas de nao lazer dessas sociedades. Ai, as bar-reiras emocionais entre as pessoas, como as restrigoes exigidas aosindividuos em geral, sao habitualmente elevadas. A existencia do«la.zer-gemeinscbaften» de uma variedade de tipos mostra a necessi-dade corrente dos contactos humanos, do enfraquecimento dessasbarreiras num clima mais intense de manifesta emotividade, comuma marcada preponderancia, ao nfvel intencional, se nao mesmo,de facto, sempre, dos aspectos positives de relagoes que de outromodo seriam ambivalentes. Mas, mais uma vez, no «laser-gemeins-chaften», como noutros factos de lazer, o enfraquecimento das bar-reiras, o elevar do nfvel de emotividade como um agente contrarioao incrustar de rotinas, implica um certo risco. Como a maioria daspessoas sabe, o grau socialmente permitido de destruigao da rotinapode exceder-se.

Para os objectives deste trabalho, nao ha necessidade de falar dovasto campo de possibilidades de investigagao aberto por estaabordagem do problema da sociabilidade do lazer. Contudo, umaarea de investigagao de problemas merece, em certa medida, dis-cussao. Em muitos casos, o prazer que as pessoas tern nas reunioessociais parece acentuar-se atraves do consume de bebidas alcoolicasem comum. Qual e a fungao que o alcool possui enquanto ingre-diente normal de muitas destas reunioes? Se a satisfagao derivadadas reunioes sociais esta relacionada com a diminuigao das barreirasentre as pessoas, com uma agradavel elevagao do nivel de emotivi-dade, porque precisam as pessoas de beber para criar, ou pelomenos aumentar os prazeres da sociabilidade? Pode dizer-se que oacto de beber em comum serve uma fungao de integragao? Quesatisfagoes esperam as pessoas da sua participagao em tais «bebidas-gemeinscbaften»? Quais sao as caracteristicas comuns destas reunioes?Qual e o seu curso normal? Qual e o seu curso Optimo? Quecaminhos se consideram decepcionantes? E em que condigoes deve

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a bebida em comum servir uma fungao desintegradora em vez deuma fungao de integragao?

Se as nossas hipoteses provisorias estao correctas, descobrir-se--a provavelmente que, neste caso tambem, as pessoas esperam dassuas actividades de lazer nao so, como muitas vezes se afirma,«relaxagao» mas antes estimulagao e alegria. Mais uma vez, asabordagens medicas deste tipo de problemas parecem-nos, sem ainvestigagao sociologica complementar, incompletas. Existe a esterespeito uma boa quantidade de provas, sugerindo que tambemneste tipo de actividade de lazer as pessoas procuram um despertaremocional agradavel e excitagao, em resumo, a produgao de tiposespecificos de aumento de tensao em companhia dos outros.

Estas necessidades, aparentemente ubiquas, dos seres humanospor formas de estimula^ao que so podem ser proporcionadas poroutros seres humanos, serao facilmente negligenciadas se olharmos,prioritariamente, como se faz de um modo geral na abordagemmedica tradicional, para o organismo individual como um sistemaautocontrolado. E por esta razao que as tentativas medicas deexplicar a bebida como um ingrediente normal das reunioes delazer se revelam, de certa maneira, inadequadas. Se alguem pro-curar explicar as fungoes sociais da bebida, nao e suficiente assinalarque a «depressao dos centres inibidores do cerebro», devida aoconsumo do alcool, «produz um sentimento passageiro de bem--estar». Se as pessoas procurassem no uso do alcool apenas umsentimento de bem-estar, poderiam muito bem permanecer emcasa a beber o seu alcool. E bastante mais provavel que as pessoasbebam acompanhadas porque pela depressao dos centres inibidoresdo cerebro facilita-se a estimulagao amigavel reciproca, a um nivelrelativamente elevado de emotividade, que e a essencia da sociabi-lidade do lazer. Um copo ou dois favorecem a perda relativamenterapida da habitual armadura de restrigoes profundamente encrava-das e, assim, a abertura a uma divertida excitagao mutua que servede contraponto a relativa solidao do individuo e as suas obrigagoese rotinas, verificadas nas esferas de nao lazer, incluindo as da vidafamiliar. Deste modo, o «\azet-gemeinschaften>> reforgado pela bebidaproporciona, como muitos outros factos de lazer, oportunidadespara elevar, na presenga de outros, o nivel de emotividade manifes-ta em publico. Espera-se, de uma maneira geral, que a excitagaoassim gerada nao va alem de certos limites. Como noutros factores

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CAPITULO II 183

de lazer pode ser dificil de dominar. O risco esta sempre ai. Podebem ser que o «brincar com o fogo», neste caso, tambem constituaum aspecto do prazer. Como muitas outras formas de actividadesde lazer, este brincar com o fogo, este risco, parece contribuir paraa excitagao agradavel e, nessa medida, para o prazer do «lazer-g£-meinschaften». Abordar os limites daquilo que e socialmente to-leravel e, por vezes, transgredi-los, em resumo, suscitar a quebralimitada dos tabus socials em companhia dos outros, talvez acres-cente algum gosto a estas reunioes.

A ubiquidade de oportunidades em que os seres humanospodem reciprocamente «perder as suas armaduras» na companhiados outros sugere que as necessidades de estimulagao emocional,mesmo se ela nao e especifica, exigente e relativamente moderada,e bastante mais forte e mais generalizada do que aquilo que seadmite. O consume de alcool, como e evidente, actua como umauxiliar para as pessoas que, sem ele, poderiam nao ser capazes depassar tao depressa, ou talvez de modo nenhum, dos contactosrelativamente impessoais em grupos dominados por tarefas alta-mente rotineiras e orientadas por objectivos exteriores para acompanhia relativamente menos ordenada e mais pessoal de «lazer--gemeinschaft», que nao possui outro fim senao ele proprio.

2) As caracteristicas distintivas da sociabilidade como umaesfera de lazer sao bastantes claras. Aquelas que estao no centro daclasse de actividades de lazer a que chamamos mimeticas sao talvezmenos claras e necessitam de alguns comentarios. O termo«mimetico» sublinha que numerosas institutes e actividades delazer, habitualmente classificadas como diversas, a um nivel maisreduzido de generalidade, possuem um caracter estrutural es-pecifico em comum. O termo, como o usamos aqui, refere-se aquestao de que os factos e actividades agrupadas sob esse nomepartilham as seguintes caracteristicas estruturais: despertam emo-goes de um tipo especifico que estao intimamente relacionadas deuma forma especifica, diferente, com aquelas que as pessoas expe-rimentam no decurso da sua vida ordinaria de nao lazer. No con-texto dos factos mimeticos, as pessoas podem experimentar e, emalguns casos, representar medo e riso, ansiedade e amor, simpatiae antipatia, amizade e odio e muitas outras emogoes e sentimentosque tambem podem experimentar na sua vida de nao lazer. Mas nocontexto mimetico todos os sentimentos e, no caso de isso suceder,

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os actos dominados pelas emogoes com eles relacionados trans-poem-se. Perdem o seu ferrao. Mesmo o medo, o horror, o odio eoutros sentimentos que estao longe de serem agradaveis, e as acgoescorrespondentes no quadro mimetico, associam-se em maior oumenor dimensao a sentimentos de prazer. As experiencias e ocomportamento das pessoas num contexto mimetico representam,desse modo, uma transposigao especifica de experiencias e decomportamentos caracterfsticos das chamadas coisas «serias davida», quer este termo se refira ao trabalho profissional quer aoutras actividades de lazer. Nao significa que o ultimo seja umaimitagao ou reflexo do primeiro. Refere-se ao facto de que nocontexto mimetico, o comportamento emocional e as experienciasda vida ordinaria adquirem uma tonalidade diferente. Aqui podemexperimentar-se e, em alguns casos, representar-se sentimentosfortes sem se correr qualquer dos riscos normalmente associados atodas as actividades que se realizam sob o impacte de forte excita-gao emocional, em particular nas sociedades altamente civilizadasmas, em certa medida, tambem nas outras. De facto, o despertar deexcitagao de tipo especifico e o fulcro de todas as actividadesmimeticas de lazer. Fora do contexto mimetico, o publico despertarde intensa excitagao e a manifestagao de um comportamento exci-tado sao controlados, de um modo geral, de forma severa; saolimitados pela propria consciencia das pessoas. No contexto mime-tico, a excitagao agradavel pode demonstrar-se atraves da aprovagaodos amigos e da propria consciencia, desde que nao exceda certoslimites. Pode experimentar-se odio e o desejo de matar, derrotaradversaries e humilhar inimigos. Pode participar-se fazendo amorcom o homem ou a mulher mais atraentes, experimentando asansiedades de ameagadora derrota e o aberto triunfo da vitoria. Emresumo, pode tolerar-se, ate certo ponto, o despertar de fortessentimentos de grande variedade de tipos em sociedades que, deoutra forma, impoem as pessoas uma vida de rotinas relativamenteharmoniosa e sem emogao, e que exige um nivel elevado e granderegularidade de controlos emocionais em todas as relagoes huma-nas.

Deste modo, as actividades mimeticas partilham com os outrosdois tipos de lazer a fungao de antidotos para as rotinas da vida.Mas no seu caso depara-se-nos pelo menos nas sociedades altamenteindustrializadas, uma grande variedade de institutes e de organi-

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CAPITULO II 185

zagoes particularmente especializadas para as tarefas de lazer, parao despertar de excitagao mimetica, como um ponto cristalizadorpara um vasto campo de outras experiencias. Estas tarefas alta-mente especializadas reunem institutes mimeticas e actividadesque, de forma geral, se agrupam em compartimentos separados,tais como divertimento e cultura, desportos e arte. For certo, seranecessario olhar com maior profundidade para estas diferengas, masdificilmente isso podera efectuar-se sem que, ao mesmo tempo, seinvestiguem as suas caracteristicas comuns nao so enquanto factosde lazer mas, tambem, como factos mimeticos de lazer.

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CAPITULO III

A genese do desporto: urn problema sociologico

Norbert Elias

1

Muitos tipos de desportos que hoje sao praticados, de maneiramais ou menos identica, por todo o mundo tiveram origem emInglaterra1. Daqui propagaram-se para outros paises, principal-mente, na segunda metade do seculo XIX e primeira metade doseculo XX. O futebol, sob a forma que se tornou conhecida emInglaterra por association football ou atraves da abreviatura popularde soccer, foi um deles. Corridas de cavalos, luta, boxe, tenis, cagaa raposa, remo, criquete e atletismo foram outras formas. Masnenhuma foi adoptada e absorvida pelos outros paises com tantaintensidade e, em muitos casos, com tanta rapidez, como se delesfizessem parte, como o futebol. Nem gozaram de tanta populari-dade2.

O termo ingles sport tambem foi largamente adoptado poroutros paises como um termo generico para este tipo de passatem-pos. O facto de os sports, o tipo especifico de passatempos ingleses

xEste trabalho foi publicado previamente em Eric Dunning (ed.), The Sociologyof Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. O quadro teorico ai integrado estamuito relacionado e e, de facto, uma extensao da teoria dos processes de civilizagaodefinidos por Norbert Elias em The Civilizing Process, Oxford, 1978; e State Formationand Civilization, Oxford, 1982.

2Nao e possfvel investigar aqui, com maior minucia, o facto de terem sidobastante mais reduzidas, quanto ao seu campo de acgao, a difusao e a adopgao daforma mais «rude» do futebol ingles, em contraste com a difusao e a adopgao deforma denominado soccer. Mas talvez merega a pena referir que o estudo deste tipode problemas pode fornecer uma boa quantidade de provas e servir como um temade estudo para aspectos especiflcos de uma teoria sociologica do desporto.

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188 A GfiNESE DO DESPORTO

que se divulgaram por muitos paises, particularmente entre 1850e 1950, possuirem em comum certas caracteristicas singulares, jus-tificando a referida designagao, foi por certo mais notado nos outrospaises do que em Inglaterra. Um comentador alemao escreveu em1936:

Como bem sabemos, a Inglaterra foi o bercp e a «mae» devota dodesporto... Parece que os termos que se referem a este carnpo setornaram propriedade comum de todas as nagoes, da mesma manei-ra que os termos tecnicos italianos no campo da musica. E raro,provavelmente, que uma pec,a de cultura tenha migrado com taopoucas mudangas de um pais para outro3.

O facto de o «desporto» — o dado social tanto quanto a pala-vra — ser, de inicio, estranho nos outros paises pode demonstrar--se a partir de muitos exemplos. O tempo de um processo dedifusao e de adopgao e sempre um dado significative no contextode um diagnostico sociologico. Desta maneira, na Alemanha de1810, um aristocrata escritor, que conhecia a Inglaterra, continua-va a poder dizer que sport e tao intraduzivel quanto gentleman4. Em1844, outro autor alemao escreveu, a respeito do termo sports, que«nao temos palavra para isso e somos quase forgados a introduzir otermo na nossa lingua»5. A difusao do termo ingles sport como umaexpressao que os Alemaes podiam compreender com naturalidadecontinuou lenta ate 1850. Gradualmente adquiriu impeto emcon junto com o crescimento das proprias actividades desportivas.Por fim, no seculo XX, o termo sport estabeleceu-se por completecomo uma palavra alema.

Em Franga o Larousse du XIX.1™6 Siecle caracterizava desta ma-neira o termo sport: «Sport — sportt: palavra inglesa formada doantigo frances cksport, prazer, diversao...» Lamentava-se quanto aimportagao de tais termos «que, obviamente, corrompem a nossalingua, mas nao temos barreiras de costumes que proibam a sua

3Tradugao do autor de England* Einfluss auf den deutschen Wortschatz, deAgnes Bain Stiven, Marburgo, 1936, p. 72.

4Prmcipe Puechlser-Muskau, Brief e ernes Verstorbenem, 9 de Outubro de 1810.5J. G. Khol, citado por F. Kluge em Ethymologtsches Worterbuch, IT edi^ao,

1957, artigo sobre desporto.

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CAPITULO III 189

passagem na fronteira»6. Outras importances de Inglaterra paraFranga, quer factuais como verbals foram turf, jockey, steeplechase,match, sweepstake, boxe*. Ja, sob Luis XVIII, as corridas de cavalos eas apostas, de acordo com os modelos ingleses, se tinha divulgadoem Franga. A moda desapareceu durante a revolugao, mas foirevivida com o restabelecimento de uma classe alta mais ou menosaristocratica. Em 1833, fundou-se em Paris um clube de joqueis.De facto, o tipo aristocratico ou de society dos passatempos que do-minavam, com o sentido do termo sport, em Inglaterra, na primei-ra metade do seculo XIX, propagou-se a outros pafses, tendo sideadoptado pelas correspondentes elites sociais antes de os tipos maispopulates, como o futebol, se desenvolverem com as caracterfsticasde um sport', antes mesmo de estes serem compreendidos como talna propria Inglaterra e de se propagarem, sob essa forma, a outrospafses como um passatempo de grupos da classe media e dos tra-balhadores. Na Alemanha, como em Franca, alguns termos inglesesque pertenciam a linguagem do desporto do tipo das classes altasfpram adoptados ja no seculo XVIII. Desde aproximadamente 1744,um velho termo baxen apareceu na forma literaria de boxen. Paracompreendermos o desenvolvimento das sociedades europeias, talcomo para se compreender o proprio desporto, e muito significati-vo que os primeiros tipos de desportos ingleses adoptados poroutros pafses tenham sido as corridas de cavalos, o pugilismo, acaga a raposa e passatempos semelhantes, e que a difusao de jogosde bola, como futebol e tenis, e do «desporto» em geral, no sentidomais contemporaneo, tenha comegado somente na segunda parte doseculo XIX.

A transformagao dos polimorfos jogos populares ingleses emfutebol ou soccer assume o caracter de um desenvolvimento bastantevincado no sentido de maior regulamentagao e uniformidade. Estaculminou na codificagao do jogo, a um nivel nacional, mais oumenos em 1863. O primeiro clube alemao de futebol fundou-se, de

6Larousse du XIVrem Siecle.*Turf, relvado; jockey, corredor professional nas corridas de cavalos; steeplechase,

corridas de cavalos com obstaculos; match, desaflo, jogo, competigao desportiva;sweepstake, uma certa modalidade de aposta, principalmente nas corridas de cavalos,em que o vencedor recebe todo ou quase todo o dinheiro apostado; boxe, pugilismo.(N. da T.)

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modo bem elucidative, em Hanover, em 1878. Na Holanda, o pri-meiro clube de futebol foi fundado em 1879/80 e, em Italia, cercade 1890. As federagoes de futebol fundaram-se na Suiga, em 1895,na Alemanha, em 1900, e em Portugal, no ano de 1906, o querevela o aumento do numero de clubes em cada pais. So na Holandaexistiam, desde 1900/01, vinte e cinco clubes de futebol, cada umcom mais de dez membros. Em 1910/11, o numero de clubeselevara-se para cento e trinta e quatro. De 1908 em diante, ofutebol tornou-se — com algumas interrupgoes — um elementoregular dos Jogos Olimpicos.

A medida que o jogo se divulgava por outros paises, o propriotermo futebol, muitas vezes transformado por conveniencia e, namaior parte das vezes, associado ao tipo de futebol ingles soccer,invadiu outras linguas. Em Franga manteve a sua forma original.Na Alemanha transformou-se sem grande diflculdade em fussball.Em Espanha tornou-se futbol com caracteristicas derivativas, comofutbolero tfutbolista. Em Portugal tornou-se futebol, na Holanda voet-bal. Nos Estados Unidos, tambem o termo football se relacionoudurante um tempo com o tipo de jogo soccer, mas entao o termoalterou o seu sentido, de acordo com as mudangas verificadas nosucesso do proprio jogo. O tipo dominante americano de jogo defutebol transformou-se de modo gradual a partir do soccer. Algumasdas principals universidades americanas, segundo parece, divergi-ram a partir das suas regras iniciais, primeiro influenciadas poruma variante canadiana do rival ingles do futebol, o rugby-footballou rugger, que se desenvolveu entao a sua maneira. Mas o termofootball permaneceu associado a um estilo diferente de jogar, queevoluiu de modo gradual e, por fim, foi estandardizado nos EstadosUnidos, enquanto o tipo de jogo association se tornou ai conhecidopura e simplesmente como soccer, em contraste com o uso conti-nuo do termo futbol e football para esta forma de jogo nos Estadoslat ino-americanos.

Poderiam apresentar-se muitos outros exemplos desta difusaoa partir de Inglaterra e de absorgao por parte de outros paisesdo desporto e dos termos a ele associados. Numa primeira aborda-gem, estes exemplos sao talvez suficientes para apresentar o proble-ma.

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Que se pode concluir do facto de um tipo de passatempo ingleschamado «desporto» ter determinado, principalmente no seculoXIX e XX, o padrao de um movimento de lazer de dimensaomundial? Passatempos deste tipo correspondent como parece evi-dente, a necessidades especfficas de lazer que se fazem sentir du-rante esse periodo em varios paises. For que razao emergiram elas,em primeiro lugar, em Inglaterra? No desenvolvimento e na estru-tura da sociedade inglesa, que condigoes justificam o progresso afverificado nas actividades de lazer com as caracterfsticas especificasque designamos por «desporto»? E o que distingue os passatemposque as possuem dos anteriores passatempos?

A primeira vista pode sentir-se que este con junto de questoesse baseia em hipoteses falsas. Na verdade, as sociedades contempo-raneas nao sao as primeiras nem as unicas cujos membros sentiramprazer no desporto. As pessoas nao jogaram futebol em Inglaterrae em outros paises durante a Idade Media? Os cortesaos de LuisXIV nao possuiam os seus courts de tenis e nao apreciaram o seu jeude paume! E, acima de tudo, os antigos gregos, os grandes pionei-ros do «atletismo» e de outros «desportos», nao organizaram, comonos, competigoes de jogos locais e interestados numa escala gran-diosa? O renascimento dos Jogos Olimpicos do nosso tempo nao eum indicador suficiente quantd ao facto de o «desporto» nao sernada de novo?

Sem considerar brevemente o problema de conhecer se, narealidade, as competigoes de jogos da antiga Grecia possuiam ascaracterfsticas daquilo que agora consideramos como «desporto», ediffcil clarificar a questao de saber se o tipo de competigoes dejogos que se desenvolveram durante os seculos XVIII e XIX, emInglaterra, sob o nome de «desporto», e que desde af se propaga-ram a outros pafses, era alguma coisa relativamente nova ou se setratava do reaparecimento de alguma coisa antiga que, sem expli-cagao, estivesse desaparecida. O termo «desporto» e utilizado nopresente de uma maneira bastante vaga, de forma a abranger con-frontos de jogos de numerosos generos. Como o termo «industria»,e utilizado tanto num sentido lato como num sentido restrito. Nosentido lato refere-se, tambem como o termo «industria», tanto aactividades especfficas de sociedades tribais pre-Estado e de socie-

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dades-Estado pre-industriais, como as actividades correspondentesdos Estados-nagoes industriais. Se, contudo, no presente utilizar-mos o termo «industria» neste sentido lato, estamos bem conscien-tes do seu sentido restrito e mais precise, ou seja, do facto de o«processo de industrializagao» dos seculos XIX e XX ser algo muitorecente e de os tipos especificos de produgao e de trabalho que sedesenvolveram, em fase hodierna, sob o termo «industria», pos-suirem certas estruturas unicas que podem ser determinadas socio-logicamente com razoavel precisao, sendo nitidamente distintas dasestruturas de outros tipos de produgao. Se falarmos de «desportos»,todavia, continua a empregar-se o termo de maneira indiscrimina-da, quer num sentido lato, em referencia ao confronto de jogos eaos exercicios fisicos de todas as sociedades, quer num sentido maisrestrito, em relagao ao tipo especifico de praticas de jogos que,como o proprio termo, teve origem em Inglaterra e dai se propa-gou a outras sociedades. Este processo — podiamos designa-lo por«desportivizagao» das competigoes de jogos, se isso nao soasse deuma forma tao pouco atraente — evidencia um problema que ebastante claro: no recente desenvolvimento da estrutura e da orga-nizagao destas actividades de lazer a que chamamos «desporto»,sera possfvel descobrir orientagoes que sejam tao singulares como asque se observam na estrutura e organizagao do trabalho, a que nosreferimos quando falamos de um processo de industrializagao?

Esta e uma questao em aberto e pode ser facilmente mal inter-pretada. Perante a avaliagao dominante que se faz do trabalho,como algiima coisa de muito maior valor do que as actividades delazer de todos os generos, pode sugerir-se sem difkuldade quequalquer transformagao quer nas actividades de lazer em geral quernos confrontos de jogos em particular, que tern ocorrido nosultimos duzentos anos aproximadamente, devem ter sido o «efeito»do qual a industrializagao foi a «causa». A expectativa implicita derelagoes casuais deste tipo encerra o problema, provavelmente,antes de este ter sido aberto. Pode, por exemplo, considerar-se apossibilidade de que tanto a industrializagao como a transformac.aodas ocupagoes especificas de lazer em desportos serem aspectos deorientagao interdependentes no quadro da transformagao global dassociedades-Estado, nos tempos recentes. So pode haver esperangade clarificar o problema que aqui se nos depara se decidirmosdeixar de tratar como «causas» as mudangas nas esferas sociais que

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se classiflcam de superiores na escala de valores de uma sociedade,e como «efeitos» as mudangas em esferas inferiores. E a explicagaodo proprio problema — o da genese do desporto — e a principaltarefa deste pequeno trabalho. Neste, como em muitos outros casos,e mais facil encontrar solugoes se soubermos com clareza qual e oproblema.

O excerto que se segue de um artigo de atletismo numa edigaorecente da Encyclopaedia Britannica pode ser encarado, provavel-mente, como um razoavel sumario das perspectivas convencionaisexistentes quanto a este problema:

Os primeiros registos historicos de atletismo sao os dos jogosOlimpicos gregos (800 a. C.)... proibidos pelo imperador Teodosiono ano de 349 d. C. A historia do atletismo, entre a queda de Roma,no seculo V, e o seculo XIX, e bastante imprecisa. Na Idade Media,os festivais religiosos eram acompanhados por rudes jogos de bolaentre cidades rivais ou corporagoes. Estes foram os percurssores dosgrandes espectaculos desportivos do seculo XX: soccer, basebol, tenis,futebol, etc. O advento da revolugao industrial, em meados do seculoXVIII, e a posterior introduce dos desportos como uma actividadeextracurricular regular nas escolas publicas, por Thomas Arnold(1830), proporcionaram um avan^o que conduziu ao grande desen-volvimento do desporto durante a epoca vitoriana de Inglaterra. Acoroar o renascimento do seculo XIX estava a restauragao dos JogosOlfmpicos em Atenas, no ano de 1896. Assim que o seculo XXsurgiu, o interesse por todos os desportos de competigao atingiu ocume e, apesar de duas guerras mundiais e de numerosas hostilida-des menores, este interesse continua a aumentar.

Este resumo, como se pode ver, apresenta factos razoavelmentedocumentados. Em alguns mementos, insinua uma explicagao,como a do impulso que se supoe ter sido dado ao desporto por meioda iniciativa do Dr. Arnold. Mas dificilmente este trecho podera sernomeado para abrir os olhos do leitor quanto a muitos problemasnao resolvidos que se escondem sobre a suave superficie da narra-tiva. Por exemplo, como se pode explicar que os festivais religiosos

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na antiguidade, em Olimpia e em outros locals, fossem, aparente-mente, menos rudes e, desse modo, de caracter mais proximodaqueles do seculo XIX e XX? E como pode determinar-se o factode estes serem menos rudes? E como aquilatar-se que estes saomenos rudes? Como pode determinar-se, com um razoavel grau deprecisao, variagoes na «rudeza» quanto a execugao dos jogos, noambito dos padroes civilizados? E como pode alguem explica-los?Como se explica o «grande desenvolvimento do desporto», o «res-tabelecimento do atletismo no seculo XIX»? Se recordarmos os tor-neios da Idade Media ou os inumeros jogos populares desse perio-do — nao suprimidos e, de facto, irreprimfveis, mesmo que asautoridades os desaprovassem, como os repetidos edictos contra apratica do futebol em Inglaterra e noutros paises europeus indi-cam — dificilmente se pode afirmar que ai nao existiu, nessa epocaum interesse muito grande pelos confrontos de jogos desse tipo. Asdiferengas entre as competigoes de jogos que as pessoas desfrutavamna epoca da «revolugao industrial consistiam apenas numa ques-tao de um maior ou menor grau de «rudeza»? A que se deve o factode os ultimos serem menos selvagens, de serem mais «civilizados»?E esta e uma das caracteristicas que os distinguem do desporto?Mas, nesse caso, justifica-se falar de um «renascimento»? O movi-mento do desporto no seculo XIX e XX e outra Renaissance*, uminexplicavel «renascer» de alguma coisa que existiu na Antigui-dade, pereceu na Idade Media e, por razoes desconhecidas, renas-ceu, simplesmente, no nosso tempo? As competigoes de jogos naAntiguidade eram menos «rudes» e menos selvagens? Seriam,como as nossas, relativamente contidas e representativas de umasensibilidade comparativamente elevada, oposta ao alegre provocarde ferimentos graves nos outros, para deleite dos espectadores? Oua tendencia para apresentar o movimento dos desportos modernoscomo uma restauragao de um movimento similar na Antiguidadee uma dessas benevolas lendas ideologicas, utilizadas inocente-mente como um meio para fortalecer a unidade de um movimentoque esta repleto de tensoes e de tendencias conflituosas, e pararealgar o seu encanto e prestfgio? Nesse caso, nao seria talvezpreferivel examinar, de modo realista, as condigoes especificas que

*Renascenga, em Frances no original. (N. da T.)

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contribuiram para a genese e ascensao do movimento dos desportosdo nosso tempo, enfrentar o facto de que competigoes de jogos dotipo que nos chamamos «desporto», tal como os Estados-nagoesindustrials onde surgiram, possuem certas caracteristicas unicasque os distinguem dos outros tipos, e iniciar assim a dificil tarefade investiga-los e de explicar a natureza destas caracteristicas dis-tintivas?

A partir de um exame mais profundo, nao e dificil verificar queos concursos de jogos da Antiguidade Classica, que sao representa-dos com frequencia como paradigma do desporto, possuiramnumerosas caracteristicas importantes e progrediram sob condigoesque eram muito diferentes das que distinguem os nossos propriosconcursos de jogos. O ethos dos concorrentes, as regras das provase os proprios desempenhos diferem nitidamente, em muitos aspec-tos, dos que sao caracteristicos do desporto moderno. Muitos dosescritos relevantes de hoje apresentam urna forte tendencia paraminimizar as diferengas e aumentar as similaridades. O resultadodisso e um quadro distorcido de nos proprios, bem como da socie-dade grega, e um quadro falseado das relagoes entre as duas reali-dades. Os result ados sao confundidos nao so pela tendencia detratar os concursos de jogos da Antiguidade como a personificagaoideal do desporto contemporaneo mas, tambem, pela correspon-dente expectativa de encontrar a confirmagao para esta hipotese nosescritos da Antiguidade, pela tendencia, ainda, de negligenciarprovas contraditorias ou trata-las de modo automatico, enquantoreferencias a casos excepcionais. Bastara assinalar, a este proposito,um aspecto caracteristico das diferengas existentes na estruturaglobal dos concursos de jogos da Antiguidade Classica e na dosjogos do seculo XIX e XX. Na Antiguidade, as regras do costumepara acontecimentos atleticos «duros», como o pugilismo e a luta,admitiam um grau de violencia bastante mais elevado do queaquele que era admitido pelas regras do tipo das provas correspon-dentes do desporto. As regras deste ultimo, alem disso, sao muitodetalhadas e diferenciadas; em primeiro lugar, nao sao regras for-jadas no costume mas regras escritas, sujeitas explicitamente a um

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criticismo racional e a revisoes. O nivel superior da violencia fisicanos proprios jogos da Antiguidade era mais do que um dado iso-lado. Isso era sintomatico de tragos especificos na organizagao dasociedade grega, em especial no estadio de desenvolvimento alcan-gado por aquilo que nos hoje designamos por organizagao de«Estado» e pelo grau de monopoliza^ao da violencia fisica neleintegrada. A monopolizagao relativamente firme, estavel e impes-soal e o controlo dos meios de violencia e um dos tragos centrais dosEstados-na^oes contemporaneos. Em comparagao, a monopolizagaoe o controlo da violencia fisica institucional nas cidades-Estado daGrecia, permanecia rudimentar.

O esclarecimento de problemas como este nao e dificil se ainvestigagao for guiada por um modelo teorico claro, tal como oque e fornecido pela teoria do processo de civilizagao7. De acordocom ele, espera-se que a forma^ao do Estado e a formagao daconsciencia, o nivel de violencia fisica socialmente permitido e olimiar de repugnancia contra o seu uso ou respective testemunhoassumam formas especiflcas em diferentes estadios no desenvolvi-mento das sociedades. E surpreendente descobrir como o exemploda Grecia Classica confirma de maneira tao completa estas expec-tativas teoricas. Deste modo, a teoria e os dados empiricos, emcon junto, anulam um dos principals obstaculos na compreensao dasdiferengas de desenvolvimento como as que existem entre os anti-gos concursos de jogos e os contemporaneos, nomeadamente asensagao de que se langa uma censura sobre a outra sociedade e seameagam os seus valores humanos ao adinitir que o nivel de violen-cia fisica ai tolerado, mesmo nos concursos de jogos, era elevado, eo limiar de reacgao contra o facto de as pessoas serem feridas, oumesmo mortas entre si em tais disputas, para deleite dos especta-dores, ser por correspondencia inferior ao nosso. No caso da Greciafica-se, deste modo, dividido entre os elevados valores que tradicio-nalmente estao associados as suas realizagoes na filosofia, nas cien-cias, nas artes e na poesia, e o baixo valor humano que pareceatribuir-se aos gregos antigos, se encararmos o seu baixo nivel dereacgao contra a violencia ffsica> parecendo sugerir-se que, cornpa-

7Norbeirt Elias, The Civilizing Process, 1978; e State Formation and Civiliza-tion, Oxfbfd, 1982.

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rados connosco, eles eram «nao civilizados» e «barbaros». E preci-samente esta interpretagao incorrecta da natureza factual do proces-so de civilizagao, a tendencia dominante para usar termos como«civilizado» e «nao civilizado» como expressoes de juizos moraisetnocentricos, como juizos morais absolutos e definitivos — nossomos «bons» eles sao «maus» ou vice-versa — que conduz o nossoraciocmio a contradigoes aparentemente inevitaveis como estas.

Nos proprios evoluimos de acordo com uma organizagao sociale um controlo dos meios de violencia especifico dos Estados-nagoesdo nosso tempo, com padroes especificos de autodommio quantoa impulsos de violencia. Avaliamos as transgressoes de maneiraautomatica por estes padroes — quer elas ocorram na nossa propriasociedade quer noutros estadios de desenvolvimento diferentes.Assim interiorizados, estes padroes proporcionam protec^ao e for-talecem as nossas defesas, sob uma grande variedade de formas,contra pequenas faltas. Uma sensibilidade elevada relativamente aactos de violencia, a sensagao de repugnancia contra o facto de sepresenciar a violencia, cometida para alem do nivel permitido navida real, sentimentos de culpa sobre os nossos proprios erros, uma«ma consciencia», tudo isto e sintomatico destas defesas. Contudo,num periodo de incessante violencia presente nas questoes entreEstados, estas defesas interiorizadas contra impulsos a violenciapermanecem> inevitavelmente, instaveis e frageis. Elas sao conti-nuamente expostas a pressoes sociais conflituosas — aquelas enco-rajando um elevado nivel de autodommio dos impulsos violentosnas relagoes humanas na mesma sociedade-Estado, e estas encora-jando uma libertagao do autodommio dos impulsos violentos emesmo uma preparagao para a violencia nas relagoes entre socieda-des-Estado diferentes. O primeiro e responsavel pelo elevado nivelde seguranga fisica, embora nao o seja, e claro, quanto a segurangapsicologica e de outras formas usufruida pelos cidadaos dos Esta-dos-nagoes mais desenvolvidos, nas suas proprias sociedades. Estasdefesas entram constantemente em conflito com as exigenciasimpostas aos cidadaos destes Estados, como o resultado da ausenciade qualquer monopolizagao e controlo eficiente da violencia fisicanas relagoes entre Estados. A consequencia e uma moralidadedupla, a ruptura e a contraditoria formagao da consciencia. Semdiivida que discrepancias deste tipo podem encontrar-se em mui-tos estadios do desenvolvimento das sociedades. O nivel de controlo

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da violencia no seio dos grupos socials do estadio tribal e quasesempre mais elevado do que o de controlo da violencia entre grupossociais deste tipo. Com certeza, nao seria diferente nas cidades--Estado gregas. Mas, neste caso, a disparidade entre os dois niveisera relativamente pequena, comparada com a que e caracteristicado nosso proprio tempo. Existe uma grande quantidade de provassugerindo que este ingrediente, a disparidade entre o nivel deseguranga fisica e das formas de controlo social e de autodominiodos impulses violentos, com a correspondente formagao da cons-ciencia alcangada hoje nas relagoes entre Estados, bem como o nivelde seguranga fisica e de regulamentagao social de sentimentosmanifestamente violentos e — intermitentemente — de actosmanifestos de violencia nas relagoes entre Estados, e hoje superiorao que alguma vez existiu antes. O nivel de seguranga fisica nosEstados-nagoes industrials mais avangados, embora possa parecerbastante reduzido para aqueles que vivem nelas, e, com toda aprobabilidade, normalmente superior ao das sociedades-Estadomenos desenvolvidas, ao mesmo tempo que a inseguranga nas re-lagoes entre Estados dificilmente decresceu. No actual estado dedesenvolvimento social, os conflitos violentos entre Estados perma-necem tao ingovernaveis para aqueles que estao envolvidos neles,como sempre o foram. De acordo com isso, os padroes de compor-tamento civilizado sao relativamente baixos e a interiorizagao dostabus sociais contra a violencia fisica, a formagao da conscienciaquanto a este problema, e transitoria e comparativamente instavel.O facto de os conflitos e tensoes no interior dos Estados-nagoesindustrializados se terem transformado — normalmente — emmenos violentos e de certo modo mais governaveis e o resultado deum longo desenvolvimento nao planeado; nao e certamente o resul-tado do merito das geragoes actuals. Mas as geragoes actuals con-sideram isso como tal; mostram tendencia para situar-se em relagaoas geragoes do passado, cuja formagao da consciencia e limiar dereacgao contra a violencia fisica, por exemplo, nas relagoes entreelites dominantes e dominados era inferior, como se o seu propriolimiar de reacgao superior fosse, simplesmente, o resultado do seuempreendimento pessoal.

O nivel de violencia que pode observar-se nos confrontos dejogos de periodos passados considera-se muitas vezes desta manei-ra. Nao sao raras as vezes que falhamos na distingao entre actos in-

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dividuais de transgressao contra os padroes de controlo da violenciana nossa propria sociedade e actos individuais de um genero similarpraticados no seio de outras sociedades, de acordo com o seu nivelsocialmente permitido de violencia, com as normas dessa sociedade.Deste modo a nossa imediata, a nossa quase automatica respostaemocional induz-nos, muitas vezes, a julgar sociedades com dife-rentes padroes de controlo da violencia, como se os membros dessassociedades estivessem livres para escolher entre os sens padroes e assuas normas e, tendo feito essa escolha, tivessem optado pela decisaoerrada. Em relagao a eles, desfrutamos a mesma sensagao de «sermelhor», de superioridade moral experimentada com frequencia emrelagao a agressores individuais na nossa sociedade, quando chama-mos a sua conduta «nao civilizada» ou «barbara», expressandodesta maneira os nossos sentimentos de superioridade moral.Analisamos a sua aderencia a normas sociais que permitem formasde violencia condenadas como repulsivas nas nossas propriassociedades como se fossem uma mancha no seu caracter moral, umsinal da sua inferioridade como seres humanos. A outra sociedadee assim julgada e avaliada por nos como um todo, como se fosse ummembro individual da nossa propria sociedade. Em geral, naoperguntamos, e portanto nao sabemos, que oportunidades surgiramno nivel de controlo da violencia nas normas sociais que regula-mentam a violencia ou nos sentimentos associados a violencia. Emregra, nem perguntamos e, por esse motivo nao sabemos, porque eque se verificam. Por outras palavras nao sabemos como e que elaspodem ser explicadas ou, nesse aspecto, como e que pode serexplicado o nosso proprio nivel de sensibilidade mais elevado emrelagao a violencia fisica, pelo menos nas relagoes entre Estados.Quanto muito, elas sao explicadas vagamente mais pela escolha dasnossas proprias expressoes do que explicita e criticamente, porexemplo, como um fluxo na natureza dos grupos envolvidos, oucomo uma caracteristica inexplicavel da sua maneira de ser «racial»ou etnica.

Os niveis habituais de violencia praticados e admitidos nosconfrontos de jogos das sociedades em diferentes estadios de desen-

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volvimento esclarece, deste modo, urn problema mais vasto e fun-damental. Alguns exemplos podem contribuir para o tornar maispreciso.

Considere-se o caso da luta executada nos nossos proprios diase na Antiguidade. Hoje o desporto esta altamente organizado eregulamentado. A luta e dirigida por uma Federagao Internacionalde Luta, com sede na Suiga. De acordo com as regras olimpicas deJaneiro de 1967, entre todas as prisoes da luta de estilo livre estao estrangulamento, o meio-estrangulamento e o duplo-Nelson*,com aplicagao de pressao directa para baixo com o uso das pernas.Socos, pontapes, cabegadas, tudo e proibido. Um assalto, que naodura mais que nove minutos, esta dividido em tres periodos de tresminutos cada, com dois intervalos de um minuto, sendo contro-lado por um arbitro, tres juizes e um cronometrista. Apesar destasregulamentagoes rigidas, a luta de estilo livre surge hoje, a muitaspessoas, com um dos tipos de desporto menos refinados e rnais«rudes». Uma versao um pouco mais violenta, executada por pro-fissionais como um desporto-espectaculo, embora muitas vezespreviamente combinada, permanece muito popular. Mas os profis-sionais raramente infligem ferimentos graves uns aos outros. Comtoda a probabilidade, o publico nao gostaria de ver ossos partidose sangue a correr. Mas os executantes efectuam uma boa demons-tragao de se magoarem uns aos outros e o publico parece gostardesta simulagao8.

Entre os concursos de provas dos Jogos Olimpicos estava opancracio, uma especie de luta no solo que constituia um dosacontecimentos mais populares. Mas o nfvel de violencia permiti-da, representada pelo habitual duelo do pancracio, era muito dife-

8Para urn debate quanto a luta profissional moderna enquanto um tipo de farsa,ver «American Sports: Play and Dis-play» e «Wrest ling: the Great AmericanPassion Play», de Gregory P. Stone, em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: aSelection of Readings, Londres, 1971.

^Double-Nelson, ou duplo-Nelson, designa uma tecnica particular de luta naqual o atacante utiliza ambos os membros superiores, colocando-se atras doadversario e passando os seus brakes sob as axilas do adversario, de modo a que, atra-ves da flexao dos antebragos e com um movimento de pronagao das maos, estas sejamcolocadas com os dedos entrelagados sobre a nuca do opositor. A extensao dosantebragos do atacante, que em geral se segue, obriga a que se efectue um movimen-to de extensao maxima da cabega do adversario de que pode resultar asflxia e morte.Actualmente, nao e utilizada em competicjio. (N. da T.)

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rente daquele que e permitido hoje na luta de estilo livre contem-poranea. Deste modo, Leontikos de Messana, que ganhou a coroaolimpica por duas vezes, pela luta, obteve as suas vitorias nao porderrubar os seus adversaries mas por Ihes partir os dedos. Arrha-chion de Phigalia, duas vezes vencedor olimpico no pancracio, foiestrangulado em 564 durante a sua terceira tentativa para veneera coroa olimpica, mas antes de ser morto conseguiu partir os dedosdo pe do seu opositor e a dor forgou este ultimo a desistir da luta.Por esse motivo, os juizes coroaram o cadaver de Arrhachion eproclamaram o morto vencedor. Na sequencia disso, os seus com-patriotas erigiram uma estatua de Arrhachion na praga da sua ci-dade9. Aparentemente, era esta a pratica tradicional. Se um homernera morto, numa prova de um dos grandes festivals, era coroadovencedor. Mas, para alem da perda da coroa — um reves muitoduro —, o sobrevivente nao era castigado. Nem existia, tantoquanto se pode ver, qualquer estigma social inerente a esta acgao.Ser morto ou gravemente ferido e, talvez, ficar incapacitado para oresto da vida era um risco que um lutador do pancracio tinha decorrer. Pode estabelecer-se a diferenga entre a luta como um des-porto e a luta como um agon, a partir do seguinte resumo:

No pancracio os adversaries lutavam com todas as partes do corpo,as maos, os pes, os cotovelos, os joelhos, os pescogos e as cabegas; emEsparta usavam mesmo os pes. Os lutadores do pancracio podiamarrancar os olhos uns aos outros... podiam, tambem, obstruir, agarraros pes, narizes e orelhas, deslocar os dedos e bragos e aplicar estran-gulamentos. No caso de conseguirem derrubar o outro, podiamsentar-se sobre ele e bater-lhe na cabec^a, cara e orelhas; tambempodiam dar-lhe pontapes e pisa-lo. Nao e precise dizer que os luta-dores desta prova brutal eram atingidos por vezes pelos mais terriveisferimentos e, nao raro, morriam! O pancracio dos jovens efebos eraprovavelmente o mais brutal de todos. Pausanias diz-nos que oslutadores lutavam com unhas e dentes, mordiam e rasgavam os olhos

9H. Forster, Die Sieger in den Olympischen Spieler, Zwickau, 1891.10Franz Mezoe, Geschichte der Olympischen Spiele, Munique, 1030, pp. 100-1;

citado por Ludwing Dress em Olympia; Gods, Artists and Athletes, Londres, 1968,p. 83.

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Havia um juiz mas nao um cronometrista, nao existindo limitesde tempo. A luta durava ate que um dos oponentes desistisse.As regras eram tradicionais, nao escritas, indiferenciadas e na suaaplicagao eram, por certo, flexiveis. Parece que, tradicionalmente,morder e arrancar os olhos era proibido. Mas, antes que o juizpudesse afastar um agressor dominado pela furia do combate,quando este era afastado do seu oponente o dano ja estava consu-mado.

Os antigos Jogos Olimpicos duraram mais de mil anos. Os pa-droes de violencia na luta podem ter oscilado durante todo esteperiodo, mas, fossem quais fossem as oscilagoes ao longo de toda aAntiguidade, o limiar de sensibilidade quanto a provocagao deofensas fisicas e mesmo da morte num combate, e, de acordo comisso, todo o ethos da prova, era muito diferente daquele que, nosnossos dias, e representado pelo tipo de confrontos caracterizadocomo «desporto».

O pugilato e outro exemplo. Tal como o tipo de luta dopancracio, era muito menos limitado por regras e, por essa razao,dependia em grau mais elevado da forga fisica, da forga espontanea,da paixao e da resistencia, do que o boxe. Nao existiam distin^oesentre diferentes classes de pugilistas. Por este motivo, nao se pro-curava confrontar individuos segundo o seu peso, nem nesta nemem qualquer outra prova. A unica distingao que existia era entre ra-pazes e adultos. Os pugilistas nao lutavam apenas com os punhos,em quase todas as formas de pugilato, as pernas desempenhavamum importante papel. Dar pontapes nas pernas do adversarioconstituia um elemento normal na tradigao do pugilato na Anti-guidade11. Apenas as maos e as partes superiores dos quatro dedoseram ligadas com tiras de couro*, apertadas no antebrago. Ospunhos podiam estar cerrados ou os dedos esticados e, com pregosduros, batiam no corpo e na cara dos oponentes. Com o passar do

nFilostrato, On Gymnastics (Peri Gymnastike), primeira metade do seculo IIId.C, Cap. II.

*Estas tiras de couro eram colocadas como uma especie de luva, enrolando-see, em simultaneo, entrelagando-se as tiras de modo a protegerem as maos do atacantee, tambem, a tornarem mais fortes e dolorosos os golpes desferidos sobre o opositor.Por vezes, como aconteceria mais tarde em Roma, os atletas utilizavam nos combatestiras de couro com peda^os de ferro agugados incrustados, que acentuavam o caracteragressivo destas correias, a que se dava o nome de «cesto». (N. da T.)

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tempo, correias macias de couro derarn lugar as correias maispesadas feitas, especialmente, de couro curtido12. Eram entao ajus-tadas com varias tiras de couro grosso duro, com arestas afiadassalientes. A estatua do pugilista sentado de Apollonio de Atenas(seculo I a. C), agora no Museu Nazionale delle Terme, em Roma,apresenta com bastante nitidez o modo como se colocavam. Mas,talvez boxe seja um termo equivoco. Nao so a maneira mas, tam-bem, o objectivo e o ethos deste tipo de luta eram diferentes dos doboxe. Bastante significativo e o facto de o ethos da luta destes con-frontos de pugilato, tal como os agones gregos de uma maneirageral, derivar muito mais directamente do ethos combativo de umaaristocracia guerreira do que o ethos combativo das provas despor-tivas. O ultimo radica na tradigao de um pais que, mais do que amaioria dos outros paises europeus, desenvolveu uma organizagaodistinta de guerra no mar13, muito diferente da organizagao daguerra em terra, e cujos proprietarios das classes elevadas —- aris-tocracia e pequena nobreza — desenvolveram um codigo de corn-portamento muito menos envolvido com o codigo de honra de umcorpo de oficiais dos exercitos de terra do que aquele que e proprioda maioria das outras classes elevadas europeias.

O «boxe» grego, comum as outras formas de preparagaoagonistica e pratica nas cidades-Estado gregas, mas diferente doboxe ingles nos seculos XVIII e XIX, era considerado tanto um meiode preparagao para a guerra como para os concursos de jogos. Fi-lostrato menciona o facto de a tecnica de luta do pancracio termantido os exercitos das cidades gregas em vantagem na batalha daMaratona, quando esta se desenvolveu numa luta corpo a corpo ge-neralizada, e tambem na das Termopilas, onde os Espartanos luta-ram com as maos nuas quando as espadas e dardos se quebraram14.

12Filostrato refere que as correias de couro de pele de porco eram proibidasporque se acreditava que os ferimentos infligidos por elas eram demasiado crueis.Menciona tambem o facto de nao se dever dar golpes com o polegar. Talvez valhaa pena fazer referenda a estes pormenores. Nao se deve julgar que as regras do cos-tume das competigoes de jogos na Antiguidade nao sugeriam qualquer respeitopelos participantes. Mas, dado que estas regras eram transmitidas por meio da tra-digao oral, permitiam ainda um vasto campo de possibilidades de ferimentos series.

13Ver Norbert Elias, «Studies in the Genesis of the Naval Profession», BristishJournal of Sociology, Vol. 1, n.° 4, Dezembro de 1950.

14Filostrato, On Gymnastics, Cap. II.

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No tempo da Roma imperial, no momento em que escrevia, asguerras ja nao se realizavam com exercitos de cidadaos, eram leva-das a efeito por soldados professionals, as legioes romanas. A distan-cia entre a tecnica militar e a conduta de guerra, por um lado, ea tecnica agonistica tradicional dos concursos de jogos, por outro,tornara-se superior, O grego Filostrato olhou para o passado, paraa epoca classica, com uma nostalgia compreensivel. Mesmo ai, noperfodo dos exercitos de hoplitas, as tecnicas de combate militar eas dos concursos de jogos, talvez ja nao estivessem tab relacionadasentre si como sugere, mas a sua ligagao era muito mais intima doque a que existia entre as tecnicas de combate das provas de des-porto e as tecnicas de combate da guerra no tempo dos Estados--nagoes industrials. Filostrato exagerava, por certo, quando escre-veu que, nos primeiros tempos, as pessoas consideravam os concur-sos de jogos como um exercicio para a guerra e a guerra umexercicio para essas provas13. O ethos dos concursos de jogos nosgrandes festivals gregos continua a reflectir o dos antepassadosheroicos, tal como sao representados nos poemas epicos de Homeroe perpetuados, pelo costume, na educagao dos jovens. Possuiamuitas caracterfsticas do ethos de ostentagao que regulamenta, emgrande niimero as sociedades, as posigoes e as rivalidades de poderdas elites nobres. Lutar, nos jogos como na guerra, centrava-se naexibigao ostentatoria das virtudes guerreiras que atribuiam o maiselevado louvor e honra a um homem, no interior do seu propriogrupo e para o seu grupo — para o seu grupo familiar ou para asua cidade — em rela^ao aos outros grupos. Veneer inimigos ouadversaries era motivo de gloria, mas dificilmente seria menosglorioso ser vencido, como Heitor o foi por Aquiles, desde que selutasse o mais que se pudesse ate ser mutilado, ferido ou morto enao se pudesse lutar mais. A vitoria ou a derrota estavam nas maosdos deuses. Renunciar a vitoria, sem uma demonstragao de bravurae de resistencia, e que era inglorio e vergonhoso.

Na linha deste ethos guerreiro, um rapaz ou um homem mortonum dos combates olimpicos de pugilato ou de luta era coroado,com frequencia, vencedor, para gloria do seu cla e da sua cidade,e o sobrevivente — o assassino — nao era punido nem estigmati-

™lbid., Cap. 43.

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zado. Os jogos gregos nao eram dominados por uma grande preo-cupagao de «justiga». O ethos ingles de justiga tinha raizes naomilitates. Desenvolveu-se em Inglaterra, em ligagao com umamudanga muito especifica, verificada na natureza do prazer e daexcitagao proporcionados por confrontos de jogos, na sequencia daqual o prazer, demasiado breve, que se sentia no final de uma provade desporto, no momento de consuniagao ou de vitoria, foi alargadoe prolongado pelo prazer e igual excitagao derivados daquilo queinicialmente foi o prazer antecipado de participar ou de testemu-nhar a tensao do proprio desafio. A maior enfase colocada no prazerda disputa do jogo e a tensao-excitagao que este proporcionavaestavam, ate certo ponto, relacionados com o prazer de apostar, quedesempenhou em Inglaterra um papel consideravel quer na trans-formagao de formas mais «rudes» de confrontos nos desportosquer nos desenvolvimentos do ethos e da justiga. Ao presenciar ocombate de um jogo efectuado pelos seus filhos, pelos seus servigaisou por profissionais famosos, os cavalheiros gostavam de apostardinheiro numa das partes, condimento da excitagao fornecida pelapropria luta, que ja tinha sido temperada por restrigoes civilizado-ras. Mas a expectativa de veneer uma aposta podia aumentar aexcitagao de assistir a luta, unicamente se as probabilidades iniciaisde ganhar se encontrassem mais ou menos divididas de modoequilibrado entre os dois lados, e se oferecessem um mmimo depossibilidades de calculo. Tudo isto requeria e tornava possivel umnivel de organizagao mais elevado do que aquele que fora alcangadonas cidades-Estado da Grecia antiga:

Os pugilistas de Olimpia nao eram classificados de acordo com opeso, da mesma maneira que os lutadores tambem nao o eram. Naoexistia af nenhum recinto quadrangular para combates de boxe, osassaltos realizavam-se no estadio, numa parcela de terreno ao ar livre.O alvo era a cabega e a face... A luta decorria ate que um dos doisadversaries ja nao fosse capaz de se defender ou se admitia a derrota.Isto anunciava-se pela elevagao do dedo indicador ou pela extensaode dois dedos, no sentido do oponente16.

Habitualmente, as representagoes nos vasos gregos mostram

l6Dress, Olympia, p. 82.

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lutadores numa posigao tao proxima um do outro que cada um estaerecto, com um pe avangado ou mesmo atras do pe do outro.Existia uma pequena margem de acgao para o trabalho de pes, aqual permite aos pugilistas modernos movimentarem-se rapida-mente, para a direita ou para a esquerda, para tras, para a frente.Deslocar-se para tras, de acordo com o codigo dos guerreiros, eraum sinal de cobardia. Esquivar-se aos socos do inimigo, desviando--se do seu caminho, era vergonhoso. Dos pugilistas, esperava-se quedemonstrassem rapidez e que nao desistissem. As defesas dospugilistas habilidosos podiam ser impenetraveis; podiam fatigar osseus oponentes e, assim, vencerem sem serem atingidos. Mas se ocombate demorava tempo de mais, um juiz podia ordenar aos doisadversaries que dessem socos sucessivos alternadamente, sem sedefenderem, ate que um deles ja nao estivesse em condigoes decontinuar a lutar. Este tipo agonista de pugilato, como se pode ver,acentuava o climax, o momento de decisao, de vitoria ou de derro-ta, como o elemento mais importante e significative do confronto,mais importante do que o proprio combate. Tratava-se quase tantode um teste de resistencia fisica e de pura fbrga muscular como deuma prova de habilidade. Eram frequentes os ferimeritos graves nosolhos, nos ouvidos e ate no cranio; o mesmo acontecia quanto aouvidos inchados, dentes partidos e narizes esmagados.

Tivemos conhecimento de dois pugilistas que aceitaram apermuta de socos. O primeiro atingiu com um soco a cabega do seuoponente, o qual sobreviveu. Quando este baixou a sua guarda, ooutro bateu-lhe abaixo das costelas com os seus dedos estendidos,rebentou-o com as suas unhas duras, agarrou-lhe os intestinos ematou-o17.

De todas as provas olfmpicas, aquela que para nos e a mais estranha,hoje, e o boxe; nao interessa o quao difkilmente tentamos, continua-mos incapazes de conceber como e que um povo altamente cultivado,com sentido estetico tao acentuado, podia ter prazer neste es-pectaculo barbarico, no qual dois homens se batiam um ao outro nacabe^a, com os seus punhos revestidos de tanta dureza... ate que um

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deles admitisse a derrota ou fosse incapaz de continuar a lutar.Porque nao foi so sob o dominio dos Romanes mas, tambem, sob odominio dos Gregos que esta forma de combate deixou de ser umdesporto; era uma questao de vida ou de morte... Mais do que umcotepetidor olfmpico perdeu a vida no estadio.

Esta critica, feita em 1882 por Adolf Boetticher, um dos primei-ros eruditos olfmpicos, e valida hoje. Como os seus colegas da lutae do pancracio, os pugilistas estavam determinados a veneer a todo

Nao se duvida dos factos, mas sim da avaliagao. A citagaorepresenta um exemplo quase paradigmatico do equivoco resul-tante da utilizagao, que nao e colocada em duvida, do limiar derepugnancia proprio de cada um em face de tipos especificosde violencia fisica, enquanto medida para todas as sociedadeshumanas, independentemente da sua estrutura e do estadio dedesenvolvimento social que alcangaram, em especial, o estadio queatingiram na organizagao social e controlo da violencia fisica: istoe tao significative de um aspecto do desenvolvimento das socieda-des como a organizagao e o controlo dos meios «economicos» deprodu^ao. Encontra-se aqui um exemplo notavel da barreira a com-preensao das sociedades originada pelo dommio de avaliagoes he-teronimas19 sobre a percepgao das interdependencias funcionais. Aescultura classica grega e altamente considerada na escala devalores do nosso tempo. Os tipos de violencia fisica integrados emcombates de jogos gregos como o pancracio, segundo a nossa escalade valores, recebe classificagoes bastante negativas. O facto deassociarmos um com um valor positivo e o outro com um valornegative conduz a uma situagao onde parece, aos que permitemque a sua compreensao seja guiada por julgamentos de valorpreconcebidos, que estes dados nao se podem relacionar entre si.Um problema insoliivel atinge todos quantos julgam o passado emtermos deste tipo de avaliagao.

19Para a explicagao deste termo e para a discussao dos problemas da «objecti-vidade» em sociologia, ver Norbert Elias, «Problems of Involvement andDetachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, Setembro de 1956. Ver, tambem,Norbert Elias, Involvement and Detachment, Oxford (em vias de publicagao).

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Contudo, se alguem se preocupar com a analise sociologica dasrelagoes entre diferentes aspectos da mesma sociedade nao existerazao para supor que so estas manifestagoes dessa sociedade, quandoobservadas do exterior, e as quais se atribui o mesmo valor, querseja positive ou negativo, sao interdependentes. Em todas as socie-dades podem descobrir-se interdependencias entre aspectos a queum observador, por um lado, e as proprias pessoas que formamestas sociedades, por outro, dedicam valores opostos. A beleza daarte grega e a relativa brutalidade dos confrontos de jogos sao umexemplo. Longe de serem incompativeis, eram manifestagoes inti-mamente relacionadas do mesmo nivel de desenvolvimento, damesma estrutura social.

A emergencia da escultura grega no seu modelo arcaico e orealismo ideal das esculturas do periodo classico permanecem in-compreensfveis se nao houver um entendirnento do elemento quea aparencia fisica de um individuo desempenhava enquanto deter-minante do respeito social com que era considerada entre as elitesdirigentes das cidades-Estado da Grecia. Nessa sociedade, para umhomem com um corpo debil ou deformado, dificilmente seriapossivel alcangar ou manter uma posigao de elevado poder social oupolitico. A forga e a beleza fisica, o aprumo e a resistencia, repre-sentavam um papel muito mais elevado, como determinante daposigao social de uma pessoa do sexo masculino na sociedade grega,do que representa nas nossas. Nem sempre se esta consciente deque a possibilidade de um homem fisicamente diminuido alcangarou manter uma posigao de lideranga ou de elevado poder social edignidade e um fenomeno relativamente recente no desenvolvi-mento das sociedades. Devido ao facto de a «imagem corporal» oua aparencia fisica se classificar a um nivel relativamente baixo —,bastante inferior, por exemplo, ao que a «inteligencia» ou o«caracter moral» ocupam na escala de valores que, nas nossas socie-dades, determina a posigao social de um homem e a imagem globalque formamos dele —, falta-nos com frequencia a chave para acompreensao de outras sociedades onde a aparencia fisica represen-ta um papel muito mais determinante na formagao da imagempublica de um homem. Na Grecia antiga era este, sem duvida, ocaso. Pode talvez transmitir-se melhor a diferenga indicando o factode, na nossa sociedade, a aparencia fisica, enquanto determinanteda imagem social de um individuo, continuar a representar um

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papel bastante vincado e talvez crescente no que diz respeito amulher, mas a respeito do homem, embora a televisao possa teralgum impacte no problema, a aparencia fisica e, em particular, aforga corporal e a beleza nao desempenham um papel muito grandena consideragao publica de uma pessoa. O facto de uma das maispoderosas nagoes do nosso tempo ter eleito um homem paralfticopara o seu cargo publico mais elevado e, a este respeito, sinto-matico.

Na sociedade das cidades-Estado da Grecia era diferente. Desdea infancia, seres humanos que fossem fracos ou deformados erameliminados. Recem-nascidos debeis eram abandonados a morte.Um homem que fosse incapaz de lutar interessava pouco. Eramuito raro um homem aleijado, doente ou muito velho adquirir oumanter uma posigao de lideranga publica. O termo usado na socie-dade grega como uma das expressoes do seu ideal, o termo arete,e com frequencia traduzido como virtude. Mas de facto ele nao sereferia, como o termo «virtude» indica, a qualquer caracterfsticamoral. Referia-se aos predicados pessoais de um guerreiro e cava-Iheiro, entre os quais a sua imagem corporal, a sua qualificagaocomo um guerreiro forte e habilidoso, representava um papeldominante. Era este ideal que encontrava expressao quer nas escul-turas, quer nos seus confrontos de jogos. A maioria dos vencedoresolimpicos tinha as suas estatuas erigidas em Olimpia e, algumasvezes, na sua cidade natal20.

O facto de a posigao social dos atletas ser muito diferente daque hoje se verifica na nossa propria sociedade e apenas outra facetadas mesmas caracteristicas distintivas da sociedade grega durante aidade classica. O equivalente do desporto, a «cultura» do corpo,nao era uma especializagao equivalente ao mesmo grau de hoje. Nassociedades contemporaneas, o pugilista e um especialista e, se apli-

20Nao e necessario discutir aqui as razoes que originaram a onda de seculariza-gao revelada, por exernplo, na transigao das representagoes mais soienes, mais ins-piradoras de respeito, e talvez mais expressivas de deuses e de herois no periodoarcaico — um exernplo e a Medusa do frontao da fachada principal do templo deArtemisa em Corcyra, do seculo. VI a.C. —, para o realismo ideal do periodo classico,em que deuses e herois sao representados como guerreiros bem proporcionados,jovens ou velhos, cujos corpos falam, embora as suas faces sejam talvez um poucovazias mesmo se, como no caso do condutor de carro de Delfos, os olhos incrustadose parte da cor tenham sido preservados.

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camos o termo aos que adquiriram fama como pugilistas na Anti-guidade, o mero uso da palavra pode evocar nos nossos espiritos umquadro similar. Na verdade, os homens que demonstravam a suaforga fisica, a sua agilidade, a sua coragem e a sua resistencia atra-ves das suas vitorias nos grandes festivais, dos quais os de Olimpiaforam os mais famosos, estavam colocados numa situagao muitoapropriada para adquirirem uma elevada posigao social e politica nasua sociedade natal, se nao a tivessem ja alcangado. A maior partedos participantes nos confrontos de jogos em Olimpia provinha, de-certo, de «boas familias», das elites relativamente abastadas da suacidade natal, de grupos de proprietaries de terras e, talvez, deabastadas familias camponesas. A participagao nestes combates dejogos exigia uma longa e ardua preparagao que so as pessoas que,em termos comparativos, eram ricas podiam proporcionar. Umjovem atleta prometedor, que necessitasse de dinheiro para seme-Ihante treino, podia encontrar um patrono abastado; ou um treina-dor professional Ihe emprestaria dinheiro. Mas, se conquistasse umavitoria em Olimpia, atraia fama para a sua familia e para a suacidade natal e tinha uma forte oportunidade de ser considerado poreles como um membro da sua elite dirigente. Milon de Crotona foi,provavelmente, o lutador mais famoso da Antiguidade Classica.Obteve um numero consideravel de vitorias em Olimpia e noutrosfestivais pan-helenicos. Era um homem de forga prodigiosa que,com o tempo, se tornou conhecido. Tambem e referido como umdos melhores alunos de Pitagoras e como comandante do exercitoda sua cidade natal, na batalha vitoriosa contra os Sibaritas, queterminou com a furiosa matanga dos ultimos depois da sua derrota.Encontramos o mesmo quadro invertido se considerarmos aqueleshomens que hoje sao recordados, acima de tudo, pelas suas realiza-goes intelectuais eram com frequencia evocados tambem, no seuproprio tempo, em ligagao com os seus feitos como guerreiros ouatletas. Esquilo, Socrates e Demostenes passaram pela dificil escolade combate hoplita. Platao teve a seu credito vitorias em alguns dosfestivais atleticos. Desta maneira, a idealizagao do guerreiro naescultura grega, a representagao dos deuses de acordo com a apa-rencia fisica ideal do guerreiro aristocrata e o ethos guerreiro doscombates de jogos eram, com efeito, nao so compativeis; erammanifestagoes intimamente ligadas do mesmo grupo social. Ambassao caracteristicas da posigao social, do estilo de vida e dos ideais

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destes grupos. Mas a compreensao desta interdependencia factualnao compromete o prazer da arte grega. Sob certos aspectos, en-grandece-a21.

7

A comparagao entre o nivel de violencia verificado nos comba-tes de jogos da Grecia antiga, ou nos torneios e jogos populates daIdade Media, e o que se revela nas provas de desporto actualsmostra claramente o elemento especifico do processo de civilizagao,mas o estudo deste elemento integrante do aspecto civilizador dasprovas de jogos permanece inadequado e incompleto se nao o rela-cionarmos com outros aspectos das sociedades de que estes confron-tos de jogos sao manifestagoes. Em resumo, o nivel variavel decivilizagao nas competigoes de jogos mantem-se incompreensivel senao for relacionado, pelo menos, com o nivel geral de violenciasocialmente permitida, com o nivel da organizagao do controlo daviolencia e com a correspondente formagao da consciencia emcausa.

21O grau em que as caracteristicas de um estadio anterior no desenvolvimentoda organizac.ao do Estado, especialmente quanto a monopolizagao e controlo daviolencia fisica, afecta todas as relagoes humanas revela-se, entre outras coisas, na fre-quencia com que as lendas gregas referem conflitos entre pai e filho. No que dizrespeito a sociedade grega, Freud estava provavelmente equivocado na sua interpre-tagao da lenda de Edipo ou, pelo menos, so viu um dos seus aspectos, o de um unicoindividuo, o filho. No contexto da sociedade grega, nao se pode deixar de assinalara configuragao social especifica reflectida nesta lenda, como noutras lendas gregasrelacionadas com o mesmo problema. Nao se pode deixar de questionar a rela^aoentre o filho e o pai, o jovem rei e o velho rei, na perspectiva do pai, assim como naperspectiva do filho. A partir da posigao do filho, pode bem ser, como Freud disse,que este estivesse imbuido de ciumes quanto a posse da mulher pelo pai — e, podeacrescentar-se, com medo da forga fisica e do poder do pai. Considerado, no entanto,segundo a perspectiva do pai, como se reflecte nas lendas gregas, o medo do rei e ainveja do filho representam um papel equivalente na relagao entre os dois. Porque,inevitavelmente, o pai ira envelhecer e enfraquecer flsicamente, e o filho, fragilenquanto crian^a, tornar-se-a fisicamente mais forte e mais vigoroso. Antigamente,quando o bem-estar de toda a comunidade, de um cla ou de uma casa, nao estava soligado de facto, mas, tambem, na imaginagao dos membros de tais grupos — e deforma magica—a saude e ao vigor do rei ou do lider, com frequencia, o homem maisvelho era ritualmente morto quando se tornava mais idoso, quando a sua for^a e vigor

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Alguns exemplos podem ajudar a tornar mais nitido este vastocontextcx No seculo XX, a chacina de massas por grupos de nazisalemaes, despertou a reacgao de quase todo o mundo. A memoriado facto manchou, durante algum tempo, o bom nome da Alema-nha entre as nagoes do mundo. O choque foi ainda maior porquemuitas pessoas viviam sob a ilusao de que, no seculo XX, tais bar-baridades ja nao podiam acontecer. Tacitamente, acreditavamque as pessoas se tinham tornado mais «civilizadas», que se haviamtornado «moralmente melhores», de acordo com a sua proprianatureza. Tinham adquirido orgulho em serem menos selvagens doque os seus antepassados, ou do que outras pessoas que conheciam,sem nunca enfrentarem o problema que o seu proprio comporta-mento mais civilizado colocava — o problema de saber porque eque eles proprios, porque e que o seu comportamento e os seussentimentos, se tornaram um pouco mais civilizados. O episodionazi serviu como uma especie de aviso; foi um sinal de que as

desapareciam, e substituidopor um dos seus fllhos, o jovem rei. Muitas lendas gregasmostram que o filho, o fiituro herdeiro, ainda quando jovem, tinha de ser escondi-do da if a e persegui^ao do seu pai, sendo habitualmente educado por estrangeiros.Por esse motivo, «sabemos», de acordo com um estudo recente (Edna H. Hooker,The Godness of the Golden Image, in Parthenos and Parthenon, Greece and Rome,suplemento do Vol. X, Oxford, 1963, p. 18), «que, nas comunidades primitivasagrarias, as crian^as estavam em constante perigo dado que constituiam uma ameagapotencial ao dommio do trono do rei ou, por vezes, para a ambigao de uma madrasta,tendo em vista a posse deste por um dos seus filhos. Nos mitos e lendas gregas,poucos prmcipes foram educados em casa. Alguns foram enviados para o centauroQuiron mas muitos eram expostos, com a indicagao da sua origem, com o fim deserem criados por estrangeiros.

O rei Laio abandonou o seu filho Edipo temendo ser morto por ele. Zeus foicriado por amas e educado em segredo, porque o seu pai, Cronos, sentiu que ele erauma amea^a e tentou mata-lo. O proprio Zeus, como Jahve, receava que o homempudesse aprender a participar no seu conhecimento magico e castigou com violenciao mais jovem, Prometeu, que se atreveu a roubar o fogo do ceu e a oferece-lo ao povo.

Onde quer que o Estado tenha monopolizado o direito de utilizar a violenciaffsica, pode bem ser que a escalada de rivalidade e de ciume como ingrediente nacomplexa rela^ao entre pai e filho, processo peculiar cujos reflexes encontramos naslendas gregas e em muitas outras lendas, ja nao desempenhe qualquer papel numasociedade em que mesmo os parentes masculines nao constituent mais o perigo queem tempos tinham representado em sociedades onde os pais podiam matar oumesmo expor os seus filhos. Seriam necessarias mais pesquisas configuracionais depais e filhos para descobrir em que medida os sentimentos de rivalidade e de invejado filho em rela^ao ao pai, como foi assinalado por Freud nos seus doentes, e, ao

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restrigoes contra a vioiencia nao sao sintomas da superioridade danatureza das nagoes «civilizadas», nao sao caracteristicas eternas dasua maneira de ser racial ou etnica, mas aspectos de um tipoespecifico de desenvolvimento social, que resultou de um controlosocial mais diferenciado e estavel dos meios de vioiencia e da cor-respondente formagao da consciencia. Evidentemente, este tipo dedesenvolvimento social podia ser invertido.

Isto nao implica, necessariamente, que nao existam bases paraa avaliagao dos resultados deste desenvolvimento no comportamen-to humano e formas de sentir «melhor», para alem das correspon-dentes manifestagoes dos primeiros estadios de desenvolvimento.A compreensao mais vasta da relagao de factos proporciona, comefeito, uma base muito melhor, a unica base segura para julgamen-tos de valor deste tipo. Sem ela, nao podemos saber, por exemplo,se as nossas maneiras de elaborar os autodomfnios individuaiscontra a vioiencia fisica nao estao associados a malformagoes psi-cologicas que podem parecer altamente barbaras a uma idade mais

mesmo tempo, uma reacgao ao sentimento de rivalidade e inveja do pai em rela^aoao filho. Mas, se considerarmos as lendas gregas e, em especial, a propria lenda deEdipo, dificilmente se pode duvidar da face dupla dos sentimentos reciprocos derivalidade que tinham um papel na relagao entre pai e filho. A utilizagao desta lendacomo modelo teorico parece incompleta enquanto a fiingao desempenhada nadinamica desta configuragao pela reciprocidade de sentimentos entre um filho quede fraco passa a ser mais forte e de um pai que de forte passa a ser mais fraco nao forinvestigada de forma mais completa. Nas sociedades onde a forga e o poder ffsicodesempenham um papel superior aquele que hoje representam nas relagoes tantodentro como fora da famflia, esta configuragao deve ter tido uma grande significa-do e, de modo algum, apenas um sentido inconsciente. Considerada neste contexto,a lenda de Edipo da a impressao de uma lenda indicada para ameagar filhos de queserao castigados pelos deuses se matarem os seus pais. Contudo, a questao queressalta em primeiro lugar nao e, por certo, a morte do velho rei pelo filho ou a favordeste, mas a quebra do tabu do incesto, da proibicjio de o filho ter relagoes sexuaiscom a sua mae, a qual, e claro, e uma proibigao social muito mais antiga do queaquela contra a morte do pai. A este respeito, o mito de Edipo simboliza, de modoevidente, um estadio relativamente tardio no desenvolvimento de uma sociedadeem que, num estadio inicial, nem a morte do filho jovem nem a morte do pai idosoera um crime. Desta forma, a lenda pode ajudar-nos a compreender o tipo de relagoeshumanas que existiu num certo estadio de desenvolvimento social, quando aorganizagao do que agora chamamos o «Estado» permanecia na infancia, e quandoa forga fisica de uma pessoa, a sua aptidao para garantir a sobrevivencia atraves dasua propria capacidade de lutar, era a principal determinante de todos os tipos derelagoes humanas, incluindo, a de pai e filho.

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civilizada. Alem do mais, se alguem avalia uma forma mais civili-zada de conduta e de sentir como sendo «melhor» do que formasrnenos civilizadas, se considera que a humanidade fez progresses aochegar aos seus proprios padroes de reacgao e de repugnancia contraformas de violencia que eram comuns nos primeiros tempos, econfrontado com o problema de saber como e que um desenvolvi-mento nao planeado resultou em alguma coisa que se avalia comoum progresso.

Todos estes juizos sobre padroes de comportamento civilizadosao julgamentos comparativos. Nao se pode dizer em nenhumsentido absoluto: nos somos «civilizados», eles sao «nao civiliza-dos». Mas pode afirmar-se com grande confianga: os padroes deconduta e de sentir da sociedade A sao mais «civilizados», os dasociedade B sao menos «civilizados», desde que se tenha elaboradouma medida de desenvolvimento clara e precisa. A comparagaoentre as provas-agon* e as competigoes desportivas contemporaneasconstituem um exemplo. Os padroes de reacgao publica perante oassassinio em massa constituem outro. O modo como se revelou emtempos recentes o sentimento quase universal xle repugnanciacontra o genocidio indica que as sociedades humanas sofreram umprocesso civilizador, limitado, contudo, no campo de acgao einstavel, de qualquer modo, nos seus resultados. A comparagao comatitudes do passado demonstra isso muito nitidamente. Na Anti-guidade grega e romana, o massacre de toda a populagao masculinade uma cidade derrotada e conquistada, e a venda de escravos ecriangas, embora pudesse despertar piedade, nao provocava umgeneralizado aumento de actos de condenagao. As nossas fontesestao incompletas, mas demonstram que esses casos de massacre demassas ocorriam com grande regularidade desde o principio ate aofinal de todo o periodo22. Certas vezes, a furia com que um exercitoameagado ou frustrado, durante longo tempo, lutava desempenha-va um papel decisivo no massacre de todos os inimigos. A destrui-

22Pierre Ducrey, Le Traitement de Prisionaires de Guerre dans la Grece Antique,Ecole Frangaise d'Athenes, Travaux et Memoires, Fas. XVIII, Paris, 1968,p. 196 e seguintes.

*Tipo de competi^ao, confronto ou combate ritual que era cofrente na anti-ga Grecia. Atraves dos agones destacavam-se os melhores quer fosse na luta quertambem na danga, na poesia, no teatro ou mesmo entre os bebedores. (N. da T.)

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ao de todos os sibaritas a que puderam langar as maos, levada aefeito pelos cidadaos de Crotona, sob a direcgao de Milon, o famosolutador, e um caso a assinalar. For vezes, o «genocidio» era um actocalculado que visava a destruigao do exercito de um Estado rival,como sucedeu no caso de Argos, cujo poder militar, enquantopotencial rival de Esparta, foi mais ou menos aniquilado peladestruigao geral de todos os homens que podiam empunhar armas,sob as ordens da Assembleia de Cidadaos ateniense em 416 a. C,descrita com vivacidade por Tucidides, resultando de uma confi-guragao muito semelhante a que conduziu a ocupagao russa da Che-coslovaquia, em 1968. Os Atenienses consideravam Melos comouma parte do seu imperio. Esta ilha possuia para eles um signifi-cado estrategico especifico na sua luta com Esparta. Mas os habi-tantes de Melos nao desejavam tornar-se uma parte do imperioateniense. Por esse motivo, os Atenienses mataram os homens,venderam as mulheres e as crian^as para a escravatura e estabele-ceram-se na /ilha com colonos atenienses. Alguns gregos considera-vam a guerra como a relagao normal entre cidades-Estado. Estapodia ser interrompida por acordos de periodo limitado. Os deuses,pela palavra dos seus sacerdotes, e os escritores podiam desaprovarmassacres deste genero. Mas o nivel de repugnancia «moral» contraaquilo que nos agora chamamos «genocidio» e, de um modo geral,o nivel de inibigoes interiorizadas contra a violencia fisica eramdecididamente mais baixos, e os sentimentos de culpa ou de ver-gonha associados a tais inibigoes eram mais frageis do que o sao nosEstados-nagoes relativamente desenvolvidos do seculo XX. Talvezestivessem ausentes por completo.

Nao havia falta de compaixao pelas vitimas. Os maiores drama-turges atenienses e, acima de todos, Euripides, em A Mulher Troia-na, expressaram este sentimento com a mais energica vivacidade,porque nao estavam ainda protegidos pela repugnancia moral e aindignagao. Contudo, so com grande dificuldade se pode duvidarde que a venda de mulheres dos derrotados para a escravidao, a se-paragao de mae e filho, a morte das criangas do sexo masculino emuitos outros temas da violencia e da guerra nas suas tragediaspossuiam bastante mais actualidade para um publico ateniense nocontexto das suas vidas do que possuem, no nosso contexto, paraum publico contemporaneo.

No total, o nivel de inseguranga fisica nas sociedades da Anti-

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216 A GENESE DO DESPORTO

guidade era muito mais elevado do que o que existe nos Estados--nagoes contemporaneas. Nao e incaracteristico desta diferenga queos seus poetas demonstrem maior paixao do que indignagao. JaHomero desaprovava o facto de Aquiles, no seu sofrimento e furiapela morte de Patroclo, nao ter morto e queimado, como um sa-crificio ao seu espirito, apenas ovelhas, bois e cavalos mas, tambem,doze jovens nobres, na pira funeraria do seu amigo. Mas, uma vezmais, o poeta nao faz o julgamento e a condenagao do seu heroi apartir do elevado trono da sua propria rectidao e superioridade,porque havia cometido a barbara atrocidade do sacrificio humano.A critica do poeta a Aquiles nao possuia o torn emocional da in-dignagao moral. Nao langa duvidas sobre aquilo que nos chamamos«caracter» do seu heroi, do seu valor como ser humano. As pessoasfazem «coisas mas» (kaka ergo) no seu sofrimento e furia. O poetaabana a sua cabega, mas nao apela para a consciencia dos seusouvintes; nao Ihes pede que considerem Aquiles como um reprobomoral, um «mau caracter». Apela para a sua compaixao, para acompreensao da paixao que se apodera mesmo dos melhores, dosherois, em tempos de fadiga e os leva a fazer «coisas mas». Mas oseu valor humano como nobre e guerreiro nao esta em duvida. Osacrificio humano nao tinha para os gregos aAtigos exactamente amesma conotagao de algo horrfvel como tern para as nagoes mais«civilizadas» do seculo XX23. Qualquer aluno de uma escola dasclasses gregas educadas conhecia a ira de Aquiles, os sacrificios e oscombates de jogos realizados no funeral de Patroclo. Os confrontosdos Jogos Olfmpicos situavam-se numa linha directa de sucessao,a partir destes combates funerarios ancestrais. Era uma ascendenciamuito diferente daquela que conhecemos quanto as provas dedesporto contemporaneas.

8

Ate onde se pode ver, o nivel normal de paixao e de violenciados herois e deuses homericos ou, dito de outro modo, o seu nivelnormal de desenvolvimento do autodommio incrustado, o nivel de«consciencia», nao se encontrava senao alguns passes mais atras do

23Fr. Schwenn, Die Menschenopfer bet den Griechen undRomern, Giessen, 1915.

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CAP ITU LO HI 217

nivel atingido em Atenas durante o periodo classico. As pedras quesobreviveram, os templos e as esculturas dos deuses gregos e heroiscontribufram, de maneira peculiar, para a imagem dos antigosgregos como um povo equilibrado e harmonioso. O proprio termo«classico», usado em frases como «Antiguidade Classica», evoca oquadro da sociedade grega como um modelo de beleza harmoniosoe equilibrado, que as geragoes posteriores jamais podem ultrapas-sar. Isto e um equivoco.

Nao podemos tragar aqui, com o rigor que merece, o lugar daGrecia antiga no desenvolvimento da «consciencia», dos controlosinteriorizados a respeito quer da violencia quer de outras esferas davida. Bastara afirmar que a equilibrada Grecia classica continua arepresentar a «aurora da consciencia», um estadio em que a trans-formagao de uma consciencia autocontrolada — representada porimagens comuns de pessoas super-humanas, de demonios-deusesque comandam ou ameagam, que dizem aos seres humanos, deforma mais ou menos arbitraras, o que devem fazer e o que naodevem, numa voz oculta, de certo modo impessoal e individualiza-da, que fala de acordo com os principios sociais gerais de justiga ede in justiga, do certo e do errado — permanecia antes a excepgaoe nao a norma. O daimonion de Socrates foi talvez a aproximagaomais intima ao nosso tipo de formagao da consciencia da sociedadegrega classica, mas mesmo esta «voz oculta» altamente individua-lizada continuava, em certa medida, a ter o caracter de um geniotutelar. Alem disso, o grau de interiorizagao e de individualizagaodas normas e dos controlos sociais que encontramos na representa-gao de Platao sobre Socrates foi, sem diivida, um fenomeno deverasexcepcional. E bastante significative que a lingua grega classica naopossua uma palavra diferenciada e especializada para «consciencia».Existem muitas palavras, tais como synesis, euthymion, eusebia e ou-tras, que sao por vezes traduzidas como «consciencia», mas, numexame mais profundo, verifica-se rapidamente que cada um destestermos e menos especifico e abrange um espectro muito maisvasto, tal como «ter escrupulos», «piedade» e «reverencia para comos deuses». Mas um conceito unico, tao nitidamente especializadocomo o moderno conceito de «consciencia», que denota uma acgaointerior bastante autoritaria, inevitavel e, com frequencia, tiranica,que como parte de si propria, guia a conduta individual, que exigeobediencia e castiga a desobediencia com «angustias» ou «ferroa-

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218 A GENESE DO DESPORTO

das» de sentimentos de culpa, de maneira diferente do «medo dosdeuses» ou «vergonha», actos em si mesmos aparentemente vindosde lado nenhum e sem derivarem do poder e de autoridade de qual-quer acgao externa, humana ou sobre-humana — este conceitode consciencia esta ausente do equipamento intelectual da Gre-cia antiga. O facto de este conceito de «consciencia» nao se terdesenvolvido na sociedade grega pode considerar-se como umfndice muito seguro de que a formagao da consciencia nestasociedade nao tera atingido um estadio de interiorizagao, indivi-dualizagao e relativa autonomia, em qualquer grau, comparavel aonosso.

Se pretendemos compreender o elevado nivel de violencia inte-grado nos combates dos jogos gregos e o nivel inferior de reacgaocontra a violencia na sociedade grega em geral, esta e uma dasindicates que e necessaria. Isto e sintomatico do facto dos indivi-duos no quadro social da cidade-Estado grega permanecerem, a umnivel acentuado* mais dependentes uns dos outros, de acgoes exter-nas e de sangoes como meios de refrearem as suas paixoes, depoderem confiar menos nas barreiras ihteriorizadas, apenas em siproprios, para controlarem impulsos violentos, do que as pessoasnas sociedades contemporaneas. Podemos acrescentar que eles, oupelo menos a suas elites, ja eram capazes, em grau muito superior,de se restringirem a si proprios, individualmente, mais do que osseus antepassados haviam sido na idade pre-classica. As altera-goes de imagem dos deuses gregos, a critica da sua arbitrariedadee ferocidade, suportam o testemunho desta mudanga. Se nosrecordarmos do estadio especifico representado, num processo decivilizagao, pela sociedade grega no tempo das autogovernadascidades-Estado, e mais facil compreender que — comparada coma nossa — a elevada paixao dos antigos gregos pela acgao eraperfeitamente compativel com o equilibrio corporal e harmonia,a graga e a dignidade do movimento reflectidas na esculturagrega.

A terminar, talvez seja util assinalar, de forma breve, um outrolago na cadeia de interdependencias que relacionam o nivel deviolencia integrado no tipo grego dos combates de jogos e deguerra com outras caracteristicas estruturais da sociedade grega.Para o estadio que a organizagao do Estado atingiu, no periodo dascidades-Estado gregas, e bastante significative que a protecgao da

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CAPITULO III 219

.vida de um cidadao contra ataques de outros nao tivesse sido aindatratada, como e hoje em dia, como uma preocupagao exclusiva doEstado. Mesmo em Atenas, ainda nao era considerado dessa manei-ra. Se uma pessoa fosse morta ou mutilada por um concidadao,mesmo nos tempos classicos, a questao de determinar as causas eproceder a vinganga estava reservada aos seus parentes. Em compa-ragao com o nosso proprio tempo, o grupo-familia continuava adesempenhar um papel muito superior no que respeita a protecgaode um individuo contra a violencia. O que significa, ao mesmotempo, que todos os individuos robustos do sexo masculino tinhamde estar preparados para a defesa da sua familia ou, caso se che-gasse a esse ponto, para um ataque, no sentido de ajudar oude vingar a sua familia. Mesmo no seio da cidade-Estado, o nivelgeral da violencia fisica e de inseguranga era, em termos compara-tivos, elevado. Isto contribui, tambem, para explicar o facto de onivel de reacgao de infligir dor e ofensas aos outros, ou de ospresenciar, ser inferior, e esses sentimentos de culpa, devido aactos de violencia, serem menos encorajados no individuo. Numasociedade assim organizada, teriam constituido uma severa des-vantagem.

Algumas maximas do grande filosofo grego Democrito podemtalvez ajudar a dar maior profundidade a compreensao destas dife-rengas. Estas sao sintomaticas da experiencia social comum daspessoas nessa situagao. Mostram que — e indicam porque —«certo» e «errado» nao podem significar exactamente a mesmacoisa em sociedades como as nossas e numa sociedade onde qual-quer individuo pode ter de tomar partido, por si ou pela suafamilia, em defesa das suas vidas. De acordo com as regras docostume, diz Democrito, esta certo matar qualquer coisa viva quetenha realizado uma ofensa; nao matar e errado. O filosofo expres-sou estes pontos de vista inteiramente humanos e sociais. Ai naoexiste apelo aos deuses; nem para a justiga e para o sagrado, comopode encontrar-se, mais tarde, no dialogo de Socrates comProtagoras — se podemos confiar em Platao. Nem, como se podever, existe ai qualquer apelo a protecgao dos tribunals, das institui-goes do Estado, do governo. As pessoas estavam, entao, muito maisentregues a si proprias quanto a total sobrevivencia fisica do quenos estamos. Eis o que o Democrito afirmou:

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220 A GtNESE DO DESPORTO

68(B257)

Como os animais, em certas ocasioes,matar on nao matar, a regra e como se segue:se um animal faz mal,ou deseja fazer mal,e se o homem o matar

ele deve contar-se entre os isentos de castigo.Porque isto executar promove bem-estar,mais do que o contrario.

3CB258)

Se alguma coisa e uma ofensa contraria ao bem,e necessario mata-la.Isto abrange todos os casos.Se um homem o faz,aumentara a parte que compartilha do beme segurangaem qualquef ofdem {social].

5(B256)

O bem e exeeutar o que e neeessarioe o fiial e deixar de realizar aquilo que e necessarioe reeusar faze-Io.

6(B261)

Se alguern Ihes tiver feito mal,,ha a necessidade de os vingar ate onde e praticavel.Isto nao se deve passar por alto.Este tipo de eoisa esta certo e tambem esta beme o outro tipo de coisa esta errado e tambem esta mal24.

24Estou a citar estes excertos da tradugao que Eric A. Havelock publicou noseu livro The Liberal Temper in Greek Politics, New Haven e Londres, 1964, pp.127-8. Penso que a sua tentativa de transferir a sentido destes excertos para umleitor contemporaneo do falar ingles, ate onde isso e possivel, foi bastante bemsucedida. Demonstra tambem, com maior clareza talvez do que muitos outrosescritores, que a enfase que Platao e Aristoteles colocavam na autoridade central

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CAPfTULO HI 221

do Estado conto o primeiro ponto controverso dos problemas politicos e, comfrequencia, considerada de modo errado como caracterfstiea dos gregos antigosem geral, enquantov de facto, este destaque e caracteristico, em grande parte, deum desenvolvimento tardio e, talvez mesmo, so da ultima fase das cidades-Estado gregas independentes. Nao posso concordar, no entanto, com a interpre-tagao do professor Haveiock quanto as doutrinas de filosofos como Democritoserem «liberais». O liberalismo enquanto filosofia polltica pressupoe uma orga-nizagao do Estadoi altamente desenvolvida, ainda que se oriente para impediruma interferencia demasiado grande dos representantes do Estado nos assuntosdos seus membros individuais. For outro lado,, a autoconfianga individual queDemocrito defende e caracteristica de um estadio de desenvolvimento no qualurn individuo e o seu grupo familiar nao podem ainda ser significativos naprotecgao de uma organizagao do Estado razoavelmente efeetiva e impessoal. Narealidade, nao e uma ideia «liberal» aquela que afirma que os homens tern odireito e o dever de se vingar e de matar os seus proprios inimigos.

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CAPITULO IV

Ensato sobre o desporto e a vtolencia

Norbert Elias

1

Ha alguns seculos, o termo sport era usado em Inglaterra,juntamente com a versao disport, para designar uma variedade depassatempos e divertimentos. Em A Survey of London, escrita nofinal do seculo XVI1, temos conhecimento do «espectaculo realiza-do por cidadaos, para diversao* do jovem principe Ricardo», ousobre o «divertimento** e passatempos que se costumavam realizaranualmente, primeiro na festa de Natal... Havia na casa dos reis...um vvsenhor da desordem", ou vvmestre de joviais" despor-tos***...»2. No decurso do tempo, o termo «desporto» passou a serpadronizado como um termo para formas especificas de recreagaonas quais o esforgo fisico desempenhava o principal papel — formasespecificas de um tipo de recreagao que se desenvolveu primeiro emInglaterra e que, a partir dai, se espalhou por todo o mundo.A propagagao destas formas inglesas de ocupagao de tempo livreligar-se-ia ao facto de as sociedades onde as pessoas as adoptaramterem passado por mudangas estruturais semelhantes aquelas que aInglaterra havia conhecido antes? Seria isso devido ao facto de aInglaterra estar adiantada, relativamente aos outros paises, quantoa «industrializagao»? O caminho paralelo destes dois processes, adifusao a partir de Inglaterra de modelos de produgao industrial, de

Stow, A Survey of London (1956), publicado pela primeira vez em 1603e reimpresso em Oxford, em 1908.

2Ibid., p. 96 e seguintes.* Disport (N. daT.)**Sportess (N. daT.)***Merry disports (N. da T.)

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224 ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOLENCIA

organizagao e de trabalho e a difusao das formas de ocupagao detempo livre do tipo conhecido como «desporto» e dos tipos deorganizagao relacionados com ele e, certamente, notavel. Comohipotese inicial, nao parece despropositado supor que a transforma-gao da forma segundo a qual as pessoas utilizavam o seu tempolivre seguiu de mao dada com a transformagao da maneira segundoa qual trabalhavam. Mas quais eram as ligagoes?

Muita reflexao tern sido dedicada ao processo de industrializa-gao e as suas condigoes. Falar de processo de «desportivizagao»pode produzir um efeito desagradavel ao ouvido. O conceito soa demodo estranho. Apesar disso, ajusta-se bastante bem aos factosobservados.

No decurso do seculo XIX — e, em alguns casos, mais cedo, nasegunda metade do seculo XVIII —, com a Inglaterra consideradacomo um modelo, algumas actividades de lazer exigindo esforgosfisicos assumiram tambem noutros paises as caracteristicas estrutu-rais de «desportos». O quadro das regras, incluindo aquelas queeram orientadas pelas ideias de «justiga», de igualdade de oportu-nidades de exito para todos os participantes, tornou-se mais rigido.As regras passaram a ser mais rigorosas, mais explfcitas e maisdiferenciadas. A vigilancia quanto ao cumprimento das regrastornou-se mais eficiente; por isso, passou a ser menos facil fugir aspunigoes devidas a violagoes das regras. Por outras palavras, sob aforma de «desportos», os confrontos de jogos envolvendo esforgosmusculares atingiram um nfvel de ordem e de autodisciplina nuncaalcangados ate ai. Alem disso, sob a forma de «desportos», ascompetigoes integraram um conjunto de regras que asseguravam oequilibrio entre a possivel obtengao de uma elevada tensao na lutae uma razoavel protecgao contra os ferimentos fisicos. A «despor-tivizagao», em resurno, possui o caracter de um impulse civilizadorcomparavel, na sua orientagao global, a «curializagao» dos guerrei-ros, onde as minuciosas regras de etiqueta representam um papelsignificative e do qual tratei num outro lugar3.

A tendencia muito divulgada de explicar quase tudo aquilo queocorreu no seculo XIX como o resultado da Revolugao Industrial

3Norbert Elias, State Formation and Civilization, 1982, p. 258 e seguintes.«Feudalizagao» e um exemplo de um impulse na direcgao oposta.

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CAPfTULO IV 225

faz com que as explicates sejam, assim, um pouco cautelosas. Semduvida que a industrializagao e a urbanizagao desempenharam urnpapel no desenvolvimento e na difusao das formas de ocupagao detempo livre com as caracteristicas de «desportos», mas tambem epossivel que, tanto a industrializagao como a desportivizagao, te-nham sido sintomaticas de uma transformagao mais profunda dassociedades europeias, que exigia dos seus membros individuals umamaior regularidade e diferenciagao de comportamentos. O pesocrescente e a maior diversidade das cadeias de interdependenciapodem ter tido alguma coisa a ver com isso. Este processo funda-menta a sua expressao na submissao tanto dos sentimentos daspessoas e das suas acgoes a um horario regulador minuciosamentediferenciado como na responsabilidade, a que era igualmente dificilde escapar, em termos de dinheiro. E possivel pensar que as socie-dades europeias, falando de uma maneira geral, sofreram, desde oseculo XV em diante, uma transfbrmagao que forgou os seusmembros a uma lenta e crescente regularidade de conduta e desensibilidade. A rapida aceitagao do tipo de passatempos de despor-to nos paises continentals seria, talvez, um sinal da necessidadecada vez maior de actividades de recreagao mais ordenadas, demaior regulamentagao e menor violencia fisica na sociedade emgeral? Investigates futuras podem contribuir para dar uma respos-ta a estas questoes. De momento, sera suficiente esclarecer e orde-nar algumas das questoes que envolvem o desenvolvimento dosproprios desportos. No passado, o termo «desporto» foi usado comfrequencia, de modo indiscriminado, a proposito de tipos espe-cificos de actividades de lazer modernas e, tambem, de actividadesde lazer das sociedades num estadio anterior de desenvolvimento,da mesma maneira que, frequentemente, se refere a «industria»moderna e, ao mesmo tempo, a «Industria» das pessoas da Idade daPedra. Aquilo que afirmei chegara para realgar, com maior nitidez,o facto de o desporto ser algo relativamente recente e novo.

Se alguem comegar a investigar, recuando no tempo, partindodesta breve visao da propagagao do movimento dos desportos noexterior de Inglaterra para o precedente desenvolvimento do des-

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226 ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOLENCIA

porto na propria Inglaterra, tera de pensar qual sera a melhor formade prosseguir. Como e que se encontram provas seguras sobreprocesses de crescimento — sobre o desenvolvimento dos jogos eoutras actividades de lazer, ate a forma a que se aplica o termo«desporto»? Quantos destes desenvolvimentos, pode pensar-se,ficaram sem registo. Sera que existem dados suficientes para a re-construgao dos processes em que alguns passatempos adquiriram ascaracteristicas de desportos e nos quais cada desporto, por sua vez,adquiriu as suas proprias caracteristicas distintivas?

Nao sao tanto as provas que faltam. Mas ao procura-las e-se,frequentemente, impedido de prestar atengao a semelhante prova,tal como ela e, devido a preconceitos sobre escrever historia, emgeral, e sobre escrever a historia dos desportos, em particular. Destemodo, ao estudar o desenvolvimento de um desporto, muitas vezese-se conduzido pelo desejo de Ihe estabelecer uma longa e res-peitavel ascendencia. E, neste caso, fica-se em condigoes de selec-cionar, como relevantes para a sua historia, todos os dados acerca dejogos praticados no passado que apresentam alguma semelhangacom a forma actual do desporto particular cuja historia se esta aescrever. Se alguem encontra numa cronica do seculo XII a referen-cia de que, ja nesse tempo, os rapazes de LondrelT iam^em certosdias, para os campos, jogar com uma bola, inclina-se a concluir queesses jovens ja entao estavam a jogar o mesmojogo que, sob o nomede futebol, passou a ser um dos maiores jogos de Inglaterra e que,sob essa forma, se tern propagado por todo o mundo4. Mas tratardesta maneira as actividades de lazer de um passado bastante dis-tante, como sendo mais ou menos identicas as do seu propriotempo — o «futebol» do seculo XII com o futebol do passado^seculo XIX e seculo XX —, impede que sejam colocadas no centroda investigagao as seguintes perguntas: de que maneira e porque eque jogar com uma grande bola de couro se desenvolveu para esta

4E assim que Geoffrey Green, na sua History of the Football Association (Londres,1953, p. 7), faz a referenda ao «famoso jogo de bola» (ludumpilae celebrem) de Wil-liam Fitzstephen, no seu panegirico Descriptio Noblissimae Civitatis Londinae (1175,citado em Stow, A Survey of London) como demonstrac.ao do facto de que o futebolera jogado pelos jovens de Londres no seculo XII. Embora mais prudente, MorrisMarples, na sua A History of Football (Londres, 1954, pp. 19-21), conclui que «existeuma boa razao para pensar que Fitzstephen esta realmente a referir-se ao futebol».

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CAPITULO IV 227

forma particular? Impede que se pergunte como e porque e que seclese'fivolveram regras e convengoes particulares que determinantagora a conduta dos jogadores quando efectuam o jogo e sem asquais o jogo nao seria «futebol» no nosso sentido da palavra. Oude que maneira e porque e que se desenvolveram as formas parti-,culares de organizagao, que possiBilitam a estrutura mais imedia-~ta para o desenvolvimento de tais regras e sem a qual elas nao se,poderiam manter e controlar.

A respeito de todas estas questoes, o treino, o estudo e a obser-vagao a que aplicamos agora o termo «sociologico» dirigem aatengao para problemas e, por consequencia, para a demonstragao,a qual nem sempre e considerada como possuindo a relevanciafundamental dentro da tradigao dominante do escrever historia. Ahistoria dos sociologos nao e historia dos historiadores. Prestar!atengao as regras e normas que governam o comportamento huma- \no, num dado tempo, e as organizagoes no interior das quais essas )regras sao mantidas e a sua observancia controlada passou a ser um Itrabalho bastante comum das investigagoes sociologicas. \

Aquilo que e ainda muito invulgar no presente e a atengao aregras e normas em desenvolvimento. Ojproblemajdo como ejioporque regrasje normas se tornaram^naxjuiio que elas^sao num dadomomento nap e explorado, com frequencia, de maneira sistematica.Alem disso, sem a investigagao de tais processos, uma dimensaocompleta da realidade social permanece fora de alcance. O estudosociologico dos jogos-desporto, para alem do seu interesseintrinseco, desempenha tambem a fungao de um projecto-piloto.Encontram-se aqui, num campo que e relativamente limitado eacessivel, problemas de um tipo que muitas vezes surge noutrasareas maiores, mais complexas e menos acessiveis. Os estudos sobreo desenvolvimento dos desportos proporcionam experiencias devarias formas e, por vezes, conduzem a modelos teoricos que podemcontribuir para investigagao dessas outras areas. O problema docomo e do porque se desenvolveram regras e um exemplo. O estudoestatico das regras ou normas, como algo definitivamente adquiri-do, conduziu com frequencia, no passado, e continua a conduzirhoje, a um quadro equivoco e, de algum modo, irrealista da socie-dade.

Se fossem testadas as teorias correntes da sociedade, descobrir--se-iam fortes tendencias para considerar normas e regras — na

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228 ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOL^NCIA

heranga de Durkheim — quase como se elas possuissem uma exis-tencia independente das pessoas. Fala-se, com frequencia, de nor-mas ou regras como se elas fossem dados, que resultassem por siproprios, para a integragao de pessoas individuals na forma desociedades e para o tipo particular de integragao, para o padraode sociedades. EmjgsuinOjJ^normas ou regras, comet as ideias de^PJ^^^ggssuem uma existen-

I cia propria, que existem, dejilguma maneira, em si mesmasje cpns-Jtituissem, por esse motivo, o ponto de partida para reflexoe^spbre

maneira atraves da qual as pessoas constituem as SQciedndejr. ~~"Se alguem investigar sobre o modo de desenvolvimento das

regras e normas, ficara mais bem habilitado para ver que a aborda-gem durkheimiana, que explica a coesao, a interdependencia e a in-tegragao de seres humanos e de grupos em termos das regras e dasnormas a que obedecem, continua a revelar uma forte orienta^aonominalista. Ela propria conduz a uma concepgao equivoca sobre anatureza da sociedade que esta agora bastante divulgada. Nestalinha, a nitida distingao de valor feita a proposito de formas deconduta e de agrupamentos humanos que se desenvolvem de acordocom as normas estabelecidas, e de outras que tomam o sentidooposto, e considerada destituida de atitude critica no aparelho con-ceptual daqueles cujo trabalho consiste em estudar e, tanto quantopossivel, explicar os problemas da sociedade. Estudos sociologicosdirigidos para a explicagao da rela^ao dos factos na sociedade,seriam frustrados se os classificassem dessa maneira, porque, emtermos de explicagao, as relates dos factos que se ajustam asnormas estabelecidas e as dos outros que se desviam delas —«integragao» e «desintegragao», «ordem social» e «desordem so-cial» — sao interdependentes e constituem exactamente o mesmotipo de factos5.

Se alguem investigar sobre os processes de desenvolvimento dasnormas e regras, a interdependencia factual de «ordem» e «desor-dem», de «fungao» e «disfungao», torna-se nitida, de forma nota-vel. Porque, no decurso de tal processo, pode ver-se muitas vezescomo regras e normas especificas sao estabelecidas pelos sereshumanos de modo a resolver formas especificas de mau funciona-

5Para urn aprofundamento desta questao, ver Norbert Elias, What is Sociology?,Londres, 1978, pp. 75-6.

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CAPtTULO IV 229

mento e como este, por seu lado, conduz a outras alteragoes nasnormas, nos codigos de regras que governam a conduta das pessoasem grupos.

E possivel verificar, tambem, com grande nitidez, o caracterilusorio de qualquer concepgao da sociedade que sugere que regrasou normas possuem um poder proprio, como se fossem algo exteriore separado dos grupos de pessoas, e pudessem servir, enquanto tal,como uma explicagao para o modo como as pessoas se reunem emsociedades. O estudo do desenvolvimento dos «jogos-desporto»6 e,neste ambito, o desenvolvimento das suas regras permitem-nosexplorar, dentro de um campo que, comparativamente, se apresentapossivel, a tecnica da pesquisa sociologica para a qual utilizo, comodenominate mais adequada, a analise e smtese «configuracionais»e para demonstrar qual e o modo como penso que estas devem serutilizadas. Em particular, um estudo com estas caracteristicasrevela, com muita clareza, um dos factos basicos da estrutura dassociedades em geral, nomeadamente, o de que — em face decondigoes nao humanas inalteraveis — as normas especificas nointerior das quais as pessoas se reunem so podem ser explicadas emtermos de outras formas especificas de reuniao. J^gjs^continua a soarjde form^ta^aquilo que se estuda como «<padr6es sociais>>, <<estrutiirasjociais>^e,« configurates » sao padroes, estruturas e configurates formadaspor seres humanos. Costumes linguisticos e habitos de pensarneritg>levam-nos a falar e a pensar tais padroes como se eles fossem algoexterior e separado das pessoas que os formam.

Muitos termos sociologicos padronizados atingiram, e certo,um elevado grau de aplicabilidade em relagao a estruturasobservaveis. Entre eles encontra-se o proprio termo de «estrutura».E, contudo, tenho algumas reservas a respeito de expressoes padro-nizadas como estas que utilizamos quando afirmamos que uma so-ciedade ou um grupo tern uma estrutura. Pode interpretar-se, facil-mente, esta maneira de falar como se traduzisse o facto de o gruposer alguma coisa separada das pessoas que o constituem. Aquilo aque chamamos «estrutura» nao e, de facto, senao o padrao ou a

6Nem todos os jogos sao «desportos» e nem todos os desportos sao «jogos». Otermo «jogos-desporto» refere-se aqueles — fiitebol, raguebi, tenis, criquete, golfe,etc. — a que ambos os termos se aplicam.

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230 ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOLENCIA

configuragao de pessoas individuals interdependentes que consti-tuem o grupo ou, num sentido mais vasto, a sociedade. Aquilo quedesignamos pelo termo de «estruturas» quando consideramos aspessoas enquanto sociedades nao sao mais do que «configurates»quando as encaramos como individuos.

As configuragoes constituem, no estudo dos desportos, o fulcroda investigagao. O desporto — qualquer que seja — e uma acti-vidade de grupo organizada, centrada num confronto entre, pelomenos, duas partes. Exige um certo tipo de esforgo fisico. Realiza--se de acordo com regras conhecidas, que definem os limites daviolencia que sao autorizados, incluindo aquelas que definem se aforga fisica pode ser totalmente aplicada. As regras determinama configuragao inicial dos jogadores e dos seus padroes dinamicosde acordo com o desenrolar da prova. Mas todos os tipos de despor-tos tern fungoes especificas para os participantes, para os especta-dores ou para os respectivos paises em geral. Quando a forma deum desporto fracassa na execugao adequada destas fungoes, asregras podem ser modificadas.

Os desportos variam segundo as suas regras e, por esse motivo,os diferentes modelos de pratica ou, por outras palavras, as diferen-tes configuragoes dos individuos envolvidos, como esta determina-do nas respectivas regulamentagoes e organizagoes que controlam oseu cumprimento. O problema e, evidentemente, saber o que\distingue o tipo ingles de «jogar o jogo» — o tipo de jogosdisputados, de regras e de organizagao a que agora nos referimoscomo «desportos» — dos outros tipos de jogos. Como e que elesse constitufram? Como e que se desenvolveu, no decurso do tempo,o caracter distintivo das regras, das organizagoes, das relagoes, dos

1 grupos de jogadores, no quadro da acgao peculiar dos «desportos»?Como e evidente, este foi um dos processes no decurso do qual sedesenvolveram, durante muitas geragoes, estruturas especificas derelagoes de grupos e de actividades por meio da conjugagao dasacgoes e dos objectivos de muitos individuos, mesmo que nenhumdos participantes, individuos ou grupos tivesse a intengao ouplaneasse a longo termo o resultado da sua acgao. Nestas condigoes,o exame da emergencia dos desportos como um problema mera-mente historico nao se trata de uma questao sem importancia. Noslivros de historia, a historia dos desportos e apresentada^jrom^fre-quencia, como series de actividades e decisoes quase acidentais de

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algumas pessoas. Aquilo que parece conduzir a forma «final»,a forma «amadurecida» do jogo, e colocado em evidencia. O que ediferente ou oposto ao padrao «derradeiro» e muitas vezes abando-nado na sombra, como irrevelante. Qsmgjej^a,_o_orescimentajiaforma «adulta»_de^um despprto nao pode ser apresentadp^de modoadequado, se for encarado antes, como um emaranhado fortuito deactividades e de decisoes de alguns individuos ou grupos conheci-dos. Nem pode ser apresentado de modo adequado, de acordo como que sugerem as teorias sociologicas correntes, como series de«mudangas sociais». A alteragoes que se podem observar no desen-volvimento de desportos como o criquete e o futebol, assim comoa caga a raposa e as corridas de cavalos, possuem nao so um padraomas uma direcgao proprios. Este e o aspecto da historia dos despor-tos salientado por quern se refere a ela como um «desenvolvimen-to». Mas ao utilizar este termo ha que dissocia-lo do seu usofilologico ou metaffsico. O que se entende por desenvolvimentosocial so pode ser alcangado com a contribuigao de estudosempiricos minuciosos. So pode descobrir-se, neste contexto es-pecifico, se alguem investigar sobre a maneira como a caga a raposa,o boxe, o criquete, o futebol e outros desportos se «desenvolveram»de facto. Utilizei, provisoriamente, e em cita^oes, a expressao forma«amadurecida» ou «derradeira» do jogo. Uma das descobertasfeitas no decurso de investigates deste tipo foi a de que um jogopode atingir, no decurso do seu desenvolvimento, um estadio deequilibrio peculiar. E quando este estadio foi alcangado, a estruturaglobal do seu desenvolvimento anterior modifica-se. Porque o factode ter atingido a sua forma «amadurecida», ou aquilo que se Ihepretenda chamar, nao significa que todo o desenvolvimento termi-na; significa, apenas, que este encetou um novo estadio. Contudo,nem a existencia deste, nem as suas caracteristicas, nem, sequer, osignificado global do seu desenvolvimento social podem ser deter-minados de qualquer outra maneira, excepto por meio do estudoempirico da propria prova. Por outro lado, o conhecimento preli-minar do que se procura ao estudar a historia de um desporto naoe meramente a actividade isolada de individuos ou grupos, nemapenas um numero de mudangas nao padronizadas, mas uma se-quencia padronizada de alteragoes na organizagao, nas regras e naconfiguragao actual do proprio jogo, o qual se orienta, durante umcerto perfodo, em direcgao a um estadio especifico de equilibrio de

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tensao que, provisoriamente, foi aqui designado por «estadioamadurecido» e cuja natureza tern ainda de ser determinada. Estemesmo conhecimento, utilizado com flexibilidade e, sempre, com apossibilidade da sua insuficiencia no pensamento, pode orientar aselecgao de dados e contribuir para a compreensao das relagoes.

Como afirmamos, um desporto, seja ele qual for, e uma activi-dade organizada, centrada num confronto entre, pelo menos, duaspartes. Exige esforgos fisicos de certo tipo e e disputado de acordocom regras conhecidas, incluindo, onde se revelar apropriado,regras que definem os limites autorizados de for^a fisica. O grupode participantes e organizado de tal maneira que em cada encontroocorre um padrao especifico de dinamica de grupo — um padraoque e flexivel, umas vezes mais, outras vezes menos, e, por isso,variavel e, de preferencia, nao inteiramente previsivel no seu cursoe nos seus resultados. A configuragao das pessoas em semelhanteconfronto encontra-se de tal modo planeada que nao so facilita astensoes como, tambem, as restringe. Na forma amadurecida, inte-gra um complexo de polaridades interdependentes, num estado deequilibrio de tensao instavel, e permite — na melhor das hipoteses— moderar as variaveis que oferecem a todos os contendoresoportunidades para levar a melhor, ate que um deles consiga des-fazer o equilibrio vencendo o jogo. Uma das caracteristicas de umjogo-desporto no seu estado amadurecido e o facto de o perfodo detensao nao ser nem demasiado breve, nem demasiado longo. Comoos bons vinhos, a maioria dos desportos necessita de muito tempopara evoluir ate esta forma, para crescer ate a maturidade e encon-trar a forma optima. E raro — embora tenha acontecido —• inven-tar-se um jogo-desporto satisfatorio7. Em geral, passaram por umperfodo de ensaio e erro antes de atingirem uma forma que garan-tisse suficiente tensao por tempo satisfatorio sem favorecer tenden-cias no sentido do empate. Vitorias precipitadas e repetidos empa-tes podem verificar-se por uma variedade de razoes, algumas das

7O basquetebol, que, na sua forma inicial, foi inventado pelo Dr. JamesNaismith de Springfield, Massachusetts, e um exemplo de semelhante jogo.

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quais, mas nao todas, podem situar-se na construgao do jogo-pa-drao, da conflguragao e das suas proprias dinamicas. A necessariatensao da configurable estara ausente se urn dos adversaries serevelar excessivamente superior ao outro em forga e tecnica, porquenesses casos o jogo depressa termina na derrota do lado mais fraco.Se os adversaries estiverem demasiado equilibrados em forga e emhabilidade, o confronto pode arrastar-se. Neste caso, e provavel quetermine num empate e que a tensao-excitagao nao seja capaz deatingir a tempo a sua libertagao no climax da vitoria. Nestes casos,e a configuragao temporaria dos jogadores, nao a configuragao maisduradoura estabelecida pelo proprio jogo-padrao instituido, que eresponsavel por imperfeigoes no complexo de equilfbrio de tensaocaracteristico dos jogos-desporto. Noutros casos, as tendencias nosentido de uma vitoria precipitada ou de um empate sao devidas aconfiguragao instituida pelos jogadores no proprio jogo. No desen-volvimento de um jogo-desporto, pode encontrar-se, com frequen-cia, um perfodo durante o qual as disposigoes favorecem os atacan-tes em detrimento dos defesas ou vice-versa. No primeiro caso, osatacantes podem veneer todos os jogos, e demasiado depressa.O batedor medio do wicket* introduziu-se no criquete, como sesabe, quando os boladores desenvolveram uma tecnica que atingiaa bola com grande frequencia e, segundo parece, com demasiadafacilidade8. No segundo caso, os jogos terminavam muitas vezes emempate9. Assim^proporgag ej^uUlbrio_dejt^ensao ejdasudinami-cas da configurajao^um Jpgo-desporto depende, entre outras, defllsposi^oes que garantam aos concorrentes, nao so quando atacamcomb quando defendem, oportunidades iguais de vitoria e de der-rota. Mas estas nao sao as unicas polaridades de que depende o

8A questao aqui sublinhada nao e delibitada pelo facto de que tanto batsman{Jogador que, no criquete defende com um bastao, a que se da o nome de bat. (N.da T.)} como bowlers [O langador. (N. da T.)] no criquete e jogos comparaveis, alter-narem defesa e ataque, situagoes que dependem, por exemplo, do decurso do jogoe do estadio que nele foi atihgido.

9Um exemplo disso e a mudanga na lei de «fora de jogo» introduzida no fute-bol, no ano de 1923. Para uma discussao sobre esta mudanc,a, ver o Cap. VI destevolume.

* Wicket e um grupo de tres pequenos paus verticals, ligados por barrashorizontals, que se designam por bails, defendido por um jogador — o batsman.(N. da T.)

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equilibrio de tensao do jogo. Se os jogadores nao se controlarem asi proprios o suficiente, estao provavelmente ajnfrio^r^^gHTea vitoria pode desviar-se para os seus oponentes.e Se se restringiremde mais, Jfaltar-lhes-a o vigor e a energia necessaries para a vitoria.

<] No casp de seguirem as regras como escravos, arriscam-se a perder jjpor falta de imaginagao, pelo contrario^se slTesquiyam ou se esfor-f

J gam ate ab extremo, arriscam-se a perder por infracgao das regras.~PrecIsam de encontrar a forma intermedia entre a obediencia zelosaas regras e convengoes e a dissimulagao e exploragao das regras ateao limite, jogando proximo da ruptura. Se, pelo grande prazer deum jogo e de um desporto, nao explorarem cada oportunidade deveneer, podem perder a hipotese da vitoria; o proprio jogo podedeteriorar-se.

Nos estadios anteriores de desenvolvimento dos jogos-desporto,quando grupos locais, relativamente pequenos, de jogadores ou osseus protectores faziam as suas proprias regras, era de certa maneirafacil a alteragao das mesmas para servir as necessidades dos jogado-res e do seu publico. Mas, quando organizagoes nacionais se torna-ram as donatarias das leis, a polaridade entre a tendencia dosjogadores para seguir as regras e para as iludir ou explorar aomaximo tinha a sua contrapartida, a um outro nivel, na polaridadeentre dois grupos diferentes, por um lado, entre aqueles que fazemas regras na ciipula de uma organizagao nacional e, por outro, osproprios jogadores. Os primeiros legislavam considerando a situa-gao global do jogo e as suas relagoes com o publico em geral; osultimos, com frequencia afastados do centro do poder, e no inte-resse das suas proprias oportunidades de veneer jogos, utilizavam aflexibilidade de todas as regras verbais, inventando processes defugirem as malhas das leis e iludindo as intengoes dos que as ela-boravam.

O desequilfbrio em uma ou outra destas polaridades e umfactor do desenvolvimento dos jogos-desporto no sentido de maiorequilibrio de tensao. Pelo menos, tres niveis desempenham umpapel na dinamica deste processo: jogos realizados, num dadoperiodo, por individuos que se podem identificar; o conjunto dejogos-padrao de acordo com os quais um jogo e praticado numdeterminado estadio de desenvolvimento, juntamente com a orga-nizagao (ou organizagoes) que o controlam; e o processo de desen-volver o jogo-padrao durante todo o tempo da existencia do jogo.

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A dinamica do jogo individual, a dinamica propria do jogo-padrao,num dado momento, e a dinamica de longo termo de um processoformativo do jogo ate a sua maturidade, e depois de a maioridadeter sido atingida, formam um padrao complexo. Sob o ponto devista conceptual, estes niveis podem distinguir-se, embora, defacto, sejam inseparaveis. Mas, para efeitos de observagao e estudo,e habitual investigar-se no sentido de saber se as mudangas saodevidas aquilo que se sente serem as deficiencias do proprio jogo--padrao, num tempo em que as condigoes para realizar o jogo nasociedade em geral permaneciam em grande medida inalteradas, ouse as mudangas no jogo-padrao sao devidas a deficiencias sentidas,provenientes, em grande medida, de condigoes de mudanga do jogona sociedade em geral. For outras palavras, um jogo-desporto, emparticular quando atingiu a maturidade, pode ter um grau deautonomia em relagao a estrutura da sociedade onde e jogado; porisso, as razoes para as mudangas podem estar no proprio jogo-

r -padrao. Mas a autonomia e limitada. O desenvolvimento do des-porto em geral, bem como o de desportos particuIaFes, podF^seT-*- _^ __;, r=_-->- -==-~™=-~--i=.- _-_^=r-_— -i. =_i__-_J^asa=_. _ „. ~-___— .- — — - _^=i ===r =r ^L.===J=i-'==-«!EJt = =— ~ 'J^-=as=:=^_^=-

consiclerado como uma ramificagao do desenvolvimento das socie-dades onde sao jogados e como sao jogados, cada vez mais, a riivelinternacional, no desenvolvimento^ dajs_ocieda.de_ mundial.

1 Nestas observances preliminares, ja dissemos o bastante paraassinalar a complexidade das caracteristicas basicas da configuragaodos jogos-desporto. Todos eles — tenis, futebol, boxe, hoquei emuitas outras formas de desporto, incluindo a forma inglesa de caga— apresentam caracteristicas similares em certos aspectos. A ana-lise, na perspectiva da configuragao, contribui para tornar maispenetrante a percepgao de tais caracteristicas e para conceptualizaras suas propriedades distintivas com maior precisao. A partir destasconsideragoes preliminares, podem ver-se algumas das caracte-risticas distintivas do desporto numa perspectiva mais correcta.A pega fulcral da configujragfojdej^e^ sempre, a simulagao dejim c<^nfrqn!o,jcmi^jproduzidas controladas, e, no_jn]^^Qm^_ j^tensao. De acordo com a tradigao dominante de pensar e de sentir,as tensoes enquanto fenomeno social consideram-se alguma coisaque actua em oposigao as normas — como anormal, nocivo e inde-sejavel. A analise configuracional do desporto mostra que as tensoesde grupo de tipo equilibrado sao um ingrediente central de todas

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as actividades de lazer. Um desporto e uma forma organizada detensao em grupo, mesmo que aquele que a procura, num dado mo-mento, possa ser um grupo de dois elementos. «Equilfbrio detensao» e um termo introduzido de modo a expressar a ideia de quea configuragao de base de um desporto e designada quer paraproduzir quer para moderar tensoes. As tecnicas para manter umaconfiguragao de um grupo de indivfduos num equilibrio de forgasem tensao por um certo tempo, com uma elevada oportunidade decatarse ou de libertagao da tensao, continua por estudar. Sejamquais forem estas tecnicas, a configuragao em acgao esta equilibradaentre a vitoria precipitada de Cila e o empate de Carfbdis.

Estas e outras caracterfsticas basicas nao foram, evidentemente,planeadas. Nem foi sequer o objective expresso, e claramenteconceptualizado de grupos especfficos, designar como actividadesde lazer configurates dinamicas de individuos com estas carac-terfsticas. Muitos passatempos em Inglaterra, na maioria durante oseculo XVIII e XIX, desenvolveram-se nesta direcgao deste modo,sem planeamento e em grande parte inesperadamente^ A tarefajdos^sociologos, como e evidente,C tmgat, _de,J^ma^nna _geral, umcjuadro claro da dinamica de grupo especffica do jogo-pjdrap, dasconfiguragoes de individuos caracterfsticas do desporto^ e, entao,tanto quanto possfvel, ver, com a maior minucia, como passatem-pos especfficos desenvolveram gradualmente as caracterfsticas dis-tintivas de desporto a partir de um estado no qual estavam ausentese, por fim, determinar as caracterfsticas especfficas no desenyglvirmento de um pafs, da sociedade em geral, que sfe responsave^pdpdesenvolvimento de passatempos nesta direcgao.

Esta, pelo menos, e a tarefa a longo termo. Aquilo que se seguesao alguns passos no sentido desse caminho.

Um dos primeiros passatempos com as caracterfsticas distinti-vas de um desporto foi a forma inglesa de caga a raposa. No nossoproprio tempo, qualquer tipo de caga e considerado, por muitaspessoas, quanto muito, como uma forma marginal de desporto. Noseculo XVIII e infcios de seculo XIX, a caga a raposa foi decidida-mente um dos principals passatempos a que o termo «desporto» seaplicou. Pode compreender-se melhor o que se entende por «des-porto» se estudarmos o caracter peculiar deste tipo de caga. Estavabastante longe das formas de cagar mais simples, menos regula-mentadas e mais espontaneas de outros pafses e dos tempos passa-

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dos, em que as proprias pessoas eram os actores principals, onde oscaes de caga eram meros auxiliares e em que as raposas nao eramos unices animais cagados.

Em Inglaterra, a caga a raposa tornou-se um passatempo alta-mente especializado, com uma organizagao e convengoes proprias.Enquanto cagavam a raposa, os cavalheiros refreavam-se estrita-mente de perseguir e de matar quaisquer outros animais queencontrassem no seu caminho10 — para espanto de espectadoresestrangeiros, que eram incapazes de compreender as razoes destarestrigao. Mesmo os cavalheiros cagadores de Inglaterra, seguros doconhecimento e do prazer dos seus costumes, eram, na maioria,incapazes, ou tinham relutancia, de explicar os seus rituais de caga.Partir atras de uma raposa e nao considerar qualquer outro animalque passasse no seu caminho, mesmo que pudesse servir como amais apetecida delicia na mesa de alguem, fazia parte do seu codigosocial. Um cavalheiro nao partia para a caga com o fim de trazer paracasa coisas boas para a mesa. Fazia isso por desporto. Com razoaveldivertimento, contavam uns aos outros historias que demonstravama falta de compreensao dos estrangeiros pela caga a raposa, em

10Com frequencia, nao se compreende o quanto se desenvolveram lentamenteas institutes socials e a estrutura da personalidade de individuos ate um estadio emque e norma,em todos os estratos socials, uma pessoa adulta ser capaz de prosseguiruma actividade especializada com um unico espirito e sem ser distraida por outrosfins, talvez momentaneamente mais atraentes. O facto de o ritual da cac.a a raposaexigir semelhante determinac.ao de espirito e a correspondente autodisciplina, naperseguigao da raposa, e um exemplo.

Recordo-me de outro. Podera contribuir para a compreensao do facto de que aconcentrate da atengao e do comportamento num unico objective durante horas,dias, anos, no final dos quais — nao totalmente sem conflito proprio — pode agoraser considerada, em muitos pafses, como uma conquista de pessoas de todas asclasses, e alguma coisa que se desenvolveu lentamente no decurso do tempo. Issopodia ser muito menos certo nos primeiros estadios. Deste modo, o codigodisciplinar aprovado pelo conde de Leicester, para uso das tropas em servigo sob assuas ordens na Holanda, em 1585, ordenava, no artigo 48, que os soldados emmarcha numa coluna ao longo dos campos nao deviam comegar a disparar, e, pre-sumivelmente, a perturbar toda a coluna, se por acaso encontrassem uma lebre ouqualquer outro animal no caminho (ver C. J. Cruikshank, Elizabeth's Army, Oxford,1966, p. 161). O codigo completo e esclarecedor. Pode servir como uma lembranc.ado modo como poucas formas de conduta e de sensibilidade, que, no presente,podiam parecer simplesmente evidentes ou racionais, podem considerar-se assegu-radas.

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particular, a dos Franceses. Havia uma historia do chasseur* Francesque presenciou uma cagada a raposa em Inglaterra e manifestoutanta surpresa como desilusao quando observou alguns j ovens caesde caga serem escorra^ados, a chicotada, do rasto de uma lebre queestavam quase a agarrar; ou a historia de outro cavalheiro Frances,que ouviu um ingles exclamar durante uma cagada: «Que ad-miravel! O desporto que a raposa proporcionou nesta encantadoracorrida de duas horas e um quarto». Replicou: «Ma foi**, devevaler a pena apanha-la depois de tanto trabalho. Est-il bon pour unfricandeau?***»11

Em tempos passados, a agradavel excitagao da caga foi umaespecie de prazer experimentado em antecipagao dos prazeres reais,os prazeres de matar e de comer. O prazer de matar animais eraencarecido pela sua utilidade. Muitos dos animais cagados ameaga-vam o fruto do trabalho das pessoas. Na maior parte do seculoXVIII, animais selvagens, e entre eles raposas, continuavam a serabundantes em grande numero dos paises. A caga era necessaria afim de os reduzir. As raposas, em particular, eram uma ameagaconstante aos recintos de aves de capoeira, de gansos e patos doscamponeses e da pequena nobreza. No campo, elas competiam comos cagadores furtivos de lebres. Noutros tempos, permitia-se aoscaes de caga a perseguigao de veados, lebres, martas e raposas, demodo indiscriminado. Os campos e as florestas encontravam-serepletos deles e todos eram considerados como daninhos. Tambemproporcionavam alimentagao. Em periodos de seca e de fome, ospobres inclinavam-se menos a desperdi^ar a carne da raposa, porqueesta tinha um gosto bastante activo. «A carne da raposa», deacordo com uma fonte francesa, «e menos desagradavel do que a dolobo. Os caes, bem como os homens, comem-na no Outono, espe-cialmente se a raposa se alimentou e engordou com uvas.»12

Deste modo, as formas anteriores de caga impuseram aos seus

nBlaine, Encyclopedia of'Rural Sports, Londres, 1852, p. 89.12Citado em Peter Beckford, Thoughts on Hare and Foxhunting, Londres, 1976,

p. 197.*Em Frances no original. (N. da T.)**Em Frances no original: «Na verdade». (N. da T\)***Em Frances no original: «Nao serve para uma entrada?» Fricandeau e um

prato de carne lardeada que se serve como entrada numa reFeigao. (N. da T.)

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seguidores poucas restrigoes. As pessoas desfrutavam os prazeres decagar e de matar animals de qualquer maneira e comiam tantosquantos gostassem. For vezes, grande numero de animals eraconduzido proximo dos cagadores para que, assim, estes pudessemdesfrutar dos prazeres de matar sem excessivos esforgos fisicos. Paraas categorias sociais mais elevadas, a excitagao de cagar e mataranimais tinha sido sempre, ate certo ponto, o equivalente, emtempo de paz, da excitagao relacionada com o matar seres humanosem tempo de guerra. As pessoas utilizavam para os mesmos fins,como coisa natural, as armas mais apropriadas que estavam a suadisposigao. Desde que as armas de fogo foram inventadas, as rapo-sas sao alvejadas como qualquer outro animal.

Um olhar rapido sobre as formas anteriores de cagar mostra,numa perspectiva melhor, as peculiaridades da caga inglesa a rapo-sa. Tratava-se de uma forma de caga em que os cagadores impu-nham a si mesmos e aos seus caes, um numero de restrigoes muitoespecificas. Toda a organizagao da caga a raposa, o comportamentodos participantes, o treino dos caes era dirigido por um codigomuito elaborado. Mas as razoes para esse codigo, para os tabus elimites que se impunham aos cagadores, estava longe de ser evi-dente. Porque e que os caes de caga eram treinados para nao seguirqualquer rasto a nao ser o da raposa e, tanto quanto possivel, paraseguirem nao o rasto de qualquer raposa mas, apenas, o da primeiraque descobriam? O ritual da caga a raposa exigia que os cagadoresnao usassem quaisquer armas. Por que razao e que matar raposasera considerado como um crime social mais grave e porque seriaimproprio de um cavalheiro cagar raposas utilizando qualquer tipode arma? Os cavalheiros cagadores de raposas matavam, por assimdizer, por procuragao — delegando a tarefa de matar aos seus caesde caga. Porque e que o codigo da caga a raposa proibia que aspessoas matassem o animal cagado? Nas formas iniciais de caga,quando as pessoas desempenhavam o papel principal, os caes ti-nham um papel secundario. Porque e que na caga a raposa, emInglaterra, o papel principal era deixado aos caes de caga, enquantoos seres humanos se limitavam ao papel secundario de acompa-nhantes e observadores ou, talvez, controladores dos caes?

Em consequencia desta delegagao dos principals papeis da cagae da consequente necessidade de os cagadores se identificarem a siproprios, ate certo ponto, com os caes de caga — como se tivessem

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projectado uma parte de si mesmos e delegassem o sangue e amorte, em vez de os provocarem eles proprios —, muitos cagadoresestavam ligados aos seus caes por uma afeigao que, com frequencia,era mutua. Eles conheciam os seus animais, um a um, pelo seunome. Estabeleciam e discutiam as suas qualidades individuals ecomparavam-nos uns aos outros. Admiravam as suas proezas, a suaferocidade e coragem, e estimulavam as suas rivalidades.

«Deviam», escreveu Beckford, «amar e ter medo do cagador.Deviam teme-lo muito e, no entanto, deviam ama-lo ainda mais.Sem diivida que os caes de caga fariam mais pelo cagador se oamassem mais.»13 Uma relagao intima e pessoal entre os cagadorese os caes de caga, incluindo um grau de projecgao dos sentimentosdo cagador, constituiu um aspecto integral da configuragao de baseda caga a raposa.

Repara no Galloper, como ele os conhece! E dificil distinguir qual eo primeiro, correm com tanto estilo; ate agora ele e o melhor cao decaga; a boa qualidade do seu nariz nao e menos excelente do que asua velocidade. Como segue o rasto!...Ali — agora — agora, esta de novo a frente14.

E o fim:

Agora Reynard, ve por ti mesmo — como todos agitam tanto as suaslinguas! O pequeno Dreadnought, como procede — tao proximo queVengeau a persegue! Ela pressiona de forma tao terrivel! Estao quasea acabar com ele! Deus, que desgraga fazem; todo o bosque ressoa!Esta partida foi muito curta! Ali — agora! — aye, agora eles agar-raram-na! Whoo-hoop!15

Com a delegagao feita aos caes, pelos seres humanos, da maiorparte da perseguigao, e tambem da fungao de matar, e com a sub-missao dos cavalheiros cagadores a um codigo elaborado, auto-im-posto de restrigoes, um aspecto do prazer de cagar tornara-se visual,o prazer resultante da acgao transformou-se no prazer de ver agir.

A orientagao das mudangas na maneira de cagar, que cada um

, p. 239., 166., p. 169.

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pode encontrar ao comparar o ritual da caga a raposa com formasanteriores de caga, mostra com grande clareza a direcgao geral deum avango de civilizagao16. O aumento das restri^oes quanto aaplicagao da forga fisica e, em particular, sobre o acto de matar, e,como expressao dessas restrigoes, o deslocamento do prazer experi-mentado em praticar a violencia para o prazer de ver a violenciacumprir-se, podem ser observados como sintomas de um impulsode civilizagao em muitas outras esferas da actividade humana.Como foi demonstrado, todos estao relacionados com movimentosno sentido da maior pacifica^ao de um pais, em liga^ao com ocrescimento ou com a crescente eficacia da monopolizagao da forgafisica por representantes das institutes centrais de um pais. Alemdisso, estao relacionados com um dos aspectos mais cruciais dapacificagao interna e da civilizagao de um pais — com a exclusaodo uso da violencia das lutas periodicas pelo controlo destas insti-tuigoes centrais, e com a correspondente formagao da consciencia.Pode observar-se esta crescente interiorizagao da proibigao socialcontra a violencia e o avan^o deste limiar da reacgao contra ela, emespecial, contra o acto de matar, e mesmo contra a visao da morte,se considerarmos que, no seu apogeu, o ritual ingles da caga araposa, que proibia qualquer participate humana directa namorte, representava um avango na civilizagao. Era um passo emfrente na reacgao das pessoas contra a pratica da violencia, enquantohoje, de acordo com o avango continuo do limiar de sensibilidade,nao sao poucas as pessoas que consideram, mesmo isto, representa-tivo de um estadio anterior de civilizagao, detestavel e que gosta-riam de ver abolido.

A natureza de um processo de civilizagao e, por vezes, malentendida como um processo onde a restrigao ou, tal como as vezesse afirma, as «repressoes» impostas as pessoas aumentam e onde acapacidade destas para a excitagao agradavel e para desfrutar a vidadecresce, em correspondencia. Mas talvez esta impressao seja, atecerto ponto, devida ao facto de as satisfagoes agradaveis das pessoasatrairem menos a atengao, como objecto de pesquisa cientificavalido e interessante, do que as regras restritivas — do que osconstrangimentos sociais e os seus instrumentos, as leis, as normas

16Norbert Elias, Civilizing Process, Oxford, 1978, pp. 202 e seguintes.

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e os valores. Uma investigate sobre o desenvolvimento dos despor-tos pode contribuir para restabelecer o equilibrio. De vez emquando, podem encontrar-se na literatura breves declara^oes queincidem exactamente sobre a questao. Apesar de a caga ter sido,com bastante frequencia, reconhecida como uma actividade substi-tuta da guerra, tambem foi, por vezes, reconhecido com bastanteclareza que a forma que ela assumiu em Inglaterra representavauma moderagao dos seus aspectos menos civilizados. Permitir queos caes de ca^a matassem e confinar a sua propria actividade aocomportamento dos caes, a excitagao antecipada e a observagao damorte, correspondia melhor a sensibilidade de cavalheiros civiliza-dos. Beckford escreveu:

Aqueles que estao familiarizados corn os caes de caga e podem, de vezem quando, acompanha-los, consideram-na o desporto mais interes-sante e tern a satisfagao de pensar que eles proprios contribuiram parao exito da Jornada. Este e um prazer que se desfruta com frequencia;urn prazer sem qualquer mdgoa. Nao sei que efeito pode ter em voce;mas sei que o meu espfrito esta sempre animado, depois de uma boacagada; nem o repouso e para mim, alguma vez, desagradavel. Pescare, na minha opinao, uma diversao sem interesse. Tiro, embora admitaum companheiro, nao permitira muitos. Ambos, contudo, podem serconsiderados como divertimentos egofstas e solitaries, comparadoscom a caga, na qual sao bem-vindos tantos quantos o desejarem.

Porque cagar e uma especie de guerra, as suas incertezas, as suasfadigas, as suas dificuldades e os seus perigos fazem dela a maisinteressante de todas as diversoes17.

Este trecho esclarecedor sublinha, de varias maneiras, o fulcrodo problema. Desde o tempo de Beckford, o processo de civilizagaodeslocou-se, em alguns sectores da populagao, na mesma direcgaoe para alem do grau sugerido por este autor e do sector da socie-dade em que este se movimentava. Este grupo deixou de ser a areadominante, o sector do modelo estabelecido. Se, na sua propriasociedade, a consciencia e as correspondentes sensibilidades evo-luiram para uma forma que tornava desagradavel o facto de matara raposa com as suas proprias maos, hoje tornaram-se mais podero-

17 Beckford, Thoughts on Hare and Foxhunting, p. 199 e seguintes. Italico dooriginal.

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sos e activos determinados sectores da populagao cujas sensibilida-des e identificagao com o animal cagado sao tao fortes que a cagae a morte das raposas para a satisfagao do prazer humano passa aser completamente desagradavel.

No tempo de Beckford, a pacificagao interna — a estabilidadee a eficacia da protecgao que as actividades centrals da sociedade edos seus orgaos ofereciam, em particular, contra ameagas fisicas detodos os generos —, em con junto com as correspondentes restrigoessobre os individubs, externas e internas, nao tinham avangado tantocomo hoje. Mas, comparada com formas anteriores de caga e depassatempos em geral, a direcgao da mudanga no comportamentoe na sensibilidade era a mesma. Matar e exercer violencia em geral,mesmo que se tratasse de violencia fisica em relagao a animais,foram proibidos de forma mais elaborada por tabus e restrigoes.Nada e mais caracteristico de um dos problemas centrals da ten-dencia de civilizagao do que a afirmagao de que a forma de violen-cia indirecta, o acto de matar por procuragao, o facto de se poder,por vezes, presenciar os caes a fazer aquilo que ja nao se desejavaser o proprio a fazer, tornava possivel fruir «um prazer sem qual-quer magoa».

Aquilo que Beckford observou era, de facto, um dos aspectoscentrals do desporto e, em particular, do jogo-desporto. Todos elessao configuragoes dinamicas de pessoas e, as vezes, tambem deanimais, que Ihes permitem participar num confronto de formadirecta ou indirectamente, envolvendo-as por completo (como secostumava dizer de «corpo e alma»), de tal maneira que podiamusufruir o excitamento da luta sem qualquer arrependimento —sem ma consciencia.

O desporto e, de facto, uma das maiores invengoes socials queos seres humanos realizaram sem o planear. Oferece as pessoas aexcitagao libertadora de uma disputa que envolve esforgo fisico edestreza, enquanto reduz ao mfnimo a ocasiao de alguem ficar, noseu decurso, seriamente ferido.

No seculo XVIII o limiar de reacgao contra o acto de feriroutros, directa ou indirectamente, em ligagao com o agradavelprazer que obtinham a partir da batalha mimetica de uma prova dedesporto, nao tinha ido tao longe e situava-se, em muitos casos, aum nivel inferior ao que se atingiu em varias sociedades-Estadohoje. Mas a direcgao da mudanga no comportamento e sensibili-

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dade que ai se pode observar era a mesma que se pode surpreenderem tempos mais recentes.

Um dos problemas cruciais com que se confrontavam as socie-dades, no decurso do processo de civilizagao,erar—-~e continua aser — o de encontrar um novo equilfbrio entre o prazer e a restri-

vgao. A progressiva limitagao de controlos reguladores sobrejyrom-,'' portamento das peslsoas e a formagao da correspondente conscien-| cia, a interiorizagao das regras que regulam de forma mais^elabp-/ rada todas as esferas da vida, garantem as pessoas, nas suas relagpes

entre si, maior seguranga e estabilidade, mas implicaram tambemuma perda das satisfagoes agradaveis que se associavam a formas decomportamento mais simples e espontaneas.vO desporto era umadas solugoes para este problema. As inumeras pessoas que contri-jbufram de forma anonima para o desenvolvimento dos desportospodem nao ter tido consciencia do problema com que se defron-tavam, nos termos em que ele se apresenta, em retrospectiva, areflexao dos sociologos actuais, mas algumas delas estavam bemconscientes deste facto como um problema especffico que se Ihesdeparava na relagao imediata com os seus proprios passatemposlimitados. A configuragao da caga a raposa — da caga transformadaem desporto — mostra algumas das vias pelas quais as pessoasainda conseguiam obter prazer numa perseguigao que envolviaviolencia ffsica e morte, num estadio em que, na sociedade emgeral, mesmo as pessoas abastadas e poderosas se tornaram cada vezmais limitadas na sua capacidade de usar a forga sem a autorizagaoda lei, e na qual a sua consciencia se tornou mais sensfvel a respeitodo uso da forga bruta e do acto de derramar sangue.

Como e que isso se realizou? Como pode alguem orientar-separa o seu prazer sem ma consciencia, apesar do facto de a conscien-cia, forjada em sociedade, se ter tornado mais forte, quase total e,embora ainda menos sensfvel a respeito da violencia do que aquiloque e a tendencia nas sociedades industriais de hoje, de longe maissensfvel do que havia sido em tempos anteriores? O problema eramenos diffcil de resolver quando se impunha a violencia a animaisem vez de ser aos seres humanos. Era deveras surpreendente que olimiar de sensibilidade no despertar de uma tendencia de civiliza-gao tenha avangado tanto ate incluir animais. A limitagao de formasde controlo social externas, tal como foram expressas em leis for-mais e em regulamentos, abrangiam apenas seres humanos. O facto

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de a sensibilidade a respeito de toda a violencia ter chegado aafectar animais era caracteristico da irradiagao do sentimento paraalem do alvo, o que e uma componente geral da formagao da cons-ciencia. O avango neste estadio fora suficiente para que se alcan-gasse, indirectamente, enquanto observador participante, o prazerda morte do animal cagado, mais do que sucederia, de forma direc-ta, como no caso em que o agente e o responsavel pela execugao.

Mas se estudarmos, de forma mais profunda, a configuragao dacaga a raposa, e se a compararmos com formas anteriores de caga,depressa se nota uma deslocagao bastante caracteristica na enfasecolocada a respeito das actividades que dao prazer. Nas maneiras decagar do passado, as principals fontes de prazer situavam-se namorte e subsequente ingestao do animal cagado. A circunstancia deter desaparecido o prazer de comer, enquanto motivo para cagar, ede se ter atenuado o prazer de matar, ainda que de forma insigni-ficante, foi caracteristico do estilo ingles de caga a raposa. Era umprazer por procuragao. A morte era executada pelos caes de caga eo prazer da propria perseguigao tinha»se tornado, por assim dizer,a principal fonte de divertimento e o aspecto fundamental doexercicio. A morte final da raposa — o triunfo da vitoria — con-tinuava a ser, ainda, o climax da caga. Mas, em si proprio, ja naoera a principal fonte de prazer. Essa fungao havia sido deslocadapara a caga do animal, para a perseguigao. Aquilo que, nas formasde caga mais simples e espontaneas, tinha sido o adiantamento doprazer fruido em antecipagao no que dizia respeito a morte e aocomer adquirira um significado muito maior do que antes seconhecia. Face a todos os outros fins da caga, a tensao da propriabatalha simulada e o prazer que proporcionava aos participanteshumanos tinham atingido um elevado grau de autonomia. Matarraposas era facil. Todas as regras da caga foram elaboradas para atornar menos facil, a fim de prolongar a prova, para adiar a vitoriapor algum tempo — nao porque se sentia ser imoral ou injustomatar raposas tao claramente, mas porque a excitagao da propriacaga se transformara, cada vez mais, na principal fonte de prazerdos seres humanos participantes. Disparar sobre as raposas eraestritamente proibido; nos circulos onde esta forma de caga teveorigem, entre a aristocracia e a pequena nobreza, isso era conside-rado como um comportamento incorrecto e imperdoavel, e osrendeiros tinham de seguir, quer quisessem quer nao, as regras

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dos seus superiores, ainda que as raposas roubassem as suas galinhase os seus patos. Disparar sobre as raposas era um pecado porque issoprivava os cavalheiros da tensao-excitagao da caga; isso destruia oseu desporto.

Aquilo que antes fora um anteprazer, preparatorio do prazerprincipal de matar e de comer o animal cagado, tinha sido trans-formado agora na parte principal do prazer, a culminar e a terminarna morte do animal, ao mesmo tempo que o proprio animal ja naorepresentava qualquer papel nos subsequentes jantar e bebida,excepto como tema de conversa. O seculo XVIII foi profundamenteafectado por esta deslocagao peculiar do prazer das pessoas nos seuspassatempos; representou uma profunda transformagao subli-matoria do sentir. Na Idade Media, o termo «desporto» tinha umsentido muito menos especifico. Durante o seculo XVIII, tornou-seum termo mais vincadamente especializado, transformou-se numterminus technicus para um tipo especifico de passatempos que sedesenvolveram na epoca entre cavalheiros proprietarios de terras earistocratas, e de que a forma bastante idiossincratica da caga araposa, que se desenvolveu nestes circulos, era uma das mais proe-minentes. Talvez a sua caracteristica principal fosse a tensao-exci-tagao de um combate simulado que envolvia esforgo fisico e odivertimento que este oferecia aos seres humanos como participan-tes ou espectadores.

Os grupos de caga a raposa, tanto quanto se pode ver, naodesconheciam totalmente a autonomia especifica do seu «desporto»— o relative distanciamento das alegrias do combate simulado emrelagao a qualquer outro objectivo ou fungao social. Expressoes taiscomo «a raposa proporcionou-nos um bom desporto» ou «o nossodesporto depende inteiramente desse sentido requintado de farejar,tao peculiar aos caes de caga» mostram com muita clareza que odesporto estava profundamente associado, nesse tempo, a tensao docombate simulado enquanto tal e ao prazer daf resultante18.

Nem os perseguidores da caga a raposa desconheciam total-mente que a agradavel tensao-excitagao, que era a essencia do «bomdesporto», so podia esperar-se da caga a raposa na medida em quea sua configuragao de base garantisse um equilibrio de tensao

*lbid., p. 38.

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moderadamente instavel, um equilibrio provisorio de poder entreos contendores. De acordo com um manual de desportos:

A nobre ciencia, como a caga a raposa e chamada pelos seus entusias-tas, esta autorizada, por consentimento geral, a ser considerada aperfeigao da caga. O animal cagado e suflcientemente rapido para sealcangar o objective, e tambem esta munido de todas as especies deexpedientes para confundir os seus perseguidores. Deixa um bomrasto, e muito resistente e encontra-se em grande abundancia, asse-gurando uma oportunidade razoavel de pratica do desporto19.

A caga inglesa a raposa e aqui utilizada como um modeloempirico, de forma a demonstrar algumas das caracteristicas distin-tivas do tipo de passatempo que e chamado «desporto». Isso podeajudar a compreender melhor certas caracteristicas estruturais dodesporto como uma fonte de agradavel tensao-excitagao, que maistarde foi explicada, muitas vezes, apenas em termos militaries. Osgrupos de caga a raposa ja haviam desenvolvido um ethos especifico,o qual e uma das caracteristicas de todos os desportos. Mas, nesteestadio, o ethos dos desportos nao era o genero de ethos das classesmedias operarias ao qual se aplicam termos como «moral» ou«moralidade». Era o ethos de classes de lazer abastadas, sofisticadase comparativamente restritas, que tinham transformado em valor atensao e a excitagao dos confrontos simulados, entretanto regula-mentados para se constituirem como a parte principal do seuprazer. As regras da caga a raposa, designadas e observadas porcavalheiros e rigorosamente impostas contra os transgressores,garantiam que a caga Ihes daria o essencial do bom «desporto»,uma quantidade suficiente de agradavel tensao e excitagao decombate. Garantiam que as condigoes para a agradavel tensao--excitagao que se desejava e necessitava podiam ser introduzidascom maior regularidade pela dinamica de uma configuragao ondeos cavaleiros-cagadores, caes de caga e raposa estavam ligados.

Hoje pode explicar-se o relative equilibrio de oportunidades,para ambos os lados, por referenda a «justiga» de uma tal dispo-sigao. Mas, neste como noutros casos, os aspectos «morais» estaoem condigoes de dissimular os aspectos sociologicos, a estrutura ou

19Stonehenge, Manual of Sports, Londres, 1856, p. 109-

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a fungao de semelhante disposigao. Sem uma configuragao que fossecapaz de manter, por um determinado periodo, um equilibriomoderadamente instavel de oportunidades para os competidores,nao se poderia esperar ter «bom desporto»; sem uma disposigao«justa», o prazer e a excitagao fornecidos pela tensao do confronto,que era a principal fungao do desporto, teria sido demasiado brevee nao poderia acontecer com um elevado grau de regularidade.Desta maneira, a ca^a a raposa demonstrou ja, no essencial, que aspessoas tinham aprendido uma tecnica especifica de se organiza-rem, a qual e usada no desporto de todos os tipos — uma tecnicapara manter, por algum tempo, no quadro de uma dada configu-ragao de participantes, um equilibrio de forgas em tensao, com ele-vada oportunidade de catarse, de libertagao da tensao, no final.

Outro dos problemas habituais do desporto em geral que sedepara aos desportistas, desde muito cedo, em ligagao com a cafaa raposa, foi o de descobrir o equilibrio apropriado entre o grau detensao-excitagao dos proprios confrontos e as oportunidades para oprazer relativamente breve da catarse, do climax e da libertagao datensao. O problema da enfase num ou noutro destes dois polos,como o das polaridades correspondentes dos outros desportos, ori-ginou a controversias entre as pessoas que davam maior importan-cia a propria caga e as que atribuiram maior realce a morte daraposa — entre os defensores do «bom desporto» e os defensores de«alcan£ar vitorias». A persistencia com que este tipo de discussoesocorreu em diversos desportos, em tempos diferentes, e um indica-dor da persistencia da estrutura basica do desporto. Como jaafirmamos, a configuragao dinamica de um desporto deve serequilibrada de maneira a impedir, por um lado, a frequente repe-tigao de vitorias precipitadas e, por outro, a frequente repetigao deempates. A primeira interrompe a agradavel excitagao; nao Iheoferece tempo suficiente para alcan^ar um prazer Optimo, provocan-do desinteresse, a ausencia de qualquer climax e impedindo a liber-tagao «catartica» da tensao subsequente. Enquanto a configuragaobasica de um desporto garantir um equilibrio jus to entre estas duaspossibilidades, os desportistas podem fazer a sua opgao colocandomais peso num lado ou no outro.

A respeito da caga a raposa, Beckford discutiu este problemaainda no final do seculo XVIII. Ele proprio sublinhava a importan-cia do climax, da morte da raposa. Mas isso nao significava que

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apreciasse o prazer e a excitagao da morte, independentemente doprazer e da excitagao da caga que a precedia. Ao explicar por quemotivo recomendava que se devia partir com a matilha, de manhacedo, em particular se os caes estivessem «esgotados de sangue»,escreveu:

A manha e a parte do dia que permite o melhor rasto; e o proprioanimal, que, nesse caso, esta mais desejoso de matar (os caes de cac,aestando esgotados de sangue), tern menos oportunidades de se afastarpara longe. O desejo de descanso e, talvez, uma total voracidade daoao cao de caga uma vantagem superior... Espero, meu amigo, que irareplicar a isto «que um cagador de raposas, entao, nao e um desportistajusto — certamente que nao e; e mais, seria bastante lamentavel serconfundido com um. Por principio, ele e diferente. Na sua opiniao,um desportista justo e um desportista louco sao sinonimos; ele, noentanto, retira toda a vantagem que Ihe e possivel. Pensara, talvez,que pode destruir, por isto, o seu proprio desporto? E verdade,algumas vezes acontece, mas... dado que toda a arte da caga a raposaconsiste em manter os caes bem quanto a sangue, o desporto e maisuma considerate secundaria a par do «ca^ador de raposas»; primei-ro, e a morte da raposa\ a partir dessa altura, desperta a avidez daperseguigao confesso que considero o sangue tao necessario comouma matilha de cac,a a raposa, isto a respeito de mim proprio, porquesempre regressei a casa mais satisfeito com uma perseguigao, naoobstante indiferente, com morte no final dela do que com a melhorpersegui^ao, se esta termina com a perda da raposa. Boas persegui-^oes, falando de um modo geral, sao longas perseguigoes e, se naoforem acompanhadas com exito, nunca deixam de fazer mais mal doque bem aos caes de caga. Acredito que os nossos prazeres, na maiorparte dos casos, sao mais acentuados durante a expectativa do que nasatisfagao; neste caso, a propria realidade fundamenta a ideia, e o seusucesso actual e quase um certo mensageiro antecipado de um futurodesporto20.

No decurso de um processo de civilizagao, um dos limites queaos individuos se deparavam, quando confrontados pela necessidade

20Beckford, Thoughts on Hare and Foxhunting, p. 173 (italico acrescentado).Aquilo que Beckford dizia, por outras palavras, era que, se os caes fossem treinadospara matar e gostar de matar, eles proporcionariarn um bom divertimento no futuro.Como se pode ver, desejava destacar o facto de que o prazer da excitac.ao do confron-to e o prazer do climax sao interdependentes.

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de um novo equillbrio entre prazer e restrigao, era uma capacidademaior para fruirem a alargada excitagao da luta e da tensao queconduzia ao climax, em comparagao com o breve prazer do climaxe da correspondente libertagao da propria tensao. A afirmagao «osnossos prazeres... na maior parte dos casos, sao maiores durante aexpectativa do que na satisfagao», embora nao seja necessariamentecorrecta enquanto diagnostico, assinala claramente a tendencia dovalor da tensao-satisfagao face a consumagao-prazer, que e indicadano desenvolvimento de passatempos como a caga, sendo isto, de ummodo geral, caracteristico de uma tendencia civilizadora. O termo«desporto» tornou-se, como vimos, o termo tecnico associado aoque tinha sido, de imcio, a parte preparatoria da caga ou jogo,juntamente com o prazer da antecipagao que se espera dela. Dizerque a raposa «nos proporciona bom desporto» era uma expressaoque se referia, ao mesmo tempo, as proprias dinamicas configura-cionais e ao grau de excitagao agradavel que elas proporcionam; aexpressao referia-se a prova entre a raposa, os caes de caga e ocagador, bem como a satisfagao que concedia ao ultimo. Beckfordpodia continuar a dizer, sem sentir vergonha, o que a maioria daspessoas teria por certo afirmado naturalmente, em seculos passados,e aquilo que cada vez menos pessoas gostariam de dizer depois —ou seja, que a primeira coisa que o cagador de raposas desejava eramatar a raposa, sendo o desporto uma questao secundaria.

Alem disso, como o valor da tensao elevada e da tensao-satis-fagao foi acentuado em termos comparatives com o breve acto final— com a morte e os seus prazeres —, o proprio prazer tornou-semais variado. Tornou-se, de facto, um prazer composto. A configu-ragao basica da caga a raposa, como aquela de muitas outras formasde desporto, era tao harmoniosa que a excitagao e o prazer resultan-tes permaneciam nao so numa mas em varias provas que se desen-rolavam ao mesmo tempo. Como de costume, a primeira prova eraa que ocorria entre o cagador e o cagado. Mas, no caso da caga araposa, a configuragao era constituida nao so por um mas por trestipos de participates: seres humanos, matilha de caes e raposa.A luta entre os caes e a raposa era a primeira prova, e a tensao, aexcitagao que ela originava, dominava todas as outras. Mas ligadade forma profunda a esta prova estava a segunda, a prova entre oscaes de caga. Os cagadores seguiam e vigiavam os caes de modoavido. Os mais bravos e rapidos, com os melhores narizes e que se

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mantinham proximo da raposa, ampliavam o orgulho do dono eproprietario. Eram admirados e afagados, pagavam-se pregos eleva-dos pela sua descendencia. E, finalmente, outra prova secundariainerente a configurac.ao era aquela que decorria entre os proprioscagadores. A questao era a seguinte: quern conseguira permanecermais proximo da matilha? Quern seguira por atalhos, mesmo quefossem perigosos? Quern vacilara perante as vedagoes, os cursos deagua ou outros obstaculos? Quern estava presente no momento damorte?

A excitagao evocada pela prova entre as raposas e os caes de cagaera bastante acentuada pelo confronto que se desenrolava entre oscagadores. No seculo XVIII e nos inicios do seculo XIX, a caga araposa era, com frequencia, consideravelmente mais exigente ebrutal do que e hoje. Era um teste de coragem, vigor e destrezapara os cavalheiros e, certas vezes, para as senhoras. Era habitual,no calor da caga, os cagadores desafiarem-se entre si ao extremo. Ar-riscavam-se, embora soubessem que podiam ter de pagar, peloprazer da excitagao, com uma queda, com ferimentos ou ate mesmocom as suas vidas. A caga inglesa a raposa foi aperfeigoada pornobres e cavalheiros num periodo em que a rivalidade de estatutointegral do seu quadro social era resolvida, cada vez mais, nao pormeio de duelos e outras formas de combate fisico directo — emboraestes ainda fossem bastante assiduos entre os sectores mais jovens— mas sim por meio de outras armas, como, por exemplo, a rea-lizagao de despesas exageradas e de proezas notaveis. A caga araposa proporcionava oportunidades para as duas. Para muitos dosseus aderentes, as suas convengoes assumiam o caracter de umritual, quase de um culto.

O seculo XIX em Inglaterra foi um periodo — e nao so em In-glaterra — em que a pacificagao e a sujeigao das classes pro-prietarias de terras, e, ao mesmo tempo, o refinamento das suasmaneiras, progrediu de forma assinalavel. A ameaga de guerra civiltinha diminuido. As recordagoes dos conflitos internes do seculoprecedente nao se tinham ainda esbatido21. Como e tao frequente,

21Em Thoughts on Hare and Foxhunting, Beckford sublinha as vantagens de umdesporto pacifico no campo, tal como a cac,a a raposa, atraves de uma citagao de umpoema: «Nenhum senado ferozmente desordenado e uma ameaga aqui. Nenhummachado ou cadafalso se ve. Nenhuma inveja, desilusao e desespero.»

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na sequencia de um conflito civil, muitas pessoas receavam a suarepetigao. Estavam cansadas de violencia entre seres humanos. Comuma frequencia superior a que se verifica num periodo em que naoexistem desavengas internas, um grupo particular emerge como omais forte. Mas, em Inglaterra, nao foi esse o caso. A monopoliza-gao progressiva da forga fisica, de que a pacificagao interna de umpais dependia por toda a parte, em particular, a pacificagao dos seusgrupos dirigentes, seguiu, neste pais, um rumo diferente ao que severificou na maioria dos outros Estados da Europa. A administra-gao e a utilizagao do duplo monopolio institucionalizado da forgafisica e da tributagao, de que dependia, entre outras coisas, aeficacia dos processos legais no pais, nao se tinham transformadoem monopolio permanente de um dos varios grupos em competi-gao. Por certo, nao se haviam transformado, como sucedeu emFranga e noutros Estados autocraticos, no monopolio do rei e dacorte. Em Inglaterra, o que resultou do periodo mais violento deconflitos sociais, foi um equilibrio de tensao moderadamenteinstavel, entre varios grupos dirigentes em competigao, dos quaisnenhum desejava, ou parecia ser suficientemente poderoso paraintimidar as forgas conjugadas dos outros por meio de um testedirecto de forga fisica. Em vez disso, desenvolveu-se, de modogradual, um acordo tacito entre os grupos rivais na sociedade emgeral. Estes concordaram num conjunto de regras segundo o qualpodiam fazer rotagoes na constituigao de governos e na administra-gao ou utilizagao dos instrumentos centrais de todas as fungoes degoverno — o monopolio da forga fisica e do langamento de impos-tos. Certamente, a elaboragao destas regras nao aconteceu de umdia para o outro. Verificaram-se lutas esporadicas e cheques entreos que seguiam os diferentes grupos ate, pelo menos, meados doseculo XVIII, mas, de um modo progressive, afastou-se o medo deque um dos grupos rivais e seus adeptos agredissem fisicamente ouaniquilassem os outros. O acordo de nao lutar por meio da violen-cia por cargos governamentais e pelos seus poderosos recursos, masapenas de acordo com regras estabelecidas por mutuo consentimen-to, por meio de palavras, votos e dinheiro, comegou a merecer cadavez mais apoio. Vale a pena sublinhar que esta concordancia inte-grava, tambem, um equilibrio de tensao moderadamente instavelentre varios grupos. Na transigao para uma harmonizagao tao com-plicada, constituiu um papel importante o facto de nenhuma das

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partes rivais, nem mesmo o rei, ter a sua disposi^ao o controloilimitado de um exercito permanente.

Levou tempo a resolver o problema central que tinha sidosempre, e que continua a ser, o obstaculo principal na transigaode um periodo de violencia entre diversos grupos de interesses paraum regime integrando meios institucionais nao violentos pararesolver conflitos. O problema e sempre o mesmo; ou seja, comoultrapassar o medo reciproco e a suspeita de que os adversaries,logo que tenham alcangado o controlo dos cargos governamentaise os poderosos recursos conferidos aos mesmos, possam deixar derealizar o jogo segundo as regras estabelecidas por mutuo consen-timento, tentem continuar no poder indiferentes a estas regras eusem os poderosos recursos do governo para enfraquecer ou aniqui-lar os seus adversarios. Como e porque e que os grupos sociaisrivais, que tinham utilizado ou trocado ameagas com violenciafisica nas suas lutas pelo poder, deixaram de o fazer, em geral, naprimeira metade do seculo XVIII, como e por que razoes um regimeparlamentar, que integrava mudangas no governo por meios naoviolentos e segundo as regras estabelecidas por mutuo acordo,comegou entao a funcionar com consideravel regularidade e quasesem regressoes e um problema que nao tern necessidade de serexplorado neste contexto. Mas nao se pode deixar de assinalar, demodo nenhum, o facto em si mesmo. E relevante sublinhar a formapeculiar que permitiu o acesso aos cargos governamentais e ocontrolo dos seus principals recursos de poder — os monopolies dafor^a fisica e do langamento de impostos assumidos em Inglaterraneste periodo. E costume a referenda a esta forma de governo como«pluralismo» ou «governo parlamentar», mas estas palavras tao ro-tineiras podem ocultar, facilmente, o problema central que tern deser resolvido para que semelhante regime possa funcionar. Este e oproblema da transigao nao violenta de um governo para outrosegundo determinadas regras. Como se pode induzir os membrosde um governo a abandonar os muito consideraveis recursos dopoder que os cargos governamentais colocam a sua disposi^ao, talcomo se torna necessario de acordo com as regras estabelecidas pormutuo consentimento? Como pode alguem ter a certeza de que elesvao obedecer as regras, considerando o poder militar e financeiromuito superior, em termos proporcionais, que podem comandarenquanto controladores dos monopolios centrais do Estado?

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254 ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOLENCIA

O desenvolvimento e o fimcionamento relativamente regular deum regime parlamentar multipolar em Inglaterra durante o seculoXVIII, depois de um periodo de conflito civil amargo e dediscordias, resolveu este problema. O estabelecimento gradualde um regime parlamentar representou um avango pacificadormuito pronunciado. Exigiu o mais elevado nivel de restrigao, o quale necessario se todos os agrupamentos envolvidos renunciarem, comfirmeza, a utilizar a violencia mesmo que as regras de mutuo acordoexijam que o adversario de alguem possa ocupar um cargo piiblicoe usufruir dos seus beneficios e dos seus recursos do poder. E dificilconsiderar como um mero acidente o facto de os passatemposrelativamente mais violentos e menos regulamentados das classesproprietarias de terras se terem transformado em passatempos rela-tivamente menos violentos e mais minuciosamente regulamenta-dos, que deram a expressao «desporto» o seu sentido moderno, nomesmo periodo em que essas classes sociais renunciaram a violenciae aprenderam a forma de autodominio mais elevada exigida pelavia de controlo parlamentar e, em especial, pela mudanga de gover-nos. De facto, os proprios confrontos parlamentares nao eram intei-ramente desprovidos das caracteristicas de um desporto; nem estasdisputas parlamentares, em grande medida verbais e nao violen-tas, eram desprovidas de oportunidades para a tensao-excitagaoagradavel. For outras palavras, existiam afinidades obvias entre odesenvolvimento e a estrutura do regime politico de Inglaterra noseculo XVIII e a desportivizagao, no mesmo periodo, dos passatem-pos das classes inglesas elevadas.

Tal como a transformagao do parlamento, desde o final doseculo XVII e inicio do seculo XVIII em diante, estes passatemposdas classes mais altas no seculo XVIII reflectiam um problemaespecifico que era caracteristico das mudangas globais que ocorre-ram, em geral, na estrutura do pais. Era um problema que se faziasentir cada vez mais a medida que a pacificagao progredia, que apressao para o autodominio, em particular nas classes proprietariasde terras, a mais poderosa sob o ponto de vista politico em Ingla-terra, aumentava e em que o aparelho social para a prevengao deviolencia nao autorizada, aparelho controlado em grande parte pormembros destas mesmas classes, se tornava um pouco menos ine-ficaz. Sem o aumento de seguranga proporcionado nesta direcgao,sem avangos na pacificagao interna, crescimento economico e

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CAPfTULO IV 255

comercializagao crescente, dificilmente se podia ir mais longe.A pacificagao e a comercializagao entre eles contribuiu e exigiumaior regularidade na conduta pessoal, e nao so nos seus assuntosprofissionais. Esta tendencia no sentido de uma maior regularidadena conduta da vida nao era somente sustentada por formas decontrolo externas mas, tambem, por autodominios socialmente de-terminados22. No seculo XVII, com a excepgao talvez da comuni-dade das nagoes britanicas de Cromwell, a cultura, os ideais e ospadroes de comportamento dos cortesaos e dos cidadaos, apesar dealguns ramos cruzados, constituiam ainda, de modo visivel, sectoresseparados.

Com algum exagero, pode afirmar-se que as maneiras semmoral se situavam-se de um lado e a moral sem maneiras do outro.No inicio do seculo XVIII, as duas tradigoes comegaram a aproxi-mar-se mais entre si. A tentativa feita por Addison e Steele parareconciliar moral e maneiras era apenas uma manifestagao de umatendencia mais alargada. Nao so os cidadaos, mas tambem as clas-ses proprietarias de terras, a aristocracia e a pequena nobreza, foramafectados pelas pressoes que as restrigoes, quanto ao uso da for^afisica e a influencia para uma maior regularidade na conduta davida, impunham aos individuos num pais politicamente maisestavel e de rapido desenvolvimento comercial.

Contudo, com a tendencia para maior regularidade, a vidaorientava-se no sentido da monotonia. As condigoes de forte exci-tagao individual, em particular uma excitagao socialmente partilha-da que podia conduzir a perda do autodominio, tornavam-se agoramais raras e menos toleradas sob o ponto de vista social. O proble-ma consistia em saber como habilitar as pessoas para a experienciade uma total excitagao agradavel^que parecia ser uma das necessi-dades mais elementares dos seres humanos, sem atingir riscossociais e jndividuais parados outros e para si proprio, e apesar daformagao de uma consciencia que podia abranger muitas fornias deexcISfacT que, em fases anteriores, fbram nao so fontes de elevadoprazer e gratificagao mas, tambem, de perturbagoes, feridas e sofri-

22Para comentarios sobre o tipo especifico do controlo social que se orientapara o desenvolvimento do autocontrolo, ver p. 229 e seguintes da obra de Elias,State Formation and Civilization.

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256 ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOL&NCIA

mentQ_humano. Numa sociedade cada vez mais regulamentada,como se podiam garantir aos seres humanos os meios suficientes deexcitagao agradavel em experiencias compartilhadas sem o risco dedesordens socialmente intoleraveis e de ferimentos mutuos? EmInglaterra, uma das solugoes para este problema foi, como vimos,a emergencia de passatempos sob a forma que se tornou conheci-da como «desporto». A forma inglesa de caga a raposa foi apenasum exemplo, entre outros, desta transformagao, mas demonstra demaneira extremamente viva um estadio previo na solugao desteproblema. A mudanga de enfase, do desejo de veneer um confrontopara a aspiragao a vivencia da agradavel excitagao prolongada doconfronto, era a este respeito bastante significativa. Num estadioposterior encontrou a sua expressao no bem conhecido ethos dosdesportos, de acordo com o qual nao era a vitoria, mas o propriojogo, que interessava. Os ca^adores de raposas ainda hoje podemferir e matar, mesmo que seja apenas por procuragao e so animais.Outras formas de desporto, como o criquete ou o futebol, most ramcomo o problema foi resolvido nos casos em que os participanteseram seres humanos.

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CAPITULO V

0 futebol popular na Gra-Bretanha medievale nos inicios dos tempos modernos

Norbert Elias e Eric Dunning

Aproximadamente desde o seculo XIV em diante podem encon-trar-se, nas fontes inglesas, referencias bastante seguras a um jogode bola chamado futebol, mas a semelhanga do nome nao autoriza,de modo algum, a identificagao do proprio jogo1. Tudo o quesabemos sobre a maneira como era jogado sugere um tipo de jogomuito diferente. Nas fontes inglesas medievais, a maioria das alu-soes ao futebol provem quer das proibi^oes oficiais do jogo, nosedictos reais e das autoridades civicas quer de relatos de acgoes nacorte contra pessoas que infringiram a lei pelo facto de o praticaremapesar das proibi^oes. Quanto ao tipo de jogo efectuado nessetempo, sob o nome de futebol, nada pode ser mais revelador do queas constantes e, em geral, bastante infrutiferas tentativas do Estadoe das autoridades locais para o suprimirem. Deve ter sido um jogoviolento, de acordo com o temperamento das pessoas desse periodo.A incapacidade 4ps responsaveis para a conservagao da paz da nagaoe mais elucidativa, por revelar as oposigoes do Estado e das auto-ridades locais vis-a-vis cidadaos comuns e, acima de tudo, por mos-trar o grau de eficacia do mecanismo social de aplicagao das leisno Estado medieval em comparagao com o de um Estado mo-derno.

historiadores do futebol consideram as primeiras referencias ao jogocomo sendo todas igualmente seguras. Pensamos que esta confianga nao e inteira-mente justificada e Norbert Elias fornece algumas das razoes para este cepticismo,no Cap. IV deste volume. O presente capitulo foi publicado de inicio na obraeditada por Eric Dunning, The Sociology of a Sport: a Selection of Readings, Londres,1971.

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258 FUTEBOL POPULAR

Uma das primeiras proibigoes do jogo ocorreu em Londresnuma proclamagao de 1314, publicada em nome do rei Eduardo IIpelo lord mayor. Esta redigida da seguinte forma:

Manifesto para a Preservagao da Paz... Atendendo a que o nossoSenhor o Rei se dirige as regioes da Escocia, na sua guerra contra osinimigos e nos ordenou em especial que mantivessemos estritamentea paz... E atendendo a que existe grande tumulto na cidade pormotivo de certas desordens que ocorrem em grandes jogos de futebolrealizados nos espagos do dominio publico, dos quais muitos malespodem eventualmente surgir — Deus nos defenda — ordenamos eproibimos, em nome do Rei, sob pena de prisao, que tal jogo daquiem diante seja praticado dentro da cidade2.

Uma ordem do rei Eduardo III, de 1365, enviada aos fun-cionarios principais da cidade de Londres, ilustra tambem quantoas autoridades desaprovam vigorosamente estes passatempos indis-ciplinados. A seus olhos eram, como e evidente, um desperdicio detempo e uma ameaga a paz, e propunham-se assim canalizar asenergias do povo para aquilo que consideravam as ocupagoes maisuteis. Pretendiam que as pessoas se exercitassem no uso de armasmilitares em vez de se divertirem nestes jogos insubordinados. Mas,ja nesse tempo, as pessoas preferiam claramente os seus jogos aosexercicios militares:

Aos funcionarios principais de Londres. Ordem para que qualquerhomem fisicamente capaz da dita cidade, nos dias de festa quandotern lazer, seja obrigado a usar nos seus desportos arcos e flechas ougraos de chumbo miudo e dardos... proibindo-os sob pena de prisaode se envoiverem no langamento de pedras, nos loggats e quoits*, no

2H. T. Riley (ed.), Munimenta Gildhallae Londoniensis, Rolls Ser., n.° 12,Londres, 1859-62, Vol. Ill, Apendice II, excertos do Liber Memorandum, pp. 439-41,texto latino e anglo-frances, com tradugao inglesa do anglo-frances.

*Loggats e quoits: jogos muito antigos, conhecidos em Inglaterra desde a IdadeMedia. Consistiam no langamento de pedras, pedac.os esfericos de madeira, ferradu-ras ou aros com os quais se procurava atingir ou chegar o mais proximo possfvel deum pino fixo ao solo. Existem inumeras variantes conhecidas sob outros nomes, deacordo com os diferentes objectos utilizados, a disposigao e o numero de pinos aatingir, a qualidade e o peso dos utensflios de jogo e, tambem, o local onde se joga-va. (N. da T.)

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CAPITULO V 259

andebol, no futebol... ou noutro jogo futil sem valor; tal como aspessoas no reino, nobres e simples, tinham por costume praticarantigamente a dita arte nos seus desportos quando, com a ajuda deDeus, elevaram a honra do reino e favoreceram o Rei nas suas acgoesde guerra; e agora esta arte esta quase por completo fora de uso e aspessoas empenham-se nos sobreditos jogos e noutros jogos desones-tos, gastadores ou inuteis, pelo que o reino corre o risco de fkar semarcheiros3.»

Por muito selvagens e turbulentos que fossem os seus jogos debola, as pessoas gostavam deles. Os seus conflitos com as autorida-des, a proposito destes passatempos, continuaram durante seculossem interrupgao. As razoes apresentadas pelas autoridades para asua oposigao a estes divertimentos variavam. A ameaga a ordempublica e a concorrencia face a preparagao militar, com o langamen-to de setas e o tiro ao arco, eram as mais proeminentes.

A compilagao que apresentamos em seguida pode dar uma ideiada frequencia destes edictos. A sua repetigao mostra a relativa fra-queza das autoridades neste estadio de desenvolvimento da socie-dade inglesa em conseguir o reforgo, de forma duradoira, da proi-bigao legal do que se poderia chamar hoje, talvez, uma forma de«comportamento de desvio». Ao aplicarmos este termo as trans-gressoes da lei num periodo diferente, pode ver-se nitidamente que,em termos sociologicos, o conceito de «comportamento de desvio»e bastante inadequado. A referenda a tipos especiais de infracgoesda lei implica nao tanto uma falta acidental ou arbitraria dosindividuos mas a incapacidade de uma sociedade organizada ou deum Estado no sentido de permitir a orientagao das necessidadesindividuals por uma via que seja, ao mesmo tempo, toleravel soba perspectiva social e satisfatoria sob o ponto de vista individual.

1314 Eduardo II Londres 1471 Jaime II da Escocia1331 Eduardo III Londres Perth1365 Eduardo III Londres 1474 Eduardo IV Londres1388 Ricardo II Londres 1477 Eduardo IV Londres1409 Henrique IV Londres 1478 Londres1410 Henrique IV Londres 1481 Jaime III da Escocia1414 Henrique V Londres Perth

. of Close Rolls, Ed. Ill, 1910, pp. 181-2.

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260 FUTEBOL POPULAR

1424 Jaime I da Escocia 1488 LeicesterPerth 1572 Londres

1450 Halifax 1581 Londres1454 Halifax 1608 Manchester1457 Jaime II da Escocia 1609 Manchester

Perth 1615 Londres1467 Leicester

Durante secuios este jogo foi em muitas regioes do pais opassatempo favorito das pessoas, uma forma de se divertirem comuma bola de futebol, quer se verificassem ou nao ossos partidos enarizes ensanguentados, embora para as autoridades isso fosseconsiderado um comportamento anti-social. Como se pode ver, oinstrumento do Estado para reforgo de tais edictos era tao rudimen-tar como a sua capacidade de encontrar uma alternativa de lazer,igualmente satisfatoria, para os cidadaos. Algumas pessoas erammultadas ou enviadas para a prisao por participarem nestes jogosdesenfreados. Talvez o costume tivesse desaparecido aqui ou acoladurante um certo tempo. Se assim era, continuava noutros lugares.O proprio jogo excitante nao morrera.

Existem ainda registos de muitos casos de tribunal contratransgressores. Dois exemplos destes registos, para os anos de 1576e 1581, talvez sejam suficientes para mostrar o que acontecia comfrequencia quando as pessoas destes tempos jogavam com uma bolade futebol, ainda que estas informagoes nao revelem, infelizmente,com minucia o tipo de jogo que realizavam:

Que no referido dia, em Ruyslippe, Co., Midd., Arthur Reynolds,lavrador (com outros cinco), todos de Ruyslippe afds., ThomasDarcye, de Woxbridge, pequeno proprietario rural (com outros sete,quatro dos quais eram lavradores, um alfaiate, um fabricante dearreios, um pequeno proprietario rural), todos estes de Woxbridgeafsd.^ reuniram-se ilegalmente com malfeitores desconhecidos, emnumero de uma centena, e jogaram um certo jogo ilicito chamadofutebol, por motivo do qual houve um grande tumulto, capaz deresultar em homicidios e series acidentes.

A inquirigao do magistrado provincial — post mortem ocorrida emSouthemyms, Co., Midd. perante o corpo de Roger Ludford, peque-no proprietario rural que ali jazia morto — apurou com o veredic-to dos jurados que Nicholas Martyn e Richard Turvey, estes ultimos

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CAPfTULO V 261

de Southemyms, pequenos proprietaries rurais, estavam entre as trese as quatro horas a jogar futebol com outras pessoas num campochamado Evanses, em Southemyms, quando o dito Roger Ludford eum certo Simon Maltus, da mesma paroquia, pequeno proprietariorural, chegaram ao local e Roger Ludford gritou, atirou-o por cimada vedagao, indicando que se dirigia a «Nicholas Martyn», que res-pondeu: «Vem entao e vamos a isso». Devido a estas palavras, RogerLudford correu em direcgao a bola com a intengao de Ihe dar umpontape, apos o que Nicholas Martyn, com a parte anterior do seubrago direito, deu um golpe em Roger Ludford na regiao anterior docorpo sob o peito, atingindo-o com uma pancada mortal, na sequen-cia da qual veio a morrer num quarto de hora, pelo que Nicholas eRichard mataram desta maneira criminosa o dito Roger4.

Numerosos registos mostram o repetido brago-de-ferro que severificava entre as pessoas que se mantinham fieis aos seus costu-mes violentos e as autoridades que procuravam suprimi-los oualtera-los. Assim, um documento de 10 de Janeiro de 1540, ema-nado dos responsaveis do municipio e da Corporagao dos Oficios deChester, refere que era costume na cidade, na Terga-Feira de En-trudo, os fabricantes de sapatos desafiarem os negociantes com lojade fazendas para um jogo com uma «bola de couro chamado fute-bol». Os responsaveis do municipio e da Corporagao dos Oficiospronunciaram-se nos termos mais energicos contra estas «pessoasde inclina^oes perversas», que provocaram uma tao «grande incon-veniencia» na cidade. Em seu lugar procuravam introduzir umacorrida a pe, supervisionada pelo responsavel municipal, ignoramoscom que exito5.

Uma ordem proibindo o futebol, promulgada em Manchesterno ano de 1608, e repetida quase literalmente, um ano mais tarde,revela a mesma situagao. Ai pode tomar-se conhecimento dogrande prejuizo causado por um «grupo de pessoas indignas edesordeiras usando aquele exercfcio ilicito de jogar com uma bolade futebol nas ruas». A ordem refere o elevado numero de janelas

de J. C. Jeafferson, Middlesex County Records, Londres, 1886-7, p. 97.5Ver uma descrigao contemporanea publicada em D. Lysetis, Magna Britannia^

Londres, 1810; e tambem citado em T. F. T. Dyer, British Popular Customs, Londres,1900, pp. 70-2.

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262 FUTEBOL POPULAR

que quebraram, o modo como ofenderam outros habitantes ecometeram «muitas desordens»6.

Talvez seja util acrescentar pelo menos um exemplo nao rela-cionado com o futebol, para mostrar a facilidade relativamentegrande com que, de um modo geral, na Inglaterra medieval se des-respeitavam as proibi^oes e como cada indivfduo, na sua propriaregiao ou cidade, se comportava de modo violento em relagao aosoutros.

Em 1339, tendo o Rei decidido ir ao estrangeiro, delegou ao fun-cionario principal, ao magistrado municipal e aos representantes dopovo a responsabilidade de conservagao da paz na cidade durante asua ausencia, e investiu-os do poder de aplicar o castigo convenientee imediato sobre quaisquer malfeitores e perturbadores da paz na ditacidade7. Logo a seguir a partida do Rei, verificou-se uma disputaentre as corpora^oes de negociantes de peles e os vendedores de peixe,que terminou num conflito sangrento nas ruas. O funcionario prin-cipal do municipio precipitou-se com os seus oficiais para o local dotumulto e prendeu varies dos agitadores da paz, como era exigidopelo seu cargo e dever; mas Thomas Hounsard e John le Brewereratacaram violentamente o responsavel municipal Audrew Aubreycom uma langa, e esforgaram-se por derruba-lo; entretanto, o citadoJohn feriu um dos oficiais da cidade. Depois de lutarem, foram presose transportados sem demora para a Guildhall*, onde foram indicia-dos e julgados perante o responsavel municipal e os magistrados, e,tendo confessado serem culpados, foram condenados a morte eimediatamente transportados para West Cheapside, onde foramdegolados. A autoridade do responsavel municipal foi tao bem cum-prida, tendo em vista a preservagao da paz dentro da cidade e a pre-vengao de tumultos e de ultrajes tao frequentes nestes dias... que deugrande satisfagao ao Rei Eduardo III, que na Torre, por decreto de4 de Junho'15, nao so perdoou ao responsavel municipal por haverdegolado os referidos culpados como tambem o aprovou e confir-mou8.

6J. F. Earwaker (ed.), The Court Leet Records of the Manor Manchester, Londres,1887, p. 248.

7«Nesse tempo o governador era Aubrey da Pepperer's Company, um homemmuito rico.» The Chronicles of London, Collectanea Adamantea X, Edinburgh, 1885,desde 44, Henrique III ate 17, Eduardo III, p. 27.

87£/V/.,p. 27.*Local de reuniao das corporagoes medievais. (N. da T.)

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CAPI'TULO V 263

As cronicas de Inglaterra, como as de outras sociedades medie-vais, descrevem muitas cenas como esta. Sem a referenda as fre-quentes erupgoes de violencia nao institucionalizada na Idade Me-dia nao se podem compreender as suas formas mais institucionali-zadas, de que o futebol era uma delas9. Os confrontos semi-institu-cionalizados entre grupos locais, organizados em certos dias do ano,em particular nos dias santos ou feriados, constituiam um tragovulgar do padrao de vida tradicional nas sociedades medievais. Jo-gar com uma bola de futebol era uma das maneiras de concretizaruma destas lutas. De facto, constituia um dos rituais do ano,comuns nestas sociedades tradicionais. Recordar este costume aju-da-nos a compreender melhor os seus modos de vida. Nesta epoca,o futebol e outros encontros semelhantes nao eram apenas rixas aci-dentais. Eles constituiam um tipo de actividades de lazer equilibra-dor, profundamente entrelagado na urdidura e trama da sociedade.Pode parecer-nos incongruente que ano apos ano, nos dias santos eferiados, as pessoas se empenhassem nesta especie de lutas. Numestadio diferente do processo de civilizagao, os nossos antepassadosviveram-na, evidentemente, como um acontecimento obvio e agra-davel.

Hoje, as pessoas que se preocupam com os aspectos desa-gradaveis da vida nas grandes cidades e com as desvantagens deviver numa sociedade de massas voltam-se, em certas ocasioes, parao passado com nostalgia, para os tempos em que a maioria daspessoas vivia em pequenas comunidades que se assemelhavam pelasua natureza e estrutura social aquilo a que chamariamos grandesvilas ou pequenas cidades-mercado. Existiam, e claro, excepgoes,das quais Londres e talvez o exemplo mais marcante. Mesmo na li-teratura sociologica persiste uma ideia sobre o modo de vida nestassociedades «tradicionais» ou «populares», de acordo com a qualelas seriam permeadas de sentimentos de grande «solidariedade».Isto pode ser interpretado facilmente e, de facto, e considerado commuita frequencia como significando que as tensoes e os conflitos noseu interior seriam menos agudos e que a harmonia era superior a

9Ha todas as razoes para acreditar que na Inglaterra medieval existiam, lado alado, formas de futebol relativamente nao institucionalizadas e formas ritualizadas.Neste contexto, aquilo que e importante e o nivel de violencia comparativamenteelevado das ultimas.

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das nossas proprias sociedades10. A dificuldade quanto ao uso detais categorias nao consiste no facto de serem falsas, mas, antes, nacircunstancia de todos esses termos gerais, como «solidariedade»,aplicados a um tipo diferente de sociedade, poderem induzir oleitor em erro. Tipos de costumes e de condutas que parecem serincompativeis nas sociedades industrials contemporaneas sao, pos-sivelmente, incongruentes tambem aos olhos das pessoas habitua-das a um tipo de vida diferente. De facto, a nossa lingua, quandoaplicada a outras sociedades, reflecte as nossas proprias distingoes,nao podendo adaptar-se, por isso, a sociedades num estadio de de-senvolvimento diferente. Desta forma, o termo «solidariedade»evoca para nos a impressao de unidade permanente, de amizade ea ausencia de conflitos. De acordo com a afirma^ao de um escritor11

desta materia, «como comunicam intimamente entre si, cada umdos membros [de uma sociedade tradicional] invoca a simpatia detodos os outros». Na verdade, em sociedades tradicionais podemnotar-se, com frequencia, expressoes de «simpatia amiga» forte eespontanea. Mas manifesta^oes semelhantes aquilo que podemosconceptualizar como «forte solidariedade» eram perfeitamentecompativeis com inimizades e odios igualmente fortes e esponta-neos. O que era realmente caracteristico, pelo menos nas sociedadestradicionais camponesas da nossa Idade Media, era a flutuagaomuito maior de sentimentos de que as pessoas eram capazes e,relativamente a isso, a mais elevada instabilidade das relagoeshumanas em geral. No que respeita a menor estabilidade das res-trigoes internas, a forga das paixoes, o calor e a espontaneidade dosactos emocionais distinguiam-se por duas vias: na bondade e pron-tidao para ajudar, assim como na rudeza, insensibilidade e pronti-dao para ferir. E por este motivo que termos como «solidariedade»,«intimidade», «simpatia» e outros, utilizados para descrever atri-butos das sociedades tradicionais pre-industriais, sao bastante ina-dequados. Revelam apenas uma faceta do problema.

Mesmo muitas das tradigoes estabelecidas eram de «dupla-

10Ver, por exemplo, Robert Redfield que escreveu. «Assim, podemos caracte-rizar a sociedade popular como pequena, isolada, analfabeta e homogenea, com umforte sentido de solidariedade de grupo»; «The Folk Society», American Journal ofSociology, n.° 52, 1947, pp. 292-308.

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CAPfTULO V 265

-face», no nosso sentido do termo. Admitiam-se como modo deexpressao da intima unidade e solidariedade e para exprimir hosti-lidade, igualmente mtima e intensa, sem que os seus agentesdenunciassem, nessa flutuagao, algo de contraditorio ou de incom-pativel. O futebol de Ter^a-Feira Gorda, uma contenda ritualizadae, de acordo com as nossas no^oes, uma luta muito violenta entregrupos vizinhos, e um exemplo notavel desta compatibilidade entreactividades saturadas de emogao, que, segundo os padroes actuals,parecem ser incompativeis. Como vimos, as autoridades secularesprocuravam desde sempre, sem muito exito, suprimir estes con-front os de jogos tumultuosos. Mas nao se pode compreender total-,mente a grande capacidade de sobrevivenciaT destes costumes, seetesTofem conslderados meros jogos, no nosso sentido da palavra.O fufe&ol medieval constituia uma parte do ritual tradicional. Per-tencia ao cerimonial da Terga-Feira Gorda, o que, em certa medida,era' um cerimonial da Igreja associado ao ciclo global dos diassantos e feriados. A proposito disto anote-se, tambem, que a dife-renciagao considerada quase como evidente na sociedade medievalnao atingiu o mesmo estadio que se verificou nas sociedades con-temporaneas. For vezes, pode ler-se que tudo quanto as pessoas doperiodo medieval faziam «estava saturado de religiao». Ha quern vamais longe ao afirmar que se pode exprimir «a essencia de uma so-ciedade tradicional aplicando-lhe o termo de sociedade sagrada»12.Este genero de declaragao pode, facilmente, dar a impressao de quetudo aquilo que se fazia nestas sociedades possuia o caracter deseriedade das solenidades altamente regulamentadas que, hoje emdia, prevalecem nos servigos da Igreja. A verdade e que ate mesmoos servigos religiosos na Idade Media eram, com frequencia, menosdisciplinados e muito menos separados da vida quotidiana daspessoas do que hoje se verifica. For outro lado, a vida quotidianaestava impregnada em maior grau, para o melhor e para o pior, decrengas sobre a proximidade de Deus, do Diabo e dos seus diversosacolitos — santos, demonios, espiritos de toda a especie, bons oumaus —, que esperavam influenciar atraves de varias formas deoragao, bem como por magia branca ou negra. Neste campo, tam-bem a aplicagao de termos abstractos, como o «religiose» ou«secular», que nos surgem como alternativas exclusivas, bloqueia o

I2lbid.

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entendimento de um genero de vida que nao se a just a ao nossopadrao de diferenciagao institucional e conceptual de actividadesreligiosas e seculares. Se e necessario expressar o menor grau dediferenciagao segundo os nossos termos, apenas pode dizer-se que,nas sociedades tradicionais da Idade Media, as actividades seculareseram mais religiosas e as actividades religiosas mais seculares doque as das sociedades contemporaneas.

O mesmo se aplica ao jogo popular medieval de futebol. Ele re-flecte tanto um potencial superior de solidariedade como de confli-to e luta. As fricgoes entre comunidades vizinhas, corporagoes lo-cais, grupos de homens e de mulheres, jovens casados e homens sol-teiros mais jovens eram, com frequencia, endemicas. Se os tempera-mentos se exaltavam podiam conduzir sem duvida, em qualquer mo-mento, a explosoes de luta aberta. Mas, em contraste com as nossas,na sociedade medieval existiam ocasioes tradicionais em que algu-mas destas tensoes entre grupos de uma comunidade ou de comu-nidades vizinhas podiam encontrar expressao sob a forma de lutaque era sancionada pela tradigao e, provavelmente, tambem duranteum periodo consideravel, pela Igreja e autoridades locais. Os regis-tos mais antigos mostram que, muitas vezes, as lutas entre repre-sentantes dos grupos locais, com ou sem futebol, constituiam partede um ritual anual. Verifica-se que os jovens membros desses grupoeram desafiados com frequencia para uma luta e, a menos que atensao explodisse antecipadamente, esperavam com ansiedade pelachegada de Terga-Feira Gorda ou por qualquer outro dia do ano quese identificasse com semelhante encontro colectivo. Durante esteperiodo, o jogo de futebol proporcionava um desses escapes para asconstantes tensoes entre grupos locais. O facto de esse jogo cons-tituir um elemento do ritual tradicional nao impedia que qualquerdos grupos submetesse as tradigoes aos seus proprios interesses, noscasos em que os sentimentos de oposigao ao outro se exacerbavamdemasiado. No ano de 1579, por exemplo, um grupo de estudantesde Cambridge foi, como era costume, para a vila de Chesterton jo-gar ao «futebol». Foram para la, assim nos transmitiram, pacifica-mente e sem quaisquer armas, mas, secretamente, os habitantes dacidade tinham escondido uma quantidade de bastoes no portico dasua igreja. Depois de o jogo tec come^ado, provocaram desavengascom os estudantes, exibiram os seus bastoes, quebraram-nos sobreas cabegas dos jovens, infligindo-lhes tamanha derrota que estes

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tiveram de fugir pelo rio, a fim de escaparem. Alguns pediram aochefe da Policia de Chesterton mantivesse a «paz da Rainha», masele estava entre os que jogavam contra os outros e, de facto, acusouos estudantes de terem sido os primeiros a quebrar a paz13.

Este e um bom exemplo da forma como o futebol era usadocomo oportunidade de saldar velhas querelas. Se falamos de tradi-goes, de regras e de rituals, e porque estas palavras podem evocarmais facilmente o quadro de mecanismos de regulagao que actua deforma bastante rigida e impessoal, porque no nosso proprio tempoe esta a conotagao destas palavras. Mas, se utilizarmos as mesmaspalavras em referenda as sociedades medievais, nao devemos perderde vista o tipo dos mecanismos de regulagao a que correspondem— incluindo aquilo a que chamamos tradigoes; ainda que entao aspessoas estivessem mais firmemente dependentes delas do que nosactualmente, elas achavam-se, ao mesmo tempo, bem mais subor-dinadas, no seu desenvolvimento real, as alteragoes dos sentimen-tos individuals e das paixoes do momento. For um lado, isto explicaa extraordinaria tenacidade com que as pessoas da Inglaterra me-dieval efectuavam os seus jogos de Terga-Feira Gorda, ano aposano, de modo tradicional, apesar de todas as proclamagoes dos reise condenagoes das autoridades locals; por outro, revela como po-diam subverter as convengoes tradicionais quando os seus senti-mentos se exaltavam e pregar uma ou outra partida aos seus ad-versarios, como o fizeram em Chesterton.

Uma notfcia de Corfe Castle, Dorsetshire, datada de 1553,mostra com maior detalhe alguns aspectos do tipo de ritual popularque estava integrado num jogo de futebol. Anualmente, a Corpo-ragao de Homens Livres Marmoristas ou Trabalhadores das Pedrei-ras jogava futebol, como parte de um complexo integrado de variascerimonias, nos tres dias de Entrudo. A corporagao de oficiais eraeleita e os aprendizes eram entao iniciados. Cada membro quetivesse casado no ano anterior pagava um «xelim de casamento», oque, no caso da morte do marido, concedia a viiiva o direito de teraprendizes a trabalhar para ela. Contudo, o homem que se tivessecasado em ultimo lugar era perdoado do pagamento do xelim.Em vez disso, tinha de fornecer uma bola de futebol. Entao, no diaseguinte, Quarta-Feira de Cinzas, a bola de futebol era levada ao

13C. H. Cooper, Annals of Cambridge, 1843, p. 71.

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senhor do feudo, sendo-lhe oferecida uma libra* de pimenta, comoforma de pagamento habitual, relativamente a um direito de pas-sagem que a Corporate reclamava. Quando a oferta de pimenta seconcluia, realizava-se um jogo de futebol no terreno pelo qual aCorporagao exigia esse direito14. Um exemplo como este, e existemvarios, mostra claramente que as pessoas deste periodo nao viamnada de absurdo no facto de um jogo tradicional selvagem etumultuoso constituir parte de um ritual solene. Com frequencia,solenidades oficiais e celebragoes ruidosas assumiam tonalidadesdiversas, como se isso fosse uma coisa natural.

Uma variedade peculiar dos costumes tradicionais, incluindo osjogos, estava intimamente associada ao caracter menos impessoal detodas as actividades e com os mais elevados nfveis de manifestaemotividade. As pessoas estavam profundamente ligadas aos seusmodos de vida tradicionais. Uma das razoes para isso ser assimdevia-se ao facto de a maioria das situagoes de tensao e de confiito,que hoje se encontra regulada formalmente por um codigo unifica-do de leis, discutido e executado em tribunais relativamente impes-soais, se encontrar, entao, sujeita a frequentes decisoes particulares,no contexto do grupo local. Mas as tradigoes nao escritas, emborapossuissem, em certa medida, fun^oes de regulagao semelhantes asleis escritas do nosso tempo, nao eram de modo nenhum taocompletamente imutaveis como parecem hoje, a distancia. Podiammudar, de forma imperceptivel, se as relagoes de grupo com o qualelas estavam envolvidas se alterasse, ou, talvez, de forma maisradical, sob o impacte de guerras, conflitos civis, epidemias ououtros factos que, com frequencia, perturbavam profundamente avida das comunidades medievais. Nesse caso, as pessoas teriamdesenvolvido novos costumes, e depressa os consideravam como assuas tradigoes, quer fossem identicos ou nao aqueles que conheciamantes das agitagoes. A maior parte destas tradigoes popularesmedievais era transmitida de viva voz, de geragao em geragao.Eram tradigoes orais. A maioria das pessoas que com elas se rela-cionava era iletrada. Nao era costume fixar de maneira formal, porescrito, qualquer das regras de jogos como o futebol. Os fllhos

14O. W. Farrer, The Marblers ofPurbeck, documentos lidos perante a PurbeckSociety, 1859-60, pp. 192-7.

*Uma libra corresponde a 0,454 quilogramas. (N. da T.)

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CAPITULO V 269

jogavam como os pais haviam jogado, ou, no caso de duvidas, comoeles pensavam que os seus pais jogavam.

Como nao existiam nem regras escritas, nem quaisquer organi-zagoes centrais para unificar as maneiras de jogar, nos documentosmedievais as referencias ao futebol nao implicavam, como sucederiaem documentos do nosso tempo, que o jogo se efectuasse emcomunidades diferentes da mesma maneira. O modo como aspessoas jogavam dependia, realmente, dos costumes locais, nao deregras nacionais comuns. A organizagao do jogo era muito maisimprecisa do que e hoje. A espontaneidade emocional do confrontoera muito superior; as tradigoes de combates fisicos e algurnasrestrigoes — impostas pelo costume, mais do que por regulamentosformais muito elaborados que exigem urn elevado nivel de treino ede autocontrolo — determinavam a maneira de jogar e proporcio-navam uma certa semelhanga a todos estes jogos. As diferengasentre jogos que eram designados de modo diferente nao eram,necessariamente, tao vincadas como sucede nos diferentes jogos--desporto de hoje. Nao e improvavel que a razao pela qual osdocumentos medievais se referem a alguns destes jogos locais como«futebol», enquanto outros sao conhecidos por nomes diferentes,fosse, prioritariamente, resultante do facto de serem jogados comutensilios diferentes. Com efeito, em geral, as referencias ao «fute-bol» parecern fazer-se de modo literal, a um tipo particular de bolae a um tipo de jogo, na medida em que um tipo de bola ou deutensilios de jogo diferentes pode determinar, em geral, umamaneira de jogar diversa. Alguns documentos medievais referem--se, de facto, ao jogar «com uma bola de futebol» e nao ao «jogarfutebol»15. E, tanto quanto se pode ver, a bola que foi chamada«futebol» tinha algo em comum com a que e utilizada nos jogosde futebol de hoje: era uma bexiga cheia de ar revestida, por vezes,mas nem sempre, de couro. As comunidades camponesas de todoo mundo usavam essas bolas como um meio para o seu divertimen-to. Existem, certamente, registos do seu uso em muitas regioes daEuropa medieval. Se ela possuisse as dimensoes certas e elastici-dade, e nao fosse demasiado grande, uma tal bexiga de animalrepleta de ar, revestida de couro ou nao, adaptava-se melhor, pro-

13Por exemplo, os decretos de Manchester promulgados em 1608 e 1609. Verp. 261 acima.

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vavelmente, ao impacte dos pes do que uma pequena bola solida.Nao existe razao para admitir que a bola de «futebol» medievalfosse impulsionada apenas atraves das maos. Mais uma vez, a prin-cipal razao para estas diferengas nos nomes destes jogos pode dizerrespeito, muito simplesmente, ao facto de serem jogados com bolasdiferentes, quer em dimensoes quer em formas, ou de as bolasserem jogadas com bastoes ou outros instrumentos de tipo semel-hante. Mas, tanto quanto se sabe, as caracteristicas elementares, ocaracter do jogo traduzido num confronto entre grupos diferentes,o prazer da luta manifesto e espontaneo, a desordem e o nivelrelativamente elevado de violencia ffsica socialmente tolerada eramsempre os mesmos. E assim era tambem a tendencia para quebrarregras do costume que existissem, no caso de as paixoes impeliremos jogadores nesse sentido. Deste modo, dado que a semelhan^a detodos estes jogos em certos aspectos era muito grande, pode ter-seuma ideia viva quanto a maneira como as pessoas jogavam futebol,da qual nao temos realmente registos minuciosos, a partir de al-guns documentos mais extensos deste periodo que chegaram atenos, mesmo que os jogos nao fossem de factos jogados com umabola ao pe, mas com outros aprestos.

Um destes registos mais extensos, a descrigao de um jogo daCornualha que se denomina hurling*, merece a pena ser lido. Estetexto mostra, com grande vivacidade, como era menos rigoroso,mais pessoal e informal, o tratamento dos costumes tradicionais edas regras nas sociedades medievais do que o que se veriflca quantoas regras e mesmo costumes e tradigoes do nosso proprio tempo.

A descrigao fala por si. Nenhum comentario pode rivalizar coma imagem do jogo e atmosfera que transmite.

Hurling

Hurling toma a sua designagao do acto de langar a bola comforga e e de dois tipos: to goales**, nas regioes a este de Corn-wall***, e to the countrey****, no oeste.

*Lanc,amento. A acc.ao do verbo to hurl: atirar, langar, em especial, comviolencia. (N. da T.)

* * « Para as metas». (N. da T.)***Cornualha, condado situado no sudoeste da Inglaterra. (N. da T.)****«Para o pafs» ou «para a regiao». (N. daT.)

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CAPITULO V 271

Hurling to goales

No hurling to goales ha aproximadamente quinze, vinte ou trinta jo-gadores de cada lado, envergando apenas as suas pegas de vestuariomais leves, de maos unidas e colocando-se em filas, frente a frente.A seguir dispoem-se aos pares, de brago dado, e assim permanecem:estes pares vigiam-se uns aos outros durante o jogo.

Depois disto, cravam no chao dois arbustos, afastados entre sicerca de oito ou dez pes; e, no lado oposto, a distancia de dez ou dozepes, outros dois (arbustos) separados da mesma forma, os quaisdesignam por as suas metas*. Uma destas e determinada a sorte porum lado, ficando a outra para o partido adverse. Para a sua defesa enomeado um par dos seus melhores defesas de langamentos; o espagodo meio, entre as duas metas, e o lugar para onde se langa a bola,e quern quer que seja que a consiga agarrar e transportar atraves dameta do seu adversario alcanna vitoria no jogo. Mas ai reside um dostrabalhos de Hercules: porque o que agarra a bola tem a sua esperaos seus adversarios, que sucessivamente, se langam sobre ele. Osoutros empurram-no, batendo-lhe no peito com os punhos fechados,para o manter afastado; e conservam-no bem preso, sem o maispequeno vestigio de humanidade, gesto que e denominado porbutting* *.

Se ele escapa ao primeiro, outro o agarra e logo um terceiro,nunca mais sendo deixado, ate ter encontrado (como dizem osfranceses) chaussera son pied***, nem sem tocar o chao com uma daspartes do seu corpo, em luta ou aos gritos, preso****, o que e apalavra de rendi^ao. Entao tem de langar a bola (chamada tro-ca*****) para algum dos seus camaradas, que a agarra da mesmamaneira e se afasta, tal como anteriormente; e se a sua sorte ouagilidade for tao boa para evitar ou ultrapassar os seus adversarios,que o esperam, encontra um ou dois homens libertos na meta,prontos a recebe-lo e a mante-lo afastado. Por este motivo, e um jogode grande desvantagem, ou extraordinariamente acidentado, que der-ruba muitas metas; nao obstante, este aspecto atribui grande repu-tagao aquele que impoe muitas quedas no langamento, prende abola por muito tempo e contem o adversario que mais se aproxima

*Goales. (N. da T.)**Butting: acto ou acgao de bater ou empurrar. (N. da T.)***Em frances no original. (N. da T.)****Hold. (N. da T.)*****DeaIing. (N. da T.)

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da sua meta. For vezes, uma pessoa escolhida de cada lado da abola.Os langadores estao sujeitos ao cumprimento de muitas leis, como ade terem de langar de homem para homem, e nao dois sobre umhomem de cada vez; que o langador em oposigao a bola nao devebater*, nem langar-se abaixo da cintura; que aquele que possui a boladeve hater apenas no peito dos outros; que nao deve passar a bola paraum jogador fora de jogo, isto e, nao pode langa-la para nenhum dosseus camaradas que permanegam proximo da meta, mas so ele mesmoa pode levar. Finalmente, na troca da bola, se qualquer um do grupoa conseguir apanhar em voo, ou se o outro for mais rapido, ganha,contudo, para o seu lado, da mesma forma que, de imediato, dedefensor passa a ser atacante, como o outro, que deixa de ser atacantepara ser defensor. A minima falha a estas leis, os lane,adores conside-ram isso como uma causa justa para irem presos pelas orelhas, masvao presos apenas pelos seus punhos; nem nenhum deles procuravavingar-se por tais males ou ferimentos, mas jogavam outra vez damesma maneira. Estes jogos de hurling sao usados, na maioria dasvezes, em casamentos, onde, de um modo geral, os convidados efec-tuam um desaflo entre toda a gente.

Hurling to the countrie

O hurling to the countrie € mais difuso e confuso, limitado assim a al-gumas destas ordens: dois ou tres cavalheiros marcam habitualmenteeste encontro, determinando que num tal dia feriado hao-de trazerpara um tal lugar indiferente duas, tres ou mais paroquias da parteeste ou sul, para langar contra outras tantas, do oeste ou do norte.Os seus objectives sao, quer as casas desses cavalheiros, ou algumascidades ou aldeias, tres ou quatro milhas distantes, que cada ladoescolhe a partir da proxirnidade das suas habitac.oes. Quando se en-con tram, nao existe nem comparagao de numeros, nem correspon-dencia de homens: mas uma bola de prata e langada e o grupo queconsegue apanha-la e transporta-la pela forga, ou ardil, para o localestabelecido ganha a bola e a vitoria. Quern quer que tenha acessoa esta bola e geralmente perseguido pelo partido ad verso; nem eleso hao-de deixar ate (sem qualquer duvida) ele ficar estendido aocomprido sobre a querida terra de Deus: logo que essa queda acon-tece, impede-o de reter a bola por mais tempo: contudo, ele langa-a (com o correspondente risco de intercepgao, como no outro hurling)

*But. (N. da T.)

L:

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para um dos seus companheiros, o que estiver mais afastado, quecontinua da mesma maneira. Logo que ve onde a bola e jogada, dasinal disso aos seus companheiros, gritando: atengao este, atengaooeste, etc., enquanto a mesma e levada.

Os lan^adores tomam o seu caminho seguindo por cima deladeiras, vales, cercas, fossos; sim, e atraves de moitas, roseiras bravas,charcos, poc.os e seja que rios forem; assim, como por vezes vera,vinte ou trinta estao a lutar todos juntos na agua, fazendo grandebarafunda e esgaravatando-se pela bola. Um jogo (na verdade) aomesmo tempo duro e violento e, apesar disso, nao destitufdo dediplomacias, assemelhando-se, de algum modo, as proezas da guerra:porque tera companheiros colocados a sua frente, de cada lado, parair ao encontro dos que vem com a bola, e do outro partido para osauxiliar, a maneira de protecgao. Mais uma vez, outros grupos semantem em guarda sobre os lados, como alas, para ajudar ou impedira sua fuga: e no local onde estiver parece o ponto de confluencia deduas batalhas principais: os que sao mais lentos e vem atrasadosfornecem o sinal de uma nova recompensa; sim, ha cavaleiros colo-cados tambem, em cada partido (como se fosse uma emboscada), eprontos para cavalgar para longe com a bola, se eles conseguiremagarra-la com vantagem. Mas eles nao devem roubar assim o triunfo:porque por mais que qualquer um galope apressadamente, apesardisso, sera por certo encontrado em alguma esquina de vedagao,atraves de veredas, pontes ou aguas profundas, pois (ao guinar paraa regiao) sabem que deve ter necessidade de ai chegar; e se a sua boasorte nao o proteger melhor, tern de pagar o prego do seu roubo, seraderrubado por terra ele proprio e os seus cavalos. Umas vezes, todaa companhia corre com a bola sete ou oito milhas para la do caminhocerto que deviam manter. Outras vezes, um homem a pe, tomando,por meio de uma acgao furtiva, o melhor caminho para escapar semser vigiado, transportara a bola bastante atrasado e, assim, chega ameta por meio de um desvio; logo que e conhecido o vencedor, todoesse lado mais afastado de grupos de gente se reune com grandealegria e, se esse lado for a casa de um cavalheiro, dao-lhe a bola portrofeu, e a beber da sua cerveja ate cair.

Neste jogo, a bola pode ser comparada a um espirito infernal:quern quer que seja que a agarre passa de imediato como um louco,esforgando-se e lutando com aqueles que vao atras para a agarrar; elogo que a bola o deixa, ele renuncia a esta furia para o receptor, eele proprio volta a ser tao pacifico como antes. Nao posso decidir sedeveria recomendar estes jogos pela sua virilidade e exercicio, oucondena-los pela turbulencia e danos que provocam: porque, por um

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lado, torna os seus corpos fortes, rijos e ageis, e insere coragem nointerior dos seus coragoes para enfrentar um inimigo; por outro lado,tambem, e acompanhado por muitos perigos, alguns dos quaissempre pertencem ao papel do jogador. Para demonstrar o que ohurling e de facto, voce deve ve-los a regressarem a casa, como se seretirassem de urn campo de batalha, corn as cabegas ensanguentadas,ossos partidos e deslocados, e essas feridas servem para abreviar osseus dias; apesar disso tudo, e um bom jogo e nunca procurador nemCoroa se incomodaram por este motivo16.

Esta descrigao constitui um grande contribute para a formagaode uma ideia razoavelmente nitida das caracteristicas — da «estru-tura» diferente — dos jogos do passado, nos finais da Idade Mediae inicios do estadio moderno no desenvolvimento da sociedadeinglesa. Tambem contribui para vincar as diferengas na estruturamais alargada da sociedade inglesa nesse estadio do seu desenvol-vimento. Em certos aspectos, iim jogo tradicional como o que foidescrito deve ser influenciado por uma qualquer caracteristicaimportante da sociedade britanica, embora nao seja possivel conhe-cer, de forma exacta, de que maneira. So os estudos comparativosde outras sociedades e da estrutura dos seus jogos poderia tranqui-lizar-nos quanto a esta questao. O jogo popular, tal como se veri-fica, reflecte uma relagao muito especifica entre proprietaries deterras e camponeses. Como se pode ver, eram os proprios donos dasterras que tomavam a seu cargo a organizagao e o patrocinio dosjogos populares deste genero. O jogo, tal como o vemos aqui,surgindo-nos na forma brutal e desordenada, nao e um jogo reali-zado simplesmente entre aldeoes e habitantes da cidade, porventurasem qualquer referenda as pessoas que dispunham da autoridade deanalisar o que, de acordo com os padroes do tempo, poderia serconsiderado violencia excessiva. Como se sabe, e caracteristico dopadrao de desenvolvimento social das Ilhas Britanicas que, por umlado, uma populagao rural constituida por camponeses, vivendo sobdiversos niveis de sujeigao, se transforma numa populagao rural decamponeses mais ou menos livres e, por outro, que, a par de umaclasse de proprietaries rurais nobres, ai tenha emergido uma classede proprietaries de terras que nao possufsse titulo, uma classe que

16Richard Carew, A Survey of Cornwall\ Londres, 1602, pp. 73-5.

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era apenas de cavalheiros. Tanto quanto se pode perceber, este e oquadro do jogo tal como o vimos aqui: um divertimento local, parauma populagao de camponeses mais ou menos livres da regiao,promovido pelos proprietaries de terras locais, que, com frequencia,embora nem sempre talvez, fossem nao nobres. Mesmo que algunsossos se partissem no decurso do jogo, que por acidente alguemmorresse em consequencia dos ferimentos recebidos no jogo, emresumo, em qualquer caso, o povo da regiao, os camponeses e apequena nobreza em conjunto, sentia prazer nele e estava, comopode ver-se, sempre disponivel para o realizar. Ainda se pode ouviro torn meio manhoso de Carew quando falava de batalhas de lan-gamentos, de cabegas ensanguentadas e de ossos partidos — toda-via, nunca os procuradores nem a Coroa se incomodaram por essemotivo. Tanto os camponeses como a pequena nobreza desejavamconservar e desfrutar o jogo.

Contudo, a sua violencia nao era de maneira nenhuma absolutae totalmente desregrada. De facto, como verificamos a partir destadescrigao, ja existiam «leis» do costume ou, de modo mais rigoroso,regras. Ja existia um sentido rudimentar do que se tornou conhe-cido como «justiga», e e bastante provavel que este quadro socialpeculiar, o dos camponeses relativamente livres e proprietariesrurais da classe media, tivesse alguma coisa a ver com isso. Sesurgisse um confronto entre um jogador com a bola e os seusoponentes, as «leis» determinavam que so um destes, de cada vez,podia ataca-lo, nao os dois. Outra regra decretava que os jogadoresnao deviam atingir-se abaixo da cintura: o tronco era o unico alvolegitimo. No entanto, nao existia uma ligagao formal, separada dosproprios jogadores, que assegurasse o respeito pelas regras. No casode discussoes, nao existia arbitro nem juiz vindo do exterior. Emcertos aspectos, esta forma de realizar um jogo revela um trago davida social das comunidades do passado que, de outro modo, seriadificil de compreender. Como ja vimos, diz-se com frequencia que,em comparagao com as nossas, estas comunidades encontravam-seprofundamente integradas, ou que possuiam um tipo especial desentido de solidariedade. Contudo, estas comunidades camponesastinham os seus conflitos quer a nivel interno quer com as comuni-dades vizinhas. Em geral, a forma de as resolver era consideravel-mente mais violenta do que a que viria a utilizar-se num estadioposterior. E o futebol e outros jogos populares, como vimos, cons-

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titufam uma maneira de libertar as tensoes. Mas o facto de naoexistirem regras escritas ou autoridades centrals nao significava quejogassem sern quaisquer regras. Como pode ver-se, as regras tradi-cionais e os regulamentos baseados no costume, que se desenvolve-ram ao longo dos seculos como uma especie de auto-restrigao co-lectiva, desempenhavam a fungao das nossas regras institucionaismais elaboradas e com frequencia pensadas de forma mais cuidado-sa. Pode bem acontecer que nestas sociedades do passado as pessoasse mantivessem agarradas, de forma tenaz, as suas tradigoes e aspoucas restrigoes do costume no caso de tensoes e conflitos, comosabemos alias que o fizeram, porque perde-las significaria abando-nar, precisamente, uma parte essencial das suas proprias paixoespara as quais se encontravam dispomveis. Se estas restrigoes basea-das no costume fossem eliminadas, nao existia ninguem, senao elesproprios, para manter os transgressores sob vigilancia. O que aquise encontra e um tipo muito primario de democracia — umaespecie de democracia aldea. A forma de punir os infractores das«leis» do jogo, como Carew o descreve, e um paradigma em peque-na escala da democracia camponesa auto-regulada, com a relativa-mente diminuta supervisao de vigilantes do exterior. Em nossoentender, fica-se com a impressao de que esta maneira de impediras pessoas de subverter as regras do costume nao era muito eficaz.Uma violagao das regras, como o descreve Carew era, com frequen-cia, outra ocasiao para um confronto bastante violento— por certocom algumas cicatrizes, entre os participantes.

A partir da descrigao pode ver-se, com muita nitidez, que astradigoes relativas hoje a dois tipos de desportos diferentes, e apa-rentemente sem grande relagao, continuam a constituir um padraode jogo indiferenciado em alguns desses jogos populares ancestrais.O hurling contem de facto elementos, por urn lado, de um jogo debola e, por outro, de um combate simulado ou de uma exibigao decombate sem armas. Neste jogo popular, e bastante evidente aaceitagao por todos os participantes e espectadores, enquanto ele-mento normal de jogo e como parte do divertimento, do facto deas pessoas se empenharem numa especie de luta fisica. Contudo,mesmo a luta corpo a corpo nas sociedades do tipo «medieval»respeitava um certo tipo de regulamenta^ao tradicional, a qualproporcionava nao so uma harmonizagao mutua dos movimentosdos combatentes mas tambem uma limitagao relativamente aos

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ferimentos que se pudessem infligir ao outro. Na Cornualha, notempo do hurling, um tipo de luta de simulagao e de exibigaochamada wrestling* continuava a ser um dos divertimentos regula-tes da vida da aldeia. A nfvel local, os lutadores da Cornualhaconsideravam-se os melhores e os mais famosos da regiao. For essemotivo, nao surpreende o facto de as tecnicas de luta desempenha-rem um determinado papel no jogo da bola do hurling. ComoCarew o descreve, um dos factores considerados para determinar ovencedor de urn jogo era o numero de «quedas» impostas aoopositor; e «impor uma queda», derrubar um oponente e faze-lotocar o chao com urn ombro num lado e com o calcanhar no outroera, na verdade, um dos principais objectivos do hurling. Nessecaso, a habilidade e o exito engrandeciam a reputagao da equipa daaldeia. Pode imaginar-se como as equipas e as comunidades queestas representavarn discutiam, mais tarde, quern tinha sido omelhor e como, por vezes, tera surgido uma briga extra acercadisso.

Contudo, mesmo no hurling to goales, o mais regulamentado dosdois tipos de hurling descritos por Carew, o criterio para determi-nar o vencedor nao estava definido de modo tao nitido e calculadocomo o dos jogos-desporto no nosso proprio tempo, pois estesrelacionavam-se, de um modo geral, com algurnas provas de avalia-gao inequivocas, tais como o «golo», o «ponto» ou a «corrida».Como se pode ver, a partir da descrigao de Carew, num jogopopular como o hurling a determinagao de um vencedor era delonge menos rigorosa e regulada de um modo rnenos nitido, sendode certa forma sintomatico do caracter distintivo destes jogospopulates tradicionais e dos modernos jogos-desporto em geral.Mesmo no final do seculo XVI, as sociedades europeias nao eramainda sociedades de «medida». No entanto, aquilo que e maisimportante sublinhar e que, quando comparados com os nossosjogos-desportos, o jogo do hurling, incluindo a sua componente deluta, era de longe muito menos regulamentado, nao sendo noentanto totalmente anarquico. O nosso vocabulario conceptual naoesta ainda suficientemente desenvolvido, a nossa percepgao nao estaainda bastante treinada para que nos seja possivel distinguir, com

*Luta. (N. da T.)

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nitidez e precisao, entre diferentes tipos de regulamentagao. E evi-dente que estudos comparatives minuciosos e sistematicos quercom outros jogos populares da nossa propria sociedade quer comjogos populares diferentes, num estadio de desenvolvimento socialcomparavel, representariam um util contributo a este respeito.

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CAPITULO VI

A dinamica dos grupos desportivos— uma referenda especial ao futebol

Norbert Elias e Eric Dunning

No desenvolvimento de uma ciencia ou de urn dos seus ramosacontece, muitas vezes, que a teoria que dominou o sentido dainvestigagao, por algum tempo, atinge um ponto em que se tornammanifestas as suas limitagoes1. Verifica-se que grande quantidadede problemas significativos nao pode ser formulada, com clareza,nem explicada at raves da sua contribuigao. Os cientistas que traba-Iham nesse campo iniciam, entao, a pesquisa de um quadro teoricomais vasto ou, possivelmente, de outra teoria global, que Ihespermitira o debate de problemas para alem do que e possivel atra-ves da teoria em curso.

Na sociologia contemporanea, o que e designado por «teoria depequenos grupos» parece estar neste estadio. E bem evidente queuma parte dos problemas ultrapassa as possibilidades da actual teo-ria dos pequenos grupos, para nao falar das suas limitagoes comomodelo de estudo de unidades sociais de maiores dimensoes. Nonosso caso, quando tentamos investigar problemas de pequenosgrupos em jogos-desporto como o futebol, essa teoria nao demons-trou utilidade a qualquer nivel. De facto, confrontada com o estudodos grupos de desporto in vivo^ a teoria dos pequenos grupos foi in-suficiente2.

^ste capitulo apareceu, inicialmente, sob a forma de artigo no British Journalof Sociology, Vol. XVII, n.° 4, Dezembro de 1966, e foi reproduzido na obra editadapor Eric Dunning, The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971.

2Referimo-nos a teoria dos pequenos grupos no sentido em que este termo e vul-garmente utilizado em sociologia. Nao nos referimos a outras teorias de pequenosgrupos tais como, por exemplo, aquelas que dizem respeito a problemas de terapia

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280 A DINAMICA DOS GRUPOS DESPORTIVOS

For esse motivo iniciamos — em paralelo com uma pesquisamais alargada do desenvolvimento do futebol a longo termo — ainvestigate de alguns aspectos teoricos da dinamica de grupos quese desenvolve em jogos deste tipo. Pareceu-nos que os jogos-des-porto em geral, e o futebol em particular, podiam constituir umponto de partida util para a constru^ao de modelos de dinamica depequenos grupos que fossem, de algum modo, diferentes dos quedispunhamos no quadro das actuais teorias de pequenos grupos.Alguns aspectos desses modelos sao apresentados neste trabalho.Embora tenham sido elaborados, de inicio, em referencia ao fute-bol, os conceitos derivados da nossa analise permitem uma utiliza-gao mais alargada. Aplicam-se quase de certeza, nao so ao futebolmas, tambem a outros jogos colectivos.

No estudo do futebol e de outros jogos-desporto revelam-se,desde o inicio, certas dificuldades semanticas. As pessoas falam,com frequencia, de um jogo de futebol como se fosse alguma coisaexterior e separada do grupo de jogadores. Nao e inteiramente falsoafirmar que um jogo como o futebol pode ser jogado por muitosgrupos diferentes. Como tal e independente, em parte, de qualquerum dos grupos. Ao mesmo tempo o padrao de jogo individual e,em si mesmo, um padrao de grupo. As pessoas agrupam-se, segun-do formas especfficas, com a finalidade de efectuar um jogo.Enquanto o jogo se desenvolve, reagrupam-se continuamente, demaneira semelhante as formas que os grupos de bailarinos adoptamno decurso de uma danga. A configuragao inicial de que partem osjogadores transforma-se em movimento continue, noutras configu-ra^oes. E a esta dinamica que nos referimos quando utilizamos otermo «padrao de jogo». O termo pode ser equivoco se esconderaquilo que realmente se ve quando se presta atengao a um jogo:pequenos grupos de seres humanos que modificam as suas relagoesem constante interdependencia.

A dinamica deste agrupamento e reagrupamento de jogadores,no decurso de um jogo, e fixa em certos aspectos e flexivel e va-riavel noutros. E fixa porque, sem a fidelidade da combina^ao dosjogadores relativamente a um conjunto de regras unificadas, o jogonao seria um jogo mas uma «desordem geral». E flexivel e variavel,

de grupo, embora nesses casos a abordagem configuracional possa ser tambem umcontribute.

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CAPITULO VI 281

pois, de outro modo, um jogo seria exactamente como qualqueroutro. Neste caso, tambem, o seu caracter especifico enquanto jogoestaria perdido. Por conseguinte, para que as relagoes de grupopossam ter o caracter de um jogo, torna-se necessario estabelecerum equilibrio muito especifico entre a rigidez e a flexibilidade dasregras. A dinamica do jogo depende deste equilibrio. Se as relagoesentre os que realizam o jogo sao demasiado rigidas ou vagamentelimitadas pelas regras, o jogo sera prejudicado.

Consideremos a configuragao inicial dos jogadores no futebol.E regulamentada por certas regras. Nestas condigoes, a redacgao deuma das regras de 1897 sobre a configuragao do «pontape desaida», que, com algumas modificagoes, continua valida, e a se-guinte:

O jogo deve iniciar-se por um pontape de safda, executado sobre amarca do meio-campo na direcgao do campo adversario; os jogadoresda equipa oposta nao podem aproximar-se da bola a menos de 9,15m* antes de o pontape ter sido executado, nem quaisquer outrosjogadores de ambas as equipas podem ultrapassar o centre do terrenoate ao momento da realizagao do pontape de safda3.

E facil avaliar qual o espago de manobra que esta regra concedeas duas equipas — como ela e flexivel. No quadro de regras dopontape de saida os jogadores podem agrupar-se numa «formagaoW» (2-3-5) ou sob a forma de um «H horizontal (4-2-4). Tam-bem se o pretenderem, o sector defensivo pode situar-se rigida-mente em frente da propria baliza, embora na pratica isso rara-mente suceda. A forma como os jogadores se dispoem no momentodo pontape de saida e determinada por regras formais e por conven-goes, pela experiencia de jogos anteriores e, com frequencia, pelosproprios pianos estrategicos conjugados com as expectativas relati-vamente a estrategia planeada pelos adversaries. Ate onde e queesta caracteristica peculiar, esta combinagao de rigidez e de flexi-bilidade, se aplica a regulamentagao das relagoes humanas, noambito de outras esferas, e uma questao que pode merecer maisatengao do que ate aqui tern acontecido.

3G. Green, The History of the Football Association, Londres, 1953.*De acordo com as Leis do Jogo editadas pela FIFA (1985). (N. da T.)

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282 A DINAMICA DOS GRUPOS DESPORTIVOS

A partir da posigao inicial, evolui uma configuragao dinamicadelineada pelas duas equipas. Assim, todos os individuos se man-tern, do principio ate ao fim, mais ou menos interdependentes;movimentam-se e reagrupam-se em resposta uns aos outros. Istopode ajudar a explicar porque nos referimos a este tipo de jogocomo uma forma especifica da dinamica de grupos. Porque estemovimento e reagrupamento de jogadores interdependentes, emresposta aos outros, / o jogo.

Torna-se evidente, desde logo, que ao usar o termo dinamica degrupo nao nos referimos as configuragoes em mudanga de cada umdos dois grupos de jogadores, considerados em separado, como secada um possuisse a sua propria dinamica. Nao e esse o caso. Numjogo de futebol, a configuragao dos jogadores de uma das equipase a dos jogadores da outra equipa sao interdependentes e inse-paraveis. De facto, formam uma unica configuragao. Se falamosde um jogo-desporto como uma forma especifica de dinamica degrupo, referimo-nos a modificagao global da configuragao dosjogadores de ambas as equipas. Poucos aspectos da dinamicade grupo do futebol revelam, com tanta nitidez, a relevancia dosjogos-desporto como modelos para a dinamica de grupos emmuitos outros campos.

Uma caracteristica fundamental nao so do futebol mas pratica-mente de todos os jogos-desporto e que se constitui um tipo dedinamica de grupo que e originado por tensoes controladas entre,pelo menos, dois subgrupos. A teoria sociologica tradicional dospequenos grupos, por esta razao, nao da grande contribuigao aoestudo do tipo de problemas que se nos deparam. Exigem-se con-ceitos especificos, diferentes dos que foram utilizados ate aqui noestudo sociologico de pequenos grupos, e talvez um pouco maiscomplexos do que aqueles que, de um modo geral, sao utilizadosem estudos sobre jogos-desporto. De acordo com o uso conceptualpresente, pode ficar-se satisfeito afirmando que um jogo de futebole praticado por dois grupos diferentes. Esta e uma dessas conven-goes linguisticas que induzem as pessoas a pensar e a falar como seo jogo fosse alguma coisa separada dos seres humanos implicadosnele. Ao sublinhar-se que o jogo nao e nada mais do que a confi-guragao dinamica de uma bola movimentada pelos jogadores, des-taca-se, em simultaneo, que nao se trata da configuragao dinamicade cada uma das duas equipas, consideradas separadamente, mas

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CAPITULO VI 283

dos jogadores de ambas as equipas em confronto. Muitas pessoasque veem um jogo de futebol sabem que e isto que tentam acom-panhar, nao simplesmente, uma ou a outra equipa, mas o padrao--fluido que e delineado pelas duas. Este e o padrao de jogo — adinamica de um grupo em tensao.

Como tal, este modelo de dinamica de grupo tern implicatesteoricas que ultrapassam o estudo dos pequenos grupos. Podeconstituir uma ajuda para a explica^ao de tao variados problemascomo, por exemplo, o das tensoes conjugais ou das tensoes sindi-cato-direcgao. Nestes casos, como sucede nos grupos do desporto,as tensoes nao sao estranhas mas intrinsecas a propria configuragao;aqui tambem, em certa medida, sao controladas. Como sao contro-ladas, em que grau isso sucede e qual a via utilizada para o efeitoe o problema a ser estudado. As relagoes interestados sao outroexemplo de uma configuragao com tensoes intrinsecas. Mas, nestecaso, a compreensao efectiva e permanente das tensoes ainda nao foialcan^ada e, ao nivel actual do desenvolvimento social e do conhe-cimento sociologico dos grupos em tensao, talvez nao seja possivelatingir o objective. Entre os factores que impedem a concretizagaodo melhor conhecimento esta, decerto, a incapacidade muito disse-minada de compreender e investigar dois Estados em tensao ou umsistema de Estado multipolar como uma linica configuragao. Deum modo geral, aborda-se semelhante sistema como um partici-pante comprometido com um dos pontos de vista e que, por essemotivo, nao e capaz de visualizar e de perceber a dinamica fulcralda conflguragao que os diferentes elementos formam entre si e quedetermina os movimentos de cada lado. O estudo dos jogos-despor-to como o futebol pode, por isso, servir como uma introdugaorelativamente simples a uma analise configuracional no estudo detensoes e de conflitos — a perspectiva segundo a qual a atengao seconcentra nao na dinamica de um lado ou do outro, mas nos doispolos ao mesmo tempo, formando uma unica conflguragao. O pen-samento sociologico a respeito de problemas deste genero parecegirar, actualmente, a volta de duas alternativas: por um lado,problemas de grupo em situagao de tensao; por outro, problemas decooperagao e harmonia. As tensoes de grupo parecem ser umfenomeno, a cooperagao de grupo e harmonia, outro. Dado que seutilizam termos diferentes, pode surgir a ideia de que os propriosfenomenos sao diferentes e independentes um do outro. Uma

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analise dos jogos-desporto esclarece a insuficiencia desta aborda-gem. A dinamica de grupo de urn jogo pressupoe tensao e coope-ragao numa variedade de niveis ao mesrno tempo, Nenhum delesseria o que e sem o outro.

A teoria tradicional dos pequenos grupos nao da atengao aproblemas deste tipo. Em geral, os seus agentes seleccionam paraestudo problemas de pequenos grupos em que as tensoes nadarepresentam ou, no caso de escolherem problemas de tensao, con-finam-se aos seus tipos especificos como, por exemplo, a competi-gao individual. Ao ler os seus argumentos tem-se muitas vezesa impressao, que as suas reflexoes, sobre o tema das tensoes econflitos de grupo, sao debates sobre questoes de filosofia e ideo-logias pollticas mais do que a discussao das conclusoes derivadas deinvestigates estritamente cientificas. Neste caso, como noutros,a sociologia contemporanea parece estar, por vezes, amea^ada poruma polariza^ao entre aqueles que nao distinguem o papel dastensoes nos grupos sociais — ou, pelo menos, que o colocam aum nivel bastante secundario — e os que exageram o papel dastensoes e dos conflitos, desprezando outros aspectos da dinamica degrupos que sao igualmente relevantes. Por exemplo, Homansdesenvolveu uma teoria de pequeno grupo na qual o conflito etensao representam, em grande parte, um papel marginal. Talveznao seja injusto, por certo, sugerir que esta tendencia de harmoni-zagao esta relacionada com um esquema de valores pre-estabelecido,uma especie de Weltanschauung* sociopolitica que define o senti-do dos argumentos teoricos e observances empiricas semelhantes.Podera admitir-se que Homans desenvolveu uma alergia emocio-nal relativamente a discussao de tensoes e conflitos. Por isso,escreve:

Se nos limitamos ao comportamento... (que diz respeito a permutade actividades de remuneragao) temos a certeza de que provocamosa indignagao dos cientistas sociais, que se distinguem pelo seuespfrito teimoso. «Nunca minimizem o conflito», dirao. «O conflitonao so e um facto da vida social como, tambem, possui virtudespositivas e apresenta qualquer coisa do que ha de melhor no ho-mem». Acontece que, precisamente, estes cientistas nao estao mais

*Visao <io muiido, (N. da T.)

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desejosos do que o resto da humanidade de encorajar conflitos de quesejam responsaveis. O conflito e bom para os outros, nao para siproprios. Mas precisamos de nos refrear. E serapre demasiado facilpedir aos homens que fagam aquilo que proclamam. Uma armadilha,da qual ninguem consegue escapar, nao e um quadro divertido4.

Como se pode ver, este e um argumento pleno de emogao.Demonstra como o proprio Homans compreendeu mal o caracterda analise sociologica. Alguns escritores que deram atengao aproblemas de conflito fazem isso, sem duvida, porque desejamencorajar o conflito — isto e, por razoes estranhas ao estudo so-ciologico de tais problemas. Mas sugerir, como Homans parecefazer, que o encorajamento do conflito e a unica razao pela qual ossociologos procuram determinar a natureza das tensoes e conflitosna vida social das pessoas implica uma ma interpretagao funda-mental do trabalho de analise sociologica. Embora Homans escrevaque «ninguem pode negar... que o conflito e um facto da vidasocial», ele, obviamente, considera dificil lidar com este facto comotal, como um facto da vida entre outros.

A este respeito, o estudo dos jogos-desporto pode constituir umconsideravel contributo. Um estudo especifico de tensoes desem-penha um papel significativo em semelhantes jogos. Ao estuda-losnao se pode deixar de prestar atengao as tensoes quer se goste delasou nao. Parece util determinar o caracter de jogos-desporto comoo futebol como configuragoes com tensoes de um tipo especifico, epensamos que o termo «grupos em tensao controlada» seria apro-priado para o designar.

No estadio actual do desenvolvimento teorico, confrontamo-nosem relagao a estes problemas com um dilema que num contexto decerto modo diferente, foi forrnulado com grande clareza porDahrendorf. Ja nos referimos a tendencia para tratar o conflito e acooperagao como fenomenos independentes e para formar teoriasdiferentes e separadas para cada um deles. Dahrendorf defrontou--se com um problema similar a respeito da integragao e da coergao,e levant ou, a respeito desta ligagao, uma questao significativa:

Existe, ou pode existir, um ponto de vista geral que sintetiza a

4G. Homans, Social Behaviour: Its Elementary Forms,, Londres, 1961, p. 130.

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dialectica nao resolvida de integragao e de coerc,ao? Tanto quanto sepode ver, nao existe semelhante modelo geral; quanto a sua possibi-lidade tenho de reservar o julgamento. Parece, pelo menos, aceitavelque a unificagao de teoria nao e verosimil, um ponto que, desde oinfcio da fllosofia ocidental, sempre confundiu os pensadores5.

O mesmo se pode afirmar quanto a questao das tensoes e dacooperagao. Algumas teorias sociologicas encontram-se tecidas avolta de problemas de conflito e de tensao, sem conceder muitaatengao aos problemas de cooperagao e de integragao, tratando oconflito e a tensao mais ou menos como fenomenos marginals.Analisando o problema de modo mais detalhado, e facil ver a razao.Ambos os processes se baseiam numa reificagao de valores: porquese atribuem diferentes valores ao conflito e a cooperagao tratam-seestes fenomenos como se tivessem uma existencia separada e inde-pendente.

For isso, o estudo dos jogos-desporto e um ponto de partidautil para uma abordagem destes problemas, permitindo a modera-gao das paixoes. Neste campo, e mais facil movimentarmo-nos forado quadro de avaliagoes estranhas e mantermo-nos em contactoestreito com provas susceptiveis de verificagao, isto e, com demons-tragoes factuais no quadro das proposigoes teoricas. For esse moti-vo, e menos diffcil caminhar no sentido de um quadro teorico noqual nao so a tensao como tambem a cooperagao podem encontraro seu lugar como fenomenos interdependentes. No futebol, a coo-peragao pressupoe tensao e a tensao cooperagao.

Contudo, so podemos compreender o seu caracter complemen-tar se estudarmos o modo como o jogo se desenvolveu ate a suaforma presente, como a tensao e a cooperagao se relacionam atravesde tipos de controlos solidos. O estudo do desenvolvimento nofutebol, na longa duragao, permite-nos observar, de facto, numcampo limitado, um aspecto da acgao reciproca entre tensao econtrolo da tensao, sem o que a relevancia dos jogos-desporto comoum modelo teorico nao pode ser totalmente compreendida. Foroutro lado, permite observar como as tensoes, que foram em certotempo descontroladas e, provavelmente, incontrolaveis, se subme-

5R. Dahrendorf, Class and Class Conflict in Industrial Society, Londres, 1959,p. 164.

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teram progressivamente ao controlo. Uma das principals carac-teristicas do futebol e de muitos outros jogos-desporto, na suaforma actual, e, por certo, a maneira como as elevadas tensoes degrupo, produzidas no decurso do jogo, sao mantidas sob controlo.Mas is to e um fenomeno bastante recente. Em tempos passados, astensoes entre jogadores, que sempre foram e sao caracterfsticas dosjogos, eram frequentemente muito menos controladas. Esta trans-formagao, o desenvolvimento de uma forma de tensao de grupoaltamente regulada e relativamente nao violenta a partir de umestadio previo em que as correspondentes tensoes se libertavammuito mais facilmente sob uma forma qualquer de violencia, estano fulcro da dinamica a longo termo do jogo de futebol. E repre-sentativa, em certos aspectos, do desenvolvimento a longo prazodas sociedades europeias. Porque, em muitas destas sociedades, onivel geral de violencia manifesta tern diminuido atraves do tempo.Em{ comparagao com o passado, tambem aqui se encontra, comosucede no desenvolvimento do futebol, um nivel de organizagao, deauto-restrigao e de seguranga muito mais elevado. Como e por querazao acontece este desenvolvimento em termos de longa duragao,no sentido de padroes mais «civilizados» das relagoes humanasverificadas na sociedade em geral, sao questoes que nao necessitamde nos preocupar aqui6. Mas foi possivel descobrir algumas dasrazoes por que, em paralelo com uma orientagao semelhante nasociedade em geral, um jogo como o futebol se desenvolveu a partirde uma forma de dinamica de grupo mais violenta para outra formamenos violenta e menos incontrolada e, por correspondencia, paraum tipo de padrao de jogo diferente. Esta compreensao da dinami-ca do futebol na longa duragao esclarece, em grande parte, o quee a dinamica do jogo no curto prazo, tal como hoje se realiza.

De facto, o futebol, tal como era jogado em tempos passadosnao so em Inglaterra mas tambem em muitos outros paises, comoa maioria dos jogos de bola, era um jogo muito selvagem7. Seculosmais tarde, entre 1845 e 1862, quando o jogo de futebol, pelomenos em algumas das escolas publicas mais importantes, se tor-nou bastante mais regulamentado, o nivel de violencia era ainda

6Foi tratado de forma aprofundada nas obras de Norbert Elias The CivilizingProcess, Oxford, 1978, e State Formation and Civilization, Oxford, 1982.

7Ver Cap. V deste volume.

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muito mais elevado do que e hoje, e a dinamica das tensoes degrupo, por esse motive, bastante diferente8.

Nos finals de 1863 a incipiente Associagao de Futebol dividiu--se porque a maioria propos eliminar do jogo, totalmente, as «ca-neladas», enquanto uma minoria dos membros fundadores, defen-dendo a perspectiva de que a aboligao da «canelada» tornaria o jogo«efeminado», opunha-se a isso. Este nao foi o unico mas, por certo,foi um dos principals pontos que conduziu ao desenvolvimento emInglaterra de dois tipos de futebol: o football association ou futebol>por um lado, e o raguebi futebol ou raguebi, por outro. E interessantenotar que mesmo no jogo de raguebi, embora o nivel geral deviolencia permanega, de algum modo, mais elevado do que o fute-bol, tambem a «canelada» foi «banida» nao muito tempo depois dea ruptura ter ocorrido.

O problema com que nos defrontamos aqui — um problemaque nao e totalmente desprovido de significado teorico — e o dasrazoes por que um dos dois tipos de jogo, nomeadamente o «fute-bol», alcangou muito maior reconhecimento e exito do que o outro,nao so em Inglaterra mas em quase todo o mundo. Seria porqueo nivel de violencia no futebol era inferior ao do raguebi? Pararesponder a questoes como esta e necessario ter uma ideia muitoclara acerca de, pelo menos, um dos principals problemas levanta-dos ao padrao global do jogo, a sua dinamica de grupo, resultantesda diminuigao da violencia. O perigo desta redugao da violenciaconsentida era, obviamente, o de que o jogo, na sua forma modi-ficada, se tornaria desinteressante e aborrecido. A sobrevivencia dojogo dependia, evidentemente, de uma especie peculiar de equi-librio entre, por um lado, um elevado controlo do nivel de violen-cia, porque sem ela o jogo ja nao era aceitavel para uma maioria dosjogadores e para a maioria dos espectadores, de acordo com opadrao de comportamento «civilizado» prevalecente, e, por outro,a preservagao de um nivel suficientemente elevado de confronto naoviolento sem o qual, de modo identico, o interesse dos jogadores edo publico teria enfraquecido. O desenvolvimento completo damaioria dos jogos-desporto, e certamente o do futebol, situa-se em

8Para uma analise sociologica do desenvolvimento do futebol nas escolaspublicas, ver o trabalho de Eric Dunning e de Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemenand Players, Oxford, 1979-

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grande medida na solugao deste problema: como manter em deter-minado padrao de jogo um elevado nivel de tensao e de dinamicade grupo dele resultante, enquanto, ao mesmo tempo, se procuravareduzir ao mais baixo nivel possivel frequentes lesoes nos jogado-res. A questao era e continua a ser, por outras palavras, como«conduzir um navio», por assim dizer, entre a desordem de Cila eo aborrecimento de Caribdis. Os que participam no jogo como trei-nadores ou dirigentes podem confirmar, na verdade, que este e umproblema de grande significado pratico. Um elevado numero depessoas que se encontra nessa situagao esta habituada a pensar emtermos de configuragao como uma coisa natural, uma vez queplaneiam cada jogo com antecedencia; porque esta e a maneira maisrealista de encarar um jogo e, na verdade, a mais apropriada parao desenvolvimento de estrategias. Deste modo, ao preparar a suaequipa para um jogo, e possivel que um treinador afirme que osadversaries podem utilizar um «sistema 4-2-4» e que o seu propriotrabalho consiste em impedir os adversaries de dominarem o meiocampo de jogo; para atingir isto, pode estabelecer para dois dosseus jogadores a tarefa de «remover totalmente» os homens queconstituem o «elo de uniao» adversario, para que desta maneira oresto da equipa se possa concentrar no ataque. Contudo, emborahabituado, pela sua experiencia imediata, a encarar o jogo comouma configuragao dinamica de jogadores, o seu objective e o seutrabalho nao sao o de manter-se distanciado e reflectir sobre ascaracteristicas e regularidades destas configurates enquanto tais.Em 1925, o Comite da Associagao de Futebol que decidiu alterara regra de fora de jogo estava, decerto, consciente de que, subme-tido a velhas regras, o «espirito» do jogo enfraquecera, tal comonoutras ocasioes as pessoas tinham notado que o jogo comegara aperder-se entre a desordem e a monotonia. Mas, ate agora, osconceitos disponiveis para tratar este tipo de problemas nao estaomuito articulados. Para atingir o seu significado mais vasto — oseu significado face a uma teoria de pequeno grupo ou para umateoria sociologica do jogo em geral — e necessario trabalhar novosconceitos em termos de comparagao, como um quadro para obser-vagao e transformagao do sentido de alguns dos conceitos que jaexistem.

Analisemos o conceito de «configuragao». Ja se disse que umjogo e uma configuragao dinamica de jogadores no campo. Isto

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significa que a configuragao nao e apenas um aspecto dos jogadores.Nao e, como por vezes as pessoas parecem acreditar, quando seutilizam expressoes relacionadas como «padrao social», «gruposocial» ou «sociedade», alguma coisa abstrafda dos indivfduos. Asconfiguragoes sao formadas por indivfduos como se fossem «corpoe alma». Se observarmos a movimentagao dos jogadores no campoem permanente interdependencia, podemos ve-los na realidade aformar constantemente uma configuragao dinamica. Nos casos degrupos ou sociedades mais alargadas, nao se podem, de um modogeral, observar as configuragoes que os seus membros formam entresi. No entanto, tambem nestas circunstancias, as pessoas formamconfiguragoes entre si — uma cidade, uma igreja, um partidopolitico, um Estado — que nao sao menos reais do que a que econstitufda por jogadores num campo de futebol, mesmo que naopossam ser abrangidas de um so golpe de vista.

Nesta linha, considerar agrupamentos de pessoas como configu-ragoes com a sua dinamica, os seus problemas de tensao e decontrolo da tensao e muitos outros, mesmo que nao seja possivel ve--los aqui e agora, exige um treino especffico. Esta e uma das tarefasda sociologia configuracional de que este ensaio e um exemplo.Actualmente, ainda existe uma boa dose de incerteza quanto anatureza desse fenomeno a que as pessoas se referem como «socie-dades Com frequencia, as teorias sociologicas parecem partir dahipotese de que «grupos» ou «sociedades» e «fenomenos sociais»em geral sao alguma coisa abstrafda dos indivfduos, ou, pelo menos,que nao sao tab «reais» como estes, o que quer que seja que issopossa significar. O jogo de futebol — como um modelo em peque-na escala — pode ajudar a corrigir esta perspectiva. Demonstra queas configuragoes de indivfduos nao sao nem mais nem menos reaisdo que os indivfduos que as formam. A sociologia configuracionalbaseia-se em observances como esta. Em contraste com as teoriassociologicas que tratam as sociedades como se fossem meros nomes,uma flatum vocis^ um «tipo ideal», uma construgao sociologica eque, nesse sentido, sao representativas do nominalismo sociologico,a sociologia configuracional representa um realismo sociologico9.

9A firm de evitar equivocos, ha que acrescentar que o termo «realismo so-ciologico^ tal corno aqui foi utilizado, nao possui o mesmo signiflcado que tern nateoria de Durkheim. Este autor nao conseguiu abandonar a posigao segundo a qual

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Os individuos apresentam-se sempre em configuragoes e estas saosempre formadas por individuos.

Se observarmos um jogo de futebol, podemos compreender quee da configuragao dinamica dos proprios jogadores que, num dadomomento, as decisoes e os movimentos dos jogadores individuaisdependem. A este respeito, conceitos como «interacgao» e termosrelativos podem induzir em erro. Parecem sugerir que os in-dividuos que se encontram desprovidos de configuragoes as formama posteriori. Perante o tipo de tensoes que se encontram no estudodo futebol, torna-se dificil o dominio do problema. Estas tensoessao, quanto a sua natureza, diferentes das que podem surgir quandodois individuos independentes, «ego» e«alter», comegam a inte-ragir. Como ja afirmamos, e a propria configuragao dos jogadoresque integra uma tensao de tipo especifico — uma tensao contro-lada. Nao se pode compreender nem explicar o seu caracter a partirda «interacgao» dos jogadores individuais.

Nas nossas sociedades, uma das caracteristicas de um jogo e ade procurar conservar a tensao inerente a conflguragao dos jogado-res, nem demasiado elevada nem demasiado reduzida: o jogo devedurar certo tempo mas e necessario, no final, que se resolva atravesda vitoria de um lado ou do outro. Podem existir jogos «arrasta-dos», mas, se ocorrerem com demasiada frequencia, podera suspei-tar-se de que alguma coisa estava errada na construgao do jogo.

Deste modo, nas sociedades industrials do presente, um jogo euma configuragao de grupo de um tipo muito especifico. E a tensaocontrolada entre dois subgrupos que, no seu interior, os mantemem equilibrio entre si. Este e um fenomeno que se pode observarem muitos outros campos. Parece merecer um nome especial:chamamos-lhe «equilibrio de tensao». Da mesma maneira que amobilidade de um membro do corpo humano depende das tensoescontroladas entre dois grupos de musculos antagonistas emequilibrio, tambem o equilibrio do jogo depende de uma tensao

os fenomenos socials surgem como alguma coisa abstracta e separada dos individuos.Abstracgoes que, por vezes, reiflca: nunca ultrapassa um estadio onde a «sociedade»e os «individuos» aparecem como entidades separadas e que procura reunir de novo,no final, por uma hipotese quase mistica. Esta critica e perfeitamente compativelcom o reconhecimento do elevado nivel intelectual do seu trabalho e dos avangoscientificos que se Ihe devem.

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entre dois con juntos de jogadores, ao mesrno tempo antagonistas einterdependentes, rnantendo um equilibrio dinamico entre si10.

A mecanica das configuragoes com um «equilibrio de tensao»,no seu centra, esta longe de ser simples. Talvez dois exemplosbastem para a esclarecer: num processo de jogo, o equilibrioflexivel de tensao nao pode ser produzido e conservado exactamenteao nivel justo, se uma das equipas e muito mais forte do que aoutra. Se for este o caso, a equipa mais forte tera exito provavel-mente com mais frequencia, a tensao do jogo — o «vigor do jogo»— sera relativamente baixo e o proprio jogo sera lento e sem vida,Mas seria um erro pensar que no estudo da dinamica de grupo deum jogo se esta preocupado, acirna de tudo, com questoes surgidasa partir das qualidades das equipas ou dos jogadores individuals.O que estudamos, em primeiro lugar, foi o desenvolvimento e a es-trutura do padrao de jogo enquanto tal. Num dado momento, estepadrao tern uma forma especifka assegurada por controlos a variosniveis. E controlado pelas organizagoes de futebol, Estado e auto-ridades locals, espectadores e equipas mutuamente, ou jogadoresa nivel individual. Neste contexto, nao e necessario enumera-los atodos ou analisar a sua ac<~ao reciproca. No discurso teorico, podemconsiderar-se apenas em termos de regras ou norrnas os controlosque preservam uma dada configuragao e, em particular^o equilibriode tensao de uma configuragao. Mas, como noutros casbs, as regras,e em especial as regras formais, sao apenas um dos «instrumentos»de controlo responsaveis pela relativa estabilidade dos grupos emtensao controlada. E sejam elas quais forem, regras ou normas degrupo, aqui ou em qualquer outro lugar, nao sao absolutas.

As regras ou normas possuem dispositivos para que o controlodas tensoes nao flutue fora e acima dos processes sociais como, porvezes, se sugere em discussoes actuais. A dinamica de grupo que asregras ajudam a manter pode, por seu lado, determinar se estasdevem conservar-se ou ser alteradas. O desenvolvimento dos regu-lamentos de futebol mostra, de forma notavel, como as modifica-goes das regras podem depender do desenvolvimento global daquilo

10Existe uma diferenga caracterfstka entre o equilibrio de tensao dos rnusculosantagonistas e dos jogadores adversarios num jogo. No caso dos musculos, um doslados descontrai-se enquanto o outro comec.a a flcar tenso. No caso dos jogadores,o caracter especifico do equilibrio de tensao deve-se ao facto de ambos os lados seencontrarem tensos.

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que regulamentam. A dinamica dessas configurates possui o quese pode chamar uma «16gica» propria. Assim, no futebol, o nfvelda tensao pode diminuir nao so devido as caracteristicas distintivasdos colectivos ou dos seus membros individuals mas tambem pelocon junto de caracteristicas da configuragao que formam entre si. Seexaminarmos o desenvolvimento de um jogo, este e um dosfenomenos que se encontram muitas vezes. Por exemplo, em 1925,a regra de fora de jogo mudou. Ate af a regra era esta: um jogadorso podia receber, segundo a lei, uma bola passada para si e para afrente por outro membro da sua equipa se, pelo rnenos, tresmembros da equipa oposta permanecessem entre ele e a balizaadversaria. Se menos de tres jogadores estivessem assim colocados,ele encontrava-se em fora de jogo e, neste caso, era atribuido umlivre ao adversario. Em 1925, o numero foi reduzido para dois.A elasticidade da regra antiga, explorada com grande pericia, con-duzira a uma situagao em que os empates se tornararn cada vezmais frequentes. O que aconteceu foi que o equilfbrio se tinhadeslocado excessivarnente a favor da defesa. Os jogos revelavamtendencia para se arrastarem sem qualquer resultado, ou as marcaseram demasiado baixas. O motivo nao se devia a qualquer quali-dade particular dos jogadores em termos individuals: (a conflgura-gao dos jogadores, mantida por uma variedade de contfolos, entreos quais assumiam posigao-chave os regulamentos formais, revela-va-se deficiente. Por esta razao, atraves de uma mudanga de regras,desfez-se a tentativa de estabelecer uma configuragao mais fluidados jogadores, que poderia restaurar o equilfbrio entre o ataque ea defesa.

Este e um exemplo de uma quantidade de polaridades que nofutebol, e, por certo, tambem em todos os outros jogos-desporto, seproduzem no quadro da configuragao definida no processo de jogo.Essas polaridades operam em estreita relagao entre si. De facto, umcomplexo de polaridades interdependentes criadas no padrao dejogo proporciona a principal forga motriz da dinamica de grupo deum jogo de futebol. De uma maneira ou de outra, todas contri-buem para a conserva^ao do «vigor» e o equilfbrio de tensao dojogo. Eis aqui uma lista de algumas delas:

1) A polaridade global entre as duas equipas opostas;2) A polaridade entre ataque e defesa;

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294 A DINAMICA DOS GRUPOS DESPORTIVOS

3) A polaridade entre cooperagao e tensao das duas equipas;4) A polaridade entre cooperagao de competigao dentro de cada

equipa.

A polaridade 4) pode expressar-se atraves de uma variedade demaneiras. Uma delas e a que se revela entre os membros indivi-duals da equipa e a equipa como um todo, apresentada nos seguin-tes exemplos:a) Nos anos de I860 e 1870, o drible, um gesto individual, era o

elemento fulcral do futebol. O equilibrio de tensao dinamicoentre os interesses em jogo foi articulado a favor dos individuos.Isso correspondia as caracterfsticas socials do jogo durante esteperfodo. Nessa fase, era um jogo realizado especialmente porantigos alunos das escolas piiblicas e por outras pessoas da classemedia e da classe superior, para o seu proprio prazer. Nas duasultimas decadas do seculo XIX, esta tecnica originou umamaneira diferente de jogar. A cooperagao da equipa acentuou-se a custa da criagao, nas competigoes, de oportunidades para osindividuos brilharem. Deste modo, o equilibrio entre interessesindividuals e interesses da equipa modificou-se. O drible desva-lorizou-se e a passagem da bola de um membro da equipa paraoutro passou a destacar-se. E possivel analisar com consideravelrigor as razoes desta mudanga. O aumento do numero deequipas, o estabelecimento de competigoes formais, o aumentode rivalidade competitiva entre as equipas e o facto inicial de sejogar para um publico que pagava para assistir aos jogos encon-travam-se entre elas.

b) Mesmo depois de o equilibrio verificado entre os interesses daequipa e de os interesses individuals se terem deslocado vinca-damente a favor dos primelros, a polaridade continuou a desem-penhar o seu papel. Qualquer padrao de jogo concede a algunsjogadores um consideravel campo de acgao para decidir. Defacto, sem a capacidade de tomar decisoes com rapidez, umindividuo nao pode ser um bom jogador. Mas, muitas vezes, ojogador tern de decidir entre a necessidade de cooperar com osoutros membros para o beneffcio da equipa e a de contribuirpara a sua reputagao pessoal e progresso. Em casos como este,a conceptualizagao actual e dominada por alternativas absolutascomo «egoismo» e «altruismo». Enquanto instrumentos de

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CAPtTULO VI 295

analise sociologica realista, pouco tern a recomenda-las. Comose pode verificar, pensar em termos de equilibrios e de polari-dades torna mais facil a compreensao daquilo que na realidadese observa.

Outras polaridades sao de um tipo um pouco diferente. Estessao alguns exemplos:

5) A polaridade entre o controlo externo dos jogadores a variosniveis (por dirigentes, capitaes, camaradas de equipa, arbitros,juizes de linha, espectadores, etc.) e o controlo que os jogadoresexercem sobre si proprios;

6) A polaridade entre a identificagao afectuosa e a rivalidade hostilpara com os oponentes;

7) A polaridade entre o prazer da agressao pelos jogadores indivi-duals e a limitagao imposta pelo padrao de jogo sobre esseprazer;

8) A polaridade entre a flexibilidade e a rigidez das regras.

Estes sao alguns aspectos do modelo teorico e alguns exemplosdo tipo de conceitos que emergem a partir do estudo das configu-ragoes do jogo. Podem contribuir para chamar a atengao sobrealgumas das caracteristicas distintas deste tipo de grupo. Estasdiferem dos tipos de grupo habitualmente utilizados como demons-tragao empirica para os estudos de pequenos grupos nao so porquesao grupos em tensao controlada mas, tambem, porque sao estru-turados e organizados de forma mais elaborada. Teorias que deri-vam de estudos de grupos constituidos ad hoc, estruturados de umaforma vaga e formados, em especial, com o objective de estudargrupos sao afectados, com frequencia, por uma confusao entrepropriedades de grupos, que sao devidas em grande parte as dosseus membros individuals, e propriedades inerentes a configuragaodas proprias pessoas. No caso de grupos estruturados e organizadosde forma mais elaborada, e mais facil determinar a dinamica ine-rente a conflguragao como tal — e distingui-la das variagoes devi-das as diferengas do nivel individual. E mais facil, por exemplo, nocaso do futebol, distinguir a dinamica que e propria a configuragaodo jogo das variagoes devidas as caracteristicas de diferentes nagoes,de diferentes equipas ou de diferentes jogadores.

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296 A DINAMICA DOS GRUPOS DESPORTIVOS

Os grupos constituidos ad hoc tern reduzida autonomia emrelagao a sociedade onde foram formados, e esta ausencia podeprejudicar a validade dos resultados do estudo desses grupos. Destemodo, pequenos grupos formados nos Estados Unidos com o objec-tive de estudar problemas de comando em geral podem fornecer,de facto, informagoes so sobre aspectos de comando nos EstadosUnidos. Saber ate onde experiencias similares realizadas, digamos,na Russia ou no Ghana produziriam resultados semelhantes e umaquestao em aberto.

Jogos como o futebol sao praticados por toda a parte da mesmamaneira e a dinamica configuracional de base e a mesma em todoo lado. Podem ser estudados como tal e, ao mesmo tempo, podemestudar-se as variagoes que surgem quanto ao modo de jogar de na-cionalidades diferentes, de equipas diferentes, de individuos dife-rentes. Como os grupos ad hoc, os grupos de desporto enquantooportunidade de estudo dos problemas de pequenos grupos, ou dedinamica de grupo em geral, tern limitagoes definidas. Entre elasencontram-se as limitagoes que se devem ao facto de os jogos pos-suirem, em grande parte, fins em si proprios. A sua finalidade, see que possuem uma finalidade, consiste em dar prazer as pessoas.Neste aspecto, sao muito diferentes dos agrupamentos de pessoasque geralmente se consideram pegas fundamentals da vida social eque sustentam, em correspondencia, uma posigao fundamental emsociologia, tais como fabricas, que tern o objective de produziremmercadorias, services, que possuem o fim de administrar proprie-dades ou diversas empresas, e outros, configurates de pessoasigualmente uteis que nao sao, de um modo geral, consideradascomo possuindo um fim em si mesmas ou se supoe darem prazeras pessoas. Isso coincide com o esquema de valores atraves do qualos sociologos procuram, muitas vezes, definir prioritariamente asorganizagoes e unidades sociais em geral atraves dos seus objecti-vos.

Mas se isto constitui uma limitagao de estudo dos jogos-des-porto — quando comparados com os das unidades sociais envolvi-das nas questoes serias da vida —, o facto de eles nao teremnenhum objectivo excepto, talvez, o de proporcionarem prazer e deserem, com frequencia, procurados como fins em si mesmos etambem uma vantagem. Pode servir como uma correcgao para osofisma teleologico ainda bastante disseminado no pensamento

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CAPITULO VI 297

sociologico. Isto pode ser descrito, de uma forma simplificada,como a confusao entre o nivel individual e o nivel de grupo. Arespeito dos jogos de futebol, esta distingao e bastante nitida. Osjogadores e as equipas tern objectives, de entre os quais marcargolos e um deles. O prazer de jogar, a excitagao dos espectadores,a esperanga de premios, podem ser outros objectives. Mas a conca-tenagao de acgoes intencionais tern como resultado uma configura-gao dinamica — num jogo — que e inutil. Isso pode apreciar-seassim e, em certa medida, foi o que aqui fizemos. Tal podia nao teracontecido se tivessemos atribufdo a configuragao dinamica que osjogadores formam entre si os objectivos individuals dos jogadores.

Saber ate onde e que isto e verdade no seio de outras conflgu-ragoes de pessoas nao e uma questao que necessite de ser aqui dis-cutida. Mas pode dizer-se que mesmo organizagoes do Estado,igrejas, fabricas e outras configuragoes de tipo mais serio, quaisquerque sejam os objectivos das pessoas que as constituem, possuemtambem fins em si mesmas e uMa dinamica propria. Afinal, quaissao as finalidades das nagoes? Nao e totalmente frivolo afirmar queate elas se parecem com um jogo efectuado pelas pessoas, para o seuproprio bem. Desprezar este aspecto, concentrando prioritaria-mente a atengao nos seus objectivos, implica esquecer o facto deque, como no futebol, e da propria configuragao dinamica daspessoas que dependem, em qualquer momento, as decisoes, as in-tengoes e os movirnentos dos indivfduos. Isto e assim, em particularno caso das tensoes e de conflitos. Com frequencia, estes sao expli-cados em termos de intengoes e de objectivos de uma ou de outraparte. Talvez os sociologos estivessem mais aptos a contribuir paraa compreensao destas tensoes e conflitos, que ate agora demonstra-ram ser incontrolaveis, se os investigassem como aspectos naointencionais da dinamica de grupos.

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CAPITULO VII

A dinamica do desporto moderno: notas sobre a lutapelos result ados e o significado social do desporto

Eric Dunning

1

Introdugao

Este trabalho trata da orientagao que considero ser dominanteno desporto moderno, a dimensao mundial: a tendencia no sentidode urna crescente competitividade, seriedade no modo de envolvi-mento e orientagao para os resultados1, observada em todos osmveis de participate mas, principalmente, no desporto de altonivel. Dito de outra maneira, a orientagao a que me refiro abrangea gradual e, tudo parece indica-lo, inevitavel erosao das atitudes,valores e estruturas «amadoras» e a sua correlativa substituigao poratitudes, valores e estruturas que sao «profissionais» em qualquersentido do termo. Analisada ainda de outro angulo, e uma orien-tagao segundo a qual o desporto se tern transformado, por todo omundo, de instituigao marginal e pouco valorizada em instituigaocentral e muito mais valorizada, uma instituigao que para muitaspessoas parece ter um significado religiose ou quase religioso, namedida em que se tornou uma das principals, senao a principal,fonte de identificagao, significado e gratificagao das suas vidas.

Na Gra-Bretanha desenvolveu-se, em varias ocasioes, resisten-

^ste artigo foi publicado, pela primeira vez, no Sportwissenschaft, Vol. 9,1979,4, sob o titulo «The Figurational Dynamics of Modern Sport. Notes on the Socio-genesis of Achievement-Striving and the Social Significance of Sport». Baseia-se naanalise apresentada por Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen andPlayers, Oxford, 1979. Contudo, a analise aqui apresentada ultrapassa, de variasformas, aquela que af foi desenvolvida.

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300 A DINAMICA DO DESPORTO MODERNO

cia a esta orientagao, talvez de maneira mais notavel atraves dastentativas efectuadas desde o final do seculo XIX para manter oraguebi como um desporto acima de tudo de praticantes amadores,baseado na organizagao voluntaria e num quadro de jogos «ami-gaveis», isto e, um desporto em que as regras se destinavam agarantir o prazer dos jogadores mais do que o dos espectadores, emque a organizagao nos clubes, aos niveis regional e nacional, severificava em termos de ocupagao nao remunerada e onde nao exis-tia uma estrutura de competigao formal, de «tagas» e «ligas».Contudo, a tentativa para manter semelhante estrutura foi um fra-casso. Apesar de arduos esforgos dos grupos dirigentes, os encontrosde alto nivel sao agora realizados perante grandes multidoes eforam introduzidas varias regras orientadas para os efeitos causadosno espectador. Todos os anos os clubes participam tambem nacompetigao da Taga John Player e ainda numa quantidade deoutras tagas locals, e existe um sistema de «tabela de merito», oqual constitui ligas em tudo menos no nome. Alem disso, o orgaode controlo nacional, a Rugby Football Union*, e muitos outrosclubes dos niveis mais elevados dependem financeiramente dasreceitas provenientes da assistencia aos encontros e de patrocinioscomerciais. A RFU** tambem empregava um grande numero defuncionarios permanentes e haviam repetidos rumores de jogadoresque eram pagos. Em poucas palavras, neste como noutros casos, aresistencia foi eliminada, facto que sugere que a orientagao no sen-tido da crescente seriedade, ou, em alternativa, no sentido da «au-sencia progressiva de espirito amador» no desporto, e um proces-so social inevitavel2.

Fazer esta afirmagao nao e dizer que a resistencia morreu porcompleto. O conflito relativo ao problema de o desporto ser orien-tado para o divertimento, de ser amador, em oposigao a orientagaodominada pela preocupagao quanto a resultados, das formas profis-sionais e da concepgao de desporto permanece no raguebi e noutrasmodalidades, comprovando, por isso, que este processo nao e ape-nas uma realidade do passado. Alias, para alem de ser inevitavel eprogressivo, o processo foi e continua a ser confiituoso, facto que

2Para uma completa documentagao e analise deste processo, ver ibid.*Uniao de Raguebi. (N. da T.)**Sigla da Uniao de Raguebi. (N. da T.)

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CAPfTULO VII 301

constitui um exemplo do que Elias chamaria um processo social«cego» ou «nao planeado» de longa duragao3. Ou seja, nao cons-titui o resultado de acgoes intencionais de qualquer individuounico ou grupo, mas, antes, o resultado inesperado do entrelagar deacgoes intencionais dos membros de varios grupos interdependen-tes, ao longo de muitas geragoes.

O que pretendo nesta comunicagao e esbogar as linhas gerais deurna explicagao deste processo de longa duragao, isto e, uma inter-pretagao da forma como este foi e continua a ser, social ou estru-turalmente, produzido. O que significa, por um lado, que ireiprocurar faze-lo em termos da estrutura imanente e da dinamica darelagao social per se e, por outro, evitando tres especies de explica-goes sociologicas que sao vulgares, nomeadamente: 1) explicatesem termos de principles psicologicos ou de «acgao», ignorando ospadroes de interdependencia em que os seres humanos vivem; 2)explicates em termos de ideias ou de crengas, que sao tratadas sobo ponto de vista conceptual como sendo «desinseridas», isto e,separadas dos quadros socials em que as ideias sempre se desenvol-veram e expressaram; e, 3), explicates em termos de forgas socialsabstractas e impessoais — por exemplo, forgas «economicas» —que sao reificadas e consideradas como se existissem de maneiraindependente dos seres humanos independentes que as originam.Para realizar esta tarefa irei aplicar o metodo «configuracional»desenvolvido por Elias4, e para explicar o que isso significa come-garei por rever o artigo sobre a «Dinamica dos Grupos Desporti-vos» que Elias e eu publicamos em 1966.

A «dinamica dos grupos desportivos»uma breve revisao

A questao fundamental deste artigo e o facto de os grupos dodesporto constituirem um tipo de configuragao social e de a suadinamica ser mais bem conceptualizada como equillbrio de tensao,

*The Civilizing Process, Oxfofd, 1978.4Wkat is Sociology?, Londres, 1978.

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desencadeado entre opostos, no seio de um complexo global depolaridades interdependentes. O que significa que, considerado naperspectiva da sociologia, um desporto ou um jogo e uma «estru-tura» ou «padrao» que um grupo de seres humanos interdependen-tes forma entre si. Esta estrutura, padrao ou, de forma mais correc-ta, configuragao compreende: 1) dois individuos ou equipas quecooperam uma com a outra numa rivalidade mais ou menosamigavel; 2) agentes de controlo, como arbitros e juizes de linha;e, 3), por vezes, mas nem sempre, um numero maior ou menor deespectadores. Contudo, a configuragao imediata formada por aque-les que participam directamente no jogo e nele se encontrampresentes constitui parte de uma configuragao mais alargada quecompreende, a um nivel, a organizagao do clube que escolhe asequipas e se responsabiliza por questoes como o fornecimento e amanutengao de facilidades de jogo, e, a outro nivel, os orgaos le-gislativos e administrativos que formulam as regras, asseguram edeterminam os controlos oficiais e organizam o quadro competitivoglobal. Por seu lado, esta configuragao constitui uma parte daconfiguragao mais vasta que e composta pelos membros da socie-dade como um todo e, por sua vez, a configuragao da sociedadeexiste tambem num quadro internacional. Em poucas palavras,desportos e jogos sao organizados e controlados, bem como obser-vados e praticados, enquanto configuragoes sociais. Alias, nao seencontram socialmente separados e desinseridos sem relagao com aestrutura mais vasta de interdependencias sociais, mas intimamenteentrelagados, muitas vezes de forma complexa, com a estrutura dasociedade em geral e com a maneira como esse tecido e entrelagadono ambito da estrutura das interdependencias sociais.

O conceito da dinamica de grupos de desporto refere-se a jogoscomo processos, isto e, ao padrao fluido e dinamico formado, porassim dizer, como «corpo e alma» pelos participantes interdepen-dentes no jogo em desenvolvimento. E um padrao que os pratican-tes formam com todo o seu ser, ou seja, intelectual e emocional, enao so fisicamente. O conceito de equilibrio de tensao baseia-senuma analogia organica. Deste modo, exactamente como a mobi-lidade dos membros de um animal depende da tensao existenteentre dois grupos de musculos equilibrados que sao, contudo,antagonistas, consideramos tambem que o processo de jogo de-pende da tensao entre dois jogadores ou grupo de jogadores, ao

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CAPITULO VII 303

mesmo tempo antagonistas e interdependentes, que se mantementre si num equillbrio dinamico. E este equillbrio de tensao econceptualizado de uma maneira mais correcta se o considerarmoscomo um equillbrio desencadeado entre opostos, num complexoglobal de polaridades interdependentes. Entre estas — embora istonao pretenda constituir uma lista exaustiva — especiflcamos asseguintes:

1) A polaridade global entre duas equipas em oposigao;2) A polaridade entre ataque e defesa;3) A polaridade entre cooperagao e tensao entre as duas equipas;4) A polaridade entre cooperagao e competigao em cada equipa;5) A polaridade entre o controlo externo dos jogadores, a varios

niveis (por exemplo, dirigentes, capitaes, colegas de equipa,arbitros, juizes de linha, espectadores e por ai adiante), e ocontrolo flexivel que o jogador exerce sobre si proprio, quer sejade um ou de outro sexo;

6) A polaridade entre identificagao afectuosa e rivalidade hostil emrelagao aos oponentes;

7) A polaridade entre o prazer da agressao manifestada pelos joga-dores e a limitagao imposta pelo padrao de jogo sobre esseprazer;

8) A polaridade entre flexibilidade e rigidez das regras.

Segundo a nossa hipotese, e o equillbrio de tensao entre pola-ridades interdependentes deste tipo que determina o «vigor» deum jogo, isto e, o facto de se revelar excitante ou aborrecido,permanecer um «combate simulado» ou irromper num confrontoserio. De acordo com a nossa concepgao, encontra-se tambemimplicito que semelhante equillbrio de tensao e, por um lado, umaconsequencia da dinamica relativamente autonoma de configura-goes de jogos especificas e, por outro, uma consequencia da maneiracomo essas configuragoes estao articuladas na estrutura mais vastadas interdependencias sociais.

Para explicar tal concepgao, este debate sera suficiente para osobjectivos presentes. Penso que e frutuoso, ainda que, em termosretrospectives, me surpreenda, o facto de o problema depender dehipoteses que derivam de uma concepgao amadora do desporto,daquilo que Elias teria considerado como uma «avaliagao he-

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304 A DINAMICA DO DESPORTO MODERNO

teronima»5 especifica. Estas hipoteses, embora nao nos desviem docaminho, limitam a nossa visao e impedem-nos de desenvolver maisa analise, pelo menos, num aspecto importante. Assim, para odemonstrar, e necessario, em primeiro lugar, recordar quais sao asnossas finalidades ao escrevermos sobre a dinamica dos grupos dodesporto. Ao realizar semelhante trabalho nao procuramos contri-buir apenas para a sociologia do desporto mas, antes, pretendemossugerir aos sociologos, de uma maneira geral, que os grupos dodesporto podem servir como um meio de esclarecimento acerca dosperigos que sobrevem, em primeiro lugar, do facto de se tratarconflito e consenso como opostos grosseiramente dicotomicos e, emsegundo lugar, de se praticar o sofisma teleologico na concepgao dadinamica de grupos, de atribuir «finalidades» a constru^oes ideo-logicas sociais reificadas. Foi no decurso de uma discussao sobreestes problemas que se tornou nitida e discutivel a nossa dependen-cia dos valores amadores. Deste modo, numa passagem ondeopunhamos os grupos do desporto aos grupos dos sectores indus-trials, administrativos e de outras associagoes envolvidos comaqueles que sao considerados, em geral, os aspectos «serios» davida, escrevemos que a «finalidade» dos grupos do desporto, «setern alguma, e dar prazer as pessoas»6. E prosseguimos rnencionan-do, como outros objectivos ou fins das pessoas envolvidas nosgrupos do desporto, a luta por recompensas de tipo financeiro oude estatuto e a possibilidade de proporcionar excitagao aos espec-tadores. Mas nao discutimos o facto de estas finalidades envolveremdiferentes fbrmas de Valencia, isto e, de ligagoes ou, simplesmente,de relagoes entre o grupo de jogo imediato e os outros. Assim,tendo considerado todos os aspectos, a procura do prazer e dirigidapara si proprio ou egocentrica, enquanto a luta pelo premio ea possibilidade de proporcionar excita^ao aos espectadores e dirigi-da para os outros e em diferentes sentidos. Isto sugere tres coisas:

5O que significa que parte de uma avalia<~ao que reflecte os interesses e os valo-res de grupos especffkos dentro da sociedade global e que nao foi criada de maneiraautonoma por nos, tendo em vista objectivos de analise sociologica. Ver o artigo deNorbert Elias «Problems of Involvement and Detachment», Britsh Journal of Socio-logy, Vol. 7, 1956, pp. 226-52.

6Norbert Elias e Eric Dunning, «The Dinamics of Sport Groups with SpecialReference to Football», British Journal of Sociology, Vol. 17, 1966, p. 79, e Cap. Vdeste volume.

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CAPITULO VII 305

1) que estas finalidades emergem como o principal objective dodesporto no quadro de diferentes padroes de interdependencia; 2)que podem ser incompativeis em circunstancias especificas e, destemodo, fonte de tensao e de confiito; e, 3), que a lista de polaridadesinterdependentes envolvida na dinamica dos grupos do desportopode ser a seguinte: a) a polaridade entre os interesses dos jogado-res e os interesses dos espectadores; (b) a polaridade entre «serie-dade» e «jogo».

Como espero demonstrar, estas duas polaridades estao intima-mente relacionadas. Elas sao tambem cruciais na medida em queexercem efeitos ramificadores sobre outras polaridades interdepen-dentes envolvidas na dinamica de um jogo. For conseguinte, se osjogadores participam num jogo como se fosse algo de serio, o nivelde tensao sera elevado e, para alem de um certo nivel, a incidenciade rivalidade hostil, quer dentro das equipas quer entre etas, pareceser igualmente elevada; isto e, de combate simulado, o jogo parecetransformar-se em confronto «real» e os jogadores sao responsaveispor transgressao das regras, por realizarem actos de jogo «desleal».Ora, na medida em que os espectadores se identificam a serio comas equipas que apoiam, encontram-se menos sujeitos a enfrentar aderrota com serenidade de espirito, e podem agir de forma a pro-curar afectar o resultado do desafio. Deste modo, uma vez atingidoum determinado nivel, ate podem invadir o campo numa tentativapara suspender por complete o encontro.

Algumas teorias do desporto moderno:Uma breve critica

No sentido da elaboragao de uma teoria sociologica do despor-to, a polaridade entre os interesses dos jogadores e os dos especta-dores e a polaridade entre «seriedade» e «jogo» constituiram jamateria de reflexoes, entre as quais as mais notaveis foram: a pers-pectiva historico-filosofica de Huizinga7; a perspectiva interaccio-

7J. Huizinga, Homo Ludens: a Study of the Play Element in the Culture, Londres,1949.

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nista simbolica de Stone8; e a orientagao marxista de Rigauer9.Cada um deste autores afirma, a sua maneira, que o equillbrio entreestas duas polaridades foi perturbado no desporto moderno, e umarevisao critica do que escreveram podera, assim o espero, forneceruma base de demonstragao da superioridade da abordagem configu-racional de Elias, enquanto meio de conseguir uma analise «ade-quada ao objecto», aquilo que constitui uma orientagao principalno desporto moderno, isto e, uma analise que descreva e expliqueesta orientagao como tal, sem ornamento ideologico e distorgoes.

O ponto principal da reflexao de Huizinga situa-se no facto deas sociedades ocidentais, antes do seculo XIX, conservarem umequillbrio entre as polaridades de seriedade e de jogo. Contudo,Huizinga afirma que a seriedade comegou a preponderar com aindustrializagao, o desenvolvimento da ciencia e a emergencia demovimentos sociais no sentido da igualdade. Aparentemente,o facto de o seculo XIX ter presenciado o crescimento dos despor-tos em larga escala pareceria contradizer esta tese, mas Huizingarefere que, pelo contrario, este facto antes parece confirma-la, comoo declara, «o antigo factor-jogo sofre uma atrofia quase completa».Como parte do declmio do elemento-jogo na moderna civilizagaoem geral, os desportos experimentaram aquilo que Huizinga de-signa como uma «deslocagao fatal no sentido da seriedade». Comoassinala, a distingao entre amadores e profissionais e o indicadornitido desta orientagao. Isto porque aos profissionais falta «espon-taneidade e despreocupagao» e, na verdade, ja nao jogam enquanto,ao mesmo tempo, a sua execugao e superior, levando os amadoresa sentirem-se inferiores e a empenharem-se num acto de imitagao.Para Huizinga, estes dois grupos

afastam o desporto para cada vez mais longe da propria esfera dojogo, ate que ele se torna uma coisa sui generis, nem jogo, nem serio.Na vida social moderna, o desporto ocupa um lugar a margem eseparado do processo cultural... tornou-se profano, «impio» sobtodas as formas e sem liga^ao organica com a estrutura da sociedade,insignificante quando determinado pelo governo... Por mais impor-

8G. P. Stone, «American Sports: Play and Dis-Play» em Eric Dunning (ed.), TheSociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971.

9B. Rigauer, Sport und Arbeit, Franckfurt, 1969.

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CAPI'TULO VII 307

tante que possa ser para os jogadores ou para os espectadores, torna-se esteril10.

Mas apesar de o relacionar, numa perspectiva descritiva, comurna orientagao geral e se preocupar com o que considera os efeitosdestrutivos da interacgao entre amadores e professionals, Huizinganao conseguiu referir-se a dinamica, a sociogenese da suposta ten-dencia no sentido da «esterilidade», «seriedade» e «caracter profa-no» do desporto moderno. Este problema e tratado de maneiramais adequada por Stone, que modifica as afirmagoes de Huizinga,sugerindo que os desportos modernos estao sujeitos a uma dupladinamica, resultante, por um lado, da maneira como estes saoenvolvidos nos «confrontos, tensoes, ambivalencias e anomalias» dasociedade mais alargada e, por outro, de algumas caracteristicasinerentes as suas estruturas. Neste ambito, apenas nos preocupa oultimo aspecto desta analise.

«Todo o desporto», afirma Stone, «e afectado pelos principiosantinomicos de jogo e de espectaculo», isto e, encontra-se orientadode modo a originar satisfagao, quer nos jogadores quer nos espec-tadores. Mas o «espectaculo»* para os espectadores e, de acordocom Stone, a «ausencia de jogo», a destruigao do caracter de jogono desporto. Sempre que grande numero de espectadores assiste aum acontecimento desportivo, este transforma-se num espectaculo,realizado em fungao dos espectadores e nao dos participantes direc-tos. Os interesses dos primeiros precedem os interesses dos ultimos.O prazer de jogar e subordinado a realizagao de actos que agradema multidao. O desporto perde assim a sua incerteza, a espontanei-dade e o caracter de divertida inovagao, torna-se um tipo de ritual,previsivel, ate mesmo predeterminado nos seus resultados.

A analise de Rigauer esta muito dependente das hipotesesmarxistas quanto ao cunho de exploragao do trabalho nas socieda-des capitalistas, uma categoria que este autor alarga a sociedadescomo a Uniao Sovietica devido ao facto, presume-se, de o autor asconsiderar, na sua propria natureza, um «capitalismo de Estado» ou«um Estado capitalista», e nao essencialmente diferentes das socie-

l°Homo Ludens, p. 223 e seguintes.*Jogo de palavras em ingles sem inteira correspondencia em portugues: display

designa exibigao, espectaculo, e dis-play, ausencia ou destruigao do jogo. (N. da T.)

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dades capitalistas de um tipo «mais puro». Rigauer afirma que odesporto e um produto «burgues», um tipo de recrea^ao procuradade inicio por membros da classe dirigente para o seu proprio prazer.Para estes, o desporto opunha-se ao trabalho, mas o aumento daindustrializagao e a divulgagao do desporto entre as camadas maisbaixas da hierarquia social levou a que assumisse caracterfsticassemelhantes as do trabalho. Deste modo, Rigauer defende que odesporto passa a caracterizar-se, tal como as formas de trabalho nassociedades industrials, pela luta pelos resultados. Isto nota-se nomovimento desencadeado para bater recordes, nas horas de treinofatigante realizado para o efeito e na aplicagao de metodoscientificos, como o treino «intervalado» e o «circuito» de treino,que constituem replicas do caracter de «alienagao» e de «desuma-nizagao» de uma linha de montagem. Ate mesmo nos desportos«individuals», o papel dos atletas tern sido reduzido a um simpleselemento no ambito de uma constela^ao global de massagistas,treinadores, dirigentes e medicos, tendencia que e visfvel de formadupla nas equipas de desportos onde o atleta moderno e obrigadoa situar-se no quadro de uma divisao de trabalho fixa e a agir deacordo com as exigencias de um piano tactico prescrito. O proprioatleta pouco representa na elaboragao desse piano.

O seu campo de ac^ao para o exercicio de iniciativa e, porcorrespondencia, limitado. Isto ainda e mais evidente no caso daadministrate dos desportos, porque, cada vez mais, sao os fun-cionarios a tempo inteiro, e nao os proprios atletas, que decidem asquestoes da politica a seguir. A consequencia, afirma Rigauer, e arestrigao constante do campo de acgao para a tomada de decisoesindividuals e o dominio de uma elite burocratica sobre a maioria.

Deste diagnostico concluiu-se que o desporto e, cada vez mais,incapaz de actuar como um meio de proporcionar alfvio para astensoes do trabalho. Tornou-se, afirma Rigauer, exigente, orientadopara os resultados e alienante. A crenga de que o desporto actuacomo uma oposigao ao trabalho sobrevive, mas e uma «ideologiadisfargada» que esconde dos participantes a sua fungao «real»,nomeadamente a de reforgar, na esfera do lazer, uma etica de tra-balho duro, de resultados e de lealdade de grupo que e necessariaaos designios de uma sociedade industrial avangada. Nesta linha, deacordo com Rigauer, o desporto contribui para manter o status quoe para apoiar o dominio da classe dirigente.

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Estas tres analises —que o desporto se desenvolve de um modomais «serio»; que o «espectaculo» se torna predominante em rela-gao ao «jogo» e o destroi; e que o desporto se esta a confundir como trabalho — parecern, a primeira vista, apropriadas como descri-£des de uma orienta<~ao principal do desporto moderno. Contudo,cada uma destas analises e trespassada por elementos de valorpreconcebidos, lan^ando duvidas quanto ao seu rigor. Por exemplo,e dificil acreditar que os desportos tivessem conseguido manter asua popularidade e, na verdade, aumenta-la, como de facto sucedeuem todo o mundo, se, de acordo com as aflrmagoes de Huizingao factor jogo se tivesse atrofiado ou se, como sustenta Rigauer, osdesportos se tivessem tornado tao alienantes e repressivos como otrabalho ou ainda, tal como Stone o pretenderia, o equilibriohouvesse sido tao seriamente perturbado. Evidentemente, e possivelque outras formas de obrigagao e, ou tambem, de recompensa, paraalem das que dizem respeito ao prazer pessoal directo, possam terdesempenhado um papel importante na sua propagagao, reprodu-zindo por isso, em certa medida, os efeitos perniciosos da crescenteseriedade do mundo envolvente. Nos argumentos apresentadosmais adiante neste trabalho esta implfcito que este equilibrio deorientagoes opostas ocorreu de facto. Mas, por agora, e suficientenotar apenas que Huizinga, Stone e Rigauer nao dedicaram algumaatengao a esta possibilidade.

Alias, Huizinga e urn romantico que anseia por uma sociedade«organica». Na sua analise esta tambem implfcito que a «democra-tizagao» dos desportos e a principal razao da sua «decadencia». Emresumo, sugere que a criatividade e os elevados padroes morais saorestritos as elites. A sua critica dos desportos modernos, embora oexagere, atinge os seus objectivos, em particular a sua afirma^aoquanto a ocorrencia de uma «deslocagao no sentido da seriedade».Apesar disso, para alem do facto de ter relacionado o desporto como que considera ser uma tendencia geral, nao efectua nenhumatentativa para analisar a sociogenese desta suposta transformagao,nem para a relacionar rigorosamente com as suas fontes sociaisestruturais,

Tais consideragoes podern aplicar-se a critica de Rigauer. Esteautor nao esboga qualquer tentativa para analisar de forma empiricaa maneira como teria sido provocada a alegada correspondenciaestrutural entre o desporto e o trabalho, nem estabelece distingoes,

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quanto a este aspecto, entre formas de trabalho, formas de desportoe paises diferentes, nem tao-pouco faz qualquer tentativa para de-terminar se os diferentes grupos sao proponentes, por um lado, devalores orientados para os resultados ou, por outro, de valores queacentuam o prazer, conseguido, o caracter de lazer do desporto.Nao procura documentar de forma empirica as alteragoes que,como afirma, teriam ocorrido ao longo do tempo no equilibrioentre esses valores. Em vez disso, traga apenas um quadro semexpressao, afirmando que os desportos, em todos os paises indus-trials, desenvolveram caracteristicas semelhantes ao trabalho e, porisso, servem na mesma medida os interesses dos dirigentes. Aindaque, tal como Huizinga, coloque o acento nos efeitos perniciosos dademocratizagao dos desportos, a analise de Stone e, numa perspec-tiva sociologica, mais satisfatoria. Contudo, ha razao para acreditarque a sua analise do equilibrio entre «jogo» e «espectaculo» naoatinge o fulcro do problema. Sob o ponto de vista configuracional,esta nao e apenas uma questao de presenga ou de ausencia deespectadores ou, no caso de os ultimos se encontrarem presentes, dainteracgao entre eles e os jogadores, mas, de forma decisiva, depadroes de interdependencia entre os grupos participantes. Deste modo,a presenga dos espectadores num acontecimento desportivo podeinduzir os jogadores a empenharem-se num espectaculo, mas naoos pode obrigar a faze-lo. Num desporto, e mais provavel que oelemento jogo seja seriamente ameagado quando os jogadores setornam dependentes dos espectadores — ou de acgoes externas, taiscomo interesses comerciais de grupos ou do Estado —, de recom-pensas financeiras e de outras. Nestas condigoes, quer se trate deum desporto abertamente profissional ou dito amador, as pressoesno sentido de que os interesses dos espectadores assumam um papelimportante, transformando o «jogo» em «espectaculo», parecemser inevitaveis.

De facto, ao examinar o desenvolvimento do desporto moderno,nem Huizinga, nem Rigauer, nem Stone trataram de forma satis-fatoria a dinamica desse processo. As suas analises sao curiosa-mente, de certo modo, abstractas. Cada uma delas reclama umatendencia relacionada com a industrializagao, mas dedicam dimi-nuta ou nenhuma atengao a descoberta dos interesses de grupo oua ideologia. Nas suas analises, quase parece — isto e verdade, emespecial, para Huizinga e Rigauer — que os antigos valores e

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CAPlTULO VII 311

formas de desporto estariam a extinguir-se sem conflito. Espero queuma analise configuracional desta tendencia demonstre que seme-Ihante conceptualizagao e demasiado simplificada, sejam quais fo-rem os seus meritos como primeira tentativa de elabora^ao de umateoria sociologica da situagao dominante no desporto moderno.

A seguir, procuro sugerir que a crescente seriedade do desportomoderno pode ser atribuida, em larga medida, a tres processosinter-relacionados, nomeadamente a formagao do Estado, a demo-cratizagao funcional e a divulga^ao do desporto atraves do aumentoda rede de interdependencias. Os dois primeiros sao, e claro, pro-cessos estruturais profundos, entrelagados com a extensao das ca-deias de interdependent por meio das quais Elias explica, emespecial, a sociogenese do processo de civilizagao11.

Isto sugere que pode existir uma ligagao entre o processo decivilizagao e a tendencia para a crescente seriedade assinalada nasformas de participagao no desporto; por exemplo, esta pode terresultado, em parte, da socializagao operada no quadro dos padroesmais restritos dos sistemas modernos de interdependencias sociais.O individuo moderno mais rigoroso e civilizado estara menos aptoa participar, de modo espontaneo e sem inibigoes, no desporto doque os seus antepassados, que viveram num sistema de interdepen-dencias sociais menos complexo e menos constrangedor. Pareceaceitavel defender que isto seja assim. Apesar disso, continua a sernecessario descobrir que ligagoes existiam precisamente entre acrescente seriedade verificada nas formas de participagao, por umlado, e a formagao do Estado, a democratizagao funcional e oprocesso de civilizagao, por outro. Continua, tambem, por demons-trar a maneira como esta tendencia se encontrava relacionada coma expressao internacional do desporto e a forma como estes proces-sos estruturais profundos podem fornecer uma explicagao maissatisfatoria do que a que foi dada por Huizinga, Rigauer e Stone12.

UO termo «democratizagao funcional» foi, de facto, forjado mais tarde por Eliaspara representar de forma mais adequada aquilo a que inicialrnente se havia referidosimplesmente como «tensao estrutural crescente a partir de baixo».

12Penso que a formagao do Estado, a democratizagao funcional e o processo de ci-vilizagao podem explicar, tambem, esta tendencia de maneira mais satisfatoria do quea hipotese de Weber desenvolvida a este respeito; por exemplo, de que pode existiruma Wahlverwandtschaft ou uma «afinidade de eleigao» entre o protestantism© as-cetico e serio e a participagao nos desportos segundo formas orientadas para os

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E para a primeira destas tarefas que me oriento, a partir destemomento.

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Uma analise configuracional da tendenciapara a crescente seriedade no desporto

No sentido de proceder a demonstragao, reflectirei, em primei-ro lugar, sobre o problema do ethos amador e procurarei explica-lonuma perspectiva sociogenetica, preocupando-me tambem com asua dissolugao, isto e, com a tendencia para a crescente seriedade nodesporto. Analisarei entao, de forma breve e em termos gerais, odesporto na Gra-Bretanha pre-industrial, a fim de mostrar as razoespor que foi possfvel, em semelhante configura^ao social, que gruposde todos os niveis da hierarquia social acedessem de modo equili-brado a formas de participate nos desportos «dirigidos para siproprio» ou «egocentricos», isto e, as razoes que os levaram aparticipar em desportos por divertimento. A seguir, tentarei de-monstrar por que motivo, com a emergencia dos Estados nacionais,urbanos e industrials, as formas de desporto mais «dirigidas paraos outros» se orientaram para os resultados e se desenvolveramesforgos no sentido da luta e da identidade e de recompensas pecu-niarias. Finalmente, analisarei aquilo que considero ser o crescentesignificado social do desporto e o papel que representou, nesteprocesso social global, a sua divulga^ao a nivel internacional.

O ethos amador e a ideologia desportiva dominante na Gra-

resultados, da mesma rnaneira que Weber aflrmava ter existido semelhante rela^aoentre o protestantismo ascetico e o «espirito do capitalismo». A priori', semelhantehipotese e plausfvel, mas conduz a diflculdades como a que resultou, pelo menos emInglaterra, de os protestantes asceticos terem procurado banir totalmente desportose passatempos. De qualquer modo, a hipotese de Elias e mais implicita e podeexplicar potencialmente, a qualquer nivel, a etica protestante numa perspectiva so-ciogenetica. Alias, com a dissoluc.ao e transcendencia, em primeiro lugar, da dico-tomia entre «o material» e o «ideal» e, ern segundo lugar, da dicotornia entre«causas» e «efeitos» — com a sua enfase na liga^ao ou nas constelac^oes de causas ede efeitos que interagem ou, de modo mais precise, com a sua preocupagao com oque e especificamente social, isto e, a dinamica das relates das configura^oes sociais.O metodo de Elias nao conduz as diflculdades metodologicas insuperaveis que aabordagem de Weber ocasiona.

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CAPfTULO VII 313

-Bretanha moderna e penso que estarei certo ao afirmar que e a dosgrupos dirigentes do desporto em todo o mundo, por exemplo, osdo Comite Olimpico Internacional e das suas varias delegatesnacionais. O componente principal deste ethos e o ideal da praticade desportos «por divertimento». Outros aspectos, como o fairplay, a aderencia voluntaria as regras e a participate desprovida dequalquer interesse pecuniario sao, no essencial, aspectos subordina-dos, designados no sentido de facilitar a concretizagao desse fim —fazer das provas desportivas «combates simulados», atraves dosquais se pode dinamizar a excita^ao. O primeiro exemplo queencontrei do uso explicito deste ethos foi na crftica da tendenciapara a crescente seriedade no desporto surgida no livro de Trollopepublicado no ano de 1868:

[Os desportos] estao a tornar-se excessivos e os homens que ospraticam permitiram que Ihes fosse lembrado que o sucesso vulgarnao vale nada... Tudo isto provem do excesso de entusiasmo sobre oassunto, do desejo de alcangar com demasiada perfeigao um objectivoque, para ser agradavel, deveria ser um prazer e nao um negocio...[Esta] e a rocha contra a qual os nossos desportos podem talveznaufragar. Sempre que se torne pouco razoavel nas suas despesas,arrogante nas suas exigencias, imoral e egoista nas suas tendenciasou, pior do que tudo, pouco limpo e desonesto no seu movimento,desencadeara contra si a opiniao publica, face a qual sera incapaz dese manter13.

Evidentemente, seria provavel encontrar exemplos anteriores,mas esta mobilizac,ao dos valores amadores, com o acento tonico noprazer, como um ingrediente essencial do desporto surgiu numestadio inicial do desenvolvimento das modernas formas de despor-to, num tempo em que, acima de tudo, o desporto profissional, talcomo o conhecemos hoje, dificilmente existia. Entao era possivel aalguns homens ganhar a vida de um modo precario, como pugilis-tas profissionais, joqueis e jogadores de criquete, mas o facto deestes serem apenas um punhado de individuos sugere que a criticade Trollope era dirigida, em particular, a orientagao para a serie-dade verificada no desporto amador. E e possivel que um dos seusprincipals alvos fosse aquilo a que os historiadores chamaram o

13A. Trollope, British Sports and Pastimes, Londres, 1868, pp. 6-7.

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314 A DIN AMIGA DO DESPORTO MODERNO

«culto dos jogos nas escolas publicas»14, um movimento que envol-via cinco componentes principais: 1) a tendencia para nomear epromover pessoal de acordo com um criterio desportivo mais doque segundo um criterio academico; 2) a selecgao de prefeitos, istoe, dos rapazes que assumiam os comandos nas escolas, com base,em especial, na capacidade demonstrada no desporto; 3) a elevagaodo desporto a uma posigao dominante e, em certos casos, proemi-nente, no curriculo; 4) a racionalizagao educativa do desporto, emparticular das equipas, como um instrumento de treino do caracter;e, 5), a participate de membros do pessoal docente na organizagaoe nos jogos dos seus alunos. E provavel que semelhante movimentoso pudesse ter nascido nas escolas da elite, na maioria das quais osalunos nao dependiam de uma educagao academica para as suascarreiras futuras. Mas, para os nossos objectivos presentes, isso emenos relevante do que o facto de o culto dos jogos nas escolaspublicas demonstrar, de forma nitida, que a tendencia para a cres-cente seriedade no desporto na Gra-Bretanha foi, nos seus estadiosiniciais, um fenomeno relacionado com o desporto amador e naocom o desporto profissional, e que, de inicio, nao resultou do con-flito entre amadores e profissionais alegado por Huizinga. De factogostaria de apresentar a hipotese de que o ethos amador se encon-trava articulado a uma ideologia oposta a tendencia para a crescenteseriedade, e que recebeu a sua formulagao explicita e detalhadaquando, como parte dessa tendencia, as formas modernas do des-porto profissional comegaram a emergir.

O ethos amador existia, sob uma forma relativamente rudimen-tar, na Gra-Bretanha, antes da decada de 1880. Isto e, a moralamadora era um con junto de valores amorfo, articulado de maneiravaga no que diz respeito as fungoes do desporto e aos padroes quese acreditava serem necessarios a sua realizagao. Contudo, com aameaga introduzida pela incipiente profissionalizagao dos novosdesportos como o futebol e o raguebi, processo que comegou noNorte e no Centro e que atraiu para o ambito do desporto, — queate ai era uma area reservada exclusiva da «elite das escolas pu-blicas»15, a classe dirigente nacional, — os grupos de baixo estatutoda classe media e das classes de trabalhadores, apoiados regional-

14Citado por M. Marples, A history of Football Londres, 1954.15Chamei a classe dirigente britanica dos finals seculo XIX a «elite das escolas

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mente, como organizadores, jogadores e espectadores, o ethos ama-dor cristalizou-se, entao, como uma ideologia elaborada e articula-da. Isto e, constitufa uma representagao colectiva, desenvolvida pe-los membros de uma colectividade em oposigao aos membros deoutra que consideravam uma ameaga, quer em relagao a sua proe-minencia organizativa e de jogo quer quanto as formas de desporto,tal como entendiam que devia ser praticado. Em resumo, estou asugerir que, embora a elite das escolas publicas tentasse manifestara sua afirmagao de acordo com os termos especificos do desporto,pretendendo que estaria apenas interessada em preservar aquilo queconsiderava como essencial, ou seja, o caracter do desporto «orien-tado para o divertimento», hostilidades de classe e regionais e o res-sentimento quanto a perda do seu antigo dominio desempenharamum papel importante na sua articulagao da moral amadora comouma ideologia explicita. Contudo, se estou certo, a situagao socialem que eles se encontravam era cada vez mais inadequada a escalaglobal, a realizagao descontrolada de formas de desporto dirigidaspara si proprios, orientadas para o prazer. Assim, ao articular emobilizar a moral amadora, em reacgao a ameaga crescente das clas-ses mais baixas, procuravam conservar formas de participagao des-portiva que consideravam ser um direito seu, enquanto membrosde uma classe dirigente, e que tinham sido de facto possiveis paraos grupos dirigentes e mesmo para grupos subordinados na era pre--industrial, mas que se tornavam claramente impossiveis de manter.

O fundamento desta perspectiva provem do facto de muitos dos«abusos» que a elite nas escolas publicas afirmava detectar no des-porto professional serem, tambem, evidentes no culto dos jogos nasescolas que tinham frequentado. Dados suplementares — emboraconstituissem excepgoes sintomaticas, como a equipa de fiitebolOs Corinthians16 — provem do facto de a elite das escolas publicas

publicas» de modo a sublinhar o papel destas escolas na unificac.ao das fracgoes bur-guesas instaladas, recem-formadas e em ascensao.

16Os Corinthians eram uma equipa amadora, formada nos finais do seculo XIXe recrutada nas escolas publicas e nas Universidades de Oxford e de Cambridge, eque conseguiu manter-se, durante algum tempo, em competigao com os profissio-nais. Representaram a «excepc.ao sintomatica» a tendencia geral para a exclusivi-dade da elite das escolas publicas, dado que se constituiram deliberadamente paracombater o sucesso crescente das equipas proflssionais e para celebrar e conservar oapreciado ideal amador. Contudo, ao adoptarem padroes de recrutamento que nao

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se ter retirado de um numero cada vez mais elevado de desportos,recolhendo-se nos seus proprios circulos. Revelavam, assim, o receiode serem derrotados por profissionais, que jogavam com a finali-dade de obter a gloria, de serem reconhecidos como desportistas desucesso, tanto quanto o foram apenas por divertimento. Esta ten-dencia para a separagao foi provocada, decerto e em parte, devidoa circunstancia de os confrontos entre as equipas profissionais eamadoras terem sido, muitas vezes desequilibrados e caracterizadospor ausencia de vivacidade, pela discrepancia que, de um modogeral, existia entre jogadores a tempo inteiro que desempenhavamuma profissao e jogadores a tempo parcial, que apenas participavamnuma actividade de lazer. Mas o facto de ter ocorrido, alem disso,uma tentativa de separagao no ambito do proprio desporto ama-teur*, realizada pelos membros da elite das escolas publicas, sugereque algo mais havera a acrescentar. Isto e, nao desejavam submeter-se sistematicamente a possibilidade de derrota perante as equipasamadoras das classes trabalhadoras e, ao retirarem-se para os seusproprios circulos exclusivos, demonstraram nao so preconceitos declasse mas, tambem, que participavam no desporto dominados pelocaracter de seriedade e com a finalidade de veneer — na sua hie-rarquia de valores desportivos, o objective do sucesso tinha prece-dencia relativamente ao objectivo de participate inicial, que erapor divertimento. Uma analise configuracional do desporto noseculo XVIII, na Gra-Bretanha, fornece dados adicionais a esta inter-pretagao.

De facto, a configuragao social global da Gra-Bretanha noseculo XVIII, o padrao geral das interdependencias sociais na Gra--Bretanha pre-industrial, em geral, era um modelo em que se ve-rificava uma diminuta pressao estrutural sobre os grupos, qualquerque fosse o seu estatuto, no sentido de se orientarem para o sucesso

eram especificos de qualquer local ou instituic.ao, teriam incorrido em «abusos»relativamente aquilo que era assegurado pelos proponentes do ideal amador eque seria destruido pelo profissionalismo. Ou seja, da mesma maneira que asequipas profissionais, que eram recrutadas a partir de uma base nacional, os Co-rinthians afastaram-se de um padrao de representagao dos desportos segundo oqual equipas especificamente locais e institucionais, recrutadas a partir de «co-munidades» de varios generos, eram consideradas uma caracteristica essencial do«autentico» desporto.

*Em Frances no original. (N. da T.)

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e para os resultados, isto e, tendo ern vista formas de participa^ao«dirigidas para os outros», quer no desporto quer noutros sectores.For exemplo, o grau relativamente baixo de centralizagao do Estadoe de unificagao nacional significa que os «jogos populares», os jogosdas pessoas comuns, se praticavam num quadro de isolarnentoregional em que a competigao ocorria de forma tradicional, entrealdeias contiguas e cidades ou outras zonas da cidade. Mas naoexistia um quadro de competigao nacional. Neste aspecto, a aristo-cracia e a pequena nobreza constituiam uma excepgao. Estas erame comprendiam-se como classes nacionais, cornpetindo entre si anivel nacional. Em resultado disso, nas suas actividades desportivasrestritas surgiu um certo grau de pressao competitiva orientadapara os outros. Mas nao so a nivel geral, tambem no ambito des-portivo, nao se submeteram a qualquer pressao efectiva vinda decima ou de baixo. Neste estadio do desenvolvimento da sociedadeda Gra-Bretanha, o nivel de formagao do Estado era relativamentereduzido e, na verdade, a aristocracia e a pequena nobreza «eramum Estado», isto e, capazes de utilizarem, de facto, o aparelho deEstado no seu proprio interesse. Tinham estabelecido a precedenciado parlamento sobre a monarquia e dominado uma sociedade ondeo equilibrio de poder entre classes envolvia flagrantes desigualda-des. Em consequencia dessa situagao, nao existia um desafio efec-tivo a sua posigao enquanto classe dominante. O caracter solido doseu domfnio conduziu a um elevado nivel de seguranga da sua partequanto ao estatuto, e isso significava, por sua vez, que os aristocra-tas e os cavalheiros nao estavam, de modo algum, ameagados pelocontacto com outros individuos que, na perspectiva social, eramsubordinados. Fosse qual fosse o contexto, todos sabiam quern erao senhor e assim agiam em conformidade — o grande desequili-brio entre classes conduzira a padroes de deferencia por parte dossubordinados.

Esta seguranga de estatuto estendia-se a esfera do lazer, incluin-do o desporto. A aristocracia e a pequena nobreza participavam emjogos populares no contexto de organiza^ao e de pratica, usando asua influencia para desenvolverem formas de criquete profissionalr

combates de boxe e corridas de cavalos. O tipo de profissao despor-tiva que se desenvolveu sob tais condigoes baseava-se na subordina-gao inequivoca do profissional ao seu patrono e na total dependen-cia quanto aos riscos de vida que ligavam o primeiro ao ultimo.

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Perante esse tipo de profissionalismo, nenhuma ameaga se colocavaaos interesses e valores da classe dirigente. O desporto professionalnao era suspeito, nem na perspectiva moral nem na perspectivasocial, nao havendo necessidade de lutar ou esconder o facto de quese poderia obter beneficio pecuniario a partir dos jogos, quer atra-ves de um salario quer de apostas realizadas com base nos resulta-dos dos confrontos. Acima de tudo, a aristocracia e a pequenanobreza podiam participar no desporto por divertimento jogandoentre si ou com os seus assalariados; isto e, a sua situagao social —o poder e a relativa autonomia de que gozavam — implicava quepodiam desenvolver formas de participate desportiva dirigidaspara si proprios ou egocentricas e, embora nao fossem obrigados adesenvolver a moral amadora como uma ideologia explicita, estive-ram proximo de ser amadores no sentido «ideal e particular» dotermo.

Se este diagnostico esta correcto, pode concluir-se que a confi-guragao social global da Gra-Bretanha pre-industrial, e penso quese pode afirmar, de outras sociedades pre-industriais, nao conduziaa criagao de intensa pressao nas relagoes desportivas, quer aquelasque se realizavam entre grupos dirigentes e grupos subordinadosquer no seio de cada uma delas. Dai que a sociogenese da pressao,no sentido de as formas de participagao nos desportos se orientarempara os outros e para a luta pelos result ados, deva ser procurada naconfiguragao social elaborada em conjungao com a industrializa^ao.Tentarei agora chamar a atengao para as ligagoes entre estes doisprocesses sociais, isto e, entre a industrializa^ao e a tendencia delonga duragao, no sentido do aumento da seriedade, do comprome-timento no desporto e dos esfor^os desenvolvidos tendo em vista oresultado. De forma resumida, e em antecipagao a analise que sesegue, pode dizer-se que a chave para esta relagao se situa noprocesso que Elias designa por «democratizagao funcional» — amudanga que estabelece a igualizagao no equilibrio de poder, nointerior dos grupos e entre estes, que ocorre de modo contingenteno processo inter-relacionado da formagao do Estado e do alarga-mento das cadeias de interdependencia. Mas antes de explicar o quee que isso significa e necessario confrontar a abordagem de Eliassobre a divisao do trabalho com a de Durkheim.

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A industrializagao e o desenvolvimentode formas de desporto orientadas

para os resultados

Segundo Durkheim, a estrutura das sociedades industrials ecaracterizada por uma grande espessura «material» e «moral» ou«dinamica», isto e, por uma populagao altamente concentrada e porum elevado grau de interacgao social entre individuos e grupos17.Este autor acreditava que as pressoes competitivas verificadas emsemelhante sociedade seriam reduzidas e, talvez, eliminadas peladivisao do trabalho. Em relagao a este ultimo fenomeno, Durkheimsugeria que ele se processaria por duas vias principals: ao criarem--se «lagos de interdependencia» e libertando-se as tensoes origina-das na competigao, orientando-as para as esferas profissionais espe-cializadas. Contudo, a sua analise possui uma lacuna fundamental,que deriva da sua incapacidade de reconhecer que a interdependen-cia funcional ou divisao do trabalho nao conduz, necessariamente,a uma integragao harmoniosa e cooperativa, mas antes, mesmo nassuas formas «normais», ao conflito e ao antagonismo. Em resumo,o seu conceito de sociedade, baseado na «solidariedade organica»,e utopico. Pelo contrario, o que e proposto por Elias e um conceitode interdependencia mais realista.

De acordo com Elias, a transformagao social de longa duragaoque e referida, de um modo geral, por meio de expressoes quedesignam aspectos especificos, como «industrialization «cresci-mento economico», «alteragao demografica», «urbanizagao» e«modernizagao politica», e, de facto, uma transformagao de longoprazo da estrutura social total18. E considera que um dos aspectosmais significativos, sob o ponto de vista sociologico, desta transfor-magao social total consiste na emergencia de «cadeias de interde-pendencia» mais extensas e mais diferenciadas, isto e, envolvendoa emergencia de maior especializagao funcional e a integragao degrupos diferenciados, a partir das suas fungoes, no quadro de redesmais vastas. Alem disso, de forma concomitante a este facto, de

17E. Durkheim, The Division of Labour in Society\ Nova lorque, 1964.l8What is Sociology?', pp. 63 e seguinte, 99 e seguinte.

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acordo com Elias, ocorre, nesse caso, uma mudanga no sentido deum decrescimo de poder diferencial nos grupos e entre estes, ouseja, de maneira mais especifica, observa-se uma mudanga noequilibrio de poder entre dirigentes e dirigidos, classes sociais,homens e mulheres, geragoes, pais e filhos. Este processo efectua--se porque os representantes de papeis especializados estao depen-dentes uns dos outros e podem, por esse motivo, exercer controloreciproco. As hipoteses de poder dos grupos especializados sao maiselevadas se estes se conseguem organizar, pois, deste modo, encon-tram-se em condigoes de quebrar, atraves de acgao colectiva, o vastosistema de interdependencias. Segundo Elias, e a partir de formascomo esta que a crescente divisao do trabalho e a emergencia decadeias de interdependencia mais extensas conduzem a uma depen-dencia reciproca e, a partir dessa altura, a padroes de «controlomultipolar» nos grupos e entre estes, isto e, a uma configuragaosocial global em que individuos especificos e grupos estao sujeitosa uma crescente pressao efectiva da parte dos outros. Semelhantepressao e real devido as dependencias reciprocas que estao envol-vidas.

Para a analise presente, a relevancia desta teoria, aparentementesimples, e miiltipla. Inerente a estrutura moderna das interdepen-dencias sociais situa-se a procura de desporto inter-regional erepresentative. Este desejo nao surgiu nas sociedades pre-indus-triais devido a ausencia de uma uniflcagao nacional real e a existen-cia de meios de transporte e comunicagao deficientes, pelocontrario, significa que nao existiam regras comuns e quaisquermeios atraves dos quais os desportistas de areas diferentes se pudes-sem reunir. Ao mesmo tempo, o «bairrismo» inerente a semelhan-tes sociedades significa que so os grupos entre os quais existiacontiguidade, em termos geograficos, eram compreendidos comorivais potenciais. Contudo, as sociedades industrials sao diferentesem todos estes aspectos. Encontram-se relativamente unificadas sobo ponto de vista nacional, possuem meios de comunicagao e detransporte superiores, desportos com regras comuns e um grau de«cosmopolitismo» que denota serem os grupos locais entendidoscomo rivais potenciais, pelo que anseiam por se comparar comoutros que nao sejam geograficamente adjacentes. Deste modo, taissociedades sao caracterizadas por elevados niveis de interacgao des-portiva entre areas diversas, um processo que conduz a estratifica-

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CAPITULO VII 321

gao interna dos desportos especificos — a uma classificagaohierarquica de desportistas do sexo masculino e do sexo feminino ede equipas desportivas, com os que representam os principais ele-mentos que se encontram nos nfveis mais elevados.

Por sua vez, isto significa que as pressoes reciprocas e os con-trolos que actuam nas sociedades urbanas industriais reproduzem--se, geralmente, na esfera do desporto. Em resultado disso, os des-portistas de alto nivel, homens e mulheres, nao podem ser indepen-dentes e jogar por divertimento, sendo obrigados a dirigirem-separa os outros e a participar nos desportos com seriedade. Isto e,nao podem jogar para si proprios, sendo forgados a representarunidades sociais mais vastas, como cidades, distritos e paises. Comotal, fornecem-lhes material e, ou tambem, recompensas de pres-tigio, facilidades e tempo para o treino. Em contrapartida, espera--se que realizem uma «actuagao-desportiva», isto e, o tipo de sa-tisfagoes que os dirigentes e os «consumidores» do desporto exi-gem, nomeadamente o espectaculo de um confronto excitante queas pessoas se dispoem a pagar para assistir ou a validagao, atravesda vitoria, da «imagem» e da «reputagao» da unidade social coma qual se identificam esses dirigentes e «consumidores». Todas aspessoas envolvidas e o quadro competitivo local, regional, nacionale internacional do desporto moderno trabalham no mesmo sentido.Tudo isto significa que e necessario uma elevada e permanentemotivagao para a pratica, planeamento a longo prazo, rigorosoautocontrolo e renuncia a gratificagao imediata, por outras palavras,uma pratica constante e treino de modo a atingir-se e a situar-senos niveis mais elevados. E necessario tambem um certo grau decontrolo burocratico e, por isso, os desportistas subordinam-seainda num outro aspecto.

Em cada uma destas formas, a configuragao social e o padrao dedependencias intergrupo, caracteristico de um Estado-nagao, urba-no e industrial, promovem obrigagoes que actuam no sentidooposto a realizagao pratica do ethos amador, que tern o seu acentotonico no prazer enquanto objectivo principal do desporto. Ou,melhor, origina constrangimentos que actuam contra a criagao deum prazer imediato, de curta duragao, que vao contra a praticadesportiva encarada como um «fim em si mesmo», levando, pois,a sua substituigao, quer para os jogadores quer para os espectado-res, por objectives a longo prazo, como a vitoria numa liga ou taga,

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322 A DINAMICA DO DESPORTO MODERNO

dirigindo-se para as satisfagoes relacionadas, em especial, com aidentidade e o prestigio. Alem disso, tais constrangimentos nao seencontram limitados ao desporto de alto nivel, tendo repercussoesnos niveis mais baixos da actividade desportiva. Isso deve-se, emparte, ao facto de os desportistas masculinos e femininos de altonivel constituirem um grupo de referenda promovido pelos meiosde comunicagao social e que estabelece padroes que os outrostentam seguir. Isto tambem e, em parte, a consequencia das pres-soes exercidas pela competigao desenvolvida em busca dos premiosmateriais e do prestigio que se pode obter atraves do acesso ao nivelmais elevado. Contudo, isso nao se deve, de modo algum, somentea pressoes criadas unicamente no ambito do desporto, mas e tam-bem, e talvez em especial, a consequencia de ansiedades e de inse-gurangas profundamente enraizadas e, em geral, subtilmente cria-das numa sociedade caracterizada por pressoes e formas de controlomultipolares. Uma sociedade em que os alicerces de identidade ede estatuto se relacionam com formas tradicionais de relagoes declasse, autoridade, sexo e idade, corroidas pela democratizagaofuncional, ou seja, pelo processo de igualizagao que, de acordo comElias, e inerente a divisao do trabalho.

Algumas sugestoes quanto ao aumentodo significado do desporto

Procurei tragar ate aqui as linhas gerais da explicagao configu-racional da tendencia para o envolvimento cada vez mais serio nodesporto. Este desenvolvimento, no decurso do qual o significadosocial se acentuou, continua a nao ser debatido. No contexto pre-sente, constitui um problema complexo e so pode ser tratado deforma breve. Para alem da alteragao de equilibrio entre trabalho elazer, tanto ideologico como factual, pode destacar-se um processoque realgou o significado social das actividades de lazer em geral,uma constelagao de, pelo menos, tres aspectos inter-relacionados damoderna configuragao social emergente que tera contribuido parao aumento do significado do desporto, norneadamente: 1) o desen-volvimento do desporto como um dos principals meios de criagao

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CAPITULO VII 323

de excitagao agradavel; 2) a transformagao do desporto, em termosde fungao, num dos principals meios de identificagao colectiva; e,3), a emergencia do desporto como uma fonte decisiva de sentidona vida de muitas pessoas.

Elias e eu proprio sugerimos noutro lugar que o desporto e umfacto de lazer «mimetico», no qual pode produzir-se excitagaoagradavel e que cumpre, a este respeito, uma fungao de «destruigaoda rotina»19. Nao existe, contudo, nenhuma sociedade sem formasde controlo e de rotina ou, como Elias o afirma, nenhum «ponto--zero» de civilizagao. Neste sentido, a necessidade de destruigao darotina e, por certo, na perspectiva social, um dado universal. Masas sociedades urbanas e industrials altamente rotineiras e civilizadassao caracterizadas por pressoes e formas de controlo multipolares.De acordo com esta situagao, os seus membros sao forgados aexercer, de forma contmua, um elevado grau de restri^ao emocionalna sua vida comum e na vida quotidiana, tendo, em consequenciadisso, a necessidade, que e particularmente intensa em tais socie-dades, de actividades de lazer caracterizadas pela possibilidade dedestrui^ao da rotina, como sao os desportos. Contudo, este processode destruigao da rotina, este despertar socialmente consentido deemogoes em publico, esta sujeito a formas de controlo de civiliza-gao. Isto e, o desporto e um enclave social quer para os espectado-res quer para os jogadores, onde a excitagao agradavel pode ser pro-duzida sob uma forma que e socialmente limitada e controlada.

Contudo, a excitagao criada pode ser intensa, em especial nosacontecimentos de desportos de alto nivel que atraem grandesmultidoes, e, salvo o devido respeito a Huizinga, que afirma que odesporto se tornou «profano», e isto, talvez, que constitui a baseempirica para a ideia divulgada do desporto como um fenomeno«sagrado». Durkheim afirmava que a excitagao colectiva, ou a«efervescencia» produzida nas cerimonias religiosas dos aborigenesaustralianos, constituia a principal fonte empirica da sua ideiaquanto ao dominio do «sagrado»20, e nao parece inverosimil suporque a criagao de «efervescencia colectiva» nos acontecimentosdesportivos se encontra na raiz de um facto que e comum, pelo

19Ver Cap. I deste volume.2QThe Elementary Forms of the Religious Life, Londres, 1976.

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324 A DINAMICA DO DESPORTO MODERNO

menos na Gra-Bretanha, isto e, referir os campos de futebol e decriquete, em particular os que sao utilizados nos encontros maisimportantes, como o relvado «sagrado» ou «consagrado». De facto,nao seria ir longe de mais sugerir que, pelo menos para algunsgrupos na sociedade actual, o desporto se tornou uma actividadequase religiosa e que, encarado numa perspectiva da sociedade, odesporto veio, em certa medida, preencher a lacuna aberta na vidasocial pelo declmio da religiao. Urn exemplo extremo, mas naomenos comprovativo deste caracter quase religioso do desportomoderno, e fornecido pelo facto de se ter tornado, aparentemente,uma tradigao em Liverpool o langamento das cinzas dos adeptosfalecidos do FC de Liverpool sobre o campo de Anfield; assim,parecem ter o desejo de permanecer, mesmo para alem da morte,identificados com o «altar» ou «templo» onde «adoraram» durantea sua vida. Mas, mesmo na ausencia deste exemplo extremo,e evidente que jogar e/ou observar um ou outro desporto veio aconstituir um dos principals meios de identificagao colectiva nasociedade moderna e uma das principals fontes de significado navida de muitas pessoas. Em resumo, nao e de modo algum irrealsugerir que o desporto se esta a tornar cada vez mais a religiaosecular da nossa epoca, tamb^m cada vez mais secular.

E provavel que o caracter de oposigao inerente ao desporto, istoe, o facto de se tratar de uma luta pela vitoria entre duas ou maisequipas, ou entre dois ou mais indivfduos, explique a sua proemi-nencia como um foco de identificagao colectiva. Isto significa queo pr6prio desporto proporciona a identifica<~ao de grupo, maisprecisamente a formagao da ideia de se «pertencer ao grupo» e deestar «fora do grupo», de «o nosso grupo» ou de <<o grupo deles»,no quadro de uma variedade de niveis> como os niveis da cidade,distrito ou pais. O elemento de oposigao e crucial, desde que estesirva para reforgar a identificagao de se pertencer ao grupo, isto e,um sentido de grupo de «sermos nos» ou de unidade, entretantofortalecido pela presen^a de um grupo que e entendido como o«deles», a equipa oposta e respectivos apoiantes, quer seja local ounacional. Na verdade, no contexto dos Estados-nagoes pacificadosno piano internOj ou seja, em sociedades onde o Estado estabeleceuum monopolio efectivo sobre o direito de usar a forga fisica, odesporto proporcionou a unica ocasiao em que unidades sociaiscomplexas e impessoais, como, por exemplo, as cidades, podem

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CAPtTULO VII 325

unir-se. De forma identica, a nivel internacional, os acontecimen-tos desportivos como os Jogos Olimpicos e o Campeonato doMundo proporcionam as unicas ocasioes, em tempo de paz, duranteas quais na^oes inteiras podem unir-se com regularidade e de formavisivel. A divulga^ao do desporto a nivel internacional tern impli-cagoes no aumento da interdependencia internacional e da existen-cia, com varias excepgoes notaveis, de uma paz mundial fragil einstavel. Confrontos como os Jogos Olimpicos permitem aos repre-sentantes das diferentes nagoes competirem entre si sem se mata-rem, ainda que o grau em que semelhantes provas de combatessimulados se transformaram em confrontos «reais» esteja depen-dente, entre outros, do nivel de tensao preexistente entre os Esta-dos-na^oes envolvidos. E, evidentemente, e para que se participe defacto ao mais alto nivel de competigao desportiva que se exigem aosatletas os mais elevados niveis de permanente motivagao no sentidodos result ados, do autocontrolo e da negagao de si proprios.

Isto conduz-me a questao final, nomeadamente: que a pressaosocial exercida sobre os atletas, em todos os paises do mundo, nosentido de lutarem pelo exito em competigoes nacionais, constituiuma fonte suplementar da destruigao do elemento jogo no despor-to. Alem disso, e tambem o aumento do prestigio nacional que oexito no desporto internacional pode proporcionar que contribui,em especial, para a tendeticia que se verifica em rela^ao ao envoi-vimento do Estado no desporto, o que Huizinga lamentava. Argu-mentou-se que o desporto constituia um substitute possivel para aguerra, mas tal ideia envolve o facto de se considerar o desportocomo uma abstrac^ao, como alguma coisa independente e separadada configuragao de seres humanos interdependentes que nele par-ticipam. Esta e a questao fundamental, nomeadamente: se as con-figuragoes formadas por seres humanos interdependentes, no des-porto e em outro ambito qualquer, conduzem a cooperagao ou arivalidade amigavel ou se criam conflitos serios. Este e um tema emrelagao ao qual ainda mal se iniciou a investigagao sociologica.Contudo, existe, pelo menos, uma excepgao: o trabalho de NorbertElias, sob a orientagao do qual procurei formular esta comunicagao.

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CAPITULO VIII

As liga^oes socials e a violencia no desporto

Eric Dunning

1

Introdugao

Acredita-se hoje plenamente que vivemos num dos periodosmais violentos da historia1. Na verdade, talvez seja justo que, pelomenos nas sociedades ocidentais, o medo de nos encontrarmosactualmente a softer um processo de «descivilizagao» — quanto aviolencia fisica e mesmo em relagao a outros aspectos — esta pro-fundamente impresso no Zeitgeist* contemporaneo, constitui umadas crengas dominantes do nosso tempo. Eysenck e Nias, porexemplo, referem-se a «um niimero de factos conhecidos» que,segundo afirmam, «contribuiram para persuadir muitas pessoas deque a civilizagao em que vivemos pode estar em riscos de sersubmersa por uma avalanche de crime e de violencia»2. O psicologoPeter Marsh afirma que tentativas recentes para extirpar a violenciaconduziram a uma diminuigao das oportunidades para a manifes-tagao da violencia ritual socialmente construtiva — aquilo quedesigna aggro —, tendo, em consequencia, aumentado a violenciaincontrolada e destrutiva. Houve, escreveu, «um desvio da vvboa"para a vvma" violencia. Os homens sao possivelmente tao agressi-vos como sempre o foram, mas a agressao, bem como a sua expres-

^ste artigo foi publicado inicialmente em Jeffrey H. Goldstein (ed.), Sports Vio-lence, Nova lorque, 1983, sob o titulo «Social Bonding and Violence in Sport:a Theoretical-Empirical Analysis». Agradego a Johan Goudsblom os seus valiososcomentarios a uma versao anterior.

2H. J. Eysenck e K. D. Nias, Sex, Violence and the Media, Nova lorque, 1978.*Espirito do tempo. (N. da T.)

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328 AS LIGA^OES SOCIAIS

sao, tornou-se menos ordenada e, por esse motive, mais sangren-ta»3.

Um aspecto nao insignificante da crenga de que estamos a vivernurn periodo excessivamente violento e o sentimento bastante dis-seminado de que, actualmente, a violencia esta a aumentar nosdesportos e em conjungao com os mesmos. Yiannakis, Mclntyre,Melnick e Hart, por exemplo, afirmam que «existem poucasduvidas de que, no desporto, tanto a violencia dos espectadorescomo a dos jogadores esta a aumentar para um nivel alarmante»4.O sociologo alemao Kurt Weis parece concordar com este diag-nostico5. Afirma que a suposta tendencia para a crescente violenciano campo dos desportos e entre espectadores desportivos represen-ta, pelo menos, a nega^ao parcial da teoria de Elias sobre o «pro-cesso de civilizagao»6. E com este problema — as implicates destasuposta tendencia em relagao a teoria de Elias — que me preocu-parei neste capitulo. Por razoes que hao-de sobressair, discordo daperspectiva de certo modo simples segundo a qual os desportos ea sociedade contemporanea estao a tornar-se, sem qualquer ambi-guidade, mais violentos. Discordo, tambem, da ideia de que estasuposta tendencia representa uma negagao parcial da teoria deElias. Ao mesmo tempo, pretendo analisar o facto de acordo como qual a produgao da violencia nos desportos e na sociedade con-temporanea, num dado momento, levanta numerosos problemascomplexos e so sera possivel resolve-los, de forma mais adequada doque no passado, por meio do desenvolvimento dos aspectos relevan-tes da teoria do processo de civilizagao, para alem do nivel alcan-gado pelo proprio Elias. E este o objective que estabeleci nestecapitulo. No sentido de nos orientarmos, sera necessario levantarum certo numero de problemas sociologicos mais vastos, Especifi-camente, o que irei fazer e o seguinte;

3P. Marsh, Aggro: the Illusion of Violence, Londres, 1979-4A. Yiannakis, T. D. Mclntyre, M. J, Melnick e D. P. Hart (eds.), Sport Sociolo-

gy: Contemporary Themes, Dubuque, Iowa, 1976.5K. Weis, «Role Models and the Social Learning of Violent Behaviour

Patterns», Actas do International Congress of Physical Activity Sciences, Quebec,1976, pp. 511-24.

6Para esta teoria ver as obras de Norbert Elias The Civilizing Process, Oxford,1978, e State Formation and Civilization, Oxford, 1982.

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CAPITULO VIII 329

1) Tentar aprofundar a teoria de Elias, atraves da distingao entretipos de violencia humana.

2) Demonstrar, na esteira de Elias, que se verificou uma transfor-magao civilizadora de longa duragao, no ambito da violencia,nas sociedades mais avangadas da Europa ocidental. Procurareisituar-me para alem de Elias, encarando esta transformagaocomo uma mudanga no equilfbrio entre algumas das formas deviolencia distinguidas na tipologia.

3) Sugerir que a alteragao no equilfbrio entre as formas de violen-cia que podem ser empiricamente observadas se pode atribuir,em larga medida, a uma transformagao observavel nas formas decontrolo social. Utilizarei o conceito social no sentido sociologico,introduzido por Durkheim e elaborado por Elias, e nao nosentido «sociobiologico» defendido, por exemplo, por Tiger eFox7. Isto e, vou utiliza-lo para referir formas diferentes dasrelagoes que sao socialmente produzidas de modo observavel e nao assubmetendo a ideia de que teriam sido produzidas por algumgene moderno hipotetico mas ainda nao descoberto, que possa terpermanecido em estado latente durante o passado pre-historico dahumanidade. A minha primeira tarefa, contudo, e a de prepararos fundamentos de uma tipologia da violencia.

Para uma tipologia da violencia

Os tipos de violencia praticada por seres humanos nos despor-tos e em qualquer outro dominio sao diversos e complexos. Con-tudo, parece razoavel aceitar que se pode alcangar uma determinadacompreensao do problema dando relevo as distingoes que se possamestabelecer entre as suas formas e dimensoes particulares. Distin-guirei tipos de violencia, em termos de: a) os meios utilizados; b)os motives dos actores e os niveis de intencionalidade envolvida; e,c), alguns dos parametros sociais que contribuem para distinguir as

7L. Tiger, Men in Groups, Londres, 1969; R. Fox, «The Inherent Rules ofFighting», em P. Collet, Social Rules and Social Behaviour, Oxford, 1977.

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330 AS LIGA^OES SOCIAIS

formas de violencia umas das outras. Em apoio desta tarefa, sugirouma modificagao de alguns aspectos da tipologia de acgao deWeber. Entre as formas de violencia humana podem fazer-se, pelomenos, oito distingoes provisorias, nomeadamente:

1) Se a violencia e real ou simbolica, isto e, se apresenta a formade uma agressao fisica directa ou envolve simplesmente atitu-des verbais e/ou atitudes nao verbais.

2) Se a violencia apresenta a forma de um «jogo» ou «simulagao»ou se ela e «seria» ou «real». Esta dimensao pode tambem serapreendida atraves da distingao entre violencia «ritual ou naoritual», embora se tenha de assinalar que, com o devido respeito aMarsh e aos seus colegas8, ritual e jogo podem possuir umconteudo violento.

3) Se uma arma ou armas sao utilizadas ou nao.4) No caso de as armas serem utilizadas, se os atacantes chegam a

estabelecer contacto directo.5) Se a violencia e intencional ou a consequencia acidental de uma

sequencia de acgoes que, no inicio, nao tinha a intengao de serviolenta.

6) Se se considerar a violencia iniciada sem provocagao ou comosendo uma resposta, em retaliagao a um acto intencionalmenteviolento, ou sem a intengao de o ser.

7) Se a violencia e legitima no sentido de estar de acordo com asregras, normas e valores socialmente prescritos ou se nao e nor-mativa ou ilegftima no sentido de envolver uma infrac^ao dospadroes sociais aceites.

8) Se a violencia toma uma forma «racional» ou «afectiva», isto e,se e escolhida de modo racional como um meio de assegurar arealizagao de um objectivo dado, ou subordinada a «um fim emsi mesmo» emocionalmente satisfatorio e agradavel. Outra for-ma de conceptualizar esta diferenga seria distinguir entre aviolencia nas suas formas «instrumentais» e «expressivas».

Alguns sociologos designaram estas diferengas por «tiposideais», mas e melhor conceptualiza-las em termos de polaridadese equilibrios inter-relacionados. Porem, permitam-me que seja

8P. Marsh, E. Rosser e R. Harre, The Rules of Disorder, Londres, 1978.

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CAP ITU LO VIII 331

mais empirico, aplicando esta forma de conceptualizagao, de modosistematico, a alguns dos problemas de violencia nos desportos. Emprimeiro lugar, avaliarei alguns dos problemas gerais e farei, entao,algumas consideragoes sobre o desenvolvimento dos desportosmodernos.

Os desportos e a violencia na perspectivado desenvolvimento

Todos os desportos sao, por natureza, competitivos e condu-zem, deste modo, ao aparecimento de agressao e de violencia.Contudo, em alguns, por exemplo, o raguebi, o futebol e o boxe,a violencia e, sob a forma de «representagao de uma luta» ou«confronto simulado» entre dois individuos ou grupos, um ingre-diente central. Esses desportos constituem oportunidades para aexpressao da violencia fisica socialmente aceitavel e ritualizada e,neste contexto, preocupar-me-ei apenas com desportos deste tipo.No quadro desta ligagao, e importante sublinhar que, tal como osconfrontos reais que se verificam na guerra podem envolver umacomponente ritual — por exemplo, os confrontos de grupos tribais,como os Dani da Nova Guine9 —, tambem, os confrontos simula-dos que se realizam num campo de desportos podem compreenderelementos de violencia nao ritual, ou ser transformados nessa formade violencia. Isto pode acontecer quando se participa demasiado aserio num desporto, talvez na sequencia de pressoes sociais ou derecompensas financeiras e do prestigio envolvido. Em resultadodisso, o nivel de tensao pode elevar-se ate um ponto em que oequilibrio entre a rivalidade amigavel e hostil se inclina a favor daultima. Nestas circunstancias, as regras e as convengoes destinadasa limitar a violencia e a orienta-la para caminhos socialmenteaceitaveis sao suspensas e, entao, pode surgir a luta a serio. Destemodo, no futebol e no raguebi pode jogar-se com o objectivo deimpor danos fisicos e dor. Ou no boxe, onde o infligir de ferimen-tos constitui uma parte legitima da prova, torna-se possivel a luta

9R. Gardner e K. Heider, Gardens of War, Harmondsworth, 1974.

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332 AS LIGA^OES SOCIAIS

depois de ter terminado o assalto ou apos o final da prova. Contu-do, os padroes que governam a expressao e o controlo da violencianao sao os mesmos em todas as sociedades. E, na nossa propriasociedade, diferem entre grupos ou desportos diferentes e naoforam sempre os mesmos em todos os periodos historicos. De facto,pretendo demonstrar que um aspecto central do desenvolvimentomoderno foi o que Elias designaria por um «processo de civiliza-gao» tendo em vista a expressao e o controlo da violencia fisica.Neste processo — sejam quais forem as flutuagoes a breve termoque possam ter ocorrido — verificou-se uma alteragao, a longoprazo, no equilfbrio entre a violencia «afectiva» e a «racional».

Para comegar, vale a pena relembrar alguns aspectos relevantesda teoria de Elias. Da forma mais resumida que e possivel, Eliasafirma que na Europa ocidental ocorreu, em termos de longaduragao, um declinio quanto a tendencia de as pessoas obteremprazer a partir do seu envolvimento directo em actos de violenciae de os testemunharem. No quadro desta ligagao, Elias refere-se auma diminuigao de angriffslust', o que significa, literalmente, umdeclinio no intenso desejo de agressao, isto e, no desejo e na capa-cidade de as pessoas sentirem prazer pelo facto de agredirem asoutras. Isto implicou, em primeiro lugar, uma diminuigao dolimiar de repugnania (peinlishkeitsschwelle) quanto a derramamentode sangue e outras manifestagoes directas de violencia fisica; e emsegundo lugar, a interiorizagao de um tabu mais rigoroso sobre aviolencia, como parte do «superego». A consequencia disso e apossibilidade de surgirem sentimentos de culpa sempre que estetabu e violado. Ao mesmo tempo, verificou-se a tendencia paracada vez mais se ocultar a violencia e, em especial, para descreveras pessoas que obtem abertamente prazer em actos de violencia, emtermos da linguagem psicopatologica, castigando-as quer atravesda hospitalizagao ou de encarceramento. Todavia, este processosocial levou as pessoas a planear, prever e utilizar, a longo prazo,estrategias mais racionais, como forma de atingirem os seus objec-tives. Tambem implicou um aumento na pressao competitiva so-cialmente determinada. Pretendo sugerir que isso contribuiu, con-sequent emente, para um nitido aumento da inclinagao das pessoaspara usar, em situates especificas, a violencia de uma maneiracalculada. Deixem-me explicar este processo complexo atraves dareferenda ao desenvolvimento do raguebi.

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CAPfTULO VIII 333

O raguebi moderno descende de um tipo de jogo medieval emque se realizavam desafios particulares entre um numero variavel depessoas, sem limitagoes formais e, por vezes, com mais de milparticipantes. As demarcates da area de jogo estabeleciam-se demaneira vaga e definiam-se pelo costume, e os jogos tanto se efec-tuavam em campo aberto como nas ruas das cidades. As regraseram orais e mais especificas dos proprios locais do que escritas,instituidas e obrigadas a serem cumpridas por um orgao de fisca-lizagao. Apesar destas variagoes locais, os antecedentes populates doraguebi moderno partilham pelo menos uma caracterfstica comum:todos etam conftontos jogados que envolviam a tolerancia socialcottente, dizendo tespeito a um nivel de violencia fisica considera-velmente mais elevado, de acotdo com as tegras e com jogos seme-Ihantes, do que aquele que e hoje autotizado no raguebi. No con-texto ptesente, seta suficiente fundamentat esta questao atraves dareferenda a um simples exemplo, o jogo gales knappan* tal comoe desctito pot Owen, em 160310.

De acotdo com Owen, o numeto de patticipantes nos jogos deknappan, alguns deles montados a cavalo, excedia por vezes doismil, exactamente como sucedia com outros jogos populares e como curling da Cornualha. Os cavaleiros, dizia Owen, «tinham cace-tes monstruosos de tres pes** e meio de comprido, tao grandesquanto o jogador fosse capaz de os manejar com facilidade». Comose pode ver pelo extracto seguinte, o knappan era uma contenda de-senfreada:

Nesta diversao, logo que surge a mais pequena oportunidade, vin-gam-se ressentimentos privados, as quedas sucedem-se; se alguem edesafiado uma unica vez, todos os elementos das duas facgoes setornam participantes, por isso e que pode ver algumas vezes cinco ouseis centenas de homens nus, batendo-se num magote, todos mistu-rados... e, ai, todos tern de participar com os seus companheiros, demaneira que pode ver-se dois irmaos, um a bater no outro, criadosa bater nos senhores, e amigo contra amigo,... apanham pedras e

10G. Owen, The Description of Pembrokeshire, na obra editada por H. Owed, Cym-morodorion Society Research Series, n.° 1, 1892, pp. 270-82. Foi publicado pelaprimeira vez em 1603.

*Do verbo to knap, que significa britar, partir pedra. (N. daT.)**Um pe (foot) corresponde a 30,48 cm. (N. da T.)

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334 AS L1GA0ES SOCIAIS

entao, empunhando-as, batem nos seus amigos; os cavaleiros intro-metem-se a forga e cavalgam por entre os grupos de peoes, pois ocavaleiro escolhe o maior cacete que possa arranjar, de carvalho, defreixo, espinheiro negro ou macieira brava, e tao grande que podiaderrubar urn boi ou um cavalo, ataca qualquer um por ressentimen-tos particulares, o que nao Ihe tinha batido ou atingido com o cacetedepois de este ter retribuido o mesmo, e quando davam um socoeram derrubados, cada um atacando o outro com o seu cacete des-proporcionado nao poupando nem a cabega, faces, nem qualqueroutra parte do corpo; uma vez provocado com furias, os peoes caiamtao proximo dele, que assim esqueciam totalmente a diversao elutavam ate cair e ficarem sem folego e entao alguns elementosagarravam a cabega nas suas maos e gritavam... paz, paz, e muitasvezes isto separava-os, e para sua diversao la iam novamente. Nemsequer se podia ficar a observar este jogo, todos tinham de ser acto-res, porque assim era o costume e a cortesia do jogo pois se alguemviesse com o unico proposito de ver o jogo, uma vez que se encon-trasse no meio do grupo era transformado em jogador, dando-lheuma bastonada ou duas, se ele esta a cavalo, e oferecendo-lhe meiaduzia de socos, se estiver a pe, embora ele nao tenha nada para sedefender, o que pode parecer uma estranha forma de cortesia11.»

Existe abundante informagao demonstrando que, em variaspartes de Inglaterra, se realizavam jogos deste genero a partir, pelomenos, do seculo XIV ate ao seculo XIX. Alem disso, a brutalidadedescrita de forma tao animada por Owen e largamente confirmadapor outros relatos12. E isto o que se poderia esperar num tipo dejogo caracterizado pela seguinte constelagao de caracteristicas:grande numero de jogadores, sem qualquer limite; regras oraisvagamente definidas e especificas de cada local; alguns participammontados a cavalo, enquanto outros se associam a pe; a utilizagaode bastoes para atingir quer os outros jogadores, quer a bola; e aausencia de uma organizagao exterior de controlo para definir asregras e actuar como um tribunal de apelo em casos de conflito.

Estas caracteristicas nao estavam presentes em todos os casos,mas muitas delas verificavam-se. Em consequencia disso, essesjogos estavam mais proximos dos confrontos «reais» do que os

"Ibid.12Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players, Oxford,

1979.

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CAPITULO VIII 335

desportos modernos. Como Riesman e Denney realgam, os despor-tos modernos sao mais «abstractos», mais afastados dos combates«serios»13. Os antecedentes populates do raguebi podem ter sidocombates no sentido em que as vidas e os riscos de vida dos gruposem confronto nao estavam directamente em perigo e a imposigao deferimentos graves e morte nao constituia o seu objectivo central.

No entanto, o seu nivel relativamente elevado de violenciamanifesta e a oportunidade que proporcionavam para infligir sofri-mento podem ter constituido uma das suas fontes de prazer. Afinal,as pessoas da Gra-Bretanha pre-industrial desfrutavam todas asespecies de passatempos — luta de galos, combates de touros ecombates de ursos, queima de gatos vivos em cestos, boxe profis-sional, assistencia a executes publicas — que parecem «nao civi-lizados» nos termos dos valores actuais. Esses passatempos reflec-tem aquilo que Huizinga chama «o conteudo violento da vida» naEuropa, durante o «Outono» da Idade Media14, e que continuouate bem dentro do periodo que os historiadores consideram comotempos << modernos». Tambem reflectem o «limiar de repugnan-cia» comparativamente elevado quanto a testemunho e participateem actos violentos que, como Elias demonstrou, e caracteristicode uma sociedade que se encontra num estadio de um «processo decivilizagao» anterior ao nosso.

Em contraste com os seus antecessores populares, o raguebi mo-derno e um exemplo de uma forma de jogo que e civilizada, pelomenos, em relagao aos quatro aspectos que estao ausentes nas for-mas ancestrais. A este respeito, isso e caracteristico dos modernosconfrontos do desporto em geral. O raguebi moderno e civilizadopor:

1) Um con junto de regras escritas, formalmente instituidas, queexigem rigoroso controlo quanto ao uso da forga fisica e que aproibe em relagao a certas formas como, por exemplo, placagemde «brago em riste» e «golpes violentos», isto e, dar pontapesnum jogador adversario, derrubando-o.

14J. Huizinga, The Waning of the Middle Ages, Nova lorque, 1924.13D. Riesman e R. Denney, «Football in America: a Study in Culture

Diffusion» em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings,Londres, 1971.

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336 AS LIGA^OES SOCIAIS

2) Sangoes intrajogos claramente definidas, isto e, penalties quepodem ocorrer a fim de punir transgressores, e, como sangaoultima, para violagoes serias e persistentes das regras, a possibi-lidade de expulsao do jogo.

3) A institucionalizagao de um papel especifico que se mantem, porassim dizer, «fora» e «acima» do jogo e cuja tarefa e controla-lo, isto e, o papel do «arbitro».

4) Um orgao centralizado de caracter nacional, para elaboragao dasregras e fazer cumprir as regras, a Rubgy Football Union.

Este processo de civilizagao do raguebi ocorreu como parte deum processo social continue. Dois momentos significativos desteprocesso foram: a) a instituigao, na Rugby School, em 1845, dasprimeiras regras escritas, uma tentativa, entre outras, de colocarrestrigoes a utilizagao de golpes violentos e a outras formas deviolencia fisica, e de proibir, por completo, o uso das navvies (botascom ponta de ferro que tinham constituido um aspecto do jogovalorizado socialmente em Rugby e outras escolas piiblicas, emmeados do seculo XIX); e b)^ a formagao, em 1871, da RugbyFootball Union. A Rugby Union constituiu-se, em parte, na se-quencia de uma controversia publica sobre o que era entendidocomo a violencia excessiva do jogo. Uma das suas primeiras ac^oesfoi determinar, pela primeira vez, uma proibigao absoluta quantoaos golpes violentos. O que aconteceu, em cada um destes momen-tos, foi o facto de os padroes de violencia no jogo terem evoluidoem dois sentidos: em primeiro lugar, exigia-se que os jogadores al-cangassem, quanto ao uso da forga fisica, um nivel mais rigoroso einteligente de autodommio; e, em segundo lugar, realizava-se umatentativa de garantir o cumprimento desta exigencia por meio desangoes impostas do exterior.

Dizer que o raguebi sofreu um «processo de civiliza^ao» nao enegar o facto de se conservar, em relagao a maioria dos desportos,um jogo duro. Caracteristicas como o ruck* favorecem a oportuni-dade de dar pontapes e de racking** os jogadores que se encontramestendidos no solo. A scrum*** proporciona a ocasiao para a violen-

*Forma£ao espontanea. (N. da T.)*Acgao em que consiste a forma^ao espontanea. (N. da T.)*Formagao ordenada. (N. da T.)

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CAPfTULO VIII 337

cia ilegitima, tal como dar socos, arranhar e morder. Perante oamontoado compacto de jogadores que a formagao ordenada en-volve, o arbito dificilmente pode controlar a interacgao. Nem ofacto de o raguebi ter sofrido um certo desenvolvimento civilizadorimpede que o jogo se tenha convertido, provavelmente, nos ultimosanos, num jogo mais violento em certos aspectos particulares.Evoluiu, e certo, para termos mais competitivos, como e demons-trado pela introdugao de tagas e de ligas a todos os niveis. A cres-cente competitividade significa que a importancia da vitoriaaumentou, e esta ascensao do objectivo de sucesso envolveu umaerosao do velho ethos amador. For exemplo, diminui consideravel-mente o significado da ideia de que participar e mais importantedo que veneer. Ao mesmo tempo, aumentou, por certo, a tendenciapara os participantes jogarem com dureza no quadro das regras epara usarem violencia ilegitima na perseguigao do exito. Em resu-mo, a priori, admite-se que, em fase recente, o uso de violenciainstrumental no jogo tenha aumentado.

Dizer isto nao e afirmar que, no passado, a violencia do jogo erainteiramente nao racional e afectiva, mas, antes, que o equilibrioentre a violencia racional e afectiva se alterou a favor da primeira.Isto porque a estrutura do raguebi moderno, juntamente com opadrao relativamente civilizado da personalidade das pessoas queo jogam, implica que o prazer do jogo deriva agora muito mais daexpressao da habilidade com a bola, em combinagao com os com-panheiros de equipa, e das formas de forga fisica mais ou menosrigorosamente controladas e discretas. E resulta, muito menos, daintimidagao fisica e da imposigao de sofrimento aos adversaries,pratica que se usava nos seus antecedentes populares e nas escolaspublicas, em meados do seculo XIX, quando golpes violentos e ouso de navvies eram um aspecto relevante e atribuiam legitimidadeas tacticas. Mas a estrutura social e da personalidade que haviadado origem ao jogo moderno aumentava, em simultaneo, a inci-dencia da violencia instrumental que nele se verificava — porexemplo, jogadores capazes de obter satisfagao nas suas formas defor^a fisica moderadas, relativamente as que sao permitidas no jogomoderno, e que nao encontram prazer na imposigao de sofrimentoaos outros, sao obrigados a utilizar a violencia de forma legitima,de uma maneira instrumental. Nao obtem satisfagao agradaveldessa violencia per se. Nao se empenham nisso como um fim em si

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338 AS LIGA^OES SOCIAIS

mesmo, mas como um meio de alcangar um objective a longoprazo, o de veneer a liga ou a taga.

A crescente pressao competitiva que conduz ao uso encoberto daviolencia racional e simultaneamente responsavel pela violenciamanifesta, nomeadamente a que ocorre quando atletas, de qualquerdos sexos, perdem momentaneamente o seu autocontrolo e agridemum adversario como forma de retaliagao. O facto de a utilizagaotactica da violencia instrumental constituir, com frequencia, umrastilho que conduz a perda de autocontrolo demonstra ainda, maisuma vez, como uma forma de violencia se pode transformar rapi-damente noutra.

Como e que este desenvolvimento, aparentemente paradoxal —que um jogo tenha evoluido para ser menos violento em certosaspectos e, ao mesmo tempo, mais violento quanto a outros —,pode ser explicado? Gostaria de avangar a hipotese de que isso e,principalmente, a consequencia de um deslocamento, a longoprazo, do padrao de controlo social, da forma segundo a qual osmembros da nossa sociedade se relacionam entre si. Permitam-meilustrar o que isto significa, voltando a teoria do processo de civi-lizagao de Elias.

4

A violencia e a transformagao

Embora Elias nao o expresse nestes termos, e justo, penso eu,afirmar que um aspecto fundamental do processo de civilizagao —o aumento das cadeias de interdependencia — envolveu uma mu-danga no padrao das ligagoes sociais, comparavel a que foi descritapor Durkheim como a transigao da solidariedade «mecanica» paraa solidariedade «organica». A fim de afastar a analise dos juizos devalor implicitos na terminologia de Durkheim e para transmitir aideia de que ambos os conceitos se referem a formas de interdepen-dencia, proponho-me descrever esta faceta do processo como um as-pecto no decurso do qual ligagoes «segmentares» foram gradual-mente substituidas, cada vez mais, por ligagoes «funcionais». Nocentro desta transformagao encontrava-se um processo em que osignificado dos lagos de familia outorgados e de residencia se tor-

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CAPITULO VIII 339

nava sucessivamente menor, enquanto o dos lagos adquiridos, de-terminados pela divisao do trabalho, se tornava gradualmente maisimportant e.

As diferengas entre estes dois tipos de ligagoes socials podemser provisoria e formalmente expressas por meio dos modelos pola-res colocados em lugar de destaque no quadro 1. Estes modelosprocuram descrever nao so os aspectos das ligagoes sociais mas,tambem, os tipos distintivos da configuragao social global no inte-rior da qual as ligagoes segmentares e funcionais sao criadas emantidas por apoio reciproco.

Estes dois modelos constituem uma tentativa bastante grosseirade expor algumas das principals diferengas estruturais entre as socie-dades da Europa medieval e as dos tempos modernos. No entanto,os modelos sao muito gerais e, por este motivo, ocultam diferengascomo as que existem entre classes sociais. Ignoram tambem a exis-tencia de sobreposigoes empiricas entre dois tipos e, na medida emque se baseia na extrapolagao a partir de tendencias observaveis, o mo-delo das ligagoes funcionais exagera, por exemplo, o grau de igual-dade sexual que foi alcangado ate aqui em sociedades deste tipo.

Atraves desta analise, nao pretendo sugerir que a tendencia nosentido da predominancia crescente das ligagoes funcionais se ti-vesse revelado um processo simples, unilinear ou que continuenecessariamente no futuro. Um con junto de condigoes previasinter-relacionadas facilitou esse desenvolvimento no passado, nocentro das quais estava o contmuo crescimento economico, a capa-cidade do Estado para preservar um monopolio efectivo sobre osmeios de violencia e, apesar do facto de terem oferecido, com fre-quencia, uma firme resistencia, a boa vontade manifesta no longoprazo pelos grupos dirigentes, a flm de assegurar compromissos econcessoes a medida que o poder dos grupos subordinados aumen-tava. Mas essas complexidades estao menos relacionadas com os ob-ject ivos presentes do que com a forma segundo a qual esses tiposde ligagoes sociais e das suas mais vastas correlates estruturais pro-duzem, por um lado, uma tendencia para a violencia com umelevado grau de conteudo emocional ou afectivo e, por outro, umelevado grau de controlo individual e social sobre a violencia,juntamente com a tendencia no sentido da utilizagao de violenciade um tipo mais racional. Irei agora referir-me a este problema demodo resumido e esquematico.

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340 AS LIGA^OES SOCIAIS

QUADRO 1 LlGAQDES SEGMENTARES E FUNCIONAIS

E AS SUAS CORRELATES ESTRUTURAIS

Ligagoes segmentares Ligagoes funcionais

1 Comunidades locals auto-suficien-tes, ligadas, de forma vaga, a umquadro de trabalho extenso, proto-nacional; relativa pobreza.

2 Pressao intermitente «de cima»proveniente de um Estado centralfraco; classes dirigentes relativa-mente autonomas, divididas emsectores de guerreiros e de sacerdo-tes; equilibrio de poder fortementeinclinado a favor das figuras de di-rigentes/autoridade tanto no seiodos grupos como entre estes; peque-na pressao estruturalmente criada«debaixo»; em simultaneo, poderdos dirigentes enfraquecido, porexemplo, por um aparelho de Esta-do rudimentar e meios de trans-porte e de comunicagao pobres.

3 Estreita identificac^ao com gruposrigorosamente circunscritos, uni-dos, principalmente, por meio deparentesco outorgado e ligac.oeslocais.

4 Limitado campo professional; homo-geneidade de experiencia de traba-lho tanto no seio dos grupos pro-fissionais como entre estes.

5 Reduzida mobilidade social e geo-grafica; limitados horizontes deexperiencia.

6 Pequena pressao social para exer-cer autodominio quanto a violenciaffsica ou para diferir a satisfacjioem geral; reduzido exercicio deprevisao ou de planeamento alongo prazo.

Comunidades a nivel nacional, ligadaspor extensas cadeias de interdependen-cia; relativa riqueza.

Pressoes continuas «de cima» provenien-tes de um Estado central forte; classesdirigentes relativamente dependentes,onde os sectores seculares e civis saodominantes; tendencia para tornar iguaisas oportunidades de poder atraves dacriagao de formas de controlo multi-polares tanto no seio dos grupos comoentre estes; pressao intensa estrutural-mente criada «de baixo»; em simulta-neo, poder dos dirigentes fortalecido,por exemplo, por um aparelho de Esta-do relativamente eficiente e meios detransporte e de comunicagao relativa-mente eflcientes.

Identiflcagao com grupos que estao uni-dos por meio de ligagoes adquiridas deinterdependencia funcional.

Vasto campo de emprego; heterogenei-dade de experiencia de trabalho tantono seio dos grupos profissionais comoentre estes.

Elevada mobilidade social e geografica;vastos horizontes de experiencia.

Grande pressao social para exercerautodominio quanto a violencia fisicae para diferir a satisfacjio em geral;grande exercicio de previsao e de pla-neamento a longo prazo.

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CAPfTULO VIII 341

7 Reduzido controlo emocional; pro-cura de excitagao imediata, tenden-cia para violentas oscilagoes de esta-do de espirito; elevado limiar derepugnancia quanto a violencia esofrimento, de modo directo, sobreos outros e de os ver softer; vio-lencia manifesta exibida na vidaquotidiana; debeis sentimentos deculpa depois de cometer actos vio-lentos.

8 Elevado grau de segregagao dospapeis conjugais; familias «centra-das na mae»; pai autoritario comftaco envolvimento na familia; ele-vada separagao das vidas masculinae feminina; grande numero de fi-Ihos.

9 Elevada violencia ffsica nas relatesentre sexos; domfnio masculine.

10 Controlo vago e intermitente dospais em relac,ao aos fllhos; no inicioda socializagao, a violencia e central;de pais para fllhos, violencia afecti-va, espontanea.

11 Tendencia estruturalmente criadapara se formarem «bandos» a voltadas linhas de segmentarizac.ao sociale para estes confrontarem outros«bandos» locais; enfase na «agres-sividade masculina», capacidadepara lutar pelo poder e pelo esta-tuto no bando e na comunidadelocal.

12 Formas «populares» de desporto queconsistem, basicamente, numa ex-tensao ritualizada de combate entrebandos locais; nivel relativamenteelevado de violencia manifesta.

Elevado controlo emocional, procura deexcitagao sob formas discretas, tempe-ramento relativamente estavel; baixo li-miar de repugnancia quanto a violencia esofrimento; prazer por delegagao aoobservar violencia «mimetica», mas naoquanto a violencia «real»; violenciaoculta; recurso racional a violencia emsituagoes onde ela e compreendida comonao sendo detectada.

Baixo grau de segregagao dos papeisconjugais; familias de «ligacjio», «sime-tricas» ou «igualitarias»; elevado envol-vimento do pai com a familia; reduzidaseparagao das vidas masculina e femini-na; pequeno numero de fllhos.

Reduzida violencia nas relagoes entresexos; igualdade sexual.

Controlo estreito e continue dos paissobre os fllhos; socializagao, principal-mente, por meios nao violentos, masrecurso limitado, planeado, a violenciaracional/instrumental.

Tendencia estruturalmente criada para asrelagoes se formarem atraves de escolha enao simplesmente sobre bases locais;estilo masculino «civilizado» expresso,por exemplo, no desporto formal; opor-tunidades para alem das que consistemno poder e no estatuto local; estatutodeterminado pela capacidade profissio-nal, educacional, artistica e desportiva.

Formas «modernas» de desporto, isto e,de representagoes ritualizadas de comba-tes, baseadas em formas controladas deviolencia nas suas formas racional/instru-mental.

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342 AS LIGA^OES SOCIAIS

5

As ligagoes segmentares e a sociogeneseda violencia

A estrutura de uma sociedade em que as ligagoes segmentaresconstituem o tipo dominante e conducente a violencia fisica nasrelagoes humanas, num quadro de formas mutuamente reforgadas.Expresso em termos de analogia cibernetica, podia dizer-se que osvarios elementos de semelhante estrutura social formam um ciclode retorno positivo que aumenta a tendencia para recorrer a vio-lencia a todos os niveis e em todas as esferas das relates sociais.O enfraquecimento do Estado, por exemplo, significa que seme-lhante sociedade constitui uma presa para ataques do exterior. Istoatribui um alto valor aos papeis militares, o que, por sua vez,conduz a consolidagao dirigente predominantemente guerreira,treinada para lutar e cujos membros, devido a sua socializagao,obtem, por esse facto, satisfagao positiva.

Nesse tipo de sociedade, as relagoes inter nas actuam na mesmadirecgao. Lutar, com ou sem armas, e endemico, em grande parteporque «os nossos grupos»* sao meticulosamente definidos, daquiresultando que mesmo os grupos ostensivamente similares damesma localidade sao definidos como «marginais». Os sentimentosde orgulho e de ligagao ao grupo, criados no interior de um paren-tesco e de segmentos locais, sao tao intensos que o conflito e arivalidade sao virtualmente inevitaveis quando os membros de doisou mais grupos se encontram. E as suas normas de agressao, asso-ciadas a ausencia de pressao social no sentido do exercicio de auto-controlo, determinam que o conflito entre si facilmente os impul-siona para a luta.

Com efeito, o confronto e necessario, nao so no interior dosgrupos como entre estes, para fundar e conservar reputagoes emtermos dos seus padroes de agressividade masculina. Os melhoreslutadores tern tendencia para emergir como lideres e todos osmembros desses grupos tern de lutar para sentir e demonstrar aosoutros que sao «homens».

*We-groups. (N. da T.)

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CAPITULO VIII 343

As normas de luta de tais grupos, ligados segundo formassegmentares, sao semelhantes aos sistemas de vendetta* que aindase encontram em muitos paises mediterranicos no sentido em queum individuo que e desafiado ou se sente mais ou menos provoca-do, por um ou mais elementos de um grupo marginal, sente queesta em causa nao so a sua honra mas a honra do seu grupo. Deforma correspondente, e responsavel pela vinganga, nao apenas porretaliagao, contra um ou outro elemento do grupo agressor. Alemdisso, ha a tendencia, em qualquer dos grupos, para que os outrosacorram em auxilio dos que iniciarem o conflito. Desta maneira, aslutas entre individuos evoluem, geralmente, para contendas entregrupos, algumas situando-se, com frequencia, na longa duragao edando assim, em tais circunstancias, uma clara indicagao do nivelelevado de identificagao dos individuos com os grupos a que per-tencem.

A violencia endemica caracteristica de sociedades deste tipo, apar de uma estrutura que consolida o poder de uma classe deguerreiros e que cria uma enfase na agressividade e forga masculina,conduz ao predommio geral do homem sobre a mulher. Por suavez, o predommio masculino conduz a uma elevada separagao navida de dois sexos e, deste modo, as familias concentram-se na mae.A relativa ausencia do pai no seio da familia, associada as grandesdimensoes da mesma, o que e caracteristico das sociedades destegenero, implica que as criangas nao estao sujeitas a vigilancia es-treita, continua ou eficaz dos adultos. O que, por sua vez, tern duasconsequencias importantes. Em primeiro lugar, dado que ha ten-dencia para que a for^a fisica seja acentuada nas relagoes entre ascriangas que nao estao sujeitas a um controlo eficaz dos adultos, issofavorece o aumento de violencia que e caracteristico de tais comu-nidades. Verifica-se que, em comunidades ligadas de forma seg-mentar, a tendencia das criangas para recorrer a violencia fisica e,tambem, reforgada pela utilizagao da violencia exercida pelos seuspais, facto que se explica pela socializagao e pela influencia dosmodelos de adulto que se encontram disponiveis na sociedade emgeral. Em segundo lugar, a relativa ausencia de estrita vigilanciados adultos sobre as criangas conduz a formagao de bandos que se

*Desaven^as hereditarias entre familias, nas quais os confrontos se sucedempara vingar outros confrontos e ofensas anteriores. (N. da T.)

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344 AS L1GA0ES SOCIAIS

mantem nos inicios da vida adulta e que, devido a fidelidade degrupo rigorosamente defmida, caracteristica das liga^oes segmenta-res, leva a frequentes conflitos com outros bandos locals. Os des-portos em comunidades deste tipo — por exemplo, os antecedentespopulares do raguebi moderno — sao expressoes ritualizadas de«guerras de bandos» criadas, geralmente, em tais condigoes, umteste institucionalizado das forgas relativas de comunidades parti-culares, que se desenvolvem e vivem lado a lado num quadro delutas perpetuas, e muitas vezes graves, entre os grupos locals.

O ciclo de retorno positivo, atraves do qual elevados niveisde violencia sao criados no quadro de uma sociedade caracterizadapor ligagoes segmentares, esta ilustrado de modo esquematico nafigura 1.

As ligagoes funcionais,as pressoes civilizadoras e a sociogenese

da violencia racional

As sociedades empiricas que se aproximam, de perto, domodelo de ligagoes funcionais sao, em muitos casos, e varios aspec-tos, diametralmente opostas aquelas em que as ligagoes segmen-tares constituem o tipo predominante. Tal como a ultima, essassociedades estao sujeitas a um ciclo de retorno positivo, mas, nestecaso, o ciclo realiza, como forma de equilibrio, uma fungao civili-zadora, que serve, em especial, para limitar e restringir o nivel deviolencia nas relagoes sociais. Isto nao significa necessariamente quereduza o grau de violencia, mas, antes, que acentua o predominioda vigilancia, utilizando formas mais subtis. Contudo, a estruturadessas sociedades dinamiza, em simultaneo, uma intensa pressaocompetitiva e os meios racionais mais adequados a concretiza-gao dos objectives. Esta combinagao origina, por seu lado, a ten-dencia para que a violencia ilegitima e outras formas de transgres-sao sejam utilizadas de modo racional ou instrumental emcontextos sociais especificos, por exemplo, em encontros despor-tivos altamente competitivos: permitam-me que desenvolva estaquestao.

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CAPfTULO VIII 345

Sujeigao a ataques do exterior

Ausencia de controlo eficaz doEstado; nab existe monopolio daviolencia: classe guerreira do-minante, cujos membros rnan-tem os seus proprios exercitosprivados.

Reduzida divisao de tra-balho; escassa interde-pendencia de cadeias.

Ligagoes segmentares.

Intensa rivalidade e con-flitos entre parentes.

Normas de agressividademasculina.

Dommio masculino; se-gregagao dos sexos.

Familias centradas na mae

Pequena vigilancia dosadultos em relac,ao ascriangas; violencia comoum agente superior desocializagao.

Formagao de bandos;guerra de bandos.

Elevado nivel de violencia nasrelagoes sociais em geral; prazerna violencia; desportos violen-tos, uma expressao ritualizadade guerra de bandos.

Figura 1 —- Dinamica social da cria^ao de violencia sob condifies de liga^ao segmen-tar. As setas indicam as principals directs de influencia no ciclo de retorno positivo.

A caracteristica estrutural basica de uma sociedade em que aliga^ao funcional constitui o tipo dominante e o facto de o Estadoter estabelecido um monopolio sobre o direito de utilizagao da forgafisica. Na medida em que esse monopolio e estavel e eficaz, a

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divisao de trabalho pode aumentar — isto e, a extensao das suascadeias de interdependencia — e isso, aumenta, reciprocamente, opoder do Estado dado o facto, por exemplo, de o controlo centralse tornar cada vez mais necessario quando a estrutura social elevaa sua complexidade. O monopolio do Estado sobre a violenciafisica, bem como o alargamento das cadeias de interdependencia,exerce um efeito civilizador. As primeiras exercem-no directamen-te, porque o Estado tern a capacidade de impedir os cidadaos deutilizarem armas de forma manifesta e de os castigar por usarem aviolencia de um modo ilegftimo, isto e, em situagoes nas quais sereserva o monopolio para os seus proprios agentes. O ultimocumpre um efeito indirecto, porque a divisao de trabalho originaaquilo a que Elias designa por controlos «reciprocos» ou «multipo-lares». Isto e, as ligagoes de interdependencia permitem que ossectores de uma divisao de trabalho exergam um certo grau decontrolo, de modo reciproco. Neste sentido, a divisao do trabalhoexerce um efeito de igualizagao ou «democratizante». Tal efeito ecivilizador, pelo menos, por duas razoes: a) porque as formas decontrolo reciproco originadas pela interdependencia conduzem amaior restrigao nas relagoes sociais; e, b), porque um complexosistema de interdependencia ficaria sujeito a severas tensoes setodos ou mesmo alguns grupos falhassem relativamente ao exer-cicio contmuo de um elevado nivel de autocontrolo. Dessa forma,o autocontrolo e uma preocupagao essencial para a conservagao ecrescimento da diferenciagao de fungoes.

Uma sociedade deste tipo e altamente competitiva, porque umacomplexa divisao de trabalho cria a possibilidade de que os papeissejam flxados com base em resultados mais do que por atribuigaosimples. Este aumento da competigao conduz a um agravamentogeral da rivalidade e da agressividade nas relagoes sociais, mas, namedida em que o Estado reclama de facto o monopolio quanto aodireito de usar a forga fisica, ele nao pode ser expresso sob a formade um comportamento manifesta e directamente violento. Ospadroes dominantes vigentes nessa sociedade actuam no mesmosentido ao determinarem que a violencia e incorrecta. E, na medidaem que tais padroes sao interiorizados no decurso da socializagao,homens e mulheres acabam por ter um baixo limiar de repugnanciaquanto a participarem e a testemunharem, de modo directo, actosde violencia.

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CAPITULO VIII 347

Mas quando a tendencia dominante nessa sociedade se orientapara um nivel de controlo sobre a violencia que, em termos com-parativos, e elevado e eficaz, a pressao competitiva revela-se demaneira diferente. Associada ao facto de que longas cadeias deinterdependencia e o padrao de socializagao correlativo obrigam aspessoas a utilizar previsao, a diferirem a satisfagao imediata e ausarem meios racionais para alcangarem os resultados, mostra queexiste aqui uma tendencia paralela no sentido da utilizagao planea-da ou instrumental de violencia por parte de cidadaos comuns, noquadro de context os sociais especificos, de forma mais evidente nocrime, nos desportos e, em menor dimensao, na socializagao e naeducagao das criangas. Neste momento, apenas nos preocuparemoscom o uso da violencia instrumental nos desportos.

No quadro desta relagao, o que em primeiro lugar deve serreferido e que, numa sociedade onde existe um elevado grau deligagoes funcionais, os desportos de luta, como o raguebi, o futebole o boxe, constituem um enclave social onde se definem formasespecificas de violencia legitimas sob o ponto de vista social. Essesdesportos sao representagoes ritualizadas e civilizadas de combatesem que o uso da forga fisica e limitado por regras e convengoes econtrolado, de forma imediata, por agentes especificos, comoarbitros e, a um nivel superior, por comites e tribunals estabeleci-dos por corpos dirigentes nacionais e internacionais. Mas, a medidaque a pressao competitiva aumenta nesses desportos, quer porqueos seus profissionais estao a competir por recompensas exterioresquer por remunerates financeiras ou pela honra de ganhar umtrofeu, ou porque sao sujeitos a pressoes para veneer por parte dosgrupos locais ou nacionais que representam, havera uma tendenciapara o significado da vitoria aumentar e, em correspondencia, comoparte deliberada, para os jogadores infrigirem as regras. Ao mesmotempo, havera a propensao para se usar a violencia de formailegitima nas situagoes em que existam reduzidas possibilidades dedetecgao ou em que o risco e calculado no que respeita as sangoesque dai possam advir, e desde que nao diminua, a longo prazo, demodo significative, a possibilidade de concretizagao do seu proprioobjectivo ou objectives da equipa.

O ciclo de retorno, por meio do qual se originam reduzidosniveis de violencia geral numa sociedade caracterizada por ligagoesfuncionais e em que as pessoas recorrem a violencia racional ou

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instrumental em situagoes especificas, esta ilustrado de modo es-quematico na figura 2.

Controlo central estavel eficaz;monopolio do Estado da violen-cia fisica; classes dominantespredominantemente civis.

Elevadadivisao de traba-Iho; longas cadeias de in-terdependencia.

Ligagoes fiincionais, ob-tengao de estatuto.

Rivalidade e conflito ca-nalizados para esferas pro-flssionais; estrategias ra-cionais de concretizac.aode objectives.

Norrnas «civilizadas» decomportamento interpes-soal; masculinidade cana-lizadaparao desporto.

Igualdade sexual

Farnflias igualitarias ousimetricas.

Estreita vigilancia dosadultos sobre criangas; usode meios nao violentos desocializagao; limitado re-curso planeado de violen-cianasocializagao.

Relagoes voluntariamenteformadas em bases locals enao locals.

Baixo nfvel de violencia nas re-lagoes socials em geral; elevadolimiar de repugnancia quanto aviolencia instrumental em con-textos especificos.

Figura 2 — Dinamica social da limitacao da violencia e recurso a violencia instru-mental, sob conduces de ligafies funcionais. As setas indicam as principais directsdo ciclo de retorno positivo.

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E claro que a tendencia dirigida para o uso racional da violencianos desportos modernos e neutralizada por valores gerais e pornormas desportivas especificas, mas, em simultaneo, porque e res-ponsavel por provocar retaliagao, serve para intensificar o nivelgeral da violencia desportiva. A complexidade do quadro e acentua-da quando se toma consciencia de que esta discussao se baseia nummodelo que exagera o grau de desenvolvimento que as ligagoesfuncionais atingiram na Gra-Bretanha moderna. O modelo dasligagoes segmentares, em particular, parece ter-se aproximadobastante no que diz respeio a certos sectores das classes trabalhado-ras britanicas. E razoavel aceitar que ligagoes deste tipo desempe-nham um papel na criagao de normas de masculinidade violenta ouagressiva que se podem observar, por exemplo, no confronto dehooligans do futebol (soccer).

As ligagoes segmentares nas classestrabalhadoras e a sociogenese da violencia

dos hooligans do futebol

Acredita-se vulgarmente que o hooliganismo do futebol se tor-nou um problema social na Gra-Bretanha, pela primeira vez, emI960. As investigates mostram, contudo, que nao houve nenhu-ma decada da historia do jogo sem ocorrencia de desordens numadimensao consideravel. De facto, a sua projecgao mostra a tenden-cia para seguir uma curva em forma de U, sendo relativamenteelevada antes da I Guerra Mundial, decaindo depois, no perfodoentre as duas guerras, e permanecendo relativamente baixa atefinais de 1950. Entao, em I960, aumentou, elevando-se rapida-mente desde meados dos anos 60 em diante, fase em que chegoua constituir um ingrediente quase «normal» do jogo proflssional.Apesar de tais variances, com a sua incidencia no tempo, a violenciafisica e uma caracteristica recorrente do hooliganismo do futebol.Esta pode tomar a forma de agressoes aos jogadores e arbitros oude conflitos entre fas rivais. Na sua fase actual, a forma dominanteda violencia dos hooligans do futebol e o recontro com os fas dosgrupos adversarios e, frequentemente, tambem com a policia. Por

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350 AS LIGA^OES SOCIAIS

vezes, semelhante violencia supoe o uso de armas, quer sob formadirecta em combate corpo a corpo quer sob a forma de langamen-to de projecteis, a distancia. Marsh, Rosser e Harre sugerem que ohooliganismo do futebol e uma forma de «agressao ritualizada» eque nao e, de modo geral, muito violenta, excepto nos casos emque a interven^ao da autoridade a distorce, impedindo-a de tomara sua forma «normal»15. Pensam, evidentemente, na violenciaritualizada e «seria» enquanto fenomeno exclusive, pois e dificilconceber o langamento de moedas, dardos, latas de cerveja e, comoaconteceu em alguns desafios, de garrafas com gasolina, como«agressao ritualizada». Afirmar isto nao e negar o possivel efeitoque a intervengao de agentes da policia pode ter nas formas quetoma o hooliganismo do futebol. O bloqueio e a segregagao de fasrivais, por exemplo, tern probabilidades de aumentar a incidenciados langamentos de objectos pelo ar. Mas aquilo que Marsh e osseus colegas desejam negar, aparentemente, e o facto de que taisgrupos pretendem causar, de modo evidente, ferimentos graves nooutro, do genero, por exemplo, dos que sao susceptiveis de serprovocados por moedas, setas e garrafas com gasolina. Em alterna-tiva, o grupo de investigagao de Oxford podera sugerir que, inde-pendentemente das suas intengoes violentas, os hooligans do futebolsao orientados por mecanismos instintivos, tal como e o caso doslobos, por exemplo, de acordo com as descobertas de etologistascomo Lorenz. Mas, apesar das tentativas de Marsh para se distan-ciar das insuficiencias de especulagoes sociobiologicas16, e possiveldeduzir que a analise de Oxford envolve uma identificagao dema-siado profunda dos seus temas humanos com animais inferiores daescala evolutiva. Deste modo, subestima o grau em que o compor-tamento humano e controlado por normas, isto e, socialmente e naopor instintos.

Gostaria de apresentar a hipotese segundo a qual o comporta-mento violento dos hooligans do futebol — sejam quais forem oselementos de ritual que possa conter — esta relacionado, principal-mente, com normas de masculinidade que: 1) colocam grandeenfase na dureza e na capacidade de luta; 2) sao, quanto a este

15Marsh et al., The Rules of Disorder.16Marsh, Aggro.

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CAPfTULOVIII 351

aspecto, diferentes em grau — embora nao em tipo — das formasde masculinidade que dominam vulgarmente na sociedade emgeral; 3) em consequencia, sao objecto de condenagao sistematicapor parte dos grupos socialmente dominantes. De facto, essasnormas sao reminiscentes, de muitas maneiras, das normas demasculinidade que eram habituais na sociedade britanica, numestadio precedente do seu desenvolvimento, especificamente, dasnormas de virilidade que tern as suas raizes, se a analise apresentadaesta correcta, nas ligagoes segmentares e dos seus correlativos naestrutura social mais vasta dos periodos medievais e dos inicios dostempos modernos.

Existem, pelo menos, quatro aspectos no hooliganismo dofutebol actual, sugerindo que as suas caracteristicas principaisdecorrem das ligagoes segmentares, nomeadamente:

1) O facto de os grupos rivais envolvidos parecerem estar, porvezes, tanto ou mais interessados em opor-se uns aos outroscomo em assistir ao futebol. As suas proprias explicates suge-rem que obtem prazer positive no confronto e que a capacidadede luta constitui a principal fonte quer de prestigio individualquer do grupo.

2) O facto de os grupos rivais serem recrutados, principalmente, nomesmo nivel de estratificagao social, isto e, a partir dos chama-dos sectores «rudes» das classes trabalhadoras. Isto significaque, para a sua compreensao, e preciso saber que as suas lutasenvolvem quer conflitos infra quer /#/m:lasses. As liga^oes seg-mentares podem explicar este facto, embora seja necessarioreferir claramente que dizer isto nao e negar que tais grupos seenvolvam em formas de conflito interclasse — por exemplo,que lutam regularmente com a policia, que e a representantedas classes dominantes — nem que sao vitimas exploradas degrupos socialmente mais poderosos.

3) O facto de o confronto entre tais grupos tomar a forma de umavendetta no sentido em que, independentemente de qualqueracgao que possam desencadear por sua iniciativa, individuos egrupos atacam apenas porque os outros ostentam a insignia demembro de um grupo rival. Os conflitos que se desenvolvem,a longo prazo, entre grupos rivais de fas hooligans', e que perdu-ram apesar da mudanga de posigao de elementos que ocorre

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352 AS L1GA0ES SOCIAIS

dentro de semelhantes grupos, aponta na mesma direc^ao, istoe, constituem uma referenda bastante acentuada de identifka-gao de hooligans particulares em relagao aos grupos a que perten-cem.

4) O notavel grau de conformidade e de uniformidade na acgao quee exibido nas can^oes e coros dos hooligans do futebol. Um temacorrente destas cangoes e coros e o engrandecimento da imagemmasculina de se pertencer ao grupo, associado a difama^ao e aemasculagao daqueles que nao pertencem ao grupo. Da partedos membros de grupos mais individualizados, e dificil conce-ber quer o desejo quer a capacidade de participar em tais acgoesuniformes complexas, e, de acordo com isso, aceita-se que osefeitos de homogeneizagao das ligagoes segmentares possamestar na sua base.

Investigates sociologicas17 sugerem que as comunidades «ru-des» das classes trabalhadoras sao caracterizadas por todas ou pelamaioria das seguintes constelagoes sociais: a) a pobreza mais oumenos extrema; b) o emprego de membros em trabalhos nao espe-cializados e/ou empregos acidentais, associado a uma elevada sus-ceptibilidade ao desemprego; c) o baixo nivel de educagao formal;d) a reduzida mobilidade geografka, excepto para alguns membrosdo sexo masculino que viajam por razoes profissionais, por exemplo,no exercito ou, em ligagao com o trabalho nao especializado, naconstrugao civil; e) um quadro familiar centrado na mae e marcadopor extensa rede de parentesco; f) um elevado grau de segregagaodos papeis conjugais e de separagao das vidas dos sexos em geral;g) o predommio masculino, associado a tendencia para os homensexercerem violencia fisica sobre as mulheres; h) a reduzida vigilan-cia em relagao as criangas, associada ao frequente recurso a violenciano processo de socializagao; i) a capacidade comparativamentereduzida dos membros para exercer controlo emocional e paradiferir satisfagao; j) um limiar de repugnancia comparativamentereduzido quanto a violencia fisica: k) a formagao de «bandos» deesquina que sao dirigidos pelos melhores lutadores e no interior dos

17E. Bott, family and Social Network, Londres, 1957; P. Wilmot e M. Young,Family and Kinnship in East London, Londres, 1957; H. J. Parker, View from theBoys, Newton Abbot, 1974; P. Willis, Profane Culture, Londres, 1978.

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CAPfTULO VIII 353

quais, e entre os quais, a luta e frequente; e, /j, os sentimentosintensos de ligagao ao que se encontra rigorosamente definido como«o nosso grupo»* e, por correspondencia, sentimentos profundosde hostilidade no sentido do que esta estritamente definido como«o grupo deles»**.

Os diferentes aspectos de tais configurates orientam-se para oreforgo mutuo. Isto e, tal como os seus equivalentes, as comunida-des das classes trabalhadoras constituem um ciclo de retorno posi-tivo, sendo uma das principals consequencias a agressividademasculina. No entanto, estas formas modernas de liga^oes segmen-tares nao sao identicas as formas pre-industriais, porque estao situa-das numa sociedade com um Estado relativamente estavel e eficaze onde existe uma complexa rede de interdependencias. Comoresultado disso, os grupos locais de hoje, ligados de modo segmen-tar, estao sujeitos a pressoes de «civiliza£ao» e formas de controlooriundas de duas fontes principais: 1) das acgoes de policiamento,da educagao e da intervengao social do Estado; e 2) dos gruposligados de modo funcional, na sociedade mais alargada. No ultimocaso, a pressao verifica-se, por um lado, atraves de acgoes directasdinamizadas por tais grupos e, por outro, atraves da infiuencia quepodern exercer nos meios de comunicagao social e actividades ofi-ciais,

Em resumo, na sociedade moderna, os grupos segmentaresestao sujeitos a restrigoes a partir do exterior, mas, de modo algum,na mesma medida, a partir do interior. Na perspectiva interna, osseus membros continuam encerrados em configuragoes sociais quesao, de diversas maneiras, reminescentes das formas de ligagaosegmentar pre-industrial e que, por correspondencia, originamformas violentas de agressividade masculina. Os sentimentos pro-fundos de ligagao da parte de tais grupos unidos de forma segmen-tar quanto a pertencer ao grupo*** e a hostilidade para comaqueles que nao pertencem ao grupo**** significam que a rivali-dade em termos virtuais e inevitavel quando os seus membros seencontram. E as suas normas de agressividade masculina e a

*We-gnup. (N. da T.)**They-group. (N. da T.)***/« group. (N. da T.)****out-group. (N. da T.)

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354 AS LIGA0ES SOCIAIS

comparativa incapacidade para exercer autocontrolo implicam queo conflito entre eles facilmente conduz ao confronto. De facto, talcomo foi o caso dos seus equivalentes pre-industriais, lutar, dentroou entre esses grupos, e algo necessario como forma de estabelecere conservar reputagoes, de acordo com os seus padroes de masculi-nidade agressiva. Em consequencia disso, os individuos sentemprazer positivo ao realizarem aquilo que para eles e um papelsocialmente necessario.

O futebol tornou-se cenario para a expressao de semelhantespadroes, em certa medida, porque as normas de masculinidade Ihesao intrinsecas. Isto e, tambem constitui basicamente a representa-gao de um confronto onde as reputagoes masculinas se reforgam ouperdem. O seu caracter especifico de oposigao implica que seoriente, de boa vontade, para a identificagao de grupo e para oengrandecimento da solidariedade do pertencer ao grupo, emoposigao a elementos facilmente identificaveis que nao pertencemao grupo, a equipa oposta e os seus adeptos. Na medida em quealguns dos fas sao provenientes de comunidades caracterizadas porvariantes de solidariedade segmentar, o hooliganismo do futebol,sob a forma de confrontos entre bandos de adeptos rivais, e umaconsequencia bastante provavel. Na verdade, e correcto afirmar, porcerto, que o hooliganismo do futebol e um equivalente actual dosantecedentes populates do futebol moderno, embora sobreposto ecombinado, de uma maneira complexa, com a mais diferenciada e«civilizada» association game.

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CAPITULO IX

A violencia dos espectadores nos desafios de futebol:para uma explica$ao sociologica

Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams

Introdugao

O tema deste trabalho e o «hooliganismo do futebol*1. Noquadro desta relagao iremos analisar, em especial, o padrao doconfronto entre grupos rivals que passou a estar assockdo ao fute-bol, de maneira regular, nao so neste pais mas tambem em muitosoutros. De facto, embora seja raro que isto venha a superficie naimprensa, e dificil que exista algum pais em que o futebol sepratique onde nao tenham ocorrido acessos de violencia das multi-does, ainda que os fas ingleses sejam actualmente os mais temidosna Europa e os unicos que provocam distiirbios regulares quandovia jam para o estrangeiro em apoio dos seus clubes ou da equipanacional2.

A pesquisa sobre a qual este trabalho se baseia foi realizada pelaSocial Science Research Council (agora o ESRC) e a Football Trust.Antes de dar a conhecer alguns dos nossos resultados, iremos de-

*Esta comunicac.ao baseia-se nas Conferencias Edward Glover de 1984, profe-ridas por Eric Dunning, no Royal Free Hospital, em Londres. Esta serie de confe-rencias anuais e organizada pela Portman Clinic. Agradecemos a Ilya Neustadt e aTim Newburn os seus comentarios criticos ao esbogo inicial da comunicagao.

2Ver John Williams, Eric Dunning e Patrick Murphy, Hooligans Abroad: the Be-haviour and Control of English Fans in Continental Europe^ Londres, 1984; e tambemThe Roots of Football Hooliganism: an Historical and Sociological Study ^ Londres, em viasde publicagao.

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356 A VIOLENCIA DOS ESPECTADORES

linear certos pararnetros principals do hooliganismo do futebolenquanto fenomeno social.

O hooliganismo do futebol como umfenomeno social

As desordens dos fas do futebol, que passaram a designar-sepela etiqueta de «hooliganismo do futebol», enquanto forma decomportamento, constituem algo de complexo e de multifacetado.Segundo a utilizagao popular, o rotulo abrange, por exemplo, oproferir de palavroes e o comportamento que noutros contextosseria desculpado como de simples «entusiasmo» ou «brincadeirasgrosseiras». De facto, muitos dos fas que sao presos no contexto dofutebol apenas se envolveram nesses delitos relativamente menores.Contudo, em manifestagoes mais graves, a designagao refere-se agrandes invasoes que parecem ser engendradas de maneira delibe-rada, de forma a interromper o desafio, e, talvez o mais grave detudo, as desordens de fas adversaries que sao, com frequencia,violentas e destrutivas. E com esta ultima forma do fenomeno queestamos, acima de tudo, preocupados. Especificamente, os teste-munhos sugerem que, embora muitos fas sejam arrastados para oseio dos incidentes hooligans — fas que nao vao para o jogo cominten^oes destrutivas —, os hard core*, aqueles que se envolvemcom mais frequencia no comportamento hooligan no contexto do fu-tebol, consideram o confronto e o comportamento agressivo comouma parte integrante do «ir ao desafio de futebol». Em geral, essesfas sao habilidosos na fuga a detengao e prisao e, alem disso, nemsempre aparecem nas estatisticas da policia. «Frank», um condutorde camiao de carga e autoconfesso «hooligan do fiitebol», entrevis-tado por Paul Harrison, depois do jogo Cardiff-Manchester Unitedde 1974, pode servir como um exemplo. Foi referido por Harrisoncomo tendo afirmado:

Eu vou a um desafio apenas por uma razao: o aggro. E uma obsessao,

*Da linha «dura». (N. da T.)

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CAPITULO IX 357

a isso nao posso renunciar. Tenho tanto prazer quando estou a teraggro* que quase molho as calgas... Vou por todo o pais a procuradele... todas as noites durante a semana, damos voltas pela cidade aprocura de problemas... entao, se virnos alguem que parece o inimi-go, perguntamos-lhe as horas; se ele responde com uma pronunciaestranha, fazemo-lo repetir; e se ele tern algum dinheiro com ele, nostambem o enrolamos3.

Frank pode bem ter exagerado a extensao do seu envolvimentoe prazer do aggro. Na verdade, se todas as suas declaragoes fossemverdadeiras, seria apelidado por outros fas» mesmo pela maioria doshooligans do futebol, como um «louco» ou um «palerma»4. Apesardisso, o interesse que este demonstra por lutas, a preocupagao coma cria^ao de excitagao agradavel numa situagao de luta, possuicaracteristicas que parecem ser comuns ao estilo de vida dos hooli-gans hard core do futebol. Na perspectiva sociologica, a questaoconsiste em saber explicar porque. De modo mais especifico, trata--se de explicar: porque e que adolescentes e jovens adultos do sexomasculino de grupos particulars dos sectores socioeconomicosmais baixos das classes trabalhadoras passaram a desenvolver umforte interesse pela luta e pelo prazer de lutar? Porque e que umcomportamento abertamente agressivo constitui uma parte taoimportante do seu estilo de vida? E porque e que o futebol passoua constituir um ponto de encontro tao atraente e constante parao rnanifestar? Antes de retomarmos estas complexas questoes,deixem-nos esbogar algumas das principals formas que tomam osconfrontos do hooliganismo do futebol.

As formas dos confrontos hooligansdo futebol

Os confrontos dos hooligans do futebol assumern formas dife-

3Paul Harrison, «Soccer's Tribal Wars», New Society, 1974, Vol. 29, p. 604.4Ver a discussao na obra de Peter Marsh, Elizabeth Rosser e Rom Harre, The

Rules of Disorder, Londres, 1978, pp. 70-2.*Comportarnento agressivo no sentido de provocar disturbios e violencia.

(N. da T.)

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358 A VIOLENCIA DOS ESPECTADORES

rentes e podem ocorrer numa variedade de contextos proximos doproprio campo de futebol. For exemplo, podem tomar a forma deuma luta corpo a corpo apenas entre dois adeptos rivals ou entredois pequenos grupos. Como alternativa, podem envolver muitascentenas de fas de cada lado. For vezes usam-se armas — navalhasde ponta e mola e navalhas Stanley, que se dissimulam com facili-dade, sendo as favoritas na fase actual — nos incidentes mais serios.Os confrontos de hooligans do futebol podem tambem assumir aforma de langamentos pelo ar, usando-se como munigoes projecteisque se classificam desde artigos inofensivos, como amendoins,pedagos de casca de laranja, carogos de maga e copos de papel, ateoutros potencialmente mortais, como dardos, discos de metal,moedas (por vezes com os rebordos agugados), cadeiras partidas,tijolos, placas de cimento, esferas de rolamentos, fogos-de-artiffcio,bombas de fumo e, como aconteceu em uma ou duas ocasioes,garrafas com petroleo.

Os langamentos de projecteis podem ocorrer dentro ou fora docampo, e recentemente, em Leicester, deu-se uma grande invasaode cerca de duzentos fas do Arsenal porque foram objecto de umataque com tijolos e outros projecteis por parte dos fas do LeicesterCity que se encontravam no exterior do campo. Em consequencia dapolitica oficial de segregagao dos fas rivais — foi introduzidopoliciamento nos anos 60 como uma das maneiras de impedir ohooliganismo do futebol, mas que parece ter tido muito maior suces-so no aumento da solidariedade nos «territorios do futebol» e nacondugao do fenomeno para o lado de fora do recinto —, os corn-bates de grande dimensao nas bancadas tornaram-se relativamenteraros durante os anos 70 e principios de 80. Contudo, pequenosgrupos de fas conseguem ainda infiltrar-se, com frequencia, nosterritories dos seus rivais, de modo a iniciar um confronto ou acriar disturbios mais alargados. Participar numa «invasao» —«conquistar» os «territorios» de alguem — e uma fonte de grandepopularidade nos circulos do hooliganismo do futebol. Porem, nosnossos dias, sao mais frequentes os confrontos que ocorrem tantonos sectores das bancadas nao reservadas do recinto como antes dojogo, por exemplo, nos bares por toda a cidade. Verificam-setambem, depois do jogo, quando a polfcia procura man ter os fasadversaries afastados e conduz o grupo principal dos adeptos defora para a via ferrea ou para a estagao das camionetas, para que nao

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CAP ITU LO IX 359

sucedam incidentes graves. E entao que existe a possibilidade deocorrencia de maior numero de confrontos. Estes comegam, geral-mente, com uma «corrida», isto e, com a investida de cerca deduzentos ou trezentos jovens fas do sexo masculino, que atacam aolongo das ruas a procura dos fas adversaries ou em busca de umaabertura nas barreiras da policia que Ihes permita o contacto comos seus rivais. Contudo, os hooligans hard core, os que se empenhammais no objectivo de atacar grupos de adeptos da equipa oposta eem iludirem a policia, actuam com frequencia separados do grupoprincipal e utilizam tacticas elaboradas. Se tern exito, o que acon-tece, de um modo geral, e uma serie de escaramugas dispersas poruma area relativamente grande, envolvendo jovens do sexo mascu-lino de ambos os lados, que dao murros, pontapes e se perseguementre si, esquivando-se por dentro e por fora do transito em movi-mento e, por vezes, atacando veiculos que transportam adeptosrivais. As confrontagoes podem ainda surgir quando grupos de fas,en route*p&ta. jogos diferentes, se encontram, por exemplo, noscomboios, nas passagens subterraneas e nas estagoes de servigo dasauto-estradas. Alem disso, as lutas tambem ocorrem, as vezes,dentro de grupos particulares de fas, sendo os participantes, nessecaso, oriundos de diferentes bairros da mesma localidade.

Na nossa investigagao, estivemos particularmente interessadospor aquilo que os nossos hooligans do futebol e outros jovens faschamam as «equipas de combate»**, em especial, as dos grupos desuper-hooligans que se desenvolveram, nos ultimos anos, em algunsdos maiores clubes. Os membros desses grupos — como os auto-intitulados Inter City Firm, em West Ham, o Service Crew, emLeeds, e os grupos equivalentes em clubes como o NewcastleUnited e o Chelsea — apoiam com frequencia a extrema-direita,organizagoes racistas como o British Mouvement e a NationalFront. Desenvolveram, tambem, formas de organizagao bastantesofisticadas e tornaram-se conhecidos a nivel nacional. Um dos seusprincipals tragos distintivos e o facto de nao viajarem para os jogosnos «especiais de futebol» e nas camionetas normais de passageiros,utilizando em vez disso os servigos regulares do caminho de ferro,camionetas ou carros e carrinhas alugadas. Tambem evitam as

*Em Frances no original. (N. da T.)**Fightmg crews. (N. daT.)

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360 A VIOL&NCIA DOS ESPECTADORES

maneiras de vestir — os cachecois e os distintivos (e tambem asbandeiras do clube) — que, na opiniao piiblica, continuam a estarmuito associadas ao hooliganismo do futebol. Um dos seus princi-pals objectives quando assistem aos jogos consiste em defrontar elutar com os fas opostos, para «lhes conquistar o seu territories Osfas deste tipo via jam sem cores que os identifiquem, a fim de naose denunciarem antecipadamente aos fas rivais e a policia. Isto acon-teceu no caso de «Frank», o entrevistado de Harrison, mas tambeme evidente na descri^ao proporcionada por «Howie», um dos hardcase* de Leicester, de vinte anos:

Se consegue iludir os chuis, voce vencera. So tern de pensar como equ'eles vao pensar. E, sabe, quase sempre adivinha o que eles vaofazer, por qu'eles fazem o mesmo percurso todas as semanas, semanaapos semana. Se conseguir descobrir uma maneira d'os bater vai-s'encher de rir, tera uma boa briga** [giria de Leicester para luta}.E por isso que eu nunca uso distintivo, no caso de ir para o outrolado [oposto]. Costumava usar um cachecol mas [a polfcia] chegoue mandou-me parar. Costumava levar o cachecol e ir «bang, bang».Pensei, eu nao volt'a ter aquilo. Tire-o, eles nao o podem agarrar.

Os hard cases, tal como «Frank» e «Howie», desistiram hamuito tempo de envergar cachecois e distintivos, mas merece apena salientar que, hoje em dia, muito poucos fas dos que vao aofutebol, em parte ou acima de tudo para «a acgao», exibem taissinais de identificagao. Nem muitos deles seguem o estilo skin--head***, que foi tao popular nos ultimos anos de I960 e de 1970.Em vez disso, e embora existam variances regionais e «objectivesespecificos», preferem vestir de acordo com os ditames da modajovem corrente, em parte porque os velhos «uniformes hooligans»sao considerados anacronicos e sem «estilo» mas, tambem, comodissemos, para nao se denunciarem, antecipadamente, aos fas ad-versarios e a policia.

Esta descrigao geral de alguns dos principals parametros dohooliganismo do futebol, e de algumas das mudangas que certos

*Casos «duros». (N. da T.)**Fuckin' rout. (N. da T.)***Cabegas rapadas». (N. da T.)

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aspectos do mesmo sofreram recentemente, e compativel com aquestao central que colocamos acima, ou seja, que os adolescentese os j ovens do sexo masculino que se encontram envolvidos namaioria dos incidentes graves encaram a luta e os confrontos comos adeptos adversaries como um aspecto integrante da comparenciaa um desafio de futebol. As cangoes e os coros que constituem umacaracteristica assinalavel da rivalidade entre grupos de fas, emespecial dentro do estadio, apontam no mesmo sentido. Ainda quealguns dos rapazes hard-est* julguem que cantar e entoar coros esoft**, nao se dispondo, pois, a envolver-se em tais praticas, duranteum jogo os grupos rivais dirigem a sua atengao tanto, e por vezesate mais, de uns para os outros do que para o proprio jogo, cantan-do cangoes, entoando coros e gesticulando en masse***, exprimindoa sua oposigao no quadro do que se pode chamar a uniformidade es-pontaneamente orquestrada. As suas cangoes e coros estao relacio-nados de certo modo com o jogo, mas tambem tern como motivescorrentes os desafios a luta, as ameagas de violencia no sentido dosfas adversaries e as vanglorias sobre vitorias passadas. Cada grupode fas possui o seu proprio repertorio de cantigas e de coros,embora muitos sejam variagoes locals de um con junto de temascomuns. No quadro desta ligagao, surge como elemento central ofacto de as suas letras serem pontuadas com palavras como «6dio»,«morte», «luta», «pontape», «rendigao», termos que transmitemimagens de combate e de conquista5. Para alem da violencia, acastra^ao simbolica dos fas rivais e outro tema frequente nas ban-cadas, por exemplo, a referenda a eles e/ou as suas equipas comopoof**** ou wankers, este ultimo acompanhado por uma grandequantidade de representagoes gestuais do acto de masturbagao mas-culino. Ainda outro tema comum e a difama^ao da comunidade defas adversaria. Permitam-me voltar agora ao problema da expli-cagao.

5Simon Jacobson, «Chelsea Rule — OK», New Society, 1975, vol. 31,pp. 780-3.

*Um dos «duros» da parte este do pais. (N. da T.)** « Amaricado».***Em Frances no original. (N. da. T.)****«Homossexuais» ou «masturbadores». (N. da T.)

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362 A VIOLENCIA DOS ESPECTADORES

4

Explicates correntes do hooliganismodo futebol

Sao propostas vulgarmente duas explicates principals dohooliganismo no futebol e ambas parecem ter sido bastante aceites,nomeadamente que ele e provocado pela bebida e/ou pela violenciano campo de jogo. As duas possuem serias limitagoes e, na medidaem que contem, de certo modo, elementos validos, necessitam deser expostas dentro de um quadro de explicagao mais vasto. Forexemplo, a bebida nao se pode afirmar que seja uma causa signi-ficativa ou «profunda» do hooliganismo do futebol pela simplesrazao de que nem todos os fas que bebem, mesmo aqueles quebebem demasiado, tomam parte nos actos dos hooligans. Nem todosos hooligans bebem, ainda que exista uma nitida relagao entre essacircunstancia e o confronto e, tambem, com as bebidas fortes, comas normas de masculinidade que se evidenciam no seu comporta-mento. De facto, esses fas tendem a ser relativamente agressivosmesmo sem a interferencia das bebidas. Do mesmo modo, a violen-cia num jogo de futebol nao e invariavelmente seguida de inciden-tes de hooligans. Nem todos os incidentes hooligans sao precedidosde violencia no relvado — obviamente, e este o caso, por exemplo,nos confrontos antes dos desafios. Mas afirmar isto nao e negar quea bebida e a violencia no relvado se encontrem implicadas, porvezes de forma causal, na sequencia de factos que se verificam, demodo geral, nos confrontos dos hooligans do futebol. Para se com-preender esta situagao, ha que pensar em termos de uma hierarquia,e nesse sentido pode afirmar-se que a violencia no campo e a bebidapodem estar, a nivel superficial, implicadas de uma forma causal naorigem do hooliganismo do futebol. Este e um problema complexoe nao temos espago aqui para entrar em detalhes. Bastara afirmarque o consumo de alcool e uma das principals condigoes que faci-litam a violencia do hooliganismo do futebol, o que se explica pelofacto de o alcool ser um agente que diminui as inibigoes. No casodos fas hooligans, ajuda a criar um sentimento de intensa camarada-gem no grupo e, tambem, constitui um apoio na superagao domedo, por um lado, de se ferirem nos confrontos e, por outro, deserem presos pela policia. A ultima situagao e possivel, dado que,

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CAPfTULO IX 363

embora o hooliganismo do futebol nao constitua uma ofensa comotal, o seu comportamento transgride, frequentemente, algumas dasleis e ocorre em lugares publicos onde existe, de um modo geral,a presenga de numerosos policias explicitamente designados para oimpedir. De facto, os pequenos atritos com as autoridades — avarios niveis do mundo do futebol e nao so com a policia — podemser uma fonte significativa da excitagao verificada nos recontrosdo hooliganismo do futebol. Este fenomeno tambem proporcionauma oportunidade de os fas desencadearem, num contexto exteriorao futebol, hostilidades com a policia, enfim, um palco publicopara manifestarem a sua falta de respeito pelos valores «res-peitaveis»6.

De forma similar, a intensidade da violencia no relvado podeservir como um rastilho para o hooliganismo do futebol, mas omesmo pode verificar-se por influencia de outras contingencias,como um policiamento intenso e pouco sensato, o desejo de vingaruma derrota imposta no decurso de uma luta realizada num jogoanterior e a ambigao de um dos grupos de fas derrubar outro dopedestal sobre o qual os meios de comunicagao o colocaram. Refe-rimo-nos aqui a uma especie de notoriedade dada pelos meios decomunicagao, em 1970, ao Doc's Red Army, isto e, aos fas doManchester United, e, na actualidade, aos fas do Chelsea e do LeedsUnited. De facto, os meios de comunicagao desempenharam umpapel de relevo na criagao de uma hierarquia nacional no estatutodos hooligans do futebol e na luta pelo estatuto entre os diferentes«territorios do futebol». Por outras palavras, existem, geralmente,de acordo com o envolvimento dos fas hooligans, duas tabelas clas-sificativas da liga: uma oficial e outra nao oficial, em parte criadapelos meios de comunicagao. A primeira e sobre jogos vencidos ouperdidos e os pontos ganhos na classificagao da liga. A segunda esobre quern foge, onde e de quern, e quern e assinalado actualmente

6Talvez seja oportuno sublinhar que as obrigagoes dos desafios de futebolproporcionam a policia oportunidades quer para ganhos extras quer para obteremuma bem-vinda libertagao das rotinas normals. Por outro lado, nos encontros defutebol, nao so os hooligans mas, tambem, a policia dispoe de oportunidades para «ac-gao» dentro de um contexto excitante. Alias, em consequencia do oprobrio que seabateu sobre o hooliganismo do futebol, este e um contexto em que as estrategiasutilizadas pela policia raramente despertam a critica publica.

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pelo dommio oficial e pelos meios de comunicagao como oshooligans mais «diabolicos» e «destrutivos» do pais. Em resume,aquilo que sugerimos e que, enquanto estas explicagoes oficiais,aceites vulgarmente, em termos de consumo de alcool e de violen-cia no campo de jogo, se referem a factores que nao podern setexcluidos como elementos de determinagao do comportamento dohooliganismo do fiitebol, elas ficacassam, todavia, no aptofundamen-to do problema da hierarquia das causas, is to e, quanto as rafzes dofenomeno. Em particular, nada esclarecem sobre a forma como seproduzem, entre os fas hooligans, o prazer de lutar e a enfase na ca-pacidade de «olhar por si proprio», sobre as normas e os padroesque orientam o seu comportamento, ou sobre as razoes por queo fiitebol passou a constituir um dos pontos de encontro mais in-sistentes para os exprimir. Na verdade, o mesmo se pode afir-mar quanto a maioria das explicagoes academicas propostas. Epara algumas dessas explicagoes que a nossa atengao se ira agoravoltar.

As explicagoes academicas sobreo hooliganismo do futebol

Nos seus primeiros trabalhos sobre o tema, Ian Taylor atribuiuo hooliganismo do futebol dos fas hard core aquilo que ele chama-va o «emburguesamento» e a «internacionalizagao» do jogo7.Sugeria que os fas do futebol da classe trabalhadora acreditavamque os clubes da liga costumavam ser, de certo modo, «democraciasparticipativas», e argumentava que os hooligans constituiam umaforma de «movimento de resistencia» da classe trabalhadora, aqual tentaria reafirmar o controlo perante as mudangas impostas

7Ian Taylor, «Football Mad: a Speculative Sociology of Football Hooliganism»,em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971,pp. 352-7; ver tambem o seu «Soccer Consciousness and Soccer Hooliganism», emStan Cohen (ed.), Images of Deviance, Harmondsworth, 1971, pp. 134-64.

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pelos grupos da classe media, de maneira a garantir os seus inte-resses.

Em certos aspectos, a analise de John Clarke e semelhante aotrabalho inicial de Taylor8. Este autor atribuiu o hooliganismo dofutebol a conjuntura dos anos 60, aquilo que ele designa por «pro-fissionalizagao» e «espectacularizagao» do jogo e, em particular,as alteragoes na situagao social da classe trabalhadora jovem, mu-dangas, como o afirma, que «tiveram o efeito combinado de que-brar alguns dos lagos de familia e de vizinhanga que ligavam osjovens e os mais velhos num tipo de rela^ao especifica, no seioda vida da classe trabalhadora antes da guerra»9. Por outras pala-vras, de acordo com Clarke, o hooliganismo do futebol constituiuma reacgao dos jovens separados das comunidades desintegradasda classe trabalhadora contra o futebol comercializado e a apresen-tagao do jogo como espectaculo e divertimento. Ele afirma que, emresultado da desintegragao das suas comunidades, esses jovens as-sistem agora aos jogos libertos da vigilancia dos familiares maisvelhos e dos vizinhos que habitualmente os controlavam. Final-mente, Stuart Hall examinou o papel da imprensa na criagao do«panico moral» relativo ao hooliganismo do futebol, sugerindo queeste aumentou, enquanto «motivo de preocupagao», de formacorrelativa a deterioragao da economia britanica10. Apresenta ahipotese de que isto conduziu a uma concentragao da atengaodo hooliganismo do futebol como um aspecto daquilo que ele eos seus colegas da Universidade de Birmingham descrevem como aestrategia corrente da classe dirigente de «policiamento da crise»n.

Estamos conscientes, e claro, de que o trabalho de Taylor,Clarke e Hall pode ser interpretado como reportando-se aofenomeno geral do hooliganismo do futebol e nao se centrando nasproezas dos «grupos de combate». Esta e uma das razoes por que

8John Clark, «Football and Working Class Fans: Tradition and Change», emRoger Ingham (ed.), Football Hooliganism: the Wider Context, Londres, 1978,pp. 37-60.

9/^/W.,p. 51.10Stuart Hall, The Treatment of «Football Hooliganism* in the Press, em Ingham

(ed.), pp. 15-36.11 Ver Stuart Hall et al., Policing the Crisis: Mugging, the State and the Law and Or-

der, Londres, 1978.

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nao desejamos negar totalmente a validade das suas explicates.Contudo, parece-nos — e no caso de Hall esta enfase e bastanteclara — serem mais adequadas enquanto explicates da formacomo a ansiedade piiblica foi produzida e orquestrada no que dizrespeito ao hooliganismo do futebol do que o sao como esclareci-mento do proprio fenomeno. Afirmamos isto, por um lado, porqueHall, Taylor e Clarke parecem acreditar erradamente que o hooli-ganismo do futebol, entendido como um fenomeno social, datasomente dos primeiros anos da decada de 60 e, por outro, devidoa sua incapacidade de dominarem de forma adequada o que e, apartir da perspectiva teorica de Marx que partilham, um dos aspec-tos mais complexos do hooliganismo do futebol enquanto fenomenosocial, nomeadamente o facto de envoiver uma forma de conflitoexplfcita entre grupos das classes trabalhadoras e de os principalsparticipantes se confrontarem com a autoridade e os membros dasclasses mais favorecidas, como um passo na tentativa para lutarementre si. Hall, Taylor e Clarke, e claro, podiam explicar este aspectodo fenomeno atribuindo-o ao «desvio da agressao», mas, tantoquanto sabemos, com a unica excepgao de Taylor, no seu recentetrabalho, nenhum deles conseguiu faze-lo12. Por esse motivo, eaceitavel concluir que as suas explicates do hooliganismo do fute-bol, na melhor e na pior das hipoteses, apenas conseguem atingira superficie do problema.

Poderia argumentar-se que a este respeito e dada uma explica-gao ao trabalho de Marsh, Rosser e Harre. No seu livro The Rulesof Disorder, os autores incidem explicitamente sobre os confrontosdo hooliganismo do futebol, afirmando que a sua violencia e exa-gerada pelos meios de comunicagao e que esta nao e realmente nadamais do que um «ritual agressivo», onde raramente se verificam

12Ian Taylor, «On the Sports Violence Question: Soccer HooliganismRevisited», em Jennifer Hargreaves (ed.), Sport, Culture and Ideology, Londres,1982, pp. 152-96; «Class, Violence and Sport: the Case of Soccer Hooliganismin Britain», em Hart Cantelon e Richard S. Gruneau, Sport, Culture and theModern State, Toronto, 1982, pp. 39-93. David Robbins e Philip Cohen reco-nhecem a dimensao do conflito intraclasse no problema quando escrevem: «Opatetico e a futilidade das lutas entre grupos rivais de jovens socialmente des-favorecidos e a melhor demonstrate da medida da ascendencia dos que detemrealmente o poder de classe sobre eles.» Ver o seu Knuckle Sandwich: Growing Upin the Working Class City, Harmondsworth, 1978, p. 151.

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ferimentos de gravidade13. A falta de espago impede-nos de apre-sentar aqui uma critica completa desta explicagao14. Bastara dizerque o seu trabalho e profundamente influenciado pela etologia, emespecial pelo trabalho de Desmond Morris, e baseado na afirmagaoimplicita de que ritual e violencia, como categorias de comporta-mento, se excluem mutuamente. De acordo com isso, parecemincapazes de notar que os rituais podem ser seriamente violentos. Aolevar esta critica por diante, nos nao negamos, e claro, a existenciada componente ritual no comportamento hooligan. Ela e evidente,por exemplo, na postura agressiva entre fas rivais e na sequencia decoros e de contracoros nas bancadas, pois, nestas circunstancias, aviolencia e «metonimica» e «simbolica», como Marsh et al. o afir-mam. Aquilo que sugerimos, antes, e que Marsh e os seus colegassubestimam a gravidade da violencia que, por vezes, esta envolvidanos combates entre fas rivais. Tambem desprezam os combates noexterior, afastados do recinto, e os langamentos pelo ar que ocorremnos desaflos de futebol e que incluem regularmente, comoafirmamos atras, o arremesso de projecteis perigosos. E dificilacreditar que semelhantes objectos sejam langados simplesmentecomo fazendo parte de uma exibigao agressiva que nao envolve ainten^ao de causar ferimentos ou, pelo menos, a ideia de que daipossam resultar ferimentos graves.

Tal como o titulo do seu livro sugere, Marsh e os seus compa-nheiros pretendem demonstrar, como ponto central da sua tarefa,que o hooliganismo do futebol, uma actividade que geralmente seentende e representa como «desgovernada» e «anarquica», e diri-gida, de facto, por um con junto de regras. Na perspectiva so-ciologica, isso seria diflcilmente surpreendente. Contudo, o maisimportante para os objectives presentes e o facto de que a suaconsciencia destas regras permanece ao nivel da superficie. Isto e,

13Ver Marsh et al., The Rules of Disorder, p. 155 e seguintes.14Para uma critica mais detalhada do trabalho de Marsh et al., ver o trabalho

de Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, «Ordered Segmentationand the Sociogenesis of Football Hooligan Violence: a Critique of Marsh's "Ri-tualized Agression" Hypothesis and the Outline of a Sociological Alternative^em Alan Tomlinson, The Sociological Study of Sport: Configurational and Interpreta-tive Studies, Brighton, 1981, pp. 36-52; ver tambem, de Patrick Murphy e JohnWilliams, «Football Hooliganism: an Illusion of Violence», comunicagao naopublicada, Universidade de Leicester, 1980.

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nao conseguem demonstrar as suas raizes socials, a forma como elassao socialmente criadas. De acordo com isto, Marsh et al. nao fazemqualquer tentativa sistematica para conhecer as origens socials e ascircunstancias que constituem o problema dos hooligans do futebol,contribuindo por isso para dar a ideia de qiie, na sua perspectiva,tais regras sao criagoes voluntarias de indivfduos socialmente desin-seridos. E com a explicagao da origem das normas e dos valores quesao exibidos nos confrontos dos hooligans do futebol que nos vamosagora preocuparmo-nos. No quadro desta relagao iremos ampliar otrabalho de Gerald Suttles15, na tentativa de delinear os contornosde uma configuragao social especifica da classe trabalhadora denfvel mais baixo, no interior do qual sao persistentemente criados«bandos» de adolescentes e de jovens adultos do sexo masculino,entre os quais a luta e frequente, e onde se desenvolveram normasde masculinidade que acentuam a dureza e a capacidade para lutarcomo sinais que constituem os principals atributos masculinos.Depois disso, daremos uma explicagao geral do rnotivo por que ofutebol passou a ser um cenario favorito para exprimir uma formade distingao da classe trabalhadora de nfvel mais baixo, o «estilomasculino agressivo».

O hooliganismo do futebol e a classetrabalhadora de nivel mais baixo:

a «segmentagao ordenada» e a formagaode aliangas entre grupos de fas

As informagoes sobre as origens socials dos fas que se defrontarnnos jogos de futebol sao, regra geral, bastante escassas, mas osdados sobre os que foram condenados por ferirnentos relacionadoscom o futebol sao coincidentes com a nossa propria observagaoparticipante e sugerem que o fenomeno e predominantemente umaarea reservada da classe de trabalhadores de nfvel mais baixo. O Re-

15Ver, de Gerald Suttles, The Social Order of the Slum: Ethnicity> and Territory in theInner City, Chicago, 1968; e The Social Construction of Communities, Chicago, 1972.

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latorio Harrington, por exemplo, concluia, em 1968, que «os dadosactuals sugerem que... [os hooligans do fiitebol] sao oriundos, prin-cipalmente, da classe de trabalhadores com os problemas especificosinerentes as grandes cidades industrials e portos, onde se sabe exis-tirem subculturas violentas e delinquentes»16. Cerca de uma decadadepois, Trivizas chegou a uma conclusao semelhante, nomeada-mente que oitenta por cento das pessoas acusadas de ofensas fisicasrelacionadas com o futebol eram operarios e desempregados17.A descrigio de Harrison das «desordens comet Idas» em CardiffCity, em 1974, baseou-se em «Canton e Grangetown, alinhamen-tos de casas dispostas em socalcos com poucos espagos ao ar livre,e em Llanrumney, um enorme bairro camarario com um registoaterrador de vandalismo»18. E embora, como o sugerimos atras,Marsh e os seus colegas, no decurso do estudo de Oxford, nao setenham referido directamente a questao da proveniencia de classe,alguns dos seus informadores proporcionavam comentarios relevan-tes. Por exemplo, um deles afirrnou:

Se voce vive em Leys fum bairro camarario local], entao tern de lutarou qualquer pessoa Ihe urina em cima e pensa que voce e um poucosoft ou coisa parecida19.

De facto, cerca de metade do grande contingente de fas deOxford presos durante graves disturbios no jogo da Taga entreo Coventry City e o United FA, em Janeiro de 1981, provinhamdo bairro em questao20. Os testemunhos de Leicester refor^ameste quadro geral, com um bairro local de classe trabalhadora denivel mais baixo responsavel por cerca de um quinto de fas daregiao presos no Estadio Filbert Street, em Janeiro de 1976 e Abrilde 1980. Isto levanta a questao de saber o que e que sepassa acerca da estrutura de tais comunidades e a posigao queestas ocupam na sociedade em geral, que origina e mantem o

16J. A. Harrington,, Soccer Hooliganism, Bristol, 1968, p. 25.17Eugene Trivizas, «Offenses and Offenders in Football Crowd Disorders», Bri-

tish Journal of Criminology, Vol. 20, n.° 3, 1980, p. 282.18Harrison, «Soccer's Tribal Wars», New Society, 1974, Vol. 29, p. 602.19Marsh et al, The Rules of Disorder, p. 69.^Oxford Mail, 9 de Janeiro de 1981.

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padrao de masculinidade agressiva que alguns dos seus membrosexibem no contexto do futebol e noutros lugares.

Como sugerimos antes, uma util orientagao e fornecida noquadro desta relagao, pelo trabalho de Gerald Suttles. A sua pes-quisa desenvolveu-se em Chicago e centrava-se nas comunidadescujos padroes gerais, como afirma, eram aqueles «em que idade,sexo, raga e unidades territoriais se ajustavam como construgoes embloco, numa arquitectura favoravel a criagao de uma estrutura maisalargada»21. Suttles forjou o termo «segmentagao ordenada» deforma a apreender duas caracterfsticas relacionadas do padrao devida dessas comunidades: em primeiro lugar, o facto de que, en-quanto os segmentos que estao mais proximos uns dos outros saorelativamente independentes entre si, os membros desses segmen-tos tern, contudo, a tendencia para se combinarem, de modo regu-lar, por meio de oposigao e de conflito; e, em segundo lugar, o factode estes alinhamentos de grupos tenderem a formar-se de acordocom uma sequencia fixa22. Em certos aspectos, este padrao e semel-hante ao que se verifica no «sistema de parentesco segmentar»discutido por antropologos como Evans-Pritchard23. Robins eCohen afirmam ter observado um modelo deste tipo num bairro dasclasses trabalhadoras em North London24 e, mais significative aindapara os nossos objectivos presentes, Harrison refere-se ao que desi-gna «a sindroma beduina» no futebol contemporaneo23, nomeada-mente um padrao no qual se verifica a tendencia para se fazeremaliangas ad hoc, de acordo com os seguintes principios: o amigo deum amigo e um amigo; o inimigo de um inimigo e um amigo; oamigo de um inimigo e um inimigo; o inimigo de um amigo e uminimigo26.

As nossas proprias investigates fornecem alguns dados queprovam a existencia de um padrao semelhante tanto nos bairros dasclasses trabalhadoras como no contexto do futebol. Em Leicester, osconflitos interbairros que envolvem grupos de jovens adolescentes

21Suttles, The Social Order of the Slum, p. 10.22lbid.23E. E. Evans-Pritchard, The Nuer, Oxford, 1940.24Robins and Cohen, Knuckle Sandwich, p. 79 e seguintes.25Harrison, The New Society.26Robins and Cohen, Knuckle Sandwich, p. 71.

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do sexo masculino devem-se a necessidade de defender o «bomnome» do bairro, encarado como um todo, contra bandos rivals querepresentam os bairros vizinhos. Contudo, rapazes destes bairros eoutros de Leicester e da area circundante mantem-se lado a lado,nas bancadas de Filbert Street e no exterior do recinto, unidos nademonstragao de solidariedade quanto ao «territorio da casa» emoposigao aos fas visitantes. Se o desafio se compreende em termosregionais, entao tambem os inimigos podem juntar-se para conju-gar forgas. Por exemplo, os fas do Norte, de visita a Londres,queixam-se com frequencia de confrontos com «grupos de corn-bate» compostos de numerosos clubes da metropole. Huston Stationcostumava ser um local de reuniao favorito para encontros destetipo. David Robins ate refere aliangas efectuadas entre fas de clubesmais pequenos, proximos de Londres, como o QPR e o Chelsea, eo Orient e o West Ham, com o objectivo de se oporem aos fas dosseus maiores rivais metropolitanos27. Os habitantes do Sul e doCentro de visita ao Norte, especialmente as maiores cidades doNorte, tambem apresentam queixas de ataques realizados a partirde aliangas interterritorios. Finalmente, a um nivel internacional,as rivalidades de clube e regionais tendem a subordinar-se aos in-teresses de honra nacional. Alem disso, em cada um destes niveisas rivalidades menores tornam por vezes a emergir. Assim demons-trada a forma como esta estrutura actua num contexto do futebol,deixem-nos examinar com maior detalhe a estrutura da «segmen-tagao ordenada».

7

A «segmentagao ordenada» e a formagaode «bandos de esquina»

De acordo com Suttles, o trago dominante de uma comunidadecaracterizada por «segmentagao ordenada» e o aparecimento dogrupo so de um sexo ou do «bando de esquina». Tais grupos,afirma, parecem «desenvolver-se com bastante logica a partir de

27David Robins, We Hate Humans, Harmondsworth, 1984, p. 86.

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uma acentuada enfase no nivelamento por idade, na segregagaoentre sexos, na unidade territorial e na solidariedade etnica»28.Contudo, Suttles documenta a ocorrencia regular de conflitos entre«bandos» do mesmo grupo etnico e reconhece, num outro lugar,que a diferenciagao etnica e a solidariedade sao factores contingen-tes mais do que factores necessarios na formagao de tais «bandos»29.Isto e, o nivelamento por idade, a segregagao dos sexos e a identi-ficagao territorial parecem ser as determinantes cruciais da estrutu-ra social interna. Em particular, um forte grau de segrega^ao porgrupos de idade significa que a crianga em semelhantes comunida-des e langada, em geral, desde muito cedo para as ruas, onde brincasem a vigilancia dos adultos. Este padrao e exacerbado por umavariedade de pressoes domesticas. A segregagao entre os sexosresulta da tendencia para as raparigas adolescentes serem atrafdaspara o interior de casa, ainda que algumas possam formar «bandos»femininos bastante agressivos ou, simplesmente, «andem a volta»dos rapazes, situagao em que o seu estatuto se inclina para a su-bordinagao. Em comunidades deste tipo, os adolescentes do sexomasculino, em resultado desta configuragao social e para alem daaten^ao que suscitam geralmente por parte da policia e de outrosagentes, estao, em grande parte, entregues aos seus proprios meiose tendem a unir-se em grupos que sao determinados, por um lado,atraves de lagos de parentesco e de residencia proxima ou comume, por outro, pela amea^a real ou pressentida representada pelodesenvolvimento de «bandos» paralelos nas comunidades adjacen-tes. De acordo com Suttles, tais comunidades inclinam-se a frag-mentagao a nfvel interne, mas, afirma, atingem um grau de coesaoperante as ameagas reais ou pressentidas provenientes do exterior.Um «confronto de bandos» real ou do qual se fala cria o maiselevado grau de coesao, preserva-o, porquanto semelhantes lutaspodem mobilizar a fidelidade dos membros do sexo masculino emtoda a comunidade30. Mas permitem-nos ir para alem de Suttles eexplorar algumas das vias segundo as quais a estrutura das comu-nidades deste tipo conduz a produgao e a reprodugao no seu seio da

28Suttles, The Social Order of the Slum, p. 169-29Ver, por exemplo, ibid, pp. 31-33. Ver tambem, Suttles, 1972, pp. 28-9.30/£/W.,pp. 176, 181 e 194.

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«masculinidade agressiva», uma das suas caracteristicas domi-nantes.

8

A sociogenese da «masculinidadeagressiva»

Na medida em que as suas estruturas correspondem a «segmen-tagao ordenada», as comunidades das classes trabalhadoras de nivelmais baixo revelam a inclinagao para criar padroes que, em relagaoaos dos grupos mais elevados na hierarquia social, sao mais toleran-tes a um elevado nivel de agressividade manifesta nas relatjoessocials. Muitos aspectos da estrutura de tais comunidades actuamnesse sentido. For exemplo, em termos comparativos, a liberdadeque e vivida pelas criangas e adolescentes das classes trabalhadorasde nivel mais baixo quanto ao controlo que e exercido pelos adultose o facto de a sua socializa^ao inicial ser realizada na rua, emespecial junto dos seus companheiros de idade, determinam a in-clinagao para interagirem de forma agressiva entre si, desenvolven-do hierarquias de dominio que se baseiam, em grande parte, naidade, forga e coragern31. Este padrao e reforgado pelo facto de ospais das classes trabalhadoras de nivel mais baixo exercerem, emcomparagao com os adultos da escala social mais elevada, menorpressao sobre os filhos que estao a crescer, tendo em vista o auto-controlo rigoroso e contmuo sobre o comportamento agressivo.Neste ambito, quando os pais das classes trabalhadoras de nivel

31A emergencia de semelhante padrao depende, provavelmente, em grandemedida, do facto de as crian^as das classes trabalhadoras mais baixas, tal como sucedecom as outras crian^as, nao terem tido ainda, em geral, a oportunidade de desenvol-ver restrigoes fortes e estaveis sobre as suas emogoes e, deste modo, serem profunda-mente dependentes de formas de controlo externas. Nos locais onde estas serestringem a contextos especificos, tal como a casa, e sao descontinuas na suaaplicagao existem poucos estudos da agressividade e violencia das interacgoes dascrianc.as e, por isso, sobre a emergencia de hierarquias de predomfnio deste genero.Seme-lhante tendencia pode verificar-se na medida em que sao utilizadas formas decastigo violentas pelos adultos como meios de socializa^ao e dado que as criangasveem regularmente os adultos em acc.6es violentas, quer seja dentro ou fora de casa.

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mais baixo tentam restringir os seus filhos, verifica-se, antes, apropensao para recorrerem ao castigo fisico. Alem disso, estas crian-gas ficam desde cedo mais habituadas a ver os seus pais e outrosadultos, em especial do sexo masculino, a comportarem-se de umamaneira agressiva e, nao raro, de modo violento. Em consequencia,estas criangas crescem com uma atitude mais positiva em relagao aocomportamento agressivo do que os seus equivalentes da escalasocial mais elevada, tornando-se menos inibidos face ao acto detestemunhar e de participar em violencias que ocorram empublico32.

Para a formagao deste padrao e tambem crucial a tendenciaverificada em comunidades deste tipo, no ambito da segregagao dossexos e do predominio masculino. Isto traduz-se, por um lado, natendencia destas comunidades para atingirem um grau comparati-vamente elevado de violencia masculina em relagao a mulher e, poroutro, no facto de os seus elementos masculinos nao estarem sujei-tos, de forma consistente, a pressao feminina de «suavizagao». Comefeito, na medida em que as mulheres, em semelhantes comunida-des, crescem de forma a serem elas proprias relativamente agressi-vas e valorizando muitas das caracteristicas macho dos seus homens,as inclinagoes agressivas tendem a ser conciliadas. A frequenciacomparativa das contendas e vendettas entre familias, vizinhanga e,acima de tudo, entre «bandos de esquina» constitui um conjuntode reforgos adicionais quanto a esta orientagao. Em resumo, ascomunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo do tipoque descrevemos, em especial as dos sectores aos quais o adjective«rude» se aplica literalmente, parecem ser caracterizadas por pro-cesses de «retorno» que encorajam o recurso a um comportamentoagressivo em muitas areas das relagoes sociais, em particular porparte dos membros do sexo masculino.

Um dos efeitos desse processo e a atribuigao de prestigio aosmembros do sexo masculino de comprovada capacidade para lutar.Para eles e para os seus companheiros rivais e uma fonte importantede significado, de estatuto e de dinamizagao de emogao agradavel.

32Utilizando o termo introduzido por Norbert Elias, pode dizer-se que ternum «limiar de repugnancia» (pleinlicbkeitsschwelle) relativamente elevado em re-lagao a testemunharem e participarern em actos violent os. Ver The Civilizing Pro-cess, 1978; e State Formation and Civilization, Oxford, 1982.

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Neste aspecto, a diferenga central entre estes sectores «rudes» dascomunidades trabalhadoras de nivel mais baixo e os seus equivalen-tes «respeitaveis» nas classes de trabalhadores de nivel elevado oumedio parece ser a de que, nos ultimos, a violencia nas relagoes facea face e, em geral, condenada, enquanto nas primeiras existe ummaior numero de contextos e de situagoes em que a expressaomanifesta de agressao e de violencia e tolerada e sancionada demodo positivo. Uma outra diferenga e o facto de que nas classes«respeitaveis» ha a tendencia para a violencia ser oculta e, quandoocorre, para tomar em contrapartida uma forma mais nitidamente«instrumental», conduzindo ao aparecimento de sentimentos deculpa. For contraste, nas comunidades trabalhadoras «rudes» aviolencia tende a revelar-se em publico, envolvendo, em contrapar-tida, qualidades «expressivas» ou «afectivas» mais pronunciadas,isto e, qualidades associadas mais profundamente ao despertar desentimentos de prazer. Alem disso, enquanto os membros dasclasses «respeitaveis», em especial os do sexo masculino, podem— na verdade, espera-se que o fagam — comportar-se de maneiraagressiva em contextos especificos considerados «legitimos», taiscomo o desporto formal, os membros das classes trabalhadorasconsideram este tipo de desporto demasiado regulamentado e «ino-fensivo»33, ou tendem a entrar em conflito com jogadores ad-versarios e arbitros34 devido a sua atitude excessivamente ffsica, porvezes violenta.

Deste modo, a identidade dos membros do sexo masculino dossectores «rudes» das classes trabalhadoras de nivel mais baixobaseia-se, em relagao aos padroes dominantes na Gra-Bretanha dehoje, em formas de masculinidade macho manifestamente agressivas.Muitos membros do sexo masculino deste tipo revelam, tambem,um elevado investimento emocional nas reputagoes das suas fami-lias, das suas comunidades e, onde se encontram, na «acgao dofutebol» ou nos seus «territories», sendo agressivos e duros. Estepadrao e produzido, e reproduzido, nao so pelos elementos cons-tituintes infernos da «segmentagao ordenada» mas tambem — e istoe igualmente crucial — devido ao isolamento das comunidades

33Ver Paul Willis, Profane Culture, Londres, 1978, p. 29.34Howard J. Parker, View from the Boys: a Sociology of Downtown Adolescents,

Newton Abbot, 1974, p. 35.

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relativamente a sociedade mais alargada. For exemplo, de modogeral, aos membros do sexo masculino das classes trabalhadoras denivel mais baixo e negado estatuto, significado e gratificagao nasesferas educacionais e profissionais, que sao as principals fontes deidentidade, significado e estatuto para os homens do escalao supe-rior. Este obstaculo surge como resultado de factores combinados.For exemplo, a maioria dos elementos do sexo masculino das classestrabalhadoras de nivel mais baixo nao tern — nem de modo geral,as apreciam — as caracteristicas e valores que se orientam para osucesso na educagao e na profissao ou para esforgos nestes campos.Ao mesmo tempo, tendem a ser sistematicamente discriminadosem relagao aos mesmos no mundo da escola e do trabalho, emparte, porque se encontram no fundo da estrutura hierarquica, queparece exigir, em termos de caracteristica constituinte, um relativoempobrecimento «abaixo de classe» relativamente perrnanente33.

Dado que e diffcil aos membros do sexo masculino dos sectores«rudes» das classes de trabalhadores de nivel mais baixo alcangarsignificado, estatuto e gratificagao e formar identidades que ossatisfagam nos campos da escola e do trabalho, ha uma disposigaomais acentuada para confiarem na prossecugao destes fins em for-mas de comportamento que incluem intimidagao fisica, luta, bebi-das fortes e relagoes sexuais de exploragao. De facto, mostrampossuir muitas das caracteristicas atribuidas por Adorno e os seuscolegas a uma «personalidade autoritaria»36. E possivel, com certe-za, a estes membros macho do sexo masculino da classe trabalhadorade nivel mais baixo desenvolver formas de auto-estima relativa-mente elevada na base do conhecimento local, e, acima de tudo, doseu grupo de companheiros, atraves da sua resistencia, das suasproezas como lutadores, das suas faganhas como bebedores e, emgeral, pelo facto de eles proprios lidarem de uma maneira que tantoeles como os seus companheiros consideram ser «experiente». Aomesmo tempo, dado que se encontram no fundo da escala socialglobal, e porque tern a experiencia de um padrao de socializagaoinicial que — em relagao aos padroes caracteristicos dos grupos

35Ver, por exemplo, Herbert J. Gans: «Urbanism and Suburbanism as Ways ofLife», R. E. Pahl (ed.), Readings in Urban Sociology, pp. 95-118,

36Isto pode ajudar a explicar, em parte, a atracgao para muitos dos membros detais grupos da National Front e do British Movement.

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mais «respeitaveis» — conduz a urn nivel de interiorizagao de for-mas de controlo estaveis na utilizagao da violencia, estao maisdisponiveis para responder de modo agressivo nas situagoes queconsideram serem ameagadoras para a sua auto-estima. As exigen-cias complexas da «argucia da rua» limitam os contextos nos quaislutar e considerado, por tais grupos, como o mais apropriado. Con-tudo, os membros do sexo masculino do tipo que descrevemosconfiam na intimidagao fisica e na luta com maior frequencia doque os membros do sexo masculino de outros grupos. Por um lado,inclinam-se no sentido de procurar, de forma racional, confrontosfisicos, porque estes constituem para si uma fonte de identidade,estatuto, significado e excitagao agradavel. Por outro, dispoem-se aresponder de modo agressivo em situagoes ameagadoras, porque naoaprenderam a exercer o nivel de autodommio que e exigido pelasnormas dominantes da sociedade britanica.

Masculinidade violenta e desordensno futebol: alguns exemplos historicos

Dado que possuem relativamente poucos recursos economicos eoutros meios de poder e se predispoem a sentir os territories e aspessoas pouco familiares como ameagadores e host is, a disposigaopara se comportarem de forma agressiva que e suscitada, com fre-quencia, nos sectores especificos das cornunidades das classes detrabalhadores de nivel mais baixo tende a exprimir-se, na maioriados casos, no interior destas mesmas cornunidades. Contudo, tam-bem se manifesta de modo esporadico no seu exterior, originando,dessa maneira, o «panico moral» entre os grupos bem colocados nasociedade. As areas da vida social fora das cornunidades das classestrabalhadoras de nivel mais baixo, onde tal agressividade encontrouexpressao, alteraram-se sob a influencia da transformagao dasmodas, por exemplo, transferindo-se da frequencia dos cinemaspara a de saloes de danga e do litoral. Contudo, parece que umcontexto relativamente permanente para esse comportamento foiproporcionado pelo futebol. Na verdade, desde que este surgiu, nosfinais do seculo XIX, na sua forma moderna, o jogo tern sido acorn-

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panhado por desordens de fas, muitas delas envolvendo agressaofisica e violencia. A incidencia de tais desordens parece ter variadono tempo, dependendo, por exemplo, da atracgao variavel que ojogo apresenta para os sectores «mais rudes» das classes trabalha-doras de nivel mais baixo e de acordo com o grau de mudanga dascomunidades na sociedade em geral, cujas estruturas se aproximamda «segmentagao ordenada». Uma outra maneira de colocar estesegundo ponto seria afirmar que o grau de desordens dos fas nofutebol parece haver dependido, em grande parte, do nivel em queas classes trabalhadoras passaram a estar «integradas» dentro daprincipal corrente da vida social britanica e, por esse motivo,obrigadas a adoptar, de acordo com a utilizagao do termo de Elias,os valores mais «civilizados» e os modos de comportamento carac-teristicos e exigidos pelas classes sociais mais «estabelecidas»37. Istolevanta numerosos problemas complexes, que nao podemos tratarnum trabalho desta dimensao. Contudo, o que podemos fazer ecitar alguns exemplos de tumultos que foram registados no passadoe mostrar, segundo as nossas conclusoes, como o problema dohooliganismo do futebol aumentou para as proporgoes de «crise»que sao hoje amplamente conhecidas.

A noticia que se segue, relativa a uma desordem ruidosa entrefas rivais do futebol, numa estagao de caminho de ferro, apareceuno Liverpool Echo em 1899'.

«No sabado, ao flm da tarde, veriflcou-se na Middlewich Stationuma cena excitante, depois de urn jogo entre Nantwich e Crewe, paraa final de Cheshire. As duas facgoes, situadas em plataformas opos-tas, esperavam pelos comboios. As acgoes come^aram por gritos, deforma alternada, e depois um homem desafiou um adversario parauma luta. Ambos saltaram sobre os trilhos do caminho de ferro elutaram, com raiva, ate serem afastados pelos guardas. Entao, umgrande numero de homens de Nantwich correu atraves da linha e

37 Utilizamos aqui o termo «civilizado» no sentido tecnico, relativamentedistanciado, defendido por Norbert Elias. Nao pretendemos sugerir que membrosda classe trabalhadora se tornam de algum modo «melhores» como resultado dasua incorporate ou que o seu envolvimento neste processo era, de algumamaneira, do seu «autentico interesse» como classe. Signifka apenas que o termo«civilizac.ao» e «incorporate», parecem-nos ser relativamente adequados ao ob-^jecto, como meio de conceptualizar um processo social que, parece aceitavelavangar com a hipotese, ocorreu de facto.

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CAPITULO IX 379

tomou de assalto a plataforma ocupada pelos homens de Crewe. Ospassageiros indiferentes fugiam para a esquerda e para a direita.Chegou entao o comboio especial e a policia protegeu-os, muitosdeles levando marcas que os haviam de distinguir por algumtempo38.

Dez anos mais tarde, em 1909, somos informados pelo GlasgowHerald de que, na Scottisch Cup Final*, entre o Rangers e o Celtic,em Hampden Park:

Cerca de seiscentos espectadores arrancaram os postes da baliza,veda^oes de arame e bilheteiras, lan^aram-lhes fogo e dangaram a suavolta no rneio do relvado. Polfcias, bombeiros e maqueiros forarnapedrejados, bombas de incendio daniflcadas e mangueiras golpeadas.A policia, depois de ter devolvido as pedras aos desordeiros, lirnpouo campo, por fim, as sete horas, a custo de cinquenta e quatroagentes feridos e da destrui^ao de quase todos os candeeiros de ruaa volta de Hampden39.

Em 1920, de acordo com uma reportagem no Birmingham DailyPost sobre a acgao levada a tribunal por um espectador contra oBirmingham, agora Birmingham City FC:

O queixoso afirma ter pago um xelim, para estar de pe, assistindo aojogo. O caso ocorreu em Spion Kop... Logo apos o intervalo, «voa-ram garrafas por todo o lado, como pedras de granizo». A testemu-nha tentara fugir, mas foi atingida na cabega, recebendo um feri-mento que necessitou de levar sete pontos. Tinha presenciado outrosdisturbios em Spion Kop e, numa ocasiao, mais ou menos antesde ter sido ferido, viu homens usarem garrafas como se fossem paus,em vez dos seus punhos. As garrafas usadas eram de tipo de meioquartilho, solidas40.

E, em 1934, um reporter do Leicester Mercury, ao descrever o

^Liverpool Echo, 1 de Abril de 1899-^Glasgow Herald, 19 de Abril de 1909 (parafraseado em John Hutchinson,

«Some Aspects of Football Crowds Before 19l4», Proceedings of the Conference ofthe Society for the Study of Labour History, University of Sussex, 1975, doc. n.° 13,mimeo).

^Birmingham Post, 14 de Outubro de 1920.*Final da Tac,a da Escocia. (N. da T.)

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380 A VIOLENCIA DOS ESPECTADORES

regresso dos fas do Leicester City de um jogo em Birmingham,escreveu:

Tudo correu com tranquilidade desde a partida, em New Street, ereceava-se que alguma coisa extraordinaria tivesse acontecido parajustificar que o cornboio tivesse avangado apenas trezentas ou quatro-centas jardas* do seu percurso. Depois de um minucioso exame detodas as carruagens, descobriu-se que o cabo de ligagao havia sido re-tirado... veriflcou-se que os elementos hooligans, que se encontravampor vezes nas viagens, tinham provocado um prejuizo, que nao erapequeno, ao material circulante, parte dele quase novo. Tinhampartido janelas, rasgado e cortado bancos, e o couro das correias dasjanelas fora esfaqueado41.

De certa forma, estes exemplos servem para dissipar a nogaoerrada de que o hooliganismo e inteiramente novo enquanto feno-meno social. Contudo, nao nos dao uma ideia das mudangas degrau do hooliganismo do futebol ao longo do tempo. A nossa con-clusao, baseada em dados de uma analise minuciosa dos registos daFederagao de Futebol e na extensa investigagao dos jornais, desde1880, sugere que, a partir desse periodo, a intensidade com que asdesordens de fas foram noticiadas seguiu uma direcgao curvilmea.Para ser mais preciso, nas tres decadas e meia antes da PrimeiraGuerra Mundial, o grau era relativamente elevado; entre as duasguerras mundiais decaiu, mas nunca, nem rnesmo de longe, seaproximou do ponto zero; desde o fim da Segunda Guerra Mundial,ate finais de 1950, permaneceu baixo; comegou entao a elevar-se,de inicio de uma forma relativamente lenta, mas, mais nitidamentea partir do meio da decada de 60, em especial quando a Final doCampeonato do Mundo foi organizada em Inglaterra. Conio expli-car este fenomeno? Aqui, esbogada em linhas muito gerais, esta aexplicagao, em termos de hipotese, sobre a qual estarnos a traba-Ihar42.

41 Leicester Mercury, 19 de Mar<~o de 1934.42Para uma apresentagao mais detalhada dos nossos dados sobre estas tenden-

eias, ver Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, Working Class SocialBonding and the Sociogenesis of Football Hooliganism, End-of-Grant Report to theSSRC, 1982. Ver, tambem, o nosso The Roots of Football Hooliganism (em vias depublica^ao).

*Uma jarda (yard) corresponde a 0,9l44m. (N. da T.)

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CAP1TULO IX 381

Antes da Primeira Guerra Mundial, a sociedade britanicaconservava-se, de acordo com as ideias de Elias, num estadio do seu«processo de civiliza£ao» de algum modo inferior aquele em quenos encontramos hoje. Uma das consequencias disto foi o facto de,entao, as relagoes sociais serem, de um modo geral, caracterizadaspor elevado nivel de violencia manifesta, e isto reflectia-se no corn-portamento das multidoes do futebol, cuja composigao social, ateao aparecimento das multidoes atraidas pelas equipas de profissio-nais, era constituida, de forma predominante, pelas classes traba-Ihadoras. No entanto, desde o final da Primeira Guerra Mundial,a classe trabalhadora tornou-se, progressivamente, mais integradana corrente principal da sociedade e mais em harmonia com osdireitos de cidadania, embora este processo nao se tenha iniciado,por certo, nesse momento e tenha sido irregular, caracterizado peloconflito e, de certa maneira, contrariado por orientagoes nao coin-cidentes. Durante este processo, verificou-se uma difusao de pa-droes mais «civilizados» entre as camadas de nivel mais baixo daescala social, processo que se reflectiu no comportamento maisordeiro das multidoes de futebol e que foi apoiado, parece aceitavela hipotese, por fenomenos sociais fundamentals, como o aumentode riqueza e o crescente poder dos sindicatos e da mulher43. Oaumento de riqueza tera contribuido para a integragao e teve umefeito «civilizador» ao atenuar, por exemplo, algumas das formasmais rigidas da pressao domestica e ao facilitar a criagao de maisalternativas para o estabelecimento de identidades satisfatorias. Ocrescente poder dos sindicatos teria um efeito semelhante, porqueajudou a garantir melhores salarios e condi^oes de trabalho e, dadoque contribuiu para o aumento da institucionalizagao do conflitoindustrial, fazendo decrescer, por esse motivo, a longo prazo —embora nao como parte de uma simples orientagao «progressiva»— a violencia. E o crescente poder da mulher tera sido «civiliza-dor» nos seus efeitos porque atraiu o homem mais para o seio dafamilia nuclear e para dentro de casa, atenuando, por issor as

43Dado que poucos historiadores, e ainda menor numero de sociologos, estu-daram os anos que se situam entre as duas grandes guerras, esta analise, comoseria inevitavel, e bastante especulativa. Recebe, no entanto, um certo grau deapoio do trabalho pioneiro de James E. Cronin. Ver o seu Labour and Society inBritain, 1918-1979, Londres, 1984.

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382 A VIOLENCIA DOS ESPECTADORES

tendencias macho que haviam sido predominantes em tempos ante-riores. Em simultaneo, o controlo dos pais quanto a socializagaoinicial das criangas tera aumentado, levando a que esta se realizassecada vez menos no contexto da rua e sob a unica ou principalinfluencia dos companheiros da mesma idade. O prolongamento doprocesso educativo e a formagao de varios tipos de organizagoes dajuventude terao actuado no mesmo sentido.

No entanto, ainda que este processo de integragao e crescente«civilizagao» compreendesse sectores cada vez mais alargados daclasse trabalhadora, nao os afectou a todos com igual intensidade.Os grupos menos afectados parece terem sido, em particular,aqueles que continuaram dominados pela pobreza, no fundo dasociedade. De facto, aquilo que parece ter acontecido foi o seguinte:enquanto os sectores «respeitaveis» das classes trabalhadoras au-mentaram de dimensao, acentuou-se a distancia entre eles e a classetrabalhadora de nivel mais baixo em decrescimo, incluindo ossectores que permaneceram «rudes». Ainda que os seus numerostenham comegado a subir de novo no decurso da actual recessao44,sao estes grupos de pessoas «rudes» das classes trabalhadoras quetern a tendencia para formas de comportamento que se aproximammais dos padroes criados por aquilo que Suttles designa a «segmen-tagao ordenada». Esses adolescentes e jovens do sexo masculinoforam atraidos, progressivamente, para a assistencia de jogos defiitebol, desde os anos 60, e sao eles que se envolvem nos aspectosmais graves do hooliganismo do futebol. Para compreender como epor que razao foram atraidos para o jogo e necessario examinar, demodo resumido, alguns tragos do tratamento da questao pelosorgaos de comunicagao social.

44Nao dispomos aqui de espago para explicar aquilo que entendemos quantoao que deve ser o complexo das relagoes interactivas entre pobreza, desempregoe «segmentactao ordenada». Bastara dizer que parte da relagao, tal como a enca-ramos, consiste na probabilidade de alguns jovens desempregados das familias«respeitaveis» da classe trabalhadora considerarem atraentes certos aspectos dosestilos de vida dos seus equivalentes «duros», incluindo tomar parte no hooli-ganismo do futebol.

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10

O futebol e os orgaosde comunicagao social

Durante o periodo situado entre as duas guerras, e mais preci-samente nos anos 60, as multidoes de espectadores do futebolingles foram elogiadas pelos orgaos de comunicagao social devidoao seu comportamento. Em particular, quando os incidentes demau comportamento de fas estrangeiros ou de fas das equipas naoinglesas das Ilhas Britanicas constituiam noticia na imprensa, ondese incluiam afirmagoes do genero «isso nao podia acontecer aqui».Consideremos, por exemplo, o seguinte extracto de um reporter, noLeicester Mercury, descrevendo incidentes desordeiros que se verifica-ram num jogo em Belfast, em 1928:

... o intervalo, quando o Celtic e o Linfleld estavam empatados,prestou-se a uma diversao que incluiu o apedrejar dos musicos dabanda e a intervengao da policia, que usou os seus cacetes paramanter afastados na multidao os rivais mais odiados.

Ao longo de algumas semanas, em muitos centres de Inglater-ra, as grandes questoes em jogo na Taga e na Liga irao unir milha-res de pessoas num unico pensamento... E, felizmente, todas estascoisas serao resolvidas da melhor maneira, sem um unico agente dapolicia ter de levantar o seu cacete para manter a ordem45.

Embora o comportamento das multidoes do futebol inglestenha evoluido de uma maneira mais ordeira desde a fase anteriora Primeira Guerra Mundial, noticias como esta ignoravam osdisturbios que continuavam a acontecer em Inglaterra nos jogos defutebol e, em conjugagao com estes, durante todo o periodo entreas duas guerras. Porem, ainda que a este respeito as informagoesfossem, de facto, inexactas, elogiando o adepto ingles «tipico», pare-cem ter reforgado a tendencia para as multidoes serem bem-compor-tadas e para atrairem um maior numero de pessoas «respeitaveis»aos jogos de futebol. Por outras palavras, o tratamento dos meios

^Leicester Mercury, 10 de Fevereiro de 1928.

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de comunicagao e o comportamento das multidoes neste peribdoparece ter sido mutuamente reforgado de modo a produzir um«ciclo de retorno», que teve o efeito de conduzir a um aumentomais ou menos continue de «respeitabilidade» das multidoes46.Contudo, nos ultimos anos da decada de 50, em conjungao com oalarme teddy boy* e a crise moral mais geral da juventude da classetrabalhadora verificada nestes anos, os meios de comunicagao esco-Iheram-na como vitima e ampliaram o tipo de incidentes violentosque sempre tinham ocorrido, de tempos a tempos, entre as multi-does dos campos de futebol. No entanto, foram os preparativos paraa organiza^ao do Campeonato do Mundo em Inglaterra, em 1966,que tiveram um significado decisivo a este respeito. Este aconteci-mento traduziu-se no facto de os espectadores ingleses estaremproximos de um exame minucioso dos orgaos de comunica^aointernadonais e, neste contexto, os jornais populares em Inglaterracomegaram a focar a sua atengao sobre o hooliganismo do futebol,considerando-o como uma ameaga para o prestfgio internacional dopais. For exemplo, em Novembro de 1965, quando uma granadade mao «desactivada» foi langada para o campo por um adepto doMillwall durante o encontro da sua equipa com os Brentford, rivalsde Londres, o Sun publicou a seguinte historia, sob o titulo «Fute-bol Marcha para a Guerra»:

Durante as quarenta e oito horas do dia mais negro do futebolbritanico — o dia da granada, que demonstrou que os adeptosbritanicos podem rivalizar, seja no que for, com o que os sul-ame-ricanos possam fazer, a Federagao de Futebol interveio no sentido dedestruir esta crescente violencia da multidao.

O Campeonato do Mundo esta agora a menos de nove meses dedistancia. Este e o tempo que temos para tentar restaurar o bomnome desportivo deste pars no passado. Neste momento, o futebolesta doente. Ou melhor, as suas multidoes parecem ter contraidoqualquer doen^a que as obriga a explodir em furia47.

46Em certa medida, isto e uma grande simplificagao, pois, como demonstra-remos em The Roots of Football Hooliganism: an Historical and Sociological Study(em vias de publicagao), existe uma ligeira tendencia, nos finals dos anos 30,para o aumento das preocupagoes quanto ao comportamento das multidoes dofutebol.

41 Sun, 8 de Novembro de 1965.*Rufias, rapazes desordeiros. (N. da T.)

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CAPfTULO IX 385

Numa data proxima do Campeonato do Mundo de 1966, aimprensa popular comegou a enviar reporteres aos jogos para daremnoticias acerca do comportamento da multidao e nao so do propriojogo48. De forma nao surpreendente, estes reporteres puderamobservar incidentes que, embora nessa altura estivessem provavel-mente na fase crescente, sempre ocorreram, com bastante frequen-cia, nos campos de futebol ou a sua volta. E, tambem, porquepretendiam vender jornais numa industria que se tornava maiscompetitiva e, ainda, devido ao aumento do panico politico e moralquanto a violencia da juventude que se verificou em meados dosanos 60, noticiaram esses incidentes de uma maneira sensacionalis-ta. Assim, os campos de futebol comegaram a ser cada vez mais«anunciados» como lugares onde ocorriam regularmente lutas eaggro e nao so futebol. Isto atraiu os jovens do sexo masculino daclasse trabalhadora, provavelmente em mimero superior ao da faseanterior, aumentando o impulso ja existente por parte das pessoas«respeitaveis» no sentido de nao frequentarem, em especial, asbancadas do «peao»*. Assim, contribuiram para a situagao actual,nomeadamente uma situagao em que os incidentes hooligans ternuma dimensao mais grave, ha um acompanhamento muito maisregular aos jogos do que costumava verificar-se e surge o fenomenoda exportagao do problema do hooliganismo ingles para o estran-geiro, num grau suficiente para levar os termos «fas do futebolingles» e hooligan a serem largamente considerados no continentecomo algo contagioso. E claro que nao se pode afirmar que os meiosde comunicagao provocaram este processo, mas, devido ao facto deexagerarem o que de inicio eram, de um modo geral, apenas inci-dentes menores, e por «anunciarem», com efeito, os campos defutebol como lugares onde se verifkavam com regularidadedisturbios e onde as reputagoes locais estavam mais em jogo do queapenas as do futebol, pode afirmar-se que desempenharam, comouma especie de profecia de auto-sat isfagao, um papel importante nodesenvolvimento do hooliganismo do futebol na sua forma contem-poranea especifica.

48Stan Cohen, «Campaigning Against Vandalism», em C. Ward (ed.), Vanda-lism^ Londres, 1973, p. 232.

*De um modo geral, o «peao» corresponde aos lugares mais baratos dos estadiossituando-se habitualmente por detras das balizas. (N. da T.)

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Os adolescentes e os jovens adultos do sexo masculino da classetrabalhadora «rude», uma vez atraidos para o jogo em numero cadavez mais elevado, ai continuaram, em grande parte, porque o fute-bol e, de diversas formas, um contexto altamente adequado para otipo de actividades que estes consideram como significativas, exci-tantes e agradaveis. For exemplo, num jogo de futebol, eles saocapazes de actuar sob formas que sao condenadas pelos meios ofi-ciais e, em grande medida, pela sociedade «respeitavel», podendoagir assim no quadro de um contexto que proporciona relativaimunidade de censura e de prisao. O jogo tambem pode criarelevados niveis de excitagao, e o fulcro dessa excitagao e o confronto— um «confronto simulado» com uma bola — entre elementosmasculinos que representam duas comunidades. Sob varios aspec-tos, o jogo e algo analogo ao tipo de confrontos que se verificavamentre os proprios hooligans, ainda que controlados sob o ponto devista formal, de um modo geral declaradamente menos violentos e,em certo sentido, mais abstracto. Isto e, o jogo tambem constituiuma forma de ritual viril. Tambem, na medida em que as equipasde fora transportam consigo grande numero de adeptos e em quee fornecido um grupo ideal de adversarios, as rivalidades que exis-tem entre grupos locais hard cases podem ser, neste contexto, pelomenos de maneira temporaria, submergidas pelos interesses desolidariedade dos «territorios da casa».

11

Conclusao

Em conclusao, gostariamos de sublinhar que as nossas afirma-goes nao significam que os adolescentes e os j ovens do sexo mascu-lino das classes trabalhadoras do nivel mais baixo constituem osunicos hooligans do futebol. Nem, tao-pouco, que todos os adoles-centes e j ovens adultos do sexo masculino das comunidades detrabalhadores de nivel mais baixo utilizam o futebol como umcontexto para lutar. Alguns defrontam-se noutros locais e outrosnem sequer lutam. A nossa posigao e antes a de que adolescentese j ovens do sexo masculino dos sec tores «rudes» das classes traba-lhadoras de nivel mais baixo — nao consideramos os conceitos

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CAPITULO IX 387

«classe trabalhadora rude» e «classe trabalhadora de nivel maisbaixo» como sinonimos, qualquer que seja o sentido — parecem seros mais consideraveis e persistentes intervenientes nas formas maisgraves do hooliganismo do futebol. Nem a nossa tese e a de queaquilo que descrevemos, com alguns dos atributos e valores carac-teristicos dos hooligans do futebol, seja especifico destes grupos e soproduzidos por «segmentagao ordenada». Formas de masculinidadebastante similares sao evidences, por exemplo, nas forgas de policiae do exercito, e talvez tambem noutros contextos profissionais49.

Finalmente, o facto de poder comprovar-se que o hooliganismodo futebol se encontra profundamente enraizado no passado brita-nico nao significa, em nossa opiniao, que este se mantenha total-mente inalteravel nas suas formas, conteudos e consequencias.Entre os factores que actuam na formagao do caracter especifico do«fenomeno de hooliganismo do futebol», desde os finais da decadade 50, destacam-se: mudangas estruturais que ocorreram nos secto-res «rude» e «respeitavel» da classe trabalhadora e nas relagoesentre eles; aparecimento de um mercado de lazer especificamenteadolescente; aumento de capacidade e de vontade de os fas adoles-centes ingleses viajarem, com regularidade, para assistir a jogos rea-lizados no exterior; mudangas na estrutura do proprio jogo; tenta-tivas especificas das autoridades do futebol para restringirem ohooliganismo e, acima de tudo, o envolvimento do governo centralneste processo; mudangas ocorridas nos meios de comunicagao e,em especial, o advento da televisao e a emergencia da «imprensa detabloide», com a sua produgao orientada em termos de competigaoe o conceito de «valor das notfcias» orientado numa perspectivacomercial; e, finalmente, o recente colapso virtual do mercado detrabalho jovem. De acordo com a nossa perspectiva, estas carac-teristicas, que sao todas, de certo modo, especificas, pelo menoshistoricamente, constituiram uma contribuigao significativa para aforma, conteudo e dimensao do hooliganismo do futebol desde a

49Para um relatorio sobre as tendencias macho da Metropolitan Police, verPolice and People in London, Policy Studies Institute, Londres, 1983. A carac-teristica de tais proflssoes, que parece ser uma das principals responsaveis pelaprodugao e reprodugao destas formas de identidade masculina, e o facto de nelasse veriflcar que a capacidade para «dominar-se a si proprio» e uma importanteexigencia professional.

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388 A VIOLENCIA DOS ESPECTADORES

decada de 50. Distinguimo-nos dos que escreveram sobre estamateria no que diz respeito a dimensao que se deve atribuir aqualquer uma, ou a qualquer combinagao destas caracteristicas,como estatuto causal central na explicagao do hooliganismo do fu-tebol. A nossa pesquisa leva-nos a crer que os valores que susten-tam o comport amen to hooligan nos jogos de futebol e em jogos decontextos semelhantes sao relativamente persistentes, profunda-mente caracteristicos e enraizados na longa duragao das comunida-des de sectores especificos das classes trabalhadoras. Se temos razao,pode concluir-se que uma adequada compreensao do hooliganismodo futebol exige nao so a analise do desenvolvimento social (in-cluindo o «economico») desde a Segunda Guerra Mundial mas, deuma maneira mais decisiva, a explicagao do desenvolvimento, emprimeiro lugar, da forma e do grau em que tais comunidades e osvalores que estas adoptam foram produzidos e reproduzidos numperiodo muito mais longo e, em segundo lugar, do grau de variagaodo quadro em que o futebol constituiu um espago de luta para aexteriorizagao desses valores.

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CAPITULO X

0 desporto como uma area masculina reservada:notas sobre os fundamentos socials na identidade masculina

e as suas transformafies

Eric Dunning

Introdugao

Poucos sociologos hao-de discordar de que a transformagao dasrelagoes entre os sexos constitui uma das questoes socials mais im-portantes do nosso tempo, ainda que, decerto, a maioria considereeste problema menos relevante do que a pobreza, a fome, o desem-prego e os conflitos raciais1. Todavia, existe um aspecto segundo oqual as relagoes entre os sexos sao mais essenciais do que estasquestoes, com excepgao da ameaga de guerra nuclear, que teriaimplicates universais nas suas consequencias caso se tornasse rea-lidade. De facto, apesar de terem sido as mulheres da classe mediados paises industrializados, principalmente, que comegaram a tor-nar-se conscientes do dommio masculino ou do regime patriarcalcomo algo socialmente problematico, e a combate-lo, existe umadimensao sexo/genero em todas as outras questoes sociais funda-mentais como, por exemplo, nas de classe e raga. Contudo, apesarda universalidade e do significado social da diferenciagao e docaracter cada vez mais discutido das relagoes entre os sexos nas

:Foi apresentada uma versao inicial desta comunicac.ao na Fourth Annual Con-ference of the North American Society for the Sociology of Sport, realizada emSt. Louis, Missuri, em Outubro de 1983. Devo os meus agradecimentos aos colegasClive Ashworth, Pat Murphy, Tim Newburn, Ivan Waddington e John Williams,pelos seus comentarios crfticos, dos quais beneficiei bastante.

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390 0 DESPORTO COMO UMA AREA

sociedades mais industrializadas — algo que e evidente, em espe-cial, na destruigao e/ou transformagao das formas tradicionais docasamento e da familia, um fenomeno que parece ser actual —, naose pode dizer que estes problemas tenham sido ate hoje teorizadosde maneira adequada2 numa perspectiva sociologica. Enquanto di-mensao da ideia global que e relevante nesta relagao, tao-pouco ternsido dedicada muita atengao ao desporto, tradicionalmente uma dasmais importantes areas reservadas masculinas, e por esse motivo depotencial importancia para o funcionamento das estruturas patriar-cais. Nao sera dificil encontrar possiveis razoes para esta dupla faltade imaginagao sociologica.

Nos ultimos anos, em especial, em resultado do desafio femi-nino, tornou-se cada vez mais nitido que a sociologia surgiu comouma materia permeada de hipoteses de natureza patriarcal. Porexemplo, Comte julgava as mulheres como «intelectualmente infe-riores» aos homens, e acreditava que a farmlia devia basear-se nopredominio do marido3. No trabalho de Durkheim4, pode encon-trar-se o mesmo tipo de hipoteses, as quais continuam a impregnarcontributes modernas desta disciplina. A sociologia do desportoe uma das areas menos desenvolvidas da sociologia3 mas, dado opatriarcalismo implicito, em geral, na disciplina, nao surpreendeque as hipoteses reveladoras de um incontestado dominio masculi-no tenham sido largamente integradas no ambito dessas contribui-

2Escritoras feministas realizaram evidentemente muitos progressos a esterespeito, mas, em consequencia do seu empenhamento ideologico, muito daquiloque se escteveuparece pelo menos, ate para muitos que simpatizaram com sua causa,nao possuir adequagao ao objecto.

3Ver The Positive Philosophy ofAuguste Comte, traduzido e resumido por HarrietMartineau, Londres, 1853, p. 134 e seguintes. Para ser justo com Comte, emboraele aflrmasse que as mulheres estao «sob a perspectiva da sua constituigao num estadode infancia perpetua» e «incapazes... para as exigencias contmuas e intensas do tra-balho mental quer pela fraqueza intrmseca da [sua] razao quer pela [sua] moralmais viva e sensibilidade fisica», tambem as considerou como «espiritualmente»superiores aos homens e, por conseguinte, como importantes sob o ponto de vistasocial.

4Ver, por exemplo, a discussao sobre este assunto em Suicide, Londres, 1952,pp. 384-6.

5Para uma reflexao sobre este problema, ver Eric Dunning, «Notes on SomeRecent Contributions to the Sociology of Sport», Theory, Culture and Society, Vol. 2,n.° 1,1983, pp. 135-42.

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goes, como tern acontecido ate agora neste campo. Uma das con-sequencias desta situagao e a de que o caracter patriarcal do despor-to moderno e o papel que este pode representar na conservagao dahegemonia masculina apenas tern sido questionado por um grupode escritoras feministas. Contudo, na maioria dos casos, revelam atendencia para tratar estes problemas como uma forma de discrimi-nagao no desporto contra as mulheres6 e, embora o seu trabalhotenha contribuido para a abordagem de uma situagao onde isso erapossivel, ainda nenhuma conseguiu realizar uma teorizagao sis-tematica das formas de dominio masculino que existem em qual-quer area do desporto e das transformagoes que, neste ambito, setern verificado. Esta comunicagao pretende ser um ponto de partidanesse sentido. Utilizando, em particular, dados britanicos, tencionoanalisar o desporto como uma area masculina reservada, consideran-do o papel que ele representa, a par de outros factores, na produgaoe na reprodugao da identidade masculina. No entanto, antes dissoapresentarei algumas das principals hipoteses sociologicas sobre asquais se baseiam os meus argumentos.

O equilibrio de poder entre os sexos:algumas hipoteses sociologicas

O primeiro ponto a referir e que a interdependencia de homense mulheres, como todas as outras interdependencias sociais, e maisbem conceptualizada, pelo menos neste campo, em termos deequilibrio de poder, ou de «razao-poder», entre as partes envolvi-das. Este constitui uma «estrutura profunda», no seio da qual seproduzem e conservam as ideologias e os valores que orientam asrelagoes entre os sexos. Embora tais ideologias e valores constituamum ingrediente activo no equilibrio de poder entre os sexos — nosentido, por exemplo, de poderem constituir um meio de mobili-zagao dos homens e mulheres no combate pelo que consideram ser

6Algumas excepgoes sao referidas por Boutilier e San Giovani no seu The SportingWoman, Champaign, Illinois, 1983; Jennifer Hargreaves, «Action Replay: Lookingat Women in Sport», Joy Holland (ed.), Feminist Action, Londres, 1984, pp. 125-46.

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os seus interesses —, e um facto que as transformagoes registadasao nivel das relagoes entre os sexos e das ideologias e valores queas governam dependem, com frequencia, de mudangas verificadaspreviamente no equilibrio de poder subjacente, que nao sao inten-cionais nem se encontram implantadas em ideologias e valoresarticulados de forma especifica. O segundo ponto reside no facto deo equilibrio de poder entre os sexos, na medida em que o confron-to e a violencia sao caracteristicas endemicas da vida social, revelartendencia para oscilar a favor dos homens. Esta tendencia verifica--se, e claro, nas sociedades guerreiras, mas nas sociedades indus-triais, onde o poder das elites militares em relagao as elites civis eelevado, tambem se verifica o mesmo fenomeno. Esta disposigaoanota-se, tambem, nas areas da estrutura social em que ha condi-goes para a produgao e reprodugao de bandos de lutadores. Oequilibrio de poder entre os sexos ira tambem variar a favor doshomens de acordo com o grau em que estes dispoem, em relagaoas mulheres, de mais hipoteses de acgoes unificadas, e sempre queos homens monopolizam o acesso e o controlo das principals deter-minantes das oportunidades sociais, em especial, na economia e noEstado. Alem disso, em qualquer sociedade, quant o mais acentua-das forem as formas do dominio masculino, maior sera a tendenciapara prevalecer a rigorosa segregagao entre os sexos. Um corolariodestas conjecturas e que as hipoteses de poder dos homens teraotendencia para se reduzirem e as das mulheres para aumentaremsempre que na sociedade global ou numa das suas areas as relagoesse tornarem mais pacificas, nos casos em que as oportunidades deas mulheres se empenharem em acgoes unitarias vierem a aproxi-mar-se ou a exceder as dos homens e na medida em que diminuao grau de segregagao dos sexos. Uma consequencia suplementar ea de que os valores macho se inclinam no sentido de um papel maisimportante na identidade masculina nas condigoes sociais em queos confrontos sao frequentes e o equilibrio de poder se orienta commais clareza a favor dos homens. Em conformidade com esta orien-tagao, na medida em que as relagoes sociais se apaziguam, ashipoteses de poder das mulheres aumentam, a segregagao sexualdesaparece e as tendencias macho dos homens deslocam-se no sen-tido da civilizagao.

Na base destas consideragoes encontram-se dois factos eviden-tes: em primeiro lugar, embora exista a este respeito um certo grau

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de imbricagao entre os sexos, os homens sao, de um modo geral,mais altos e mais fortes do que as mulheres e, por isso, tern maiscapacidades de luta; e, em segundo lugar, a gravidez e o aleitamen-to dos filhos, entre outros factores, contribuem para diminuir asfaculdades das mulheres neste dominio. As armas da tecnologiamoderna tern, e claro, a capacidade de compensar e, eventualmente,de anular por completo as referidas vantagens dos homens. Demodo similar, as tecnicas modernas de controlo do nascimentoreduziram o tempo preenchido pela mulher com o estado de gra-videz e no cuidado dos filhos. Por outras palavras, as hipoteses deascendencia que provem, no caso dos homens, da sua forga e da suacapacidade como lutadores podem variar no sentido oposto ao dodesenvolvimento tecnologico — isto e, quando o desenvolvimentotecnologico e reduzido, elas sao maiores e vice-versa. Contudo,parece razoavel aceitar que o nivel de formagao do Estado, emespecial o grau em que o Estado e capaz de conservar um mo-nopolio efectivo sobre a utiliza^ao da fore,a fisica, e, provavelmente,a influencia mais significativa de todas.

Esta forma de abordar os problemas do poder e da identidademasculina decorre do trabalho de Norbert Elias7. Trata-se de umaperspectiva bastante diferente da que adoptam os marxistas, osquais atribuem o complexo macho, em grande parte, as necessidadese constrangimentos provenientes da realizagao do trabalho manual8.E dificil compreender, na verdade, como e que os homens foramcapazes de produzir por si proprios um ethos em que a resistencia ea capacidade para lutar sao fulcrais e que celebrem a luta como umafonte principal de sentido e de gratificagao na vida, quando essesconstrangimentos, em especial, podem desempenhar um papel naconservagao das formas mais extremas da identidade macho atravesda contribuigao, por exemplo, de um premio a fore,a fisica. Comefeito, e discutivel que semelhante abordagem seja uma exemplifi-cagao dos tipos de hipoteses patriarcais que ate agora tern estadoimplicitas em muitas das teorizagoes sociologicas. E este o casosempre que a produgao e a reprodugao da vida material se conce-

7Ver, acima de tudo, What is Sociology?, Londres, 1978; The Civilizing Process,Oxford, 1983.

8Ver, por exemplo, o argumento apresentado por Paul Willis em Learning to La-bour, Londres, 1977.

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bem, numa situagao privilegiada, no ambito da economia e quan-do o significado da familia e das relagoes entre os sexos e relegado,pelo menos de modo implicito, para uma posigao secundaria. Julgoque atingimos agora o ponto em que se podem considerar algumasrelagoes entre o desporto e o regime patriarcal. Para ilustrar estasrelagoes, discutiremos, de forma muito resumida, tres casos deestudo: o desenvolvimento dos «desportos de confronto» modernos;a emergencia e o subsequente (relativo) declinio da subcultura ma-cho, que chegou a estar, vulgarmente, muito associada a RugbyUnion Football; e, o fenomeno do «hooliganismo do futebol» quese verifica na Gra-Bretanha contemporanea.

ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTODOS DESPORTOS DE CONFRONTO MODERNOS

Todos os desportos sao, por natureza, competitivos e, por isso,possibilitam a emergencia da agressao. Sob condigoes especificas,essa agressao pode transbordar em formas de violencia rnanifestaque sao contrarias as regras. Contudo, em alguns desportos — oraguebi, o futebol e o boxe sao exemplos —, a violencia, na formade «representagao de luta» ou de «confronto simulado» entre doisindividuos ou grupos, e um ingrediente fulcral e legitimo. Nasociedade actual, os desportos deste genero constituem areas privi-legiadas para uma expressao socialmente aceitavel, ritualizada emais ou menos controlada da violencia fisica. Nesta comunicagaoapenas me preocuparei com esses «desportos de confronto», emparticular com os que envolvem uma representagao de luta entreduas equipas.

As raizes dos desportos de confronto modernos como o futebol,o raguebi e o hoquei podem ser determinadas directamente a partirde variances locais medievais e dos jogos populares modernos ini-ciais que passaram por uma variedade de nomes como football,hurling, knappan e camp balP. Jogavam-se, de acordo com as regras

9Esta analise baseia-se naquela que foi apresentada na obra de Eric Dunning eKenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players, Oxford, 1979-

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transmitidas oralmente, pelo meio das ruas das cidades e atravesdos campos. Nao existiam agentes de controlo «externo» comoarbitros e juizes de linha e, por vezes, de cada lado, participavamcerca de mil pessoas. Apesar das diferengas que existiam entre eles,uma das caracteristicas essenciais de tais jogos, em relagao aosdesportos modernos, consistia no elevado nivel de violencia mani-festa que implicavam. Os jogadores envolviam-se numa expressaorelativamente livre de emogao e exerciam apenas uma forma vagade autocontrolo. De facto, esses jogos eram uma especie de confron-to ritualizado, a nivel local, em que os grupos adversarios se opun-ham, ao mesmo tempo que criavam, sob uma forma relativamenteagradavel, uma excitagao de caracter semelhante a que se desenvol-via em combate. Como e evidente, jogos deste tipo correspondiama estrutura de uma sociedade em que os niveis de formagao doEstado e do desenvolvimento social eram, de um modo geral, rela-tivamente reduzidos, onde a violencia era uma caracteristica maisregular e manifesta da vida quotidiana e o equilibrio de poder entreos sexos se inclinava nitidamente a favor dos homens. Em resumo,estes jogos populates expressavam uma forma extrema de regimepatriarcal. Como tal, integravam a expressao macho de uma formarelativamente desabrida.

O primeiro desenvolvimento significative, na linha da «moder-nizagao» desses jogos, ocorreu, no seculo XIX, nas escolaspiiblicas10. Foi nesse contexto que os jogos passaram a sujeitar-se arestrigao imposta por regras escritas, muitas delas relacionadas ex-pressamente com a eliminagao ou controlo das formas mais extre-mas de violencia. Por outras palavras, a incipiente modernizagao dofutebol e de jogos semelhantes envolvia um complexo de mudangasque os tornavam mais «civilizados» do que os seus antecedentes.A comparagao e significativa. Isto e, nao se tornaram «civilizados»num sentido absolute, mas apenas um pouco mais civilizados,continuando a reflectir os preconceitos patriarcais, caracteristicosde uma sociedade que se encontrava num estadio ainda relativa-mente inicial da sua emergencia como um Estado-nagao urbano eindustrial. Isso pode entender-se a partir do reconhecimento de quetais jogos se encontravam ideologicamente justificados, por umlado, como campos de treino para a guerra e, por outro, pelo seu

10Ibid.

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aproveitamento na educagao dos chefes militares e administrativosdo cada vez maior Imperio Britanico, e, tambem, em parte, comoveiculo de imposigao e expressao da virilidade.

Uma boa ideia das normas de virilidade que existiam nos jogosdas escolas publicas deste periodo e fornecida numa descri^ao feitapor um antigo estudante de Rugby, que foi publicada numa revistada escola de I860. Ele estabelecia o contraste entre o jogo destaepoca e o raguebi dos seus tempos de escola, uns dois ou tres anosantes. O antigo estudante de Rugby escreveu:

«Devia so ter visto as brigas no jogo do sexto*, ha dois anos... Nessetempo, os colegas nao se preocupavam nada com a bola, exceptoquando se Ihes proporcionava um pretexto decente para dar ponta-pes... Lembro-me de uma briga!... Estavamos ja ha cinco minutos ascaneladas e ainda nao haviamos alcangado superioridade nitida, defacto, os elegantes apenas tinham comegado a aquecer, quando al-guem presente... nos informou que a bola estava ao nosso dispor,numa area a certa distancia... E, entao, la estava Hookey Walker**,o elegante cortou de forma rude pelo lado do sexto; o que vejo! Elenao foi a pe para a escola! Liquidou apenas dez colegas para o res toda temporada e mandou meia duzia para casa ate ao flm da epoca...Ve-lo chegar [mjeramente de uma briga era um sinal para todas assenhoras soltarem gritos agudos e desmaiarem. Deus o abengoe, meuquerido companheiro, porque eles gostavam era de ver, acima detudo, uma briga hoje — para nossa grande vergonha. E, nesse tempo,nao existia nenhum desses jogos que existem agora, desleais e arras-tados, nem os passes de bola de um para o outro, para a frente; tudoera viril e franco. Porque perder a bola uma vez, depois de ter estadonuma escaramu^a, era tao grave como uma transgressao das regras dofutebol, assim como prende-la quando se estivesse afastado do seuproprio campo. Nem se via nenhuma dessas fugas as brigas, queestao sempre a acontecer no presente. Ninguem aceitaria pensar quevalesse alguma coisa enquanto nao estivesse da cor do coragao da suamae da cabe^a ate ao dedo do pe dez minutos depois de o jogo tercome^ado. Mas, diabos me levem! Nao existe oportunidade para seconseguir um trambolhao decente nos dias de hoje; e, tambem, naoadmira, quando se ve jovens dandies «vestidos sem olhar a despesas»,

*Sexto ano escolar. (N. da T.)**Jogador que liga ou que prende na primeira linha da formagao ordenada,

mas, tambem, o «Disparate». (N. da T.)

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andando com afectagao nas traseiras de Big Side*, parecendo mesmoque os seus delicados esqueletos nunca poderiam sobreviver a qual-quer contacto violento com a bola. Enforquem os jovens peraltas!Nao tarda muito, teremos colegas a jogar de botas calgadas e luvasde pelica cor de alfazema... A minha divisa e bater na bola quandoela esta perto e, quando nao esta, bater no colega mais proximo!11

Esta descrigao da uma boa imagem da nogao de «virilidade»que caracterizava futebol de Rugby nesse perfodo. Demonstra,tambem, o desacordo relative a hipotese de o jogo estar a transfor-mar-se numa direcgao «civilizadora», ainda que o antigo estudantede Rugby recomendasse um regresso as glorias dos seus tempos deescola, quando «dar caneladas» — dar pontapes nas canelas dosadversaries — ocupava um lugar mais importante. Ao mesmotempo, deplorava a opgao pelo «passe», uma vez que, em suaopiniao, isso estava a conduzir a «emasculac.ao» do jogo. O padraode jogo anterior, que descreve, faz lembrar o antigo pugilato gregoe a luta que, como Elias demonstrou, se baseavam num ethos guer-reiro que considerava uma cobardia a esquiva ou o desvio peranteos socos do adversario12. Dado o antigo estudante de Rugby con-siderar ser «desleal» e «efeminado» o acto de fintar ou passar a bolaa um companheiro de equipa, a fim de evitar-se ser atingido pelospontapes, parece que o raguebi, de inicio, se baseou num ethossemelhante. Nest a fase, a bola possuia relativamente pouca impor-tancia. Os confrontos eram jogos de pontapes indiscriminados, nosquais o facto «viril» consistia em enfrentar um adversario e envol-ver-se em caneladas mutuas. De onde se conclui que a forc.a e a co-ragem, traduzidas em «caneladas», eram a criterio principal para oestabelecimento de uma reputagao de «virilidade» no jogo.

A descrigao do antigo estudante de Rugby da tambem umaideia sobre o ideal masculino da classe media de nivel superior e daclasse media quanto a identidade feminina desse perfodo. Assim,enquanto o ideal masculino e retratado como arrogante e fisica-

HAnun. The New Rugbeian, Vol. Ill, I860; citado em C. R. Evers, Rugby, Lon-dres, 1939, p. 52.

12Norbert Elias, «The Genesis of Sport as a Sociological Problem», em EricDunning, The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. Ver, tambem,o Cap. 3 deste. volume.

*Uma parte especifica do recreio de Rugby. (N. daT.)

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mente forte, o ideal feminino — segundo a perspectiva masculi-na — e representado como timido, fragil e dependente. Isto corres-pondia a imagem dos papeis masculino e feminino dominantes nomodelo de famflia nuclear patriarcal que na epoca se estava a tornara norma entre as classes medias em expansao. E possivel observarque, ao contrario do que actualmente se encontra divulgado, senaomesmo do ponto de vista feminista, esta forma de famflia pode terrepresentado, pelo menos num aspecto, um deslocamento no sen-tido de as hipoteses de poder entre os sexos se tornarem iguais. Ouseja, porque ligava, com mais eficacia do que tinha sucedido antes,um maior numero de membros masculinos a famflia, sujeitando-osassim a possibilidade de um grau de influencia e de controlofeminino mais acentuado e regular. A transformagao «civilizadora»global que foi aqui descrita, atraves do exemplo do desporto, podeter actuado, tambem, no sentido de as hipoteses de poder entre ossexos se tornarem iguais. Teria determinado um efeito semelhanteo complexo de restrigoes internas e externas13 na expressao daagressividade do homem, imposto, por exemplo, atraves do codigode comportamento «cavalhareiresco», restringindo-se deste modoas oportunidades de usar uma das suas principais vantagens depoder em relagao as mullheres — a sua forga fisica e correspondentesuperioridade como lutadores. Por sua vez, isto teria aumentado asoportunidades de as mulheres se empenharem por si proprias numaacgao unitaria, por exemplo, organizado marchas e manifestagoes.Teria esse efeito ao reduzir a probabilidade de que tais manifesta-goes da unidade e do poder femininos nascentes pudessem desen-cadear uma reacgao demasiado violenta dos homens — num con-texto domestico, dos maridos e pais e, no contexto das manifesta-goes, da policia e do publico em geral. Em particular, na medidaem que se pudesse esperar uma reacgao nao violenta dos homens asemelhantes actos politicos das mulheres, os receios destas seriamreduzidos e a sua confianga engrandecida de modo harmonioso nosentido de prosseguirem o combate por aquilo que acreditavam seros seus direitos. Em resumo, parece aceitavel a hipotese de que o

13Na perspectiva de Elias, e estritamente errado estabelecer dicotomias entrerestrigoes «internas» e «externas». Os termos que utiliza sao Selbstzwange (auto-res-trigoes) e Fremdzwange (restrigoes «outro», literalmente «estranhas»), e incide a suaanalise sobre a alteragao de equilibrio verificada entre elas no tempo.

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deslocamento de poder entre homens e mulheres, que teve a suaprimeira expressao piiblica no movimento das sufragistas, pode tersido, pelo menos parcialmente, inerente ao desenvolvimento «civi-lizador» que acompanhou a emergencia britanica como um Estado--nagao urbano e industrial.

Do debate desenvolvido ate aqui surge uma implicagao que ea seguinte: apesar de o desporto moderno continuar a estar inun-dado de valores patriarcais e apoiado em estruturas do mesmo tipo,o desporto emergiu como parte de uma mudanga «civilizadora», daqual um dos aspectos foi um deslocamento no sentido de se equi-valerem, embora de forma tenue, as situagoes verificadas noequilibrio de poder existente entre os sexos. Contudo, uma das con-sequencias foi a contribuigao que deu para o desenvolvimento, emcert as esferas, de expressoes simbolicas do machismo. Um exemplodisso e o padrao de transgressao de tabu socialmente aceite que,pelo menos na Gra-Bretanha, ficou associado, em particular masnao so, ao jogo da Rugby Union Football14. Procederei agora aanalise de alguns aspectos mais evidentes deste desenvolvimento.

A origem e o declinio da subculturamacho no raguebi

As tradigoes que se encontram relacionadas com a subculturamacho da Uniao de Raguebi sao encenadas depois do jogo, noautocarro que transporta os jogadores de regresso. As principalsac<;6es que as constituem incluem o strip-tease masculine, ouseja, uma simulagao ritual da equivalente actuagao feminina.O sinal habitualmente utilizado para que este ritual se inicie euma cangao intitulada 0 Guerreiro Zulu. As cerimonias de iniciagaoconstituem um aspecto vulgar do raguebi. No decurso das ce-rimonias, o iniciado e despido — com frequencia, a forga — e o seucorpo, em especial os seus orgaos genitals, e profanado, eventual-

14Ver Kenneth Sheard e Eric Dunning, «The Rugby Football Club as a Type ofMale Preserve: Some Sociological Notes », International Review of Sport Sociology, 5 (3),1973, pp. 5-24.

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mente, com graxa de calgado ou vaselina. O acto de beber cervejaate ao excesso, acompanhado, com frequencia, de rituais e corridasque provocam o aumento do consumo da bebida, e a rapidez comque se atinge a embriaguez sao, tambem, aspectos que se implan-taram decisivamente na tradigao do clube de raguebi. Uma vezembriagados, os jogadores cant am cangoes obscenas e, no caso de asmulheres ou namoradas de qualquer um deles se encontrarempresentes, a cangao Goodnight Ladies e cantada como um sinal parase retirarem. Dai em diante, os acontecimentos destinam-se exclu-sivamente aos homens e quaisquer mulheres que decidam ficar saoconsideradas desonradas.

Estas cangoes obscenas tern, pelo menos, dois temas frequentes:a imitagao, por um lado, de mulheres e, por outro, de homos-sexuais. De inicio, pode parecer que estes dois temas nao ternqualquer relagao, mas e razoavel admitir a hipotese de que ambosreflectem o incremento do poder das mulheres e a sua crescenteameaga a imagem tradicional que os homens tern de si proprios.O raguebi comegou a tornar-se um jogo para adult os por volta de1850. No principio, era exclusive da classe media mais alta e denivel medio, facto que sera talvez significative, porque a maioriadas sufragistas e proveniente da mesma camada social. Por outraspalavras, e razoavel supor que, neste periodo, as mulheres perten-centes a estes niveis da hierarquia social estavam a tornar-se, cadavez mais, uma ameaga para os homens, e que alguns destes reagi-ram atraves do desenvolvimento do raguebi — que nao foi, e claro,o unico enclave criado —, transformado, assim, em area masculinareservada, onde podiam reforgar a sua masculinidade ameagada e,ao mesmo tempo, imitar, denegrir e reificar as mulheres, a princi-pal fonte de ameaga. Uma analise breve de um par de cangoes deraguebi ajudara a compreender como pode ter sido este o caso.

Um dos principals aspectos, frequentes nas cangoes de raguebi,traduz-se no facto de integrarem uma atitude hostil, brutal, mas aomesmo tempo medrosa, em relagao as mulheres e ao acto sexual.Na balada Eskimo Nell, por exemplo, mesmo o campeao de perse-guigao de mulheres, Dead Eye Dick, e incapaz de proporcionarsatisfagao sexual a Nell. Isso e uma questao delegada no seu homemde confianga, Mexican Pete, que cumpre a tarefa com o seu re-volver de seis tiros». Em The Engineer's Hymn, o personagem centrale um engenheiro cuja mulher «nunca estava satisfeita», tendo sido

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obrigado a construir uma maquina com o fim de cumprir a com-ponente erotica do seu papel de marido. A maquina teve exito ondeele falhara, mas, neste processo, a sua mulher fora brutalmentemorta. E talvez raro e pode mesmo nunca ter acontecido que nestascangoes sejam caracterizados os homens e as mulheres «normais».Antes que o heroi possa satisfazer o insaciavel apetite sexual da«heroma», sao necessarios poderes sobre-humanos ou extra-huma-nos. Nada pode ser mais revelador da fungao destas cangoes naexpressao simbolica, mas tambem, em certa medida, na redugaosimbolica do medo relative as mulheres, que se reconhecem comopoderosas e exigentes. Esses receios sao susceptiveis, de facto, deterem aumentado de forma proporcional ao poder das mulheres.

O segundo tema comum destas cangoes obscenas e a troga doshomens efeminados e homossexuais. Uma das cangoes tradicionaisnos circulos de raguebi tern como estribilho:

Porque juntos somos esquisitos,desculpem-nos enquanto vamos Id acima.Sim, juntos somos todos esquisitos,E por isso que andamos por ai aos pares.

A fungao deste estribilho parece ser contra-atacar a acusagao,antes de esta se formular, e de realgar e reforgar a masculinidadepor meio da troga nao apenas das mulheres mas, tambem, dos ho-mossexuais. Nos ultimos anos, a norma e cada vez mais constituidapor padroes menos segregados das relagoes entre os sexos, dado queas mulheres se tornaram mais poderosas e capazes de desafiar, defacto, a sua subordinagao, senao mesmo a sua objectividadesimbolica, com um leve, mas ainda assim crescente, grau de suces-so. Nestas condigoes, os homens que se conservaram fieis ao antigoestilo e continuaram a gostar de participar em grupos masculinosdevem ter sentido duvidas langadas sobre a sua masculinidade.Alguns podem mesmo ter comegado a duvidar de si proprios.Numa situagao social como a do clube de raguebi, onde a principalfungao era a expressao da masculinidade e a perpetuagao de normastradicionais a este respeito, as duvidas deste genero devem ter sidoduplamente ameagadoras. Os clubes de raguebi britanicos ja naosao aquelas fronteiras nitidas que de inicio costumavam ser. Se ahipotese que avangamos aqui tern alguma validade, de que aemancipagao das mulheres desempenhou um papel importante no

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desenvolvimento destes grupos, tambem se adrnite que a continui-dade deste processo foi um contribute significative para o enfraque-cimento subsequente que se verificou atraves da debilitagao dasestruturas e das ideologias que, em tempos, mantiveram os jogado-res de raguebi profundamente unidos, sabendo-se como todos osgrupos masculines constituem um processo complexo. Atingiu-seagora um estadio em que as mulheres sao visitas bem-vindas aosclubes de raguebi. Em parte, foram contingencias financeiras queprovocaram esta mudanga, em especial a utilizagao de bailes com ofim de reunir fundos. Mas este facto economico reflecte mudangasmais vastas que ocorreram na estrutura social, em particular naposigao das mulheres no quadro desta estrutura.

Os bailes permitiram que as mulheres se introduzissem, comaprovagao oficial, na area reservada masculina. Isto nao significaque, antes, a sua presenga tenha sido inteiramente proibida. Pelocontrario, sempre foram bem-vindas — para fazer cha, preparar eservir refeigoes e para admirar e animar os seus homens. Porem, nopassado, a sua presenga so era tolerada no caso de se manteremnuma posigao subordinada. As mulheres mais emancipadas quecomegaram agora a entrar em clubes, quer com o fim de dangar ousimplesmente de tomar uma bebida com os homens que as acom-panham, estao, no entanto, cada vez mais relutantes em aceitar estefacto. A sua tendencia e para valorizarem a independencia, paraalcangarem a igualdade e para afirmarem, relativamente ao homem,o poder que a sua atracgao como parceiras sexuais Ihes permite. Asmulheres nao desejam acentuar um comportamento que conside-ram intencionalmente agressivo ou, em contrapartida, recorremelas proprias a utilizagao de obscenidades como um sinal da suaemancipagao.

Dado que estamos a analisar uma actividade numa area socialonde a predominancia e masculina, o facto de as mulheres acompa-nharem os homens nao implica o desaparecimento definitivedo domfnio masculine. No entanto, as mudangas que acabamos dediscutir podem dar uma indicagao do grau em que o domfniomasculine na sociedade britanica comegou a ser combatido e, emcerta medida, corroido. E claro que, ao mesmo tempo, revelaquanto as mulheres tern ainda de avangar, a fim de se aproximaremdo nivel de total igualdade com os homens. Uma das razoes perque, neste caso, elas tern de continuar a acompanhar os homens e

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o facto de existirem, em comparagao, poucas actividades de lazerque se encontrem disponiveis para as mulheres. Estas continuam li-mitadas a papeis domesticos e familiares em grau muito superiorao dos homens. A ausencia de possibilidades de lazer adequadas asmulheres reflecte esse facto. For isso, continua a ser dificil que asmulheres entrem nos bares sem a correspondente perda de estatutoou sem atrairem uma atengao nao desejada da parte dos homens.For sua vez, isto constitui, em grande parte, o resultado de seculosde dominio masculino e de uma estrutura social global que conti-nua, de um modo geral, a reflectir e a reforgar este predominio. Issotraduz, igualmente, a existencia de padroes de socializagao quedestinam as mulheres, em especial, para as coisas da casa, para arealizagao de papeis professionals subordinados e que limitam osseus horizontes nao so na esfera professional mas, tambem, na suaesfera de lazer.

Parece razoavel aceitar a hipotese de que as mudangas queocorreram nos clubes de raguebi britanicos sao sintomaticas dasmudangas sociais, de um modo geral associadas ao desenvolvimen-to do desporto moderno. Neste trabalho, nao temos espago sufi-ciente para uma discussao completa das raizes sociais destas mu-dangas. Bastara dizer que elas constituem um dos aspectos da emer-gencia da Gra-Bretanha como um Estado-nagao urbano e industriale que este processo envolve, na interacgao dos seus componentesfundamentais, a emergencia de uma estrutura social caracterizadapor padroes de comportamento mais «civilizados» e um grau maiselevado de igualdade entre os sexos. Contudo, existe, pelo menos,uma excepgao aparente a esta generalizagao: o fenomeno do «hoo-liganismo do futebol». Isto porque ele evoluiu, segundo parece, deuma forma oposta a que sugere que as mudangas «civilizadoras»constituiram uma parte do desenvolvimento continue da Gra-Bretanha como um Estado-nagao urbano e industrial. Antes deadiantar, em conclusao, algumas observagoes, procederei a umabreve analise do hooliganismo do futebol15.

15A analise aqui apresentada baseia-se na de Eric Dunning, Patrick Murphy eJohn Williams, «The Social Roots of Football Hooligan Violence», Leisure Studies,Vol. 1, n.° 2,1982, pp. 139-56; ver tambem «If You Think You're Hard Enough»,New Society, 25 de Agosto de 1981; e Hooligans Abroad: the Behaviour and Control ofEnglish Fans at Football Matches in Continental Europe, Londres, 1984. Ver, tambem,Cap. IX deste volume.

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A sociogenese da violencia dohooliganismo do futebol

As caracteristicas mais evidentes do hooliganismo do futebolsao os confrontos e a exibigao de agressao entre grupos de fas rivais.Os confrontos dos hooligans do futebol assumem muitas formasdiversas e podem ocorrer numa variedade de contextos diferentes,para alem do proprio campo de futebol. For exemplo, podem assu-mir a forma de um combate corpo a corpo entre dois adeptos rivaisou entre dois pequenos grupos de adversaries. Seja qual for adimensao do confronto, por vezes sao ai utilizadas armas, comofacas, por exemplo, mas isso nem sempre acontece. Os confrontosdos hooligans do futebol podem assumir, igualmente, a forma delangamentos, nos quais se usam, como munigoes, projecteis que sepodem classificar desde inofensivos, como amendoins e copos depapel, ate outros que sao potencialmente mais perigosos, comodardos, moedas, tijolos, placas de cimento armado, fogos-de-ar-tificio, bombas de fumo e, como ja aconteceu em uma ou duasocasioes, garrafas com petroleo.

De um modo geral, o langamento de projecteis verifica-se nocontexto do proprio campo de futebol, embora o facto nao sejadesconhecido no exterior do recinto, em especial quando uma fortepresenga policial evita que os grupos de fas adversaries estabele^amcontacto directo. Em consequencia do policiamento oficial na se-gregagao dos fas rivais -— policiamento que foi introduzido, nosfinais dos anos 60, como um meio de combater o hooliganismo dofutebol, ainda que uma das suas consequencias tenha sido o deslo-camento do fenomeno e o aumento da frequencia da sua ocorren-cia para o exterior dos recintos —, os combates corpo a corpo saorelativamente raros nas bancadas, apesar de pequenos grupos de fasconseguirem, por vezes, devido ao facto de nao usarem distintivosidentificadores, infiltrar-se no territorio dos seus rivais com o fimde provocarem um confronto. A participagao numa «invasao» bemsucedida constitui uma fonte de enorme gloria nos circulos hooli-gans do futebol. Contudo, de um modo geral, os confrontos verifi-cam-se actualmente quer antes do jogo, por exemplo, nos bares docentro da cidade ou a sua volta, quer apos o desafio, quando a

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policia tenta conduzir os fas, vindos de fora, para a estagao docomboio ou da camioneta. E entao que surge a oportunidade daocorrencia de maior numero de confrontos. Com frequencia, estescomegam com uma «corrida», isto e, com cerca de duzentos outrezentos adolescentes e j ovens adultos que avangam pela rua aprocura de uma falha nas barreiras da policia, o que Ihes permitiraestabelecer contacto com o «inimigo». Quando conseguem iludircom exito o controlo da policia — os que podem chamar-se oshooligans hard core do futebol utilizam estrategias bem elaboradascom o objectivo de atingir os seus fins —, o que de uma forma ca-racteristica acontece e uma serie de recontros disperses por umaarea bastante alargada, envolvendo cada um deles cerca de, diga-mos, vinte ou trinta jovens. Os confrontos verificam-se, tambem,quando grupos de fas rivais se encontram, por acaso, em comboiossubterraneos e cafes de auto-estradas. Em complemento, os con-frontos verificam-se, por vezes, no seio de grupos de fas particulares,para onde sao atraidos participantes rivais, por exemplo, de diferen-tes bairros locais ou de outras areas da cidade. Tambem nao saodesconhecidos os «confrontos de grupos» previamente combinados.Por exemplo, fas de varios clubes de Londres reunem-se, por vezes,em Euston ou num outro terminal de estagao de caminho de ferroda capital, com o fim de se envolverem num ataque con junto aosadeptos visitantes provenientes do Norte.

Durante o jogo, os grupos de fas adversaries dirigem a suaatengao de uns para os outros tanto ou mais do que o fazem emrelagao ao proprio jogo, cantando, entoando estribilhos e gesti-culando como forma de expressar a sua oposigao. O tema frequentedas suas cangoes e coros e dos desafios a luta e as ameagas deviolencia. Grupos particulares de fas podem possuir o seu propriorepertorio de cangoes e de coros, mas muitas sao as variagoes locaisde um con junto de temas conhecidos. Como Jacobson demons-trou16, nesta relagao, o facto de os seus poemas serem pontuados porpalavras como «6dio», «morte», «luta», «pontape» e «rendigao» efulcral, transmitindo imagens de batalha e de conquista. Aqui estaoestas variagoes, citadas por Jacobson, do repertorio dos fas do Chel-sea:

16Simon Jacobson, «ChelseaRule-OK»,N«£;5oa«fy, 1975, Vol. 31, pp. 780-3.

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(Cangao para: Those Were the Days My Friend)Nos somos o Shed17, meus amigos,Tomamos Stretford End18.Vamos cantar e dangar e fazer tudo de novo.Vivemos a vida que escolhemos,Lutamos e nunca perdemos.Porque nos somos o Shed,Oh, sim! Nos somos o Shed.

(Cangao para: I Was Born under a Wandering Star)Eu nasci em Chelsea Shed.As botas fizeram-se para dar pontapes,Os revolveres para disparar.Venham para o Chelsea ShedE todos teremos botas.

Para alem da violencia, a castragao simbolica dos fas rivais eoutro tema corrente das cangoes e coros hooligans', sendo um exem-plo disso as referencias que Ihes fazem, a eles e/ou a equipa queapoiarn, de poofs ou wankers, esta ultima acompanhada por umagrande quantidade de representagoes gestuais do acto de masturba-gao masculine. Outro ainda e o de caluniar a comunidade de fasadversaries como, por exemplo, com a seguinte cangao:

(Cangao para: In My Liverpool Home)Nos seus bairros de lata de Highbury,Procuram qualquer coisa para comer no balde do lixo.Nos seus bairros de lata de Highbury,Encontram um gato morto e pensam que e um banquete.

Como se pode ver a partir desta descrigao, pelo menos umaproporgao significativa dos fas do futebol que se identificam pelaetiqueta hooligan parece estar tanto ou mais interessada no confron-to como em assistir ao futebol. Para eles, o jogo e, em especial, omeio de expressao do seu machismo, quer impondo, de facto, a

17The Shed e uma area de bancadas cobertas em Stamford Bridge, o campo doChelsea FC.

18The Stretford End, os lugares do peao em Old Trafford, o campo do Manches-ter United. Os «peoes de Stretford» eram famosos pelas suas proezas hooligan nosinicios e meados dos anos 70.

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derrota aos fas rivals e provocando-lhes a fuga quer efectuando-o,pela via simbolica, por meio de cargoes e de coros.

Considerando isto e reportando-nos a discussao inicial, e evi-dente que uma componente central do hooliganismo do futebol ea expressao de uma identidade masculina particular, o que se podedesignar por «um estilo masculino violento». Os dados existentesmostram que a maioria dos hooligans hard core do futebol e prove-niente dos sectores socioeconomicos mais desfavorecidos das classestrabalhadoras, e parece aceitavel considerar a hipotese de que esteestilo masculino violento tern origem em caracteristicas estruturaisespecificas das comunidades das classes trabalhadoras de nivel maisbaixo. Gerald Suttles forjou o termo «segmentagao ordenada» paradescrever esse tipo de comunidades, e aflrma que uma das suascaracteristicas dominantes e o «grupo de companheiros so de umsexo» ou os «bandos de esquina»19. Este autor sugere que taisgrupos parecem «desenvolver-se, de maneira logica, a partir deuma acentuada enfase que e colocada no nivelamento por idades, nasegregagao entre os sexos, na unidade territorial e na solidariedadeetnica». Contudo, documenta a ocorrencia de conflitos intra etnicosentre grupos e recbnhece, noutro lugar, que a diferenciagao etnicae a solidariedade sao aspectos contingentes na sua formagao, maisdo que fact ores necessarios. Isto e, o nivelamento por idades, asegregagao sexual e a identificagao territorial parecem ser as prin-cipals estruturas internas determinantes. Numa comunidade emque os elementos centrais da estrututa social sao estes, os adolescen-tes do sexo masculino vivem, de um modo geral, dos seus propriosexpedientes e tern propensao para se unir em grupos, determinados,por um lado, por lagos de parentesco e proximidade de residenciae, por outro, pela ameaga que constitui o desenvolvimento de«bandos» paralelos nas vizinhangas proximas. Essas comunidadestendem, tambem, a fragmentar-se no piano interno. Suttles aflrmaainda que a excepgao pode ocorrer quando se verifica ou se ouvefalar de uma luta de bandos, porque esta pode mobilizar a fideli-dade dos membros masculinos em toda a comunidade.

No desenvolvimento desta analise, Suttles introduziu, em fase

19Gerald D. Suttles, The Social Order of the Slum: Ethnicity and Territory in the InnerCity, Chicago, 1968.

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posterior, o conceito de «vizinhanga protegida», assim sugerindoque os grupos de adolescentes de rua, que crescem em comunidadesde bairros miseraveis podem ser considerados como «bandos vigi-lantes», que se desenvolvem devido «a insuficiencia das instituigoesformais responsaveis pela protecgao da propriedade e das suas vi-das»20. Esta e uma ideia interessante, compativel, em certos aspec-tos, com a teoria do «processo de civilizagao» de Elias, a qual daenfase ao papel representado pelo desenvolvimento do controlo doEstado na emergencia de padroes sociais «mais civilizados». Ouseja, de acordo com Elias, poderiamos encontrar, mesmo numEstado-nagao urbano e industrial, niveis relativamente elevados deviolencia manifesta em comunidades onde a actuagao do Estado serevela incapaz de exercer, ou nao deseja aplicar, um controlo efec-tivo. Deixem-me agora explorar o caminho pelo qual a estrutura detais comunidades conduz a produgao e reprodugao da «masculini-dade violenta», enquanto uma das suas estruturas dominantes.

Na medida em que as suas estruturas internas se aproximam da«segmentagao ordenada», e dado que estas nao estao sujeitas a umeficiente controlo do Estado, as comunidades de nivel mais baixodas.classes trabalhadoras tendem a criar normas que, relativamenteas de outros grupos sociais, toleram um elevado nivel de violencianas relagoes sociais. Em termos correlativos, tais comunidadesexercem comparativamente menos pressao sobre os seus membrosno sentido de exercerem autocontrolo ao nivel das suas tendenciasviolentas. Varios aspectos da sua estrutura orientam-se nessa direc-gao. Deste modo, em relagao ao controlo adulto, a comparativaliberdade que e vivida pelas criangas e adolescentes das classestrabalhadoras signiflca que os ultimos tern a propensao para inter-agirem de forma relativamente violenta, desenvolvendo hierarquiasde dominio em que a idade e a forga fisica sao determinantes fun-damentals. Este padrao e reforgado pelos padroes caracteristicos dosadultos, que sao dominantes nas comunidades deste tipo. A segre-gagao sexual, o predominio masculino do homem sobre a mulher ea consequente ausencia de pressao de «suavizagao» feminina desen-volvem-se na mesma direcgao. Com efeito, na medida em quenessas comunidades as mulheres evoluem de maneira a serem rela-tivamente violentas e para esperarem um comportamento violento

20Gerald D. Suttles, The Social Construction of Communities, Chicago, 1972.

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da parte dos seus companheiros, as tendencias dos membros mas-culinos acabam por conciliar-se. A frequencia de conflitos entrefamilias, vizinhos e, acima de tudo, «bandos de esquina» constituium con junto de reforgos posteriores. Em resumo, as comunidadesdas classes trabalhadoras de nivel mais baixo parecem caracterizar-se por uma especie de «ciclo de retorno positivo», tornando arecurso a violencia, virtualmente, muito elevado em todas as areasdas relagoes socials, em especial por parte dos membros masculinos.

Um dos efeitos deste ciclo e a atribuigao de prestigio aosmembros masculinos capazes de lutar. Em termos correlativos, ve-rifica-se a tendencia para estes membros masculinos desenvolveremo gosto pelo confronto, para considerarem a luta como uma fonteelementar de significado e de gratificagao na vida. A este respeito,a diferenga fundamental entre as comunidades das classes trabalha-doras de nivel mais baixo e as dos seus equivalentes mais «res-peitaveis», de niveis medio e superiores, parece ser a de que, nestesultimos, a violencia colocada nas relagoes face a face e condenada,em geral, enquanto, no caso dos primeiros, e por norma desculpadae recompensada. Uma outra diferenga consiste no facto de existirnas classes «respeitaveis» a disposigao para a violencia ser «oculta-da» e, quando esta ocorre, para assumir, em contrapartida, umaforma mais «instrumental», conduzindo ao despertar de sentimen-tos de culpa. Nas comunidades das classes trabalhadoras «rudes»,pelo contrario, a violencia tende a manifestar-se, em grau elevado,em publico, assumindo, em contrapartida, uma forma «expressiva»ou «afectiva». Como tal, contribui, em grau mais elevado, para odespertar de sentimentos de prazer.

E razoavel avangar a hipotese de que e o «estilo masculinoviolento» produzido, desta maneira, nas classes trabalhadoras«rudes» que, em especial, se manifesta nos confrontos dos hooligansdo futebol. O que significa que sao os adolescentes e jovens destesector das classes trabalhadoras que constituem a dimensao hard coredos que, com maior persistencia, se empenham nos actos maisviolentos ocorridos no contexto do futebol. E claro, o futebol naoe a unica forma atraves da qual este estilo se manifesta. Contudo,em grande medida, ele constitui, sob muitos aspectos, um quadroadequado. Porque o proprio jogo de futebol e a representagao deum confronto que se baseia, no fundamental, na expressao damasculinidade, embora de uma forma que e aprovada e controlada

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socialmente. A equipa de futebol e, tambem, um factor da identi-ficagao dos adolescentes e dos j ovens adultos do sexo masculino dasclasses trabalhadoras, e os ultimos parecem ver o estadio, em par-ticular os lugares do peao, como o seu proprio «relvado». Aomesmo tempo, o futebol atrai para o seu territorio, com regulari-dade, um «inimigo» facilmente identificavel, os adeptos da equipaadversaria, que sao considerados os «invasores». Finalmente, agrande multidao reunida num encontro de futebol proporciona umquadro onde aquilo que e oficialmente entendido como actos «anti--sociais» pode desencadear-se com relativo anonimato e impuni-dade, e a presenga acentuada da policia proporciona a excitagaosuplementar dos atritos regulares com a lei. Consideremos agora,em termos de conclusao, algumas observances.

Conclusao

Nesta comunicagao, sugeri que as origens de um certo numerode «desportos de confronto» modernos podem ser tragadas a partirde uma serie de jogos populares, nos quais a violencia constitui oindicador do seu enraizamento numa sociedade que foi mais violen-ta e, por isso, mais profundamente patriarcal do que a nossa.Reconstituf a modernizagao incipiente destes desportos nas escolaspublicas, sugerindo que as mudangas «civilizadoras» que ocorreramno quadro desta ligagao foram sintomaticas de mudangas complexasmais vastas, das quais um dos efeitos foi o aumento do poder dasmulheres em relagao aos homens. Alguns homens reagiram a estedeslocamento de poder atraves da criagao de clubes de raguebi— que nao foram, e claro, os unicos enclaves desenvolvidos comeste objective — assim transformados em areas masculinas reserva-das, onde podiam de forma simbolica imitar, reificar e caluniar asmulheres, que entao, mais do que nunca, representavam umaameaga ao seu estatuto e a imagem que tinham de si proprios.A progressiva emancipagao das mulheres destruiu, de forma subs-tancial, este aspecto da «subcultura» do raguebi. Finalmente,analisei a aparente contradigao da minha tese sobre o «hooliganis-mo do futebol», sugerindo que uma das suas caracteristicas prin-

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cipais e o «estilo masculino violento» que e estruturalmenteproduzido e reproduzido entre sectores especificos das classestrabalhadoras de nivel mais baixo. De facto, isso nao constitui umacontradigao a minha tese, mas sim um indicador da irregularidadecom que se verificaram os processes «de civilizagao» e da formagaodo Estado, e de que ainda existem areas da estrutura social brita-nica actual que continuam a gerar agressividade macho, embora deuma forma menos vincada.

A diferenga fundamental entre o complexo macho manifestadono hooliganismo do futebol, e, de um modo geral, no estilo mas-culino violento do sector «rude» das classes trabalhadoras, e a quese verifica no raguebi consiste no facto de a violencia ffsica e durezados jogadores nesta modalidade tender a orientar-se, de uma formasocialmente consentida, para o seio do proprio jogo, enquanto a dasclasses trabalhadoras «rudes» tende a ser, antes, uma pratica fun-damental na vida. Para alem disso, e digno de assinalar que,enquanto os jogadores de raguebi, no auge da subcultura da suaarea reservada, tinham a tendencia para imitar, objectivar e calu-niar simbolicamente, atraves de rituais e de cangoes, as mulheres,estas nao figuravam nas cangoes e coros dos hooligans do futebol.Isto talvez seja um indicador do reduzido poder das mulheres nascomunidades das classes trabalhadoras de nivel mais baixo e, porconsequencia, do facto de estas constituirem uma ameaga menorpara os homens. Nestas circunstancias, as mulheres estao de factopresentes e sao exploradas e submetidas, num grau mais elevado, aviolencia dos homens.

A principal indicagao desta analise consiste provavelmente nofacto de que o desporto parece ter somente uma importancia se-cundaria na produgao e reprodugao da identidade masculina. Ascaracteristicas da estrutura social mais alargada, que afectam ashipoteses de poder relativas dos sexos e o grau de segregagao sexualque existe no seio da necessaria interdependencia dos homens e dasmulheres, parecem ser, a este respeito, de significado bastantemaior. Quanto a isso, tudo o que o desporto parece assumir, noquadro desta ligagao, e o desempenho de um papel secundario ede reforgo. No entanto, o desporto e crucial na sustentagao deformas mais atenuadas e controladas de agressividade macho nocontexto de uma sociedade onde so alguns papeis profissionais,como os do exercito e da policia, oferecem ocasioes regulares para

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lutar e onde a orientagao global do desenvolvimento tecnologicotern sido, desde ha muito tempo, a de reduzir a necessidade deutilizar a forga fisica. Evidentemente, na medida em que a socia-lizagao das mulheres continue a processar-se no sentido de se sen-tirem atraidas pelos homens macho, os desportos, em especial os queimpliquem confronto, hao-de desempenhar um papel de certosignificado na perpetuagao do complexo macho e da dependencia dasmulheres. Sera inutil especular acerca da hipotese de os desportosde confronto continuarem ou nao a existir numa sociedade «civili-zada» mais avangada do que a nossa. A este respeito, no entanto,uma coisa parece, de certo modo, assegurada, nomeadamente que,nao obstante o equilibrio poder originar, a curto e a medio prazos,conflitos, tal sociedade integrara, a longo prazo em grau maiselevado do que no presente, a igualdade entre os sexos, as classese as «ragas».

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INDICE DE AUTORES

A BUSCA DA EXCITA^AO

ADORNO, 20, 376.AGOSTINHO, Santo, 126, 127, 128.ARIST6TELES, 120, 123, 124, 126, 158.

BECKFORD, William, 248, 249 (nota),251 (nota).

BOURDIEU, P., 14.BRISAEUS, 145.

CAILLOIS, Roger, 157.CANNON, Walter B., 118.CLARKE, John, 365, 366.COHEN, Philipp, 366, 370.CRICK, 27.

DAHRENDORF, Ralf, 285.DARWIN, C, 24.DEM6CRITO, 219.DENNEY, R., 335.DUMAZEDIER, Joffre ,115.DUNNING, Eric, 39, 89, 90.DURKHEIM, E., 15, 228, 318, 319, 323,

329, 338, 390.

ELIAS,Norbert,9,10,12,19,20, 28, 30, 32,301, 303, 306, 311, 318, 319, 320,322,323,325,328,329,332,335,338, 378, 381, 393, 397, 408.

ERASMO, D.,41.EVANS-PRITCHARD,E. E., 370.EURIPEDES, 124, 126, 215.EYSENCK, H.J., 327.

FIGER, L, 329.FILOSTRATO, 203, 204.FOX, R., 329.FREUD, S., 211, 212 (nota).

GIDDENS, Anthony, 13.GOUDSBLOMJ., 20.

HALL, Stuart, 365, 366.HARRE, Rom, 350, 366.HARRINGTON,;. A., 369.HARRISON, 370.HART, Dale P., 328.HOMANS, G., 284, 285.HOMERO, 216.HORKHEIMER, 20.HUIZINGA, Johan, 305, 306, 307, 309,

310, 314, 323, 335.

JACOBSON, Simon, 405.

KITCHIN, Laurence, 18.

LE BON, Gustave, 92, 93.LOCKWOOD, David, 14, 15.LORENZ, C., 350.

MANHEIM, K., 19.MARSH, Peter, 330, 350, 366, 367, 369.MARX, Karl, 24, 366.McINTYRE, Thomas, 328.MELNICK, Merrill J., 328.MENNELL, S., 25.MILLS, C. Wright, 36.MILTON, J., 123, 124.MORRIS, Desmond, 367.MORRISEY, 25.

NEUMAYER, E. S., 127.NEUMAYER, M. H., 127.NIAS, K. D., 327.

OWEN, 333, 334.

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PARSONS, Talcott, 153.PATRICK, G. T. W., 127.PLATAO, 123, 210, 217, 219, 228.

RIESMAN, David, 335.RIGAUER, B., 306, 307, 308, 309, 310.ROBINS, David, 370, 371.ROSSER, Elisabeth, 350, 366.

SCOTSON. John, 89.SIMMEL, G., 36.S6CRATES, 217.STEPHENSON, William, 157.STONE, G. P., 14, 306, 307, 309, 310.SUTTLES, Gerald, 368, 370, 371, 372,

382, 407.

TAYLOR, Ian, 364, 365, 366.TRIVIZAS, Eugene, 369.TROLLOPE, A., 313.TUCIDIDES, 215.

WATSON, 27.WEBER, Max, 12, 330.WEIS, Kurt, 328.

YIANNAKIS, Andrew, 328.'

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INDICE TEMATICO

ATITUDES, 90, 298; — para com o tempo,43, 44.

CADEIAS DE INTERDEPENDENCE,(ver INTERDEPENDENCE).

ClfiNCIA, 18, 67; ciencias humanas, 22; —naturals, 40, 41; — socials, 41; blo-logia, 161, 163; — humana, 162;biologico, 21; —s, 162, 164;biologos, 33, 98, 163, 164; fisiolo-gia, 36, 227; fisiologicos, 34, 165;fisiologistas, 166; historia, 36, 227;— das ideias, 41, 43; historiadores,227; psicologia, 9, 163; — social,166; psicologico, 21, 134, 164,165; —s, 162; psicologos, 33,98,163, 164, 166, 169, 170; sociolo-gia, 9, 12, 14, 25, 36, 40-41, 67,162, 163, 227, 290; paradigmasdominantes na —, 16; sociologica,explicagao —, 14; investigagao —,10, 18, 36, 166; pesquisa —, 40;teoria —, 14; tradicjio —, 10, 14;investigates —, 227; principalscorrentes —, 13; teoria e investiga-C.ao —, 17, 18, 36, 37; teorias —,36, 231; teorizagoes —, 393; so-ciologico, 21, 34, 162, 164; cfrculos—, 23; termos —, 40; trabalhos —,47; sociologos, 13, 17, 33, 36, 40,88, 163, 166, 170, 227, 236, 304;campo de visao dos —, 17; — deespirito filosofico, 43; — de linguainglesa, 37; valores de compromissodos —,15 . PENSAMENTO, —reducionista e dualista ocidental,17; — dicotomico e dualista, 19;dicotomia naturalismo/antinatura-

lismo, 22; dicotomia tradicional,37; oposicjio dico-tomica, 35; for-mas dicotomicas, 25; sobreposic,6esdicotomicas, 21; dualismo, 21;—espirito e corpo, 17; empirismo,9; empiricismo abstracto, 36; formareducionista, 23; funcionalismo, 9,36. TEORIA DE NORBERTELIAS, 30, 301, 303, 306, 311,318, 319, 320, 322, 323, 325, 328,329, 332, 335, 338, 378, 381, 393,397, 408; teoria sociologica deElias, 19-32; perspectiva de —, 12;a sfntese de —, 28; analise e sfntese,27; de modo global, 34; estudo —,20; Escola de Frankfurt, 20; fertili-zacjio cruzada, 21, 145; methodens-treit, 20, 21; aperfeigoamento de ummetodo, 22; — cienticista, 22; —comparative, 43; — de investiga-cjio, 43; o «metodo» de investigagaocientffica, 40, 41; metodos cien-tiflcos, 20; metodos conceitos emodelos, 23; perspectiva configura-cional, (ver CONFIGURAgAO);perspectiva do desenvolvimento,(ver DESENVOLVIMENTO); sm-tese e analise, 21; sfntese «eliasia-na», 37; — mais adequada ao objec-to, 22; prioridade a —, 21; synthe-sis, 36.

CIVILIZA^AO, arranques de —, 75; auto--escalada da —, 81; avango de —,43, 62, 78, 79, 241; avancos de —,43, 58, 59; caracter de —, 61; — dasociedade francesa, 61; — dos jogosde competic.ao, 45; conduces de —,75; impulse de —, 241; impulse de

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416 A BUSCA DA EXCITA^AO

paciflcagao e de —, 62; impulses de—, 75; padroes de —, 69; pressoesde —,353; processo de —, 11, 24,30, 31, 43, 44, 61, 70, 75, 76, 104,126, 156, 171, 196, 197, 211, 218,241, 242, 244, 249, 263, 311, 328,332, 336, 338, 378, 381, 408, 411;teoria do processo de —, 34, 35, 37,196; autoconstrangimento, 89;autocontrolo, 30, 31, 45, 69, 76,78, 79, 89, 104, 125, 166, 167,172, 176, 177, 321, 325,338,342,346, 354, 373, 395, 408; auto-disciplina, 224; autodomfnio, 74,79, 88, 89, 92, 101, 138, 166,197, 198, 213, 216, 256, 336, 340,377; padroes socials de —, 75;auto-restrigao, 276, 287; CIVI-LIDADE, 41; CIVILIZADOR,desenvolvirnento —, 399; efeito—, 346, 381; impulso —, 224;processo —, 214; autocontrolos—es, 167; direcgao civilizadora,397; mudanca —, 399, 403, 410;transformagao —, 324, 398; CIVI-LIZAR, 41; PADROES CIVI-LIZADOS, 194; DESCIVILIZA-gAO, 33, 75; impulso de —, 76;facto de —, 89; processo de —, 75,327.

COMPORTAMENTO, 17, 39, 44; —agressivo, 91, 356, 373, 374; — damultidao, 128; codigo de —, 203;— cavalheiresco, 398; — hooligan,356, 367, 388 (ver FUTEBOL); —«irracional», 16; — «racional», 16;reguladora do —, 30; — violento,350, (ver VIOLENCIA).

COMUNIDADE, 44, 407; comunidades,344; — de bandos vigilantes, 407;— de bebidas, 153; comunitaris-mos, 156; gemeinschaft e gesellscbaft,(ver LAZER).

CONDUTA, codigo de —, 41, 42, 43,56, 57, 81; modelos sociais de —,41; o domfnio da —, 41; padroesmais diferenciados de —, 61; refina-mento das —s, 30; codigo das ma-neiras, 47; refinamento das manei-ras, 41, 251; centre de refinamen-to, 64.

CONFIGURAgAO, 78, 79, 87, 213, 215,230, 232, 233, 235, 236, 244, 248,250-251, 280, 282, 283, 289, 290,

293, 295, 302, 325, 368; — de base,236, 240; — dinamica, 137, 282,289, 290, 291, 297; — duplamentelimitada, 32; — em mudanga, 88;modelos de —, 76; — social, 87,211, 301, 302, 318, 321, 372;— social global, 316, 339; configu-racoes, 25-26, 35, 49, 77, 78, 86,154, 230, 233,280,290, 291,295,297; — de grupo, 157; — dinami-cas, 236; dinamica das —, 25, 27;dinamica imanente das —, 30; —humanas, 27; — sociais, 27; teoriadas —, 33; configuracional, abor-dagem —, 11, 36, 306; analise—, 229, 235, 283; explicacao —,35; metodo —, 290, 231; pers-pectiva —,37; sociologia —, 290;configuracionais, analise e sfntese—, 229.

CONTROLO, 68, 81, 96-97, 166; agentede —, 66, 395; — das socieda-des, 32; — do Estado, 34; — emo-cional, 168; — feminino, 398;formas de —, 88, 89, 114; grau de—, 55; trfade dos controlos basi-cos, 30-31.

CORPO, 122, 165, 399; aparencia, imagemcorporal, 208-209.

CULTURA, 159, 185, 255.CURIALIZAgAO, — dos guerreiros, 224;

— dos nobres, 41.

DEMOCRATIZAgAO FUNCIONAL, 29,30, 311, 318, 322.

DESENVOLVIMENTO, 9, 11, 61, 67;abordagem na perspectiva do —,43; estadio de —, 30, 31; — global,291; — nao planeado, padrao de —,166; perspectiva do —, 35, 37, 68;— social, 85, 86; teoria do —, 19,27, 33.

DESPORTO, 15,16, 36, 39,40,42,45,48,50, 51, 64, 66, 67, 68, 69, 72-73,78, 80, 83, 84, 85, 88, 89, 91, 93,94, 95, 98, 99, 105, 108, 112, 143,186-195, 200-222, 223, 252, 254,255, 256, 298, 300, 302, 304, 305,307, 308, 310, 311, 312, 315, 316,317, 321, 322, 324,325,328, 341,348, 375, 390, 391, 394, 398, 399,411; — amador, 313; — como«laboratorio natural», 18; — comolazer, 18; — como trabalho, 18; —

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INDICE TEM.ATICO 417

como veiculo ideal de treino militar,16; — de lazer, 94; — e a educagao,18; — earaga, 18; — e as classes, 18;— e espectaculo, 307, 310, 321;— e industria, 18; — e violencia,34, 35, (ver VIOLENCIA); — en-quanto ocupagao de lazer, 72, 78,79, 93, (ver LAZER); — es-pectaculo, 200; conceito de —, 61;desenvolvimento do —, 34, 42, 45,46, 47, 60, 65, 72, 225-226, 227,322, 403; economia do —, 18;emergencia do —, 24; formagao do—, 67; formas de —, 85; grupos do—, 301; jogo —, 232, 233, 235,243; jogo e —, 305-311, (verJOGO) ; linguagem do —, 189;mobilidade social no —, 18; multi-does do —, 18; os meios de comuni-cagao social e o —, 18; padroes deemprego no —, 18; polftica e —, 18;— por divertimento, 315, 316, (verDIVERTIMENTO); regime patriar-cal no —, 393; seriedade no —, 298,305-311, 312, 314, 318; sexo e —,18; shamadorismo no —, 18; signi-ficado do —, 322; signifkado socialdo —, 17, 18, 19, 35; sociogenesedo —, 78, 85; sociologia do —, 12,13, 37, 48, 340, 390; abandono dasociologia do —, 16,17; desprezo dasociologia do —, 17; negligencia dasociologia em relagao ao —, 14, 37;construe.ao social do —, 37; estudosistematico do —, 14; estudo so-ciologico do —, 14, 18, 48; genesedo —, 34, 44, 47, 48, 94, 193; o —como objecto de reflexao sociologicae de investigagao, 17; teoria so-ciologica do —, 34, 186, 305; teori-zagao do —, 14, 18; violencia e —,35; amadorismo, 18; clube, 19; —de criquete, 148; — de futebol, 148,189-190; — de joqueis, 189; — dejuventude, 90; — de rugby, 400,401, 403, 410; — regional, 66;clubes, 66, 300, 402, 405; formagaode —, 65; instituigao de —, 65;desportos, !26, 40, 42-43, 54, 55,65,67,72,73,80,94,98,117,185,186, 191,192, 193,195,223,224,230, 232, 256, 258, 276, 302, 306,308, 309, 313, 315, 318, 321, 323,328, 344, 345, 347, 349, 410, 412;

— de confronto, 394,410; — ingle-ses, 42, 46; — modernos, 395; —por divertimento, 312; desenvolvi-mento dos —, 46, 48, 225, 231,242, 244, 332; difusao dos —, 189,190, 223, 224, 225, 381; exporta-gao dos —, 42; formas «pre-despor-tivas» de concursos agonfsticos e —,23; raizes religiosas de muitos —,15; andebol, 259; atletismo, 186,191, 193; provas atleticas, 42; base-bol, 97, 193; boxe, 42, 51, 64, 65,97, 153, 186, 206-207, 231, 235,347, 394; — grego, (ver JOGO); —profissional, 335; caga, (ver DIVER-TIMENTO); corrida, 42, 51, 105;— a cavalo, 42, 98; — a pe, 261; —de bicicleta, 97; — de cavalos, 64,70,158,186,189,231; —deesqui,97, 99; corridas, 110, 111; criquete,46,65,66,67, 78,85,99,186,231,233, 313; campos de —, 324; fute-bol, (ver FUTEBOL); hoquei, 235,394; — no gelo, 97; montanhismo,110, 149; natagao, 105; pesca, (verLAZER); raguebi, 300, 314, 335,336, 337, 394, 396, 399, 400, 401,402, 403; remo, 186; tenis, 42, 67,99, 186, 189, 193, 235; torneio de—, 97, 98; tiro ao arco, 259; despor-tivizagao, 42, 59, 192, 224, 225,254;/airplay, 313.

DIVERTIMENTO, 16, 70, 126, 185, 223,246, 300, 365; — local, 275; diver-timentos, 59, 61, 65, 68, 71-72, 78,94, 223, 277; — de ar livre, 65,modelo de restrigao nos —, 98, 116,127; caga, 47, 51, 65, 105, 110,235, 236, 238, 242, 243; — a rapo-sa, 34, 46, 47, 48, 78, 189, 231;forma inglesa de —, 236-251; pa-drao de —-, 47; rituais de —, 237;cagada, 179, 238, 242; combates degladiadores, 70, 98; combates deseres humanos e animais, 70, 98;corridas de caes, 136; desport, 188;disport, 223, diversao, 223; diversoesmedievais (assistencia as execugoespublicas), 335; combates de touros,335; combates de ursos, 335; luta degalos, 70, 335; suspensao publica naforca, 70; sport, 187, 188, 189, 223;sports, 187, 188; passatempo, 85;—s, 42,46, 50,127,128,131, 147,

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418 A BUSCA DA EXCITA^AO

186, 189, 191, 223, 225, 236, 243,244, 246, 254, 256; desenvolvi-mento dos —, 48, 49; — indiscipli-nados, 258, 259, 335, (ver DES-PORTO, JOGO, LAZER E TEMPOLIVRE).

6LITE, 314, 315, 316; — burocratica, 308,elites, 189, 198, 204, 208, 210, 309,392.

EMOgAO, 15, 47, 105, 177, 184, 265,285, 374, 395; movimento e—, 83;emogoes, 16, 79, 80, 82, 88, 112,114-115, 124, 125, 128, 131, 136,146, 150, 151, 158, 164, 165, 167,169, 170, 171, 172, 174, 175, 176,178, 183, 184, 373; fundamentosda teoria sociologica das —, 19;teoria multidisciplinar das —, 34;secura de —, 161; distingao emocio-nal, 165; reacgoes emocionais, 165;emotividade, 181, 182.

ESTADO, 28, 30, 50, 219, 325; — nagao,17, 27, 32, 33, 34, 321, 399, 403,408; — s-nagoes, 76, 159, 192, 195,196, 197, 198, 204, 215, 216, 324,325, 395; cidades —, 27, 28, 196,198, 203, 205, 209, 215, 218;emergencia do —, 28; forma do —,29; fbrmagao do —, 11, 24, 28, 30,196, 311, 317, 318, 393, 411; pro-cesso de fbrmagao do —, 41, 60, 64;processo de formagao do — de Ingla-terra, 60; processo de formagao do— em Franga, 64.

EXCITAgAO, 26, 34, 40, 69, 70-71, 73,74, 78, 80, 84, 85, 88, 91, 92, 93,94, 95, 97,101-103, 105,111-115,116, 122-123, 125, 128-138, 151,160, 162, 165, 166, 172, 176, 177,178, 182, 184, 205, 238, 239, 241,242, 243, 248, 249, 250, 251, 255,304, 323, 341, 357,363, 377, 386,395, 410; — de tensao, 81; —emocional, 82; — do lazer, 120; —jogo, 113; — mimetica, 79, 185;smdroma da —, 118, 119, 125,130; tensao —, 48, 136, 205, 233,246-248, 254; excitamento, 15, 70,78, 79; excitante, 92, 112, 113,CATARSE, 80, 122, 235, 236, 248;climax catartico, 160; efeito —,123, 124, 125, 138.

ETHOS, 195, 202, 203, 204, 205, 210,247, 313, 393, 397; — amador,

312, 313, 314, 315, 321, 337; —guerreiro, 397.

ESTRUTURA, 24, 229, 300, 301, 302; —da sociedade, 48; — da personali-dade, 48, 61, 63, 91, 166; — dapersonalidade social, 43; — da sen-sibilidade, 61; — de poder, 49, 68;— social, 17; estruturagao, — dapersonalidade, 166; estruturas, —amadoras, 298; — profissionais,298.

FUTEBOL, 18, 34, 35, 39, 42, 47, 48, 67,83, 84, 117, 119, 131, 133-135,148, 186, 189, 190, 191, 193, 226,227, 231, 235, 257-259, 260--262, 263, 265, 266, 269, 270, 279,280, 281, 286, 287, 288, 289, 290,291, 292, 293, 296, 315, 347, 349,350, 351, 354, 355, 361, 363, 370,377, 382, 384, 385, 394, 404, 406,409,410,411; —de rugby, 397, As-sociagao de —, 289; association foot-ball, 186, association game, 354; foot-ball association, 288; Campeonato doMundo de —, 18, 325, 380, 384,385; campo de —, 92, 154, 324;desafio de —, 92, 98; disturbios do—, 93; — e os orgaos de comunica-gao social, 383-387; equipas do —,92, 156; jogo de —, 141, 176, 258,287, 290, 291, 297, (ver JOGO);jogos de —, 71, 155, 383; moderni-zagao do —, 395; multidoes excita-das do —, 125; hooligans, 13, 349,350,351,352,356,357,358,359,362, 364, 368, 369, 380, 385,386,404, 405, 407, 409, 411; uniformes—, 360; hooliganismo, 35, 349-382,384, 385, 387, 388, 394, 403, 404,407, 410, 411, (ver VIOLENCIA).(Ver DESPORTO E LAZER).

GUERRA, 16, 242; conduta de —, 204; —em terra, 203; jogos de —, (verJOGO); — no mar, 203; tempo de—, 239; —s, 23, 26.

HOMINES APERTI, 25.

IDENTIDADE, 35,49, 322, 375, 376, 377,391, 392, 397,407,411; — macho,381; identidades, 381.

IDENTIFICAgAO, 295, 343, 350, 351,

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INDICE TEMATICO 419

354, 360, 407, 410; — colectiva,324; — de grupo, 324.

INDUSTRIALIZAgAO, 113, 223, 318,319; processo de —, 173, 192;Revoluc.ao Industrial, 224, 225.

INTERDEPENDENCE, 16; cadeias de —,29, 30, 218, 318, 319, 338, 346,348; — funcional, 319; lac.os de —,319; rede de—, 311.

JOGO, 16, 64, 72, 88, 92, 95, 109, 128,148,175,227, 230, 234, 253,256,257, 258, 259, 260, 266, 267-268,274, 275, 280, 281, 282, 289, 291,292,293,294, 297,302,305,306,307,310,315,333,334,335,336,349, 356, 358, 361, 364, 378, 384,385, 399, 404, 405, 411; codifica-C.ao do —, 189; — desporto, 232,233, 234, 235, 236; padrao de —,280, 289, 292, 294, 397; padraotradicional de —, 66, 72, 86; pro-cesso de —, 87, 88; seriedade no —,305-311, 312, 318; — tradicional,274; teoria sociologica do —, 289;trabalho e —, 157; uniformidade do—, 66; jogos, 156-159, 230, 294;combates de —, 207, 211, 216,218; competigoes de —, 191, 194,195; concursos de —, 195, 196,203, 204; confrontos de —, 192,198,199, 205, 210, 211, 265; —deazar, 105; — de bola, 51, 65, 189,193, 258, 259; — de cartas, 70; —de futebol, 141, 176, 258, 287, 290,291-297; — de guerra, 159; — depaz, 159; — desporto, 133, 227,229, 234, 235, 277, 279, 280, 282,283, 284, 285, 286, 288, 293, 296;— do trabalho, 161; — populates >42, 46, 194, 211; — populates in-gleses, 189; provas de —, 211, agon,201; provas —, 214; agones, 203;agonista, 206; agonfstica, 203, 204;aposta, 158; apostar, 110; apostas,189, camp ball, 394; curling, 333;

football, 394, hurling, 270, 276, 277,394; — to goales, 271-272; — to thecountry, 272-273\ jeu de paume, 191;knappan, 333-334, 394; loggats,258; luta, 42, 195, 204, 205, 266,276, 357, 368, 393, 397, 405, 409;padrao popular de —, 42; boxe gre-go, 202-203; pancracio, 200-202,

203, 207; pugilato, 42, 202-203,204, 206; pugilismo, 189, 195;mimetica, 71, 73; batalha —, 243;categoria —, 115; esfera —, 113,114, 124, 128, 137, 178; forma—,79; tensao —, 71, 85; vitoria —, 72;mimeticas, actividades —, 109,110, 128, 148, 183; institutes,185; tensoes —, 72, 73; mimetico,105, 124, 125, 126, 183; activida-des de tipo —, 104; aspecto —, 125,177; caracter —, 80; combate —,83, 97; contexto —, 184; quadro—, 184; mimeticos, actos —, 122;acontecimentos —, 129; combates—, 95; confrontos —, 72; factos —,126, 128, 130, 131,134,138,183,185; sentimentos —, 126; simbolos—,71; quoits, 258.

LAZER, 17, 33, 34, 36, 78, 83, 98, 101,104, 136, 139-185, 191, 258, 260,317; actividades de —, 34, 51, 69,70, 71, 79, 81, 104, 105, 123, 130,131, 134, 136, 138, 139-151, 156,157, 183, 191,192,224,225,235,263, 322, 323, 403; caracter de —,310; desporto de —, 72, 99; despor-to —, 99; — desportivo, 94; diver-timento de —, 128; — e trabalho,104-116, 120-121, 139-143; ele-mentos de —, 185; esfera de —,403; factos de —, 117, 119, 121,124, 125, 126,127,135,151,152;— gemeimchaft, 179, 180, 181, 183;— gemeimchaften, 148, 182, 183;gesemchaft, 180; institutes mime-ticas de —, 180; — mimetico, 157,323; o problema do —, 33, 124,164; ocupagao do tempo de —, 223;ocupac.6es de tempo de —, 68, 73,177; os problemas de —, 162, 166;sociologia do —, 37, 152, 153;tempo de —, 98, 99, 128, 143, 180;tempo livre e —, 107-116, 143;teoria do —, 33, 121, 123, 144,157, 162, 179; trabalho e —, 106--116, 120, 139, 157, 158, 192, 322;trabalho —, 33; actividades fisicas,68; baile, 163, 179; bridge, 110;cantar, 105; corridas, 110, 111; idaas—, 131,163;iras—, 179;danc,a,119, 158; — rock, 105; dancar, 110;dangas, 70, 73, 143, 149: arte, 185;

Page 425: A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

420 A BUSCA DA

— grega, 208; artefactos, 136; cine-ma, 110; historias policiais, 71; jor-nais, 144, 148; musica, 71, 81, 105;— pop, 125; efeito da —, 121, 122;concerto, 110; concertos, 117, 133;sinfonia, 158;—s, 125, netball, 155;operas, 71; pesca, 105, 110; pintura,105, 158; —s, 70, 159; poesia, 71,136; poquer, 125; radio, 144; role-ta, 125; romances, 159, teatro, 71,85, 105, 107, 111; — amador, 148,163;—s, 127,130,141, l43;entre-tenimentos —ais, 124; pega —al,158; pec.as de —, 114, 159; efeitosdo drama, 122, 124; televisao, 117,144, 148; touradas, 143; ascholia,121; schole, 121.

LIGAgOES SOCIAIS, 35, 338; — segmen-tares, 351, 352; — funcionais, 340,341, 344-349; segmentac.ao ordena-da, 370-373, 378, 382, 407, 408.

NORMA, 153, 154; normas, 20, 64, 151--156,199, 217, 227-229, 241, 330,345, 348, 350, 351, 364, 368, 377,401, 408; — de luta, 343; — demasculinidade, 350, 354, 362, 368;—- de virilidade, 396.

PRAZER, 16,17,40,47-48,71, 88,89,94,98, 99, 106, 118, 122, 123, 124,125, 126, 131, 134, 135, 138, 140,163, 175, 177, 179, 180,181,184,188, 191, 205, 237, 238, 241, 243,244, 245, 248, 249, 294, 296, 300,303, 304, 308, 310, 313, 321, 332,337, 341, 345, 357, 409; —de jo-gar, 297, 307; — de matar, 78, 88,89; — dos jogadores, 300; diminuto—, 70; especial -—, 90; — Optimo,133, 134.

PODER, 26, 341, 393, 398, 411; — darazao, 291; — das mulheres, 35,400, 401, 410; deslocamento de —,399; — do Estado, 346; equilibriode —, 29, 35, 60, 64, 318, 391,392, 395, 399; lugares do —, 64;luta de —es, 40; luta pelo —, 60,62; oportunidades de —, 54; razao—, 291; recursos de -—, 63; relatesde —, 26.

PROCESSO SOCIAL, 27, 28, 35, 86, 87,300, 332; — «cego» ou «nao pla-neado», 301.

RAgA, conceito de —, 14, 15; estudo so-ciologico da —, 14; RACIAL, pro-blema —, 14; estudo das relagoes—ais, 14;

REGRAS, 39, 42, 65, 66, 72, 88, 219,330, 332, 334, 335, 336, 347, 367,368, 394; regras do jogo, 154-156,195, 224, 227-229, 230, 231, 232,234, 241,244,253,268,275,292,300, 313, 320; regras escritas, 395;regras de etiqueta, 224; — do cos-tume, 46.

RELAgOES SOCIAIS, — de coesao, 372; —de cooperacao, 16, 283, 284, 286,294, 303; — de conflito, 211, 266,268, 283, 284, 285, 286,297, 300,304, 305, 319, 325, 349, 354, 370;— de coergao, 285; — de harmonia,283; — de solidariedade, 263, 264,275, 358, 386, 407.

RELIGIAO, 14; institutes religiosas, 29;rituais religiosos, 15; efervescenciacolectiva, 15, 323.

SENSIBILIDADE, 42, 43; aumento da —,42; codigo de —, 41,42,43, 56, 57;modelos sociais de —, 41; o domfnioda —,41; padroes de —, 44, 199;padroes mais diferenciados de —,61; limiar de —, 241, 244; angriff-slust, 332; limiar de reaccjio, 196,198, 243; limiar de repugnancia,196, 207, 332; peinlishkeitsschwelle,335, 341, 346, 348, 352, 374.

SOCIABILIDADE, 109, 172, 178, 179,181, 182.

SOCIALIZAgAO, 166,167,168,169,179,311, 341, 342, 343, 345, 346, 348,373, 382, 411; padrao de —, 347,376, 403; processo de —, 352.

SOCIEDADE, 45, 48, 49, 50, 67, 88, 89,91, 92; estudo da —, 164; formas de— 50.

STRESS, 69, 73, 79, 96, 97, 98.

TENSAO, 84, 94, 128-138, 141, 162, 224,236, 245, 246, 248, 250, 268, 284,286, 302, 303, 305; auto-escaladade —, 49; conflito de —, 83, 84; —controlada, 35, 291; —- do jogo,134; equilibrio de —, 35, 79, 117,118, 128, 135, 172, 173,177,178,231-232, 233, 234, 236, 252, 291,292, 293, 294, 301, 303; escalada

Page 426: A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

INDICE TEMATICO 421

de —, 45; libertagao de —, 94, 130,136; — mimetica, 85, 130; resolu-gao da —, 85; — resolugao, 129; —satisfagao, 250; tolerancia a —, 51;tensoes, 33, 50, 56, 57, 69, 72, 79,88,96-98,102,140, 142-143,147,162, 174, 198, 232, 235, 236,276,283, 284, 285, 286, 291, 297,307,319; conflito de —, 83, 84; confron-tos de —, 40; contengao de —, 51;— controladas, 33; criagao de —,71, 169; desenvolvimento das —,50; — incontroladas, 33; libertagaodas —,69,83,84,97,98,127,235,236, 248; produgao de —, 136; re-laxagao das —, 142, 143; resolugaodas —, 72.

URBANIZAgAO, 225, 319; processo de—, 173.

VALOR, 228; valores, 14, 20, 26,152,193-199, 207, 208, 242, 298,330,368,376, 388, 391, 392; — amadores,304, 313.

VIOLfiNCIA, 35,40,42,61,72,88,89,94,197, 199, 215, 217, 218, 241, 243,244, 254, 274, 275, 287, 327-328,335-337, 338-352, 339, 340-343,350, 352, 355-381, 385, 392, 394,395, 405, 406, 408, 409, 410, 411;actos de —, 332; — «afectiva», 35,332, 337, 341, 375, 409; ciclo de—, 59, 62, 63, 72; ciclos de —, 49--50, 89; contra a —, 94, 98, 101,219; controlo da —, 93, 196, 207,332; controlo individual e social da—, 19, 20, 28; desenvolvimento da—, 50; — desportiva, 349; — dopublico de futebol, 89; — dos espec-tadores de futebol, 93; — e civiliza-gao, 20; — endemica, 343; erupgaoda —, 91; erupgoes da —, 263, —«expressiva», 35, 330, 375, 409; —ffsica, 69, 70, 196, 198, 211, 213,215, 219, 225, 243, 244, 327,332,336, 340, 341, 349, 352, 394, 411;formas de —, 329, 330-354; grau de—, 195; — «instrumental*, 35,330, 337, 349, 375, 409; limiar de—, 51; -— mimetica, 341; modera-gao da —, 50; moderar a —, 64;monopolio de —, 32, 33, 51; mo-nopolip e controlo da —, 211; — no

futebol, 88, 91, 92, 93; — nos des-portos, 40; padroes de controlo da—, 199; padroes de —, 202;preludio de —, 69; — «racional»,35, 332, 334, 337, 338, 341, 344;restrigao da —, 45, 78, 94; restrigaoquanto a —, 98; restrigoes contra a—, 213; — ritual, 327; — ritualiza-da, 350, sociogenese da —, 343,349, 404; tipologia da —, 329-331;tipos de —, 207, 329-331; aggro,327, 356, 357, 385; hooligans e hoo-liganismo (ver FUTEBOL).

Page 427: A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

L

Page 428: A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

INDICE

Agradecimentos

PrefacioEric Dunning

ItitrodugioNorbert Elias

Capitulo I

Capitulo II

Capitulo III

Capitulo IV

Capitulo V

A busca da excitagao no lazerNorbert Elias e Eric Dunning

O lazer no espectro do tempo livreNorbert Elias e Eric Dunning

A genese do desporto:um problema sociologico

Norbert Elias

Ensaio sobre o desporto e a violenciaNorbert Elias

O futebol popular na Gra-Bretanhamedieval e nos iniciosdos tempos modernos

Norbert Elias e Eric Dunning

11

39

101

139

187

223

257

Page 429: A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

A BUSCA DA EXCITA^AO

Capitulo VI A dinamica dos grupos desportivos— uma referenda especial ao futebol

Norbert Elias e Eric Dunning 279

Capitulo VII A dinamica do desporto moderno:notas sobre a luta pelos resultadose o significado social do desporto

Eric Dunning 299

Capitulo VIII As ligagoes sociais e a violenciano desporto

Eric Dunning 327

Capitulo IX A violencia dos espectadoresnos desafios de futebol:para uma explicagao sociologica

Eric Dunning, Patrick Murphye John Williams 355

Capitulo X O desporto como uma area masculinareservada: notas sobre os fundamentossociais da identidade masculinae as suas transformagoes

Eric Dunning 389

Page 430: A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

ColecgaoMEMORIA E SOCIEDADE

AAVVEstudos PortuguesesHomenagem a Luciana Stegagno Picchio

Almeida, Pedro Tavares deElei^oes e Caciquisimono Portugal Oitocentista (1868-1890)

Bourdieu, Pierre0 Poder Simbolico

Burke, Peter0 Mundo como Teatro

. Cabral, Joao de PinaOs Contextos da Antropologia

Chartier, RogerA Historia Culturalentre Prdticas e Representatives

Crespo, JorgeA Historia do Corpo

Elias, NorbertA Condi^ao Humana

Geertz, CliffordNegara. 0 Estado Teatrono Seculo XIX

Ginzburg, CarloA Micro-Historia e Outros Ensaios

Godinho, Vitorino MagalhaesMito e Mercadoria, Utopiae Pratica de Navegar

Luhmann, Niklas. 0 Amor como Paixao

Oliveira, AntonioPoder e Oposi^ao Polltica em Portugalno Penodo Filipino (1580-1640)

Revel, JacquesA Invengdo da Sociedade

A publicar:

Deswarte, SylvieIdeias e Imagens em PortugalnaEpoca dos Descobrimentos

Shils, EdwardCentra e Periferia

Page 431: A Busca da Excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

Renovador da sociologia, Norbert Elias (1897-1990)influenciou em. ptofundidade o desenvolvimentoda historia, psicologia, economia, ciencia polftica

e antropologia. As suas obras, entre as qtiais se destacanesta colecgao A Condigao Humana, contribuiram para

ultrapassar fronteiras disciplinares e estabekcer rela^oesentre diferentes sociedades.

Da sua passagem, pela Universidade de Leicester,e da sua colabora^ao com Eric Dunning resultou

este livro colectivo.

Porque razao a sociedade industrial gasta grandeparte do seu tempo de lazer em desportos que tendem

para a vioiencia? Como relacionar a violencia dentroe fora do desporto com as necessidades e orienta^oes

sociais e psicologicas?Eis diias das qu.estoes a que este livro procura

responder.

coordenaila por Fram;isco e Oiogo Ramada Cyrto