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MANIFESTAÇÕES VISUAIS CONTEMPORÂNEAS Coordenação: Prof. Dr. Roberto Tietzmann ( [email protected])
MESA 1
A BUSCA POR UM CINEMA INTERATIVO EM 365 DAY
PROJECT,
DE JONAS MEKAS
Autor: Rafael Rosinato Valles1
GT Manifestações Visuais Contemporâneas
Coordenador GT: Prof. Dr. Roberto Tietzmann
RESUMO
Este trabalho pretende refletir sobre como o cineasta Jonas Mekas elaborou a proposta de um cinema interativo através de 365 Day Project (2007) e como a questão tecnológica contribuiu neste processo. Partindo do ponto de que Mekas constrói a sua obra a partir de uma busca por dissensos (Rancière, 2012) dentro do âmbito da representação cinematográfica, 365 Day Project é tanto um novo passo na trajetória deste realizador lituano, como também uma possibilidade para o espectador estabelecer uma nova forma de interação com a obra em si.
PALAVRAS CHAVE
Comunicação; cinema; espectador; tecnologia; Jonas Mekas.
No livro O espectador emancipado, o autor Jacques Rancière propõe analisar o que
ele chama “política da estética; ou seja, um efeito, no campo político, das formas de
estruturação da experiência sensível próprias a um regime da arte”. Rancière entende a
política da estética enquanto
as estratégias dos artistas que se propõem mudar os referenciais do
que é visível e enunciável, mostrar o que não era visto, mostrar de
outro jeito o que não era facilmente visto, correlacionar o que não
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS). Pesquisador, docente e documentarista. Bolsista CAPES. Email contato:
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estava correlacionado, com o objetivo de produzir rupturas no
tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos.
(RANCIÈRE, 2012: p.64)
Na essência deste campo mais amplo, encontra-se o que Rancière chama de
dissenso. O que está em funcionamento no dissenso são as dissociações que problematizam
o consenso: a ruptura de uma relação entre sentido e sentido, entre um mundo visível, um
mundo de afeição, um regime de interpretação e um espaço de possibilidades (RANCIÈRE,
2012: p. 67), em que “A ação artística identifica-se então com a produção de subversões
tópicas e simbólicas do sistema” (RANCIÈRE, 2012: p.71). Ainda segundo o autor, “dissenso
não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade”.
Ao termos em conta essas definições, podemos afirmar que Jonas Mekas é um
cineasta que sempre encontrou no dissenso uma essência na sua obra. Sobrevivente dos
campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, exilado nos Estados Unidos há mais
de 60 anos, este realizador lituano sempre encontrou no cinema independente
underground uma forma de pensar outro tipo de cinema, muito distante dos estúdios de
Hollywood. Com seus filmes-diário sendo realizados a partir do registro de imagens
caseiras de celebrações familiares e do seu próprio cotidiano, Mekas é um entusiasta do
cinema amateur e das rupturas dentro de certos cânones cinematográficos. A partir de
relatos autobiográficos que abdicam de uma estrutura dramática ou de uma elaboração
narrativa clássica, com início, meio e fim, a sua obra propõe uma reflexão sobre a posição
do realizador diante do seu registro fílmico.
Mas, para Mekas, mostrava-se necessário realizar o dissenso não somente no
registro fílmico e nas estruturas narrativas e estéticas, mas também nas formas de
estruturação da experiência sensível a partir de outro integrante fundamental de todo este
processo: o espectador. Partidário de que o cinema não é somente entretenimento e deve
desafiar a posição do espectador, Mekas decidiu pensar o processo de recepção dos filmes.
Isso começou ainda nos anos1960, quando ele escrevia críticas cinematográficas nas
revistas Film Culture e Village Voice.
Mekas evidenciava, a cada artigo, que não bastava somente procurar uma forma de
se comunicar com o leitor através dos seus textos. Era também necessário encontrar uma
nova forma de conceber o homem. No texto intitulado Notas sobre o Novo Cinema
Americano, publicado na edição de número 24, em 1962, Mekas assume um caráter de
manifesto sobre uma nova forma de conceber o cinema dentro de um contexto mais amplo
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que o cinematográfico. Nesse artigo, ele procura defender a ideia de que o novo cinema
americano não revela somente um novo cineasta e um novo cinema, mas, sobretudo,
revela um novo homem: “A questão não é dos filmes serem artisticamente bons ou ruins. A
questão é do aparecimento de uma nova atitude diante da vida, uma nova compreensão do
homem” (MEKAS, 2013: p.42). Estava em jogo a criação de um novo entendimento do
homem, de uma nova percepção do homem. Os filmes surgiriam como uma consequência
disso.
Para sair das molduras culturais feitas pelo cinema tradicional dos estúdios e
assumir uma expansão de percepções, Mekas coloca o novo cinema independente
americano como parte fundamental neste processo de transformações: “O novo cinema,
assim como o novo homem, não é nada em definitivo, em nada concluído. Ele é algo vivo. Ele é
imperfeito, errante” (Mekas, 2013: p.36-37). Dentro deste sentido de errância, o novo
cinema afirmava-se nos seus ruídos, nas suas asperezas, num entendimento sensitivo que
buscasse sair do modelo canônico, proposto pelo cinema realizado em Hollywood.
Questões como buscar a espontaneidade e a improvisação no registro, assim como o
entendimento de que a beleza e a felicidade surgiriam das pequenas efemeridades contidas
nesse processo, tornam-se fatores responsáveis para a construção deste novo homem,
segundo a concepção de Mekas.
O que o realizador lituano busca através desta proposta é que o cinema, enquanto
expressão artística, assuma protagonismo nas transformações da percepção do homem.
Através de obras que busquem romper com o sentido ilusionista e da perfeição técnica
pertencente á representação no cinema espetáculo, Mekas procurava afirmar que este
novo cinema deveria revelar as suas fragilidades, expor a sua câmera tremida, assumir a
sua imagem fora de foco, revelar os seus dispositivos e inventar novos para, assim,
estabelecer outro tipo de vínculo entre a obra e o seu espectador. Afirma o realizador
lituano, no artigo A linguagem mutante do cinema, de 25 de janeiro de 1962:
Mesmo os erros, os planos fora de foco (...), os pedaços
superexpostos ou subexpostos fazem parte do vocabulário. As
portas para a espontaneidade se abrem; o ar viciado do
profissionalismo rançoso e respeitável escapa.
(MEKAS, 2013: p.72)
Para constituir este novo homem, buscar o espectador tornou-se parte essencial do
processo de transformação. Nos seus textos, Mekas intimava o espectador a que se
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desprendesse da sua comodidade, de uma recepção mais passiva para a qual o cinema
espetáculo o domesticou. Se este novo cinema buscava fugir das regras técnicas e
narrativas que ainda hoje regem o sistema, e afirmar o seu sentido autoral, cabia também
ao espectador entender que o sentido de representação nessas produções independentes
não era o mesmo.
Os filmes que Mekas realizou a partir dos anos 60 – como Walden (1969),
Reminiscenses from a Journey to Lithuania (1972), Lost, Lost, Lost (1976), As I was Moving
Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000) e Out-takes from the Life of a
Happy Man (2012) – evidenciam que a relação entre autor-espectador torna-se mais
íntima que nos seus trabalhos anteriores. Não somente por evidenciar suas imagens
caseiras, mas também pelas reflexões que assume sobre essas imagens, Mekas termina
acentuando esse caráter de cumplicidade com o espectador, como se procurasse abrir o
seu “álbum de fotografias” para mostrá-lo a quem quisesse conhecer fragmentos da sua
vida. É o que ocorre, por exemplo, logo no início do sexto capítulo do filme As I moving
ahead..., em que Mekas, a partir do uso da voz em off, comenta a seguinte questão:
Para quando o espectador, ou seja, você, chega ao sexto capítulo,
alguém espera, melhor dizendo, você espera, espera descobrir mais
coisas sobre o protagonista, ou seja, sobre mim, o protagonista deste
filme. Assim que não quero lhe decepcionar. Tudo o que quero lhe
contar está aquí. Apareço em cada imagem deste filme. Estou em
cada fotograma deste filme. O único que necessita saber é como ler
estas imagens.
Mas Mekas buscaria ir além nesta relação com o espectador, através da
incorporação do vídeo e do meio digital na sua obra. Para o realizador lituano, a partir do
aprimoramento digital e cibernético na virada de século, já não bastava mais a exibição dos
seus filmes nas salas de cinema. Mekas procurava um dissenso no próprio formato de
mostrar os seus filmes, trazer eles mais ao alcance do espectador, fazer com que seus
filmes pudessem ser manuseados, manipulados, ressignificados. Já não bastava mais a
projeção numa sala escura de cinema, pois o que instigava Mekas era o processo de
interação da obra com o espectador.
Assim nasceu o projeto intitulado 365 Day Project (2007). Ao assumir o dispositivo
de realizar um vídeo por dia, durante todo o ano de 2007, e postar esses vídeoa
diariamente na sua página web na internet, Mekas expandia tanto o seu cinema através de
diferentes suportes tecnológicos, como também propunha ao espectador uma nova forma
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de lidar com a sua obra. Dentro da posição de cada vídeo dentro do site, o espectador não
somente assume a escolha daquilo a que pretende assistir, como também se coloca na
posição de “editor”, na medida em que pode escolher também a ordem do que se propõe a
assistir.
365 Day Project é composto não somente por registros diários de Mekas sobre o seu
cotidiano ao longo do ano de 2007, mas também é um projeto que se refere a como nós,
enquanto espectadores, queremos ver Mekas através desses vídeos. O que selecionamos
para assistir ou deixar de assistir? Em qual ordem? Que relação de significados
estabelecemos entre os vídeos? Ao colocar sobre o poder do espectador estas escolhas,
Mekas pretende realizar um trabalho que traduz uma intenção de pensar como o
espectador pretende lidar com este material.
Na medida em que os vídeos estão expostos de forma separada no site e ordenados
cronológicamente de acordo com o calendário, cabe a quem pretende assisti-los, a ideia de
fazer a sua própria edição-seleção sobre os filmes de Mekas. Se eu, enquanto espectador-
editor, quiser selecionar somente os vídeos feitos por Mekas que estão datados no
primeiro dia de cada mês, posso estar trazendo um processo de significação diferente do
que se eu buscasse selecionar os vídeos dos últimos dias de cada mês.
Este projeto de Mekas não foi o primeiro e nem será o último cinema interativo a
ser realizado. Como afirma Carlos Merigo, no texto “Uma breve retrospectiva do cinema
interativo”, existem casos anteriores, como o filme Mr. Payback (1995), de Bob Gale, que
passou por diversos cinemas norte-americanos. Nesses locais, as pessoas escolhiam como
as cenas continuavam, por meio de joysticks instalados nas poltronas, com as sequências
disponíveis sendo apresentadas pelas cores vermelha, azul e verde, definidas por um dos
três botões do joystick e com a contagem exibida na tela em tempo real. Ou também um
filme ainda mais antigo, como é o caso do pioneiro neste gênero, intitulado Kinoautomat,
de Radúz Činčera, que foi apresentado na EXPO de 1967, em Montreal, tendo a sala do
evento sido construída especialmente para o filme, com dois botões em cada poltrona –
um vermelho e outro verde – em que as decisões eram simples, como decidir se o
personagem, Mr. Novak, deveria ignorar ou não um policial na estrada, abrir ou não a
porta para uma mulher.
No entanto, dentro do âmbito das salas de cinema, esses experimentos não
passaram de exceções, uma vez que este meio se encontra originalmente pensado para
projeções em que a intervenção do espectador não é possível. É dentro de um contexto
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digital que se revela assim o potencial que a internet trouxe na relação do espectador com
as mídias. O meio cibernético acabou se tornando protagonista neste processo, na medida
em que disponibilizou uma nova forma de interação com os suportes tecnológicos. O
aprimoramento da internet ao longo destas duas últimas décadas tornou-se também um
meio para se entender as transformações na relação entre o receptor-espectador-leitor
como um agente ativo de criação. Cabe a obras como 365 Day Project a posição de refletir
sobre essas experiências de interação e de seguir provocando dissensos nas formas de
representação tradicionais dentro do âmbito cinematográfico e audiovisual.
REFERÊNCIAS
MEKAS, Jonas. Notas sobre o Novo Cinema Americano. In: MEKAS, Jonas/ MOURÃO,
Patricia (org.). Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Pró-Reitoria de
Cultura e Extensão Universitária – USP, 2013.
MEKAS, Jonas. A linguagem mutante do cinema. In: MEKAS, Jonas/ MOURÃO, Patricia
(org.). Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Pró-Reitoria de Cultura e
Extensão Universitária – USP, 2013.
MERIGO, Carlos. Uma breve retrospectiva do cinema interativo. Disponível em:
http://www.b9.com.br/10976/diversos/uma-breve-retrospectiva-do-cinema-interativo/
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012.
Referências Audiovisuais
ČINČERA, Radúz. Kinoautomat. Tchecoslováquia, 1967. 63 min. p&b/color. son.
GALE, Bob. Mr. Payback: An interactive movie. EUA, 1995. 30min. color. son.
MEKAS, Jonas. 365 Day Project. EUA, 2007. color. son.
______________Walden. EUA, 1969. 180min. p&b/color. son.
_____________ Reminiscenses from a Journey to Lithuania. EUA, 1972. 82min. p&b/color.
son.
_____________Lost, Lost, Lost. EUA, 1976. 178min. p&b. son.
_____________As I was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty. EUA,
2000. 288min. color. son.
_____________Out-takes from the Life of a Happy Man. EUA, 2012. 68min. color. son.
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Tempos hipermodernos ao nosso redor
Autora: Cristiane Scheffer Reque
Titulação de autora: Mestranda em Comunicação Social PPGCOM
Instituição da autora: PUC RS
E-mail da autora: [email protected]
Resumo (500 caracteres)
A proposta é relacionar algumas ideias do livro Os tempos hipermodernos, do filósofo
Gilles Lipovetksy, com aspectos relevantes do enredo, cenas e personagens do filme brasileiro O
som ao redor, de Kleber Mendonça Filho. Alguns dos temas abordados no livro, como excesso
de consumo e busca pelo prazer, medo da violência e hipervigilância, o caos organizador e a
confiança instável presentes na nossa sociedade, provocam uma reflexão crítica a partir de uma
outra leitura que se pode fazer do filme.
Palavras-chave
Sociedade hipermoderna. Cinema brasileiro. Medo da violência.
Tudo muito, tudo hipervigiado
O filme brasileiro O som ao redor é um exemplo de obra bem sucedida na nossa
cinematografia recente, especialmente por parte da crítica. Lançado em 2012 com direção do
cineasta Kleber Mendonça Filho, o longa metragem fez extensa carreira em festivais mundo
afora e arrebatou prêmios nos festivais do Rio, Rotterdam e Copenhague. Foi incluído entre os
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dez melhores filmes de 2012 no jornal ‘The New York Times’ na lista do crítico A. O. Scott. O
som ao redor trata de questões contemporâneas sobre a forma como vive a classe média de
Recife, que poderia ser também de qualquer outra grande cidade brasileira.
A leitura de Os tempos hipermodernos, de Gilles Lipovetsky, me trouxe muitas
lembranças da obra de Kleber Mendonça Filho. Do site oficial do filme foi extraída a sinopse
que apresenta sua essência temática.
A vida numa rua de classe-média na zona sul do Recife toma um rumo inesperado após a
chegada de uma milícia que oferece a paz de espírito da segurança particular. A presença
desses homens traz tranquilidade para alguns, e tensão para outros, numa comunidade que
parece temer muita coisa. Enquanto isso, Bia, casada e mãe de duas crianças, precisa achar
uma maneira de lidar com os latidos constantes do cão de seu vizinho. Uma crônica brasileira,
uma reflexão sobre história, violência e barulho.
Esta crônica brasileira diz muito sobre nossa sociedade de hoje, especialmente no que se
refere a novos modos de vida e as relações entre os indivíduos. Para Lipovetsky, o pós-moderno
ficou marcado pela primazia do aqui-agora. Este tempo não morreu, mas se desinstitucionalizou,
se transformou no liberalismo globalizado, na mercantilização dos modos de vida e na
individualização. O autor refere-se a uma “segunda modernidade”, desregulamentadora, baseada
em três alicerces da modernidade anterior: o indivíduo, o mercado e a eficiência técnica.
Esta sociedade, que estimula o uso excessivo de mercadorias e consumo em todos os
níveis e se apresenta capaz de possibilidades ilimitadas, é a locação perfeita escolhida para o
filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho. O espaço urbano da classe média, prédios
altos, cercas, muros por todos os lados, o universo individual protegido. A especulação
imobiliária descontrolada que destrói casarões antigos com suas histórias e memórias para ceder
lugar a novos espigões, símbolos urbanos dos excessos desta sociedade hipermoderna. O ponto
de vista da câmera, na maior parte das cenas, é como uma visão pelas janelas, pelas frestas, entre
as grades, enclausurado como os moradores deste lugar.
Para lutar contra o terrorismo e a criminalidade, nas ruas, nos shopping centers, nos
transportes coletivos, nas empresas, já se instalaram milhões de câmeras, meios eletrônicos de
vigilância e identificação dos cidadãos: substituindo-se à antiga sociedade disciplinar-
totalitária, a sociedade da hipervigilância está a postos. (LIPOVETSKY, 2004, p. 55).
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No filme de Kleber, esta ideia da hipervigilância é o que regula as relações de poder
entre os ricos e os pobres, os patrões e os empregados, os condôminos e o porteiro, os
seguranças particulares e os moradores da rua deste bairro de classe média. Sempre uma relação
de poder e submissão, um clima de tensão permanente. A rotina aparentemente pacata destes
moradores vive cercada pelo medo da possibilidade – e pela existência real - da violência
urbana.
Pode-se identificar três núcleos principais de personagens que participam da narrativa:
Bia é uma dona de casa entediada que não consegue dormir pelos latidos do cão do vizinho;
João é corretor de imóveis e neto de Francisco, que é dono de vários imóveis da rua; e
Clodoaldo é o personagem que surge para oferecer serviços de segurança privada aos moradores
da rua. Vigilância e tranquilidade por toda a noite, por uma pequena quantia mensal.
Lipovetsky fala de um tempo atual do risco e da incerteza, onde o Zeitgeist, antes
despreocupado com o futuro, deu lugar à “sensação de insegurança que invadiu os espíritos” no
presente.
As lutas sociais e os discursos críticos não mais oferecem a perspectiva de construir utopias e
superar a dominação. Só se fala de proteção, segurança, defesa das “conquistas sociais”,
urgência humanitária, preservação do planeta. Em resumo, de “limitar os estragos”. O clima do
primeiro presentismo liberacionista e otimista, marcado pela frivolidade, desapareceu em favor
de uma exigência generalizada de proteção. (LIPOVETSKY, 2004, p. 64).
Pode-se afirmar que a citação acima descreve, em parte, a essência do que trata o filme
O som ao redor. A dominação nas relações de classe orientadas pelo capital e a tensão entre os
dois lados nas relações sociais entre patrão e empregado não fazem parte de nenhuma luta,
ideologia ou discurso dos personagens, mas estão ali o tempo todo, presentes, pulsantes, é a
realidade vivida por eles na maior parte das situações. A narrativa nos faz refletir sobre o que
evoluiu nas relações de trabalho de fato, desde os tempos da Casa Grande do engenho próspero,
mantida às custas da escravidão, para uma metrópole moderna de prédios gigantes cercados por
muros e grades, que abriga não só as famílias de classe média, como também suas empregadas,
porteiros e seguranças.
Kleber estabelece esta relação logo nas primeiras imagens com a apresentação de uma
sequência de fotos em P&B antigas que mostram paisagens de campo e trabalhadores rurais,
inclusive crianças, que serviram nas plantações de cana de açúcar do Nordeste. Mas, no filme, as
crianças de hoje podem estar em dois lugares: ou brincando enclausuradas nos pátios dos
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edifícios como filhos e netos dos patrões, ou acompanhando o serviço doméstico da casa dos
outros, como filhos e netos dos empregados. O filme não parece revelar nenhuma perspectiva
para superar a dominação de classe.
A crítica social está evidente em todas as cenas e dialoga intensamente com a ideia de
Lipovetsky dessa exigência de proteção e segurança generalizada. A questão é que os moradores
da rua não chegam a tomar uma atitude em busca desta exigência de proteção, mas ela vem ao
encontro deles através da figura de Clodoaldo. Uma proposta de segurança privada surge no
momento mais conveniente e oportuno, e responde imediatamente a esta demanda por mais
tranquilidade de uma classe que historicamente apreciou ser servida e manter privilégios.
Prazer contra stress
O filósofo francês analisa a dicotomia desta sociedade hipermoderna, onde um dos lados
estimula os gozos do consumo, do prazer e do bem-estar pessoal, e o outro revela as existências
dominadas pela insegurança, cada vez mais apreensivas e estressantes. É exemplificada esta
nova relação com o tempo através de paixões consumistas, o que identificamos na personagem
Bia. Sua insatisfação com a rotina em casa é amenizada pela aceitação do apelo ao consumo,
mas também com o uso inusitado que ela destina a alguns de seus eletrodomésticos, para suprir
desejos e viver pequenas aventuras.
Na verdade, o que nutre a escala consumista é indubitavelmente tanto a angústia existencial
quanto o prazer associado às mudanças, o desejo de intensificar e reintensificar o cotidiano.
Talvez esteja aí o desejo fundamental do consumidor hipermoderno: renovar sua vivência do
tempo, revivificá-la por meio das novidades que se oferecem como simulacros de aventura.
(LIPOVETSKY, 2004, p. 79).
Dentro de casa, em seu espaço privado de conforto e segurança, devidamente cercado e
protegido do mundo exterior, a dona de casa Bia sente-se bem à vontade. Quando está sozinha,
Bia é livre para ter prazer e esquecer o stress do cotidiano durante alguns momentos. É livre
para fumar seu cigarro de maconha e soltar a fumaça no aspirador de pó, é livre para gozar ao se
masturbar com o movimento da máquina de lavar roupas.
Uma relação íntima com seus eletrodomésticos, uma pequena fuga da realidade do dia a
dia, apoiada em objetos de consumo. A busca angustiante por uma vida tranquila, ameaçada
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noite e dia com os uivos do cachorro do vizinho, vai da oferta de carne crua com sonífero para o
animal, passa pelo som ligado no último volume e segue até o uso de aparelho de ultrassom
anticães. Mais uma dependência no uso de eletrodomésticos por Bia, tão intensa que ela se
descontrola e discute com a empregada ao descobrir que esta queimara o ultrassom ao ligá-lo na
voltagem errada. A violência psicológica mostra suas garras na relação entre o dominador e o
submisso.
A violência que paira sobre toda trama não é somente externa e não vem só de agentes
estranhos ou de outras classes sociais. É evidente mesmo entre os moradores: Bia disputa com a
vizinha quem tem o maior poder de consumo e influência. O momento da entrega dos novos
aparelhos de TV pela loja provoca um atrito para ver quem recebe primeiro o entregador e qual
é o maior monitor, o que culmina em uma briga física no meio da rua. A sociedade
hipermoderna à beira da barbárie.
O caos organizador
Lipovetsky destaca o aspecto de cultura desunificada e paradoxal da sociedade
ultramoderna, verificado pela dualidade entre o tempo do imediato, da eficiência e da vida em
fluxo nervoso, confrontado a esta época que também é a da estetização dos gozos, da busca da
qualidade no agora, da sensualização do instante. A junção de opostos que reforça dois
importantes princípios da modernidade: “a conquista da eficiência e o ideal da felicidade
terrena”. Neste sentido, a sociedade ultramoderna mostrada no filme apresenta várias
dimensões, como um “caos paradoxal, uma desordem organizadora”.
O personagem João é corretor de imóveis e está começando um relacionamento com
Sofia. Ele é neto de seu Francisco, proprietário de vários imóveis da rua e que também possui
um antigo engenho no interior. João personifica um pouco deste caos, desta desordem, destas
múltiplas dimensões de uma sociedade ultramoderna. Ao mesmo tempo que João integra a
“classe dos patrões”, pois cuida dos imóveis do avô junto com um dos tios, na maior parte das
cenas ele não apresenta um comportamento esnobe ou de reafirmação de poder. Ao contrário, é
extremamente educado, se relaciona bem com os porteiros e serviçais, se preocupa com a
empregada, e não se importa quando ela precisa trazer suas netas para ficarem o dia com ela.
Trata-os com carinho e deixa-os à vontade na casa, como um espaço coletivo.
Ainda assim, a relação não deixa de ser de poder e submissão. Desde um simples pedido,
em tom de exigência, feito por João pelo café ao acordar, até a verificação da perpetuação deste
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poder, talvez secular entre as famílias, evidenciam esta diferenciação entre as classes. Os
diálogos revelam que Mariá, a empregada mais velha, que já serviu ao avô e pai de João, um dia
é substituída na casa pela filha dela, e provavelmente as netas ainda pequenas seguirão o mesmo
caminho de servidão à família de posses. João é extremamente gentil com todos, independente
da classe a qual pertencem, mas não deixa de exigir e provavelmente nunca abdicará de ser
servido, como é costume e tradição em sua família. Um paradoxo dos jovens patrões?
Em uma reunião de condomínio no prédio, João é o único morador que diverge dos
demais por ser contra a demissão do porteiro que trabalha ali há mais de dez anos. Os outros
moradores elencam inúmeras razões para mandá-lo embora, um garoto chega a editar um vídeo
com imagens do homem dormindo durante o expediente, e todos demonstram insatisfação com a
falta de eficiência do empregado. É a supremacia do mercado, da eficiência e dos direitos do
indivíduo da sociedade que hoje se apresenta, como nos aponta Lipovetsky. João pensa que
todos os anos de dedicação do porteiro ao prédio deveriam ser considerados, mas a preocupação
da maioria dos condôminos é como se livrar dele com o menor custo trabalhista possível, pois
julgam que ele não é mais eficiente e não atende aos seus direitos enquanto consumidores. O
mercado hoje exige eficiência.
João destoa dos semelhantes da sua classe, mas não destoa do homem hipermoderno,
aquele que ainda tem apreço às relações afetivas e amorosas, entretanto se perde na imensidão
de possibilidades que o universo de relações a sua volta lhe apresenta.
Ainda que as uniões sejam mais frágeis e mais precárias, nossa época, apesar de tudo,
testemunha a persistência da instituição do matrimônio, a revalorização da fidelidade, a vontade
de contar com relações estáveis na vida amorosa. Observam-se mais insatisfações ou
frustrações referentes às experiências sem futuro do que odes aos amores casuais. (Lipovetsksy,
2004, p.74)
João conhece Sofia em uma festa, a paixão à primeira vista traz o sexo no primeiro
encontro. A história se desenvolve, parece o início promissor de um relacionamento apaixonado,
mas o desfecho é tão inesperado quanto o começo. Em uma conversa com o primo, na última
cena em que aparece no filme, João simplesmente informa que não está mais com Sofia, que ela
tinha outra história em outro lugar e foi embora. Ainda que tenha surgido de um encontro
casual, havia um desejo em João para que o namoro com Sofia seguisse para uma relação
estável, pois o amor estava ali. Mas é preciso levar em conta que Sofia também faz parte deste
universo caótico, também é um ser aberto, independente, e em determinado momento a
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fragilidade desta relação não mais consegue mantê-la. Tudo acaba da mesma forma como
começou. Teria Sofia apostado em um antigo relacionamento que lhe desse mais estabilidade?
Não saberemos.
Assim, o indivíduo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e socialmente
independente. Mas esta volatilidade significa muito mais a desestabilização do eu do que a
afirmação triunfante de um indivíduo que é senhor de si mesmo. (LIPOVETSKY, 2004, p. 83.)
O personagem se encaixa perfeitamente neste indivíduo cambiante, desinserido, fora dos
esquemas sociais estruturantes que outrora estimularam a solidez de uma força interior para
enfrentar as desventuras da existência humana. João tenta se enquadrar fora da estrutura social
ao qual está inserido, mas não consegue se livrar de suas origens, tampouco de seu desejo de
valorização do duradouro. “Quanto mais ele quer viver intensa e livremente, mais se acumulam
os sinais do peso de viver”. (LIPOVETSKY, 2004, p. 84).
Confiar ou não confiar. Eis uma questão.
A confiança instável da hipermodernidade é um dos temas pertinentes trazidos pelo
filme. Clodoaldo, chefe dos vigilantes responsável pela prestação do serviço – empregado mas
também patrão dos seus próprios empregados – oferece segurança e uma vida tranquila nesta
rua sob seus cuidados. Ele divulga o serviço para os moradores, mas descobre que precisa da
permissão de Seu Francisco, “proprietário de mais da metade dos imóveis da área”.
Francisco é a personificação do patrão urbano e, ao mesmo tempo, rural. Na cidade, vive
da renda das posses no ramo imobiliário, que também ajuda a sustentar e empregar a família.
No interior, desfruta da beleza e paz da vida no campo, em sua propriedade que um dia já foi
Casa Grande de engenho de cana de açúcar. Portanto, Francisco também foi patrão de
trabalhadores rurais, provavelmente explorados como nos remetem as fotografias P&B da
sequência de abertura em O som ao redor.
Uma relação inicial de confiança entre Francisco e Clodoaldo fica estabelecida com a
permissão para que o segurança – empregado – vigie toda a rua, as propriedades do patrão e de
outros patrões menores. Mas é uma vigilância subordinada ao controle de quem autoriza o
serviço, Francisco. O poder aparece evidente especialmente nas duas cenas em que Clodoaldo é
recebido na casa de Francisco: sempre pela porta dos fundos, aguardando a empregada chamar o
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patrão, e mesmo quando é recebido na sala para tratar de assunto sério não é convidado a sentar-
se no sofá - reservado ao dono da casa - mas sim em um banco pouco confortável, para deixar
bem claro a todo instante quem é que manda.
Pouco é dito no filme sobre quem é Clodoaldo, de onde veio, como foi sua formação e
preparação para o serviço, quem o enviou ali. Quando indagado por João sobre quem o havia
recomendado, Clodoaldo responde: “foi a gente mesmo”. Em outro núcleo de personagens
moradores da rua, um comentário de Bia no jantar com a família é que os arrombamentos de
dois carros no entorno podem ter alguma intenção de motivar os moradores a contratarem os
serviços de segurança oferecidos. Seria pura coincidência ou teria sido marketing? Poderiam os
seguranças serem os próprios assaltantes ou estarem ligados a eles para provocar uma demanda
pelo serviço? Em quem devemos confiar?
Essa confiança dos consumidores, dos investidores, dos empresários, sabe-se, é volátil e agora
regularmente medida pelas pesquisas de opinião. Na hipermodernidade, a fé no progresso foi
substituída não pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma confiança instável, oscilante,
variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias. (LIPOVETSKY, 2004, p. 70)
Em uma conversa tensa entre Francisco, Clodoaldo e um dos vigilantes, o tom de
escárnio do detentor do poder fica evidente, afinal de contas este poder precisa não somente
existir como ser ostensivamente demonstrado. E é neste clima que a permissão é concedida, que
a confiança é firmada. Dentro do contexto apresentado pela narrativa, o voto de confiança pode
ter sido dado: 1) pelos índices de assaltos na região comentados no filme, que geram maior
insegurança aos moradores; 2) pela sutil imposição desta necessidade de vigilância. Afinal, o
que poderia acontecer aos moradores caso eles se recusassem a aceitar o serviço? Sofreriam
alguma retaliação? Sentem-se ameaçados?
Clodoaldo tem acesso a uma das casas da rua para molhar as plantas enquanto o
proprietário viaja. Clodoaldo leva para essa casa a empregada de Francisco, onde tomam a
liberdade de beber água direto da jarra da geladeira da família e transar na cama da suíte do
casal. Seu Francisco telefona várias vezes para Clodoaldo e o celular fica horas desligado. A
confiança, ainda em fase de testes, balança.
Francisco exige uma conversa particular com Clodoaldo. Na sequência final e
reveladora, que é esta conversa entre os dois, um terceiro elemento é adicionado à trama: mais
um integrante da equipe de seguranças, irmão de Clodoaldo. Francisco fala sobre um fato
recente que abalou sua tranquilidade: o assassinado de um ex-capataz, administrador do seu
15
engenho, indivíduo de extrema confiança que estava aposentado há mais de dez anos. Desconfia
se tratar de algum tipo de vingança e pede reforço de Clodoaldo na sua segurança pessoal. Neste
instante acontece a grande virada do filme, pela descoberta de que Francisco na verdade já
conhecia Clodoaldo e seu irmão há muitos anos mas não os havia reconhecido, pois eram
crianças de uma família vizinha do interior. Com emoção e extrema tensão, é revelado que o ex-
capataz foi na verdade morto por Clodoaldo e seu irmão, como vingança por ter assassinado o
pai e o tio deles na infância, provavelmente sob ordens de Francisco, por causa de uma cerca.
Descobre-se então uma relação antiga de poder, de violência e morte no campo, e a
relação entre eles imediatamente se inverte. A confiança, volátil, instável, é irreversivelmente
perdida. O empregado tido até então como protetor passa a ser o principal inimigo do patrão.
Uma ameaça antes invisível passa a ser revelada, a confiança estava depositada justamente em
quem não deveria estar. Não se pode mais confiar em ninguém? A relação de poder se
transforma: quem protege quem? Quem amedronta quem? Quem domina quem a partir de
agora?
Considerações finais: uma sociedade autocrítica
Lipovetsky traz as análises da alta modernidade do sociólogo Ulrich Beck (La Société du
risque, apud LIPOVETSKY, 2004, p.97), que fala de uma segunda modernização, mais
autocrítica e reflexiva após uma primeira modernização centrada na oposição entre tradição e
modernidade. Mas afirma que ela é mais do que auto-referencial, pois invade todos os sentidos e
tradições do Ocidente e Oriente, todos os saberes e crenças. No longa-metragem a tradição e a
modernidade não se opõe, mas convivem de forma que algumas de suas características
marcantes são mescladas, adaptadas, rearranjadas.
O que define a hipermodernidade não é exclusivamente a autocrítica dos saberes e das
instituições modernas; é também a memória revisitada, a remobilização das crenças
tradicionais, a hibridização individualista do passado e do presente. Não mais apenas a
desconstrução das tradições, mas o reemprego delas sem imposição institucional, o eterno
rearranjar delas conforme o princípio da soberania individual. (LIPOVETSKY, 2004, p. 98)
Alinhando esta definição de hipermodernidade ao universo que o filme pretende
reproduzir, pode-se afirmar que O som ao redor é mais do que a crônica brasileira sobre
16
história, violência e barulho que propõe sua sinopse. O filme em si se configura na autocrítica e
reconstrução das tradições com base na soberania do indivíduo, pois o roteiro foi criado em
cima de uma realidade social conhecida do diretor, e estimula o espectador a se identificar com
algumas das situações mostradas, mas principalmente a refletir sobre sua condição nesta
sociedade.
Trata-se uma obra cinematográfica que considero representar o espírito da
hipermodernidade democrática e mercantil, movida pelo hedonismo e pelo consumo, mas
também pela manutenção das relações sociais de amor, afeto e valorização da memória, que
reconstrói as tradições neste “caos organizador”. Uma nova era que ainda não mostrou
totalmente a que veio, pois está apenas começando.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livro:
LIPOVETSKY, Gilles; Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Bancarolla, 2004.
Sites:
O SOM AO REDOR. Sinopse e outras informações disponíveis em:
<http://www.osomaoredor.com.br> Acesso em 06 de junho de 2015.
G1 de São Paulo. Filme brasileiro “O som ao redor” fica fora da disputa por Oscar 2014.
Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2013/12/filme-brasileiro-fica-de-
fora-da-disputa-por-oscar-2014-diz-site.html> Acesso em 07 de junho de 2015.
17
Apontamentos genealógicos sobre a condição de presença das imagens
Tiago R. C. Lopes – UNISINOS
Resumo
O texto aborda as relações entre a imagem e o espaço desde um ponto de vista que enfatiza a
passagem do conceito de imagem enquanto modelo de representação da experiência ao de
imagem como agente produtor de experiência. Assim, propõe-se demarcar as principais
tendências no campo estético que enunciam a imagem como uma superfície que não se deixa
penetrar, que assume-se como um dispositivo ou como um ato performativo, substituindo a ideia
de imagem como sinônimo de “representação” pelo princípio da imagem como presença.
Palavras-chave: telas; presença; representação; espaço
Introdução
Ao longo deste texto buscamos produzir um deslocamento no conceito de imagem
enquanto modelo de representação da experiência em direção à noção de imagem enquanto
agente produtor de experiência. Propomos, através de uma visada genealógica, demarcar as
principais tendências no campo estético que enunciam a imagem como uma superfície que
demanda engajamentos outros por parte do espectador, os quais diferenciam-se dos modelos de
consumo de imagens ditas tradicionais, e, por isso mesmo, produzem instabilidades na ideia de
imagem como sinônimo de “representação”, fazendo emergir o princípio de imagem concebida
enquanto ato performativo produtor de presença2.
2 Tomamos de empréstimo o conceito de Hans Ulrich Gumbrecht (2010). Para o autor, “Uma
coisa ‘presente’ deve ser tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode
18
Na primeira parte, exploramos duas tendências de utilização de recursos audiovisuais em
obras de instalação artística que apontam em direção ao conceito de imagem-dispositivo
(DUBOIS, 2009): em primeiro lugar, são descritas técnicas que utilizam o potencial projetivo da
imagem para gerar ambientes audiovisuais que envolvem o olhar do espectador; em segundo
lugar, abordamos algumas estratégias de criação artística em que o caráter expositivo da imagem
é usado como recurso para confrontar o olhar do espectador e produzir experiências de reflexão
sobre a própria imagem.
Na continuação, avançamos sobre o estudo de interfaces audiovisuais urbanas, as
quais apresentam-se acopladas e misturadas à materialidade dos lugares e dos corpos
humanos. Trata-se de imagens que apresentam o potencial de “aderir” a quaisquer superfícies,
seja através de painéis de LED, projeções mapeadas, pinturas de trompe-l’oeil ou realidade
aumentada móvel.
Videoinstalações
No campo das artes, a chegada do vídeo aos ambientes de instalação significou a
possibilidade de incorporar elementos arquitetônicos adicionais ao espaço expositivo; elementos
estes que significavam, sobretudo, uma ampliação da dimensão temporal das obras. Para Rush
(2006) a imagem de vídeo permitiu a expansão do conceito de escultura, tornando-o mais fluido
e ativo. Nesse sentido, se a exploração do tempo já era um ponto central em várias obras de
videoarte, as possibilidade se tornaram ainda maiores com o emprego de recursos de vídeo nas
instalações. A projeção com múltiplas telas (fossem telas cinematográficas ou telas de aparelhos
televisores) foi, de longe, uma das estratégias mais exploradas. Para Dubois (2009), as telas
múltiplas enunciam um princípio de transposição das formas temporais do cinema, em especial
daquelas tributárias das técnicas de montagem, para uma disposição espacial no ambiente
expositivo, seja o da galeria de arte ou outro.
Desse modo, a sucessão temporal que se efetua na montagem cinematográfica é encenada
por princípios de simultaneidade espacial através de inúmeros recursos, dentre os quais, a
projeção em múltiplas telas se apresenta como uma das alternativas. Peter Greenway, conhecido
cineasta e artista plástico, produziu várias instalações baseando-se no princípio de projeção da
ter impacto imediato em corpos humanos. Assim, uso ‘produção’ no sentido de sua raiz
etimológica (do latim producere), que se refere ao ato de ‘trazer para diante’ um objeto no
espaço. Aqui, a palavra ‘produção’ aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais
se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos. (2010, p.
13).
19
imagem fílmica sobre o espaço. Para Manovich (2006, p. 306, tradução nossa), ao “transferir”
para o espaço do museu os elementos estéticos e narrativos cinematográficos, Greenaway
expressava um desejo de “arrancar o cinema de dentro do cinema” 3, dando a ver o caráter
modular e fragmentado inerente à natureza desse meio. Em suas instalações, as imagens e sons
dispostos através de estruturas espaciais endereçavam ao próprio corpo do participante a tarefa
de agrupar e significar os estímulos sensoriais captados dispersamente no ambiente da
exposição.
Seguindo estratégias semelhantes às de Greenway, a artista norte-americana Amy Jenkins
projetava imagens sobre objetos comuns, como camisas ou banheiras. Neste ponto, já não
estamos mais diante de um processo de inserção de telas audiovisuais em espaços antes
ocupados pelas imagens-objeto (o quadro, a escultura), mas, por outro lado, estamos diante de
técnicas a partir das quais o próprio cinema (ou a televisão) são projetados em direção ao espaço
que habitamos e aos objetos do cotidiano (uma camisa, uma colher). Obras desse tipo, que
lançam mão de expedientes audiovisuais sobre objetos concretos, sobretudo através de formas
familiares (cubos, utensílios cotidianos etc.), produzem um distúrbio na superfície dos objetos
cotidianos, tornando-os ao mesmo tempo estranhos e familiares aos olhos dos espectadores.
Se a videoarte introduziu a imagem de vídeo nas galerias de arte, por outro lado, foi o
cinema que primeiro se manifestou a favor da “instalação”, em sentido amplo, através de
inúmeras estratégias que promoviam uma expansão do seu campo em direção a outras formas de
arte (DUBOIS, 2009). Por esse caminho, vários artistas passaram a trabalhar sobre a imagem
cinematográfica, tendo em vista a exploração do seu potencial expositivo. Para Dubois (2009),
em uma obra como 24 hours Psycho (Douglas Gordon, 1990), em que o artista se apropria do
filme Psicose (Hitchcock, 1960) e o transforma numa projeção de vídeo que dura exatas 24
horas, o poder de exposição das imagens do filme atua no sentido contrário ao potencial das
técnicas de projeção. Enquanto a qualidade de projeção é responsável por acionar diversos
mecanismos psicológicos do espectador (a empatia com os personagens, o voyeurismo escópico,
o devaneio etc.), a qualidade expositiva, por outro lado, “deflagra mecanismos mais analíticos
ou teóricos, e muitas vezes autorreflexivos, que levam o espectador a uma postura mais crítica
ou desconstrucionista” (DUBOIS, 2009, p. 199). A imagem fílmica, quando trabalhada assim,
de modo a potencializar suas qualidades expositivas, se apresenta diante do espectador como
uma presença que necessariamente o conduz através de uma experiência analítica em que o
próprio ato de ver imagens é interrogado. O olhar busca se aprofundar na imagem, mas rebate
3 No original, em espanhol: [...] sacar el cine del cine.
20
em sua superfície e se volta sobre si mesmo, colocando em questão as condições de sua própria
fenomenologia.
Videoartistas como Bruce Nauman souberam extrair o poder expositivo do vídeo. Em
várias de suas obras de videoarte, vemos o artista sozinho em seu estúdio trabalhando ou
simplesmente não fazendo nada. “Nada” talvez seja a melhor palavra para definir a visualidade
de algumas das obras dos referidos artistas, pois a imagem pouco tem para mostrar. O
espectador deposita seu olhar sobre ela, mas ela o rebate de volta, como em um circuito fechado
que provoca uma intensidade espaço-temporal cada vez maior. Como diria Dubois (2004), a
imagem, neste contexto, assume-se como um dispositivo, um estrito ato performativo que deixa
de lado tudo o que é supérfluo para substituir a ideia de representação pelo princípio mesmo da
presença. Uma imagem-dispositivo, isto é, uma imagem que apela aos sentidos corpóreos mais
do que aos sentidos semióticos, que se institui, portanto, não como imagem que representa
alguma coisa, mas como imagem que se mostra, ela própria, como uma presença.
Atualmente, os artistas começam a se deparar com um cenário em que os espaços se
apresentam cada vez mais atravessados por múltiplos fluxos de dados informacionais dinâmicos,
com os quais é possível interagir e acrescentar novas camadas de conteúdo. Contudo, se no
espaço fechado das galerias de arte e dos pavilhões de mostras e exposições as possibilidades
crescem na mesma proporção em que novos recursos tecnológicos se colocam à disposição dos
artistas, não podemos negligenciar que também fora desses espaços acumulam-se em quantidade
e qualidade cada vez maiores os hardwares e softwares de produção de imagens: desde painéis
luminosos de LED, passando por tecnologias de projeção sobre fachadas urbanas até chegarmos
nos acessórios tecnológicos vestíveis e inteligentes, por todo o lado presenciamos a emergência
de interfaces imagéticas, as quais transformam a paisagem e a cultura (áudio)visual urbana.
Espaços ampliados urbanos
Nas metrópoles comunicacionais de nossa época, multiplicam-se as edificações que
apresentam estratégias de integração de imagens eletrônicas em seus projetos arquitetônicos –
pensemos nos painéis dinâmicos de LED que iluminam e colorem as empenas de edifícios nas
grandes metrópoles, ou, ainda nos ambientes de lojas de departamento dos shopping centers, que
misturam displays eletrônicos, espelhos e superfícies brilhantes e translúcidas, gerando a
sensação de um espaço visualmente dinâmico; por outro lado, a expansão dos usos operados
sobre mídias móveis pauta uma outra tendência em promover a associação de conteúdos
informacionais às materialidades e territorialidades dos espaços urbanos: seja através de telas
multitouch ou de acessórios vestíveis inteligentes, as imagens podem agora se acoplar a um
21
conjunto vasto de objetos do cotidiano e, inclusive, ao corpo humano, contribuindo
decisivamente para fomentar ainda mais um quadro de ruptura com o modelo de tela tradicional.
Estratégias de integração de imagens tecnológicas a objetos arquitetônicos ocorrem, pelo
menos, desde a passagem do século XIX para o século XX, período em que a modernidade
elétrica transformou o espaço público. Desde então, arquitetos e artistas envolvidos com as
transformações culturais emergentes buscam novas formas de apropriação de recursos
tecnológicos de imagens em projetos arquitetônicos. Ao assumirem essa postura, tais estratégias
enunciam as superfícies de edificações como meio de expressão comunicacional. Nessas
condições, a fachada assume uma dupla função: ao mesmo tempo que esconde o que há por
detrás, ela revela o que nela é projetado, como uma tela de cinema. (DUARTE; DE MARCHI,
2010).
Manovich (2006b, p. 219) se refere a esses ambientes permeados por conteúdos
informacionais multimídia como “espaços ampliados” (augmented spaces) – espaços físicos e
geográficos densamente preenchidos por dados informacionais, que são “despejados” por
diferentes tipos de mídias digitais, desde displays e painéis luminosos anexados às paredes e
fachadas de construções urbanas até as telas dos dispositivos móveis utilizados pelas pessoas
que circulam nesses locais.
Para Firmino e Duarte (2008), os espaços ampliados não deveriam constituir novidade,
visto que comparecem ao longo de toda a história da humanidade estratégias artísticas e
arquitetônicas – e mesmo religiosas ou metafísicas – que apresentavam no horizonte de seus
propósitos estender, senão o espaço em si, a percepção que se tem do espaço. Técnicas seculares
de trompe-l’oeil são utilizadas para promover a fusão entre o campo da representação imagética
e a estrutura arquitetônica das edificações. Desde o conhecido afresco renascentista de
Michelangelo Buonarotti, que recobre o teto da Capela Sistina, realizado no início do século
XVI, até as intervenções urbanas realizadas pelos artistas Joe Hill e Max Lowry, as técnicas de
trompe-l’oeil vêm sendo utilizadas como artifício para simulação de volumes em fachadas de
prédios, interiores, cenários teatrais ou de apresentações musicais, etc.
O que deve ser destacado nas técnicas de trompe-l’oeil é a sua capacidade de conferir à
imagem uma qualidade que ultrapassa sua função de representação para adentrar o terreno da
ilusão. O que se destaca, portanto, é o potencial para produzir presença que a imagem pode
alcançar. No caso específico das técnicas de trompe-l’oeil, o potencial para produção de efeitos
de presença reside sobretudo em seu teor mimético, que comunica-se diretamente com os
sentidos do corpo, antes mesmo de se relacionar com os sentidos semióticos das obras
apresentadas.
22
No entanto, há que se considerar diferenças em relação às estratégias de ampliação
espacial adotadas nas técnicas, por assim dizer, analógicas (como a de trompe-l’oeil) daquelas
que marcam a experiência proporcionada por tecnologias eletrônicas e informacionais. Em
primeiro lugar, o emprego de tecnologias computacionais em espaços físicos apresenta como
principal vantagem a possibilidade de inserção de dados dinâmicos, isto é, conteúdos que podem
ser alterados de diferentes maneiras e por isso oferecem um amplo repertório de possibilidades
de diálogo com o contexto ambiental: uma fachada de prédio recoberta por displays eletrônicos
pode ser utilizada tanto para comunicar mensagens publicitárias quanto funcionar como uma
tela de cinema ou mesmo como elemento que se integra à arquitetura, como é o caso das
projeções audiovisuais sobre edifícios, conhecidas como projeção mapeada de vídeo. Tais
práticas tomam a superfície arquitetônica como o suporte para a projeção de imagens e, com
isso, atualizam as técnicas de trompe-l’oeil para o contexto urbano contemporâneo,
potencializando de forma radical os efeitos de anamorfose possibilitados através da projeção de
audiovisuais sobre edificações.
Como consequência desse modo de intervenção urbana, observamos a emergência de
estéticas que mesclam a territorialidade de espaços físicos à efemeridade e leveza que
caracterizam a (i)materialidade dessas imagens. Contudo, as alternativas de incorporação de
tecnologias informacionais a edificações e demais objetos do mobiliário urbano extrapolam o
uso de projetores ou de displays eletrônicos para geração de sequências pré-gravadas de
audiovisuais, visto que a relação entre dados informacionais e espacialidades físicas não
necessita estar, necessariamente, limitada a fluxos unidirecionais de informação “despejados” no
ambiente sem nenhum tipo de feedback.
Várias obras artísticas e projetos com tecnologias digitais estabelecem uma relação
dialógica com o ambiente através do emprego de tecnologias que capturam dados contextuais,
como aquelas empregadas em sistemas de vigilância e monitoramento, que captam e traduzem
informações do ambiente em uma extensa gama de imagens (vídeos de câmeras de vigilância,
gráficos de controle de temperatura e luminosidade, imagens obtidas através de sinal
infravermelho, fotografias capturadas via-satélite). Em conjunto, tais tecnologias expressam um
certo desejo de penetrar, capturar, mapear e remontar o “real” segundo as lógicas de
manipulação e perfectibilidade que caracterizam os ambientes computacionais.
Intervenções urbanas do tipo laser tag, como as realizadas pelo grupo de artistas Graffiti
Research Lab,4 geram grafites tecnologizados (SILVEIRA, 2007) sobre fachadas de edificações
4 Disponível em: <http://graffitiresearchlab.com/>. Acesso em 06 de junho de 2014.
23
com o uso de projetores e canetas laser, indicando mais uma possiblidade de como técnicas de
projeção de imagens podem transformar o mobiliário urbano em enormes superfícies de
enunciação imagética. Nesse formato de acoplamento da imagem com o espaço urbano, o efeito
visual (o grafite tecnológico) resulta de processos técnicos que caracterizam, pelo menos, dois
tipos de fluxos informacionais que atuam no sentido de promover efeitos de ampliação espacial:
um fluxo que vai do equipamento de projeção em direção ao espaço e outro que vai do espaço
em direção ao equipamento de captura de informação. Trata-se, portanto, de uma outra
possibilidade de produção de acoplagens imagéticas a objetos urbanos que utiliza-se de
expedientes de captura de informação, além, é claro, dos recursos de projeção audiovisual.
Tal processo de acoplamento imagético em que por um lado informações são capturadas
do ambiente, processadas e revertidas em projeções audiovisuais, constitui a base sobre a qual
produzem-se atualmente muitas aplicações para dispositivos móveis. Neste contexto, o emprego
dos chamados serviços de informação baseados em localização estão se tornando cada vez mais
comuns. Tais serviços oferecem informação customizada a partir do posicionamento no espaço
geográfico. Entre os sistemas de localização mais conhecidos estão aqueles que operam através
da rede GPS. Até alguns anos atrás, os dados de GPS só podiam ser acessados através de
aparelhos especializados, contudo, nos últimos tempos, diversos hardwares portáteis –
smartphones, tablets, videogames, relógios, dentre outros – já trazem essa funcionalidade
embarcada em seus sistemas. Como consequência do processo de estandardização do sistema
GPS nesses aparelhos, cresce em igual proporção a oferta de aplicações (softwares) que baseiam
seus serviços em funções de geolocalização.
Tais serviços dependem de algum tipo de infraestrutura locativa que calcula a posição dos
dispositivos no espaço físico e alimenta o serviço com coordenadas através das quais se pode
transmitir informação filtrada geoespacialmente para o usuário. (SHEPARD, 2010). Portanto, a
principal característica das tecnologias locativas é o seu potencial de extração de dados
contextuais – sobretudo dados de localização, mas também outros tipos dados, como
informações sonoras, temperatura, movimentações do corpo.
Aplicativos para dispositivos móveis que articulam em seu funcionamento tecnologias de
realidade aumentada, geolocalização e conexão em rede, como Layar5 e Wikitude6, oferecem a
possibilidades de mostrar, visualmente, uma variedade de conteúdos relacionados ao contexto
dos lugares em que são acessados pelos seus usuários. Por exemplo, através desses aplicativos, é
possível enxergar informações turísticas e de serviços gerais (como a localização de postos de
5 Disponível em: <https://www.layar.com/products/app/>. Acesso em: 11 de dezembro de 2013. 6 Disponível em: <http://www.wikitude.com>. Acesso em: 11 de dezembro de 2013.
24
gasolina ou supermercados), vídeos e fotografias produzidos por outras pessoas, dentre outros
conteúdos que tenham sido disponibilizados na web e que estejam vinculados a coordenadas
espaciais de latitude e longitude.
Em aplicações de realidade aumentada, o que está em jogo é, sobretudo, um
redimensionamento do conceito de “lugar”, que passa a ser percebido como um espaço de
possibilidades (sobretudo simbólicas) que se expande na medida em que valores estéticos e
simbólicos estão associados às camadas técnicas sobrepostas. A imagem, nesse sentido, também
deixa de ser pensada em sua dimensão representacional, isto é, como uma instância que aponta
para um espaço outro, alheio ao ambiente de sua recepção, e passa a ser concebida a partir de
uma concepção de metarreferencialidade, pois é uma imagem que pensa e faz pensar sobre o
próprio lugar e as próprias condições de sua fabricação. No contexto de experiências com
realidade aumentada, a condição de presença da imagem surge, portanto, da dependência que
produz em relação ao espaço em que é constituída e consumida: são imagens incompletas, que
só podem ser concebidas enquanto tal na medida em que corpo, espaço e dispositivo midiático
performatizam juntos operações técnicas e simbólicas.
Considerações finais
Ao longo deste texto, buscamos apontar para a condição de presença das imagens, que ora
se mostra através de uma qualidade de ubiquidade imersiva, como nas instalações que usam
múltiplas projeções de vídeo; ora através de uma qualidade de impenetrabilidade, como em
obras que exploram o potencial expositivo da imagem; e, ainda, ora como uma imagem
performativa, que demanda o engajamento todo do corpo do sujeito para tomar forma e que se
produz em conexão com as materialidades espaciais de objetos do mobiliário urbano e do corpo
de usuários de dispositivos móveis. O que se conclui deste breve trajeto, é que cada vez mais
presenciamos estados da imagem que referendam uma cultura audiovisuoespacial
(MANOVICH, 2006) que emerge dos diferentes usos e apropriações das ferramentas hoje
disponíveis para a produção imagética. As consequências desse novo cenário para o campo
criativo ainda estão por ser descobertas, pois ainda estamos vivendo os primeiros estágios de um
processo que, tudo indica, está apenas começando. Cabe a nós, portanto, pesquisadores que
apreciam e se dedicam a este tema, inventar as ferramentas adequadas para a compreensão de
fenômenos que desafiam próprio entendimento sobre o que é, hoje em dia, uma “imagem”.
Referências:
25
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DUARTE, Fábio; DE MARCHI, Poliese. Fantasmagorias, vitrines, infiltrações: ensaio sobre as
tecnologias e a cidade. In: Mediações, tecnologia e espaço público: panorama crítico da arte
em mídias móveis. BAMBOZZI, Lucas; BASTOS, Marcus; MINELLI, Rodrigo (Org.). São
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FIRMINO, Rodrigo; DUARTE, Fábio. Cidade infiltrada, espaço ampliado: as tecnologias de
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Vitruvirus, São Paulo, ano 08, n. 096.01, maio de 2008. Disponível em:
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.096/3408>. Acesso em: 25 nov.
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GUMBRECHT, Hans. Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de
Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, agosto de 2010.
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MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Editora Senac, 2009.
RUSH, Michael. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SHEPARD, Mark. Kit de ferramentas para um jardim sonoro tático [TSG, Tactical Sound
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móveis. BAMBOZZI, Lucas; BASTOS, Marcus; MINELLI, Rodrigo (Org.). São Paulo: Conrad
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SILVEIRA, Fabrício. Remediação e extensões tecnológicas do grafite. In: INTERCOM, 2007.
Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos: Intercom, 2007.
26
“Só eu tô vendo?” - como explicar fenômenos na recepção
de imagens7
SANDRI, Tammie Caruse Faria8
PUCRS
RESUMO: Uma fotografia, uma recém-casada em choque e uma dúvida compartilhada. Mais
de 200 mil curtidas e mais de 30 mil comentários. Um post da atriz Fernanda Souza em seu
perfil oficial do Instagram mobilizou brasileiros, rendeu inúmeras manchetes em sites de
notícias no país, virou até piada, porém, chamou a atenção para o poder de fenômenos visuais no
imaginário do público. Seria mesmo a imagem de Jesus Cristo presente na clavícula da atriz na
selfie realizada na noite do seu casamento? O tema há muito é discutido no meio acadêmico,
mas as respostas nem sempre estão difundidas, o que só faz aumentar as especulações. Para
auxiliar na compreensão de imagens como a que gerou a postagem e os posteriores curtidas e
comentários, o artigo estabelece uma aproximação entre o fenômeno da Pareidolia e a Teoria
Geral da Imagem, baseada em princípios da Gestalt.
Palavras-chave: Comunicação social. Imagem. Efeitos de sentido. Comunicação visual.
Jesus no casamento
Celebridades brasileiras, a atriz Fernanda Souza e o cantor Thiaguinho casaram-se no
dia 24 de fevereiro de 2015, em uma cerimônia que reuniu 450 convidados, na igreja Nossa
Senhora do Brasil, com posterior recepção na Casa Fasano, em São Paulo. A noite trouxe
inúmeras surpresas preparadas pelo noivo para a amada, como a apresentação do cantor gospel
7 Trabalho apresentado no GT: Manifestações Visuais Contemporâneas - 13º Seminário Internacional de Comunicação.
FAMECOS/PUCRS. 8 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
27
Leonardo Gonçalves, com a música "Quando Deus Criou Você", oferecida a ela no primeiro
encontro, há dois anos e nove meses; a interpretação por Thiaguinho, de "Ainda Bem",
composta por ele para Fernanda e o show do grupo Fundo de Quintal, o preferido da noiva.
Como Fernanda declarou à imprensa, muita emoção marcou o enlace (EGO, PURE PEOPLE,
REVISTA QUEM, UOL, 2015). O que ela não poderia imaginar é que outra surpresa sobre o
matrimônio seria revelada: a presença de um convidado especial, Jesus Cristo.
O detalhe que chamou a atenção foi compartilhado pela própria Fernanda, no dia 26 de
fevereiro, em seu perfil na rede Instagram, como mostra a Figura 1.
Figura 1: Post de Fernanda Souza no Instagram
Fonte: https://instagram.com/p/zjKs0bBfmO/?taken-by=fernandasouzaoficial
Na postagem, a atriz confessou estar “em choque” com a imagem da visita inesperada
revelada entre seu pescoço e ombro direito, na região da clavícula. A postagem conquistou 215
mil curtidas e a pergunta feita pela atriz “Só eu tô vendo?” gerou comentários de mais de 33 mil
inscritos na rede até 23 de junho de 2015, quando foram coletados todos os dados para esta
análise. A maioria dos que comentaram o post revelaram ter também percebido a figura de
Jesus. Alguns demoraram um pouco para percebê-la, criando maneiras específicas para tal ou
auxiliando os demais na tarefa. Outros utilizaram o espaço de comentários para felicitar os
recém-casados. Houve quem, apesar das dicas, declarou não ter conseguido vê-la e ainda
aqueles que encontraram no post motivo para risos e piadas. Numa simples observação e sem
28
firmar uma estatística exata entre todos os comentários, cabe destacar que, seja para concordar
ou discordar de Fernanda, muitos se interessaram pelo tema. Discussão que logo ganhou forma
em sites de notícias e outras redes sociais, além de rádios, tvs, jornais e revistas, principalmente
em espaços voltados para celebridades.
A imagem original era uma selfie tirada pelo casal de padrinhos Luciano Huck e
Angélica, com os recém-casados, durante a festa. A dupla de padrinhos, apresentadores de tv,
além de comandar as selfies da noite, foram responsáveis por exibir os bastidores do casamento,
no programa Caldeirão do Huck, transmitido pela maior rede aberta de televisão do país, a rede
Globo. A selfie foi postada na mesma noite da cerimônia, pelos dois, no Instagram (Figuras 2 e
3).
Figura 2: Post de Angélica no Instagram
Fonte: https://instagram.com/p/zgc6B6rWBI/?taken-by=angelicaksy
Figura 3: Post de Luciano Huck no Instagram
29
Fonte: https://instagram.com/p/zgcpF5TMK7/?taken-by=lucianohuck
A selfie, no momento da postagem, não suscitou nenhum tipo de questionamento por
parte dos donos dos perfis sobre o detalhe percebido, posteriormente, por Fernanda. É provável
que, na pressa em partilhar as imagens em tempo real, nenhum dos dois tenha focado a atenção
sobre o ombro da afilhada. O conteúdo da maioria dos comentários, entretanto, também remete à
dúvida da atriz, demonstrando que quem tomou conhecimento sobre a postagem de Fernanda,
procurou a imagem original. Juntas, as postagens receberam mais de 283 mil curtidas e mais de
três mil comentários até a coleta de dados, números que, somados aos do post de Fernanda
demonstram a repercussão do caso.
Considerando as dificuldades relatadas, em alguns comentários, para ver a figura, um
site de notícias chegou a manipular a imagem para auxiliar o público a encontrar a face
escondida, como na Figura 4 abaixo.
Figura 4: Post e manipulação
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Fonte: http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/02/fernanda-souza-
ve-imagem-de-jesus-cristo-em-foto-de-casamento.html
Essa demonstração didática do que deveria ser visto na imagem, com a sobreposição de
uma figura representativa de Jesus exatamente no local da suposta aparição sobre o peito da
atriz, revela as proporções que o post tomou, suscitando a preocupação da mídia em facilitar a
interpretação do público sobre o tema, tal qual foi feito por alguns usuários do Instagram nos
comentários. Outro site chamou até perito para explicar como o rosto se formou sobre o peito da
atriz (Figura 5).
Figura 5: Marcações de perito sobre a
imagem Fonte: http://celebridades.uol.com.br/noticias/redacao/2015/02/27/perito-compara-
jesus-do-casamento-de-fernanda-souza-a-imagem-em-marte.htm
Na análise, o perito dr. Ricardo Molina detalha, com marcações sobre a figura, como
ela teria se formado e indica que as bordas de uma segunda pele (linhas verdes), aliada à linha
da clavícula (linha vermelha) e às sombras do rosto (linha amarela) formaram os principais
traços da figura (UOL, 2015b), desconstruindo, por provas materiais, a suposição de uma
31
aparição sobrenatural. Por outro lado, houve site que consultou o padre Reginaldo Manzotti,
responsável por conceder o sacramento do matrimônio aos noivos, para compreender o
que poderia ter acontecido na imagem, algo que, para ele, revela a sensibilidade da atriz ao
sagrado (MIDIANEWS, 2015).
Público, perito, padre, todos, a seu modo, estão corretos e, para a dúvida inicial da atriz, é
necessário afirmar: é comum ver rostos onde eles naturalmente não estariam. Esse fenômeno é
tão corriqueiro, quanto a inocente brincadeira de encontrar formas em nuvens. E para aqueles
que não conseguiram ver o rosto de Jesus, também existe uma explicação.
Fenômeno conhecido
Desde 1757, o filósofo, historiador e ensaísta escocês David Hume esclareceu a
questão: há uma tendência universal em concebermos os outros como a nós mesmos e
transferirmos aos objetos qualidades próprias dos humanos, com as quais estamos
familiarizados. “Nós encontramos rostos humanos na lua, exércitos nas nuvens; e por uma
propensão natural, se não corrigida pela experiência e reflexão, atribuímos malícia ou boa-
vontade para cada coisa, que dói ou nos agrada” (HUME, 1757, p.19). Mais de dois séculos
depois, o astrônomo Carl Sagan ocupou-se da compreensão sobre o tema, a partir da visão da
lua a olho nu, em que o brilho irregular e as manchas escuras do satélite terrestre não
representam nenhum objeto próximo a nossa realidade. Para o reconhecimento de algo familiar,
“os nossos olhos conectam as marcas, enfatizando algumas, ignorando outras. Procuramos um
padrão e nós encontramos um” (SAGAN, 1995, p.44). Para o astrônomo, esse é um processo
irresistível e a forma mais familiar aos humanos é a do rosto, ligada aos nossos primeiros
contatos com o mundo externo.
Os humanos, como outros primatas, são muito agregadores. Gostamos
da companhia uns dos outros. Somos mamíferos, e o cuidado dos pais
com o jovem é essencial para a continuação das linhas hereditárias. Os
pais sorriem para a criança, a criança retribui o sorriso, e com isso uma
ligação é forjada ou reforçada. Assim que o bebê consegue ver, ele
reconhece faces, e sabemos agora que essa habilidade está programada
em nossos cérebros (SAGAN, 1995, p.46).
Da habilidade cerebral de reconhecimento de padrões, segundo o autor, surge um efeito
colateral: o mecanismo é tão eficiente “que às vezes vemos rostos onde não existem nenhum.
Reunimos pedaços desconectados de luz e sombra, e, inconscientemente, tentamos ver um
32
rosto” (SAGAN, 1995, p.46). Ou, em outras palavras, a partir do que não está definido de
maneira suficiente para o reconhecimento, formamos o que nos é mais familiar: rostos.
Klaus Conrad, em 1958, propôs o termo Apofenia (do grego apo, longe de, e phaenein,
mostrar) para descrever o fenômeno cognitivo de percepção de padrões ou conexões em dados
aleatórios. Como um tipo de Apofenia, a percepção de imagens ou sons específicos em
estímulos aleatórios é chamada de Pareidolia (do grego para, ao lado, com, e eidōlon,
diminutivo de eidos, imagem). Estudos recentes sobre Pareidolia são desenvolvidos em
diferentes partes do mundo, a partir de linhas de pesquisas distintas, mas que guardam uma
conexão com os estudos anteriores.
Dr. Kang Lee9, da University of Toronto, Canadá, mapeou a atividade cerebral durante
o processo de reconhecimento e descobriu que são ativadas as áreas de nível superior de
pensamento, relativas a planejamento e memória, especialmente a área facial fusiforme direita -
a parte do cérebro que responde a rostos reais, o que pode refletir na sensação de que estamos
olhando para um pensamento real e sentindo mesmo isso. Ou seja, os rostos vistos, por
Pareidolia, onde não estão naturalmente, produzem as mesmas reações subconscientes de
quando olhamos para uma pessoa real, aumentando a sensação de realidade desses rostos. Uma
das experiências consistiu em mostrar padrões de cinza semelhantes à estática de tv e os
participantes relataram ter visto uma pessoa na maior parte do tempo. Como explicação, Lee
afirma que “a retina registra uma imagem imperfeita e confusa que precisa ser arrumada pelo
cérebro”. A essa arrumação, o pesquisador denomina de "topdow processing", que poderia ser
traduzido como processo de varredura (BBC, 2015).
Dr. Tapani Riekki10 e equipe, da Universidade de Helsinki, na Finlândia, descobriram
que as pessoas religiosas são mais propensas a ver rostos em fotografias ambíguas do que ateus,
o que pode estar relacionado com os padrões memorizados e as nossas expectativas sobre o que
estamos vendo. Dra. Sonja Windhager11, da Universidade de Viena, na Áustria, realizou um
estudo sobre a tendência ocidental de ver rostos nas frentes de carros. Para isso, viajou à Etiópia
rural para descobrir se, lá, as pessoas veem da mesma maneira, hipótese que foi comprovada. O
estudo considerou ainda características específicas dos carros atribuídas a gêneros masculino e
feminino ou a percepção de jovialidade, sublinhando a forma como o cérebro está preparado
para ler informações biológicas básicas, como idade ou sexo de qualquer coisa que lembra
9 Artigos sobre as pesquisas desenvolvidas no laboratório de Dr. Lee podem ser acessadas gratuitamente pelo
http://www.kangleelab.com/Publications.html 10 As pesquisas realizadas pela equipe estão disponíveis gratuitamente em artigos no http://www.researchgate.net/
profile/Tapani_Riekk. 11 Alguns artigos da dra. Windhager possuem acesso gratuito no http://www.anthropology.at/people/swindhager.
33
vagamente um rosto. Outros estudos da doutora apontam a preferência por formas nos carros e
afetaram o design nas fábricas como estratégia para aumentar as vendas (BBC, 2015).
A Pareidolia auxilia os membros da Sociedade dos Céticos a explicar fenômenos
paranormais, por exemplo. Para o psicólogo norte-americano, diretor da Sociedade e editor da
revista Skeptik, dr. Michael Shermer12, muitos dos fenômenos visuais, aparentemente de ordem
paranormal ou extraterrena, estão relacionados com um nível simples de compreensão dos
envolvidos, ligado ao nosso repertório e crenças. A explicação, um pouco mais complexa, vem
da tendência em ver rostos, mesmo quando ninguém nos estimula ou induz a isso. “Se eu não
dissesse a vocês o que enxergar, ainda sim veriam o rosto, porque fomos programados pela
evolução para enxergar rostos. Rostos são importantes socialmente para nós” (TED, 2015). O
pesquisador considera que, quando há o estímulo ou indução, não há erro na interpretação da
imagem: todos veem o que se pretende que seja visto. Isso leva a pensar que, a não ser que
existam problemas nas nossas funções cognitivas, é esperado que vejamos rostos em tudo e que,
baseados no nosso repertório de padrões memorizados e crenças, vemos o que queremos ver.
Se compararmos essas conclusões com os estudos de dr. Lee, não apenas vemos o que
queremos, como acreditamos que o que estamos vendo é real. Se temos uma ligação forte com o
sagrado, figuras representativas de Deus, Jesus Cristo, santos, e histórias de aparições fazem
parte de nosso repertório e, conforme as pesquisas de dr. Riekki, aumentam a tendência em ver
rostos em imagens ambíguas. O que leva a pensar que o padre Reginaldo Manzotti tem razão,
quando acredita que os motivos para a interpretação de Fernanda sobre o fenômeno visual
presente na selfie como sendo a figura de Jesus Cristo, estão relacionados com a sensibilidade da
atriz ao sagrado. A partir das experiências realizadas pela dra. Windhager e pelo dr. Shermer,
podemos reafirmar que a tendência em ver rostos é universal, independente do lugar ou
nacionalidade dos indivíduos envolvidos no fenômeno. No caso do post de Fernanda Souza
essas marcas foram bem definidas e analisadas pelo perito dr. Molina, para derrubar a crença de
que o fenômeno era sobrenatural. Não só tendemos a perceber algo específico, familiar (não
necessariamente rostos, mas formas conhecidas), em marcas aleatórias, como atribuímos sentido
a esse percebido. E a construção de sentido está relacionada com nosso repertório de padrões
memorizados, sejam eles ligados, por exemplo, à religiosidade ou a questões culturais de
gênero, entre inúmeros outros padrões.
Se não conseguimos ver, nem por indução, o que temos tendência universal e natural
para ver, podemos pensar que ou existem problemas de cognição, ou a imagem padrão a qual os
12 Dr. Shermer também disponibiliza artigos gratuitos pelo http://www.michaelshermer.com/category/essays/.
34
outros estão remetendo os estímulos aleatórios não faz parte do nosso repertório visual ou não
atribuímos importância a ela em nosso repertório cultural (usando os termos do padre, não
somos sensíveis a esse padrão cultural). Isso leva a considerar que todos nós estamos sujeitos
aos mesmos mecanismos de percepção e representação visuais para estabelecer significados.
Mas como se formam os padrões em nossa memória? De que maneira os estímulos visuais são
percebidos por nossa retina e representados em nosso cérebro no processo de significação, para
que dados aleatórios sejam interpretados como conhecidos? Em busca dessas respostas, dois
autores, Justo Villafañe e Norberto Mínguez (2002, 2000), ao estabelecer a Teoria Geral da
Imagem como modelo para análise do discurso visual, encontraram nas ideias da Gestalt,
originadas entre 1930 e 1940, as bases para elucidar o problema que até hoje confunde e
provoca discussões.
Gestalt explica
A Teoria Geral da Imagem, de Villafañe e Mínguez (2002, 2000), compreende o
funcionamento e comportamento cerebrais no momento da produção e recepção de imagens a
partir dos principais conceitos gestálticos, para explicar os efeitos de sentido produzidos, seja
por elementos próprios da imagem, seja pelos receptores no processo de significação. Para os
autores, a vertente psicofísica deixa à margem, no objeto de estudo, a via cerebral da percepção,
ou seja, os mecanismos internos do processo perceptivo, depois da representação retiniana dos
estímulos; a vertente neurofisiológica estuda esses mecanismos sob o ponto de vista funcional,
com aspectos válidos, mas somente a Gestalt apresenta o ponto de vista fenomenológico do
processo.
Os estudos gestálticos partem da premissa de Von Ehrenfels (1890) de que a ideia do
todo está acima das partes de um estímulo e estabelecem alguns princípios básicos, relacionados
entre si, a que todos estamos submetidos no processo de percepção e representação de uma
imagem, dentre eles: o isomorfismo, a pregnância e o campo. Melhor dizendo, todos nós vemos
segundo esses princípios. A Fernanda Souza, o Thiaguinho, a Angélica, o Luciano Huck, seus
fãs e seguidores no Instagram, o público em geral, o perito dr. Ricardo Molina, o padre
Reginaldo Manzotti, eu, você, crianças, jovens adultos e idosos, desde que dotados do sentido da
visão e sem problemas de saúde nas funções cognitivas, vemos do mesmo jeito. O que pode
variar é o repertório de padrões memorizados.
35
Em linhas gerais, o isomorfismo está associado à ideia de contorno e é descrito
(KÖHLER, 1972; BORING, 1942) como a relação correspondente entre a realidade e a
experiência de realidade, o estímulo e o padrão memorizado, baseado nas características
estruturais do objeto, considerando que todas as partes do objeto estão relacionadas e possuem a
mesma forma (Gestalt). Nosso cérebro faz uma equivalência estrutural entre “o objeto
reconhecido como tal e a estrutura correspondente ao conceito genérico de classe a que esse
objeto pertence” (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002, p.91-92).
A pregnância está relacionada com a qualidade que rege a organização do campo
perceptivo (WERTHEIMER, 1960). O observador estabelece hierarquias na imagem, a partir
dos contornos internos do objeto e externos do fundo, levando à predominância de uma
organização perceptiva. Como na realidade, as formas estão amalgamadas, é necessário um
fechamento, um complemento ou semelhança entre o estímulo real e o conceito genérico
(padrão memorizado), o que leva à forma do estímulo a adquirir pregnância. Trata-se da "força
da estrutura do estímulo, capaz de impor uma determinada organização perceptiva e de
constituir fenomenicamente um objeto visual" (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002, p.94).
Derivados da pregnância, dois tipos de leis regem a organização perceptiva, definidas
por Wertheimer (1960) como intrínsecas e extrínsecas. Esse último tipo, as leis extrínsecas, são
relativas ao conjunto de normas mais próximas das leis de aprendizagem, do que da organização
perceptiva. Estão ligadas às experiências passadas e à formação de padrões a partir dessas
experiências e do aprendizado (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002). É algo que varia de pessoa
para pessoa e determina o repertório de padrões memorizados. O que pode explicar porque,
quem possui, em seu repertório, ícones religiosos, tenha tendência maior em associá-los ao
reconhecimento desses ícones em imagens que reúnem estímulos aleatórios que possam ser
equivalentes, ou, em termos teóricos, isomórficos.
As leis intrínsecas estão relacionadas com aspectos mais perceptivos, sobre a
organização estrutural do estímulo, do que de experiência e aprendizagem e baseiam-se no
princípio de simplicidade. São elas: lei do fechamento, lei da articulação figura-fundo ou
mascaramento, lei da boa continuidade e direção, lei da proximidade e lei da semelhança. A lei
do fechamento determina que, no processo de percepção, toda figura incompleta será acabada
pelo observador, a partir do trabalho perceptivo, para maior simplicidade e estabilidade. A lei da
articulação figura-fundo ou mascaramento demonstra que uma zona se impõe como figura
(endótópica) e outra como fundo (exotópica). Segundo Kanizsa (1986), a função de figura,
frente a um fundo, depende da articulação de fatores como tamanho relativo, relações
36
topológicas, tipos de contornos (convexos e simétricos, frente a côncavos e assimétricos) e
orientações horizontal e vertical. A partir dessa articulação, uma figura mais simples pode ser
mascarada em uma estrutura complexa, perdendo sua identidade e deixando de ser reconhecida,
como se fosse incluída pela outra (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002).
A lei da boa continuidade e direção, indica que toda configuração visual, formada por
elementos contínuos e ininterruptos, é mais estável e percebida mais facilmente como
independente. Segundo a lei da proximidade, os estímulos próximos são percebidos como
integrantes de uma mesma figura. Pela lei da semelhança, mantida a paridade das condições que
intervêm na segregação, os elementos que possuem semelhança (por forma, cor, localização...)
tendem a se organizar como constitutivos de uma mesma figura (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ,
2002).
Já o último princípio, o campo, diz respeito ao que se registra nas retinas (campo
visual) e onde culmina a percepção visual, com a representação do estímulo (campo cerebral).
Esses dois campos são diferentes entre si, mas isomórficos, graças a um trabalho perceptivo que
tem diferentes manifestações, chamadas processos de campo e relacionados com as leis
intrínsecas da pregnância, como o fechamento de figuras geométricas, a regularização de um
estímulo e o agrupamento de estímulos semelhantes. Os processos de campo “fazem com que os
objetos alcancem uma Gestalt e sejam conceituados” (VILLAFAÑE, 2000, p.58). É nesse ponto
que se formam os conceitos genéricos sobre um objeto. A diferença entre o estímulo (parecido
com um rosto) e a experiência (um rosto) demonstra que "foi produzido um trabalho perceptivo
aplicado a corrigir o estímulo original" (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002, p.93).
É o processo de campo, por exemplo, que faz com que fechemos mentalmente um
círculo, cuja linha não estava fechada, para reconhecê-lo como círculo. Esse trabalho perceptivo
ocorre porque o campo cerebral é dinâmico, devido às forças de atração, coesão, entre processos
semelhantes. Osgood (1973) descreve que as forças serão maiores, quanto maiores forem as
semelhanças qualitativa e de intensidade entre os processos desenvolvidos no campo visual e
quanto menores forem a distância entre os processos e o intervalo entre eles.
Baseada nesses princípios gestálticos, a Teoria Geral da Imagem considera que a
organização perceptiva está relacionada com princípios de simplicidade e economia, e de
composição normativa dos elementos da imagem. Toda imagem guarda um grau de
correspondência com a realidade que modeliza e quanto mais simples sua estrutura melhor será
a compreensão, a retenção e a lembrança da imagem na mente, pois remeterá às formas simples
dos padrões memorizados. Como preconizou Arnheim (1979, p.70), “todo esquema estimulador
37
tende a ser visto de maneira tal que a estrutura resultante seja tão simples quanto permitam as
condições dadas”. A partir desses princípios, podemos afirmar que a tendência sempre é de
simplificar a imagem vista. Para o reconhecimento de uma imagem, recorremos às formas
simples, das quais derivam todas as outras.
As marcas, traços ou contornos mais simples e próximos uns dos outros, são agrupados
e conceituados no processo de reconhecimento de uma imagem. Recorrer à forma de um rosto,
uma das primeiras formas conceituadas e transformadas em padrões memorizados no nosso
desenvolvimento, é o arranjo mais simples que nosso cérebro encontra para estabelecer o
reconhecimento de estímulos aleatórios. Foi o que aconteceu com Fernanda Souza diante da
selfie postada no Instragam. É o que acontece todos os dias com aqueles que são dotados do
sentido da visão e de funções cognitivas saudáveis.
Considerações
Fenômenos visuais de diferentes naturezas são explicados pela ciência, mas o
conhecimento científico nem sempre está acessível ao público em geral. Inúmeros podem ser os
motivos: falta de divulgação, desuso, atração por outras linhas de pesquisa... O fato é que o
desconhecimento ainda gera discussões e suposições sobre fenômenos já descritos, ou gera
novas descrições sem base nas antecessoras, o que provoca a sensação de que, se ainda há
dúvidas, pouco adiantou tê-los estudado. O caso do post da atriz Fernanda Souza, à luz das
teorias, é um exemplo de como a ciência pode auxiliar a explicar o que muitos desconhecem.
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REVISTA QUEM. Exclusivo! Veja fotos inéditas do casamento de Fernanda Souza e
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WERTHEIMER, Max. Princípios de organización perceptual. Buenos Aires: Tres, 1960.
A fotografia vernacular digital e a estetização
da vida cotidiana
Manuela de Mattos Salazar1
RESUMO
Neste trabalho, evidencia-se um quadro conceitual em que a prática vernacular da fotografia
digital contemporânea tangencia noções sobre estetização da vida cotidiana. Pesquisam-se
aqui não somente rupturas, mas deslocamentos na esfera do sensível que acendem as fagulhas
das transformações estéticas vislumbradas hoje na produção fotográfica vernacular,
principalmente no aplicativo social Instagram. A ênfase num olhar estético sobre o qualquer
um, sobre o cotidiano, a valorização do detalhe no universo de consumo estetizado e as
conseqüentes mudanças na prática fotográfica são alguns dos pontos aqui abordados.
40
Palavras-chave: Fotografia Vernacular; Estetização; Cotidiano; Regime Estético.
INTRODUÇÃO: Por uma ecologia visual
Na obra Other People’s Photographs, o artista visual alemão Joachim Schmid tenta
domar o aparente caos da fotografia vernacular2
digital contemporânea. Em obras anteriores,
Schmid trabalhava com found photography, fazendo uma curadoria de fotografias
encontradas de autores desconhecidos. Sua busca precisou tomar um novo rumo com a
diminuição da impressão de fotografias, o conseqüente declínio das imagens que encontrava,
e uma vontade de olhar menos para o passado e mais para o contemporâneo. De 2008 a 2011,
Schmid iniciou um trabalho de caça ao tesouro na rede social de imagens Flickr, fazendo
curadoria e edição de fotografias alheias encontradas na página de mais atuais da rede.
Durante a busca, ele enxergou categorias temáticas que se repetiam em diversos
momentos e assim compôs uma biblioteca de 96 livros sobre os mais diversos temas, apenas
com imagens apropriadas da rede. Há livros com imagens sobre “refeições de aviões”,
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco,
especialista em jornalismo digital pela Aeso – Faculdades Integradas Barros Melo, e graduada em Comunicação
Social – Jornalismo na Universidade Federal do Paraná. Email: [email protected]
2
Segundo Batchen (2000) é a fotografia excluída da história da fotografia: a fotografia comum, feita ou
comprada por pessoas comuns, de 1839 até hoje. “A fotografia que preocupa o lar e o coração, mas raramente o
museu ou a academia” (BATCHEN, 2000, p. 57, tradução nossa). São imagens pouco estudadas, o que faz delas
o parergon da fotografia, a parte de sua história empurrada para as margens. “Como um parergon, a fotografia
vernacular é a presença faltante que determina a identidade histórica e física de seu meio; é o que decide o que
não é a fotografia adequada” (BATCHEN, 2000, p. 59, tradução nossa2).
41
“mãos”, “quartos de hotéis”, “objetos no espelho”, “pizza”, ou mais comuns como “self”,
“comida”, ou curiosos, como “trópico de capricórnio” (fig 1), com 32 páginas de imagens de
pessoas posando ao lado de placas que indicam por onde passa a linha imaginária.
Figura 1: Página do livro “Tropic of Capricorn” de Joachim Schmid
Fonte: Other People’s Photograph by Joachim Schmid - https://otherpeoplesphotographs.wordpress.com
As categorias se assemelham às hashtags do Instagram, ferramenta de indexação de
conteúdo que permite visualizar postagens mais atuais sobre determinado assunto em redes
sociais. Se realizada no Instagram, a pesquisa visual de Schmid poderia ter sido diferente, já
que para acessar determinada categoria é preciso buscá-la de maneira voluntária,
contrariando, em parte, a lógica de acaso da busca no Flickr. Ao digitar #tropicofcarpricorn
(fig 2) no Instagram, por exemplo, encontram-se mais de 2 mil imagens semelhantes às do
livro de Schmid.
Figura 2: #TROPICOFCAPRICORN no Instagram
Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015
A partir da escolha de temas conectados diretamente à vivência cotidiana, o trabalho
de Schmid reflete a onda de transformação vivida pela fotografia vernacular hoje, onda essa
que se fortalece com o advento do Instagram. Pesquisando o Flickr, Susan Murray (2012),
detecta o surgimento de uma “estética do cotidiano” na prática vernacular. Para ela, a
fotografia hoje é menos uma embalsamadora do tempo, conforme a visão de Bazin, e mais
algo transitório, maleável, imediato, e efêmero, a partir da lógica do feed — o carrossel de
imagens das redes sociais, em que a cada segundo, novos conteúdos substituem os “velhos”,
compartilhados segundos antes.
Ao entesourar e justapor imagens encontradas, Schmid não nos mostra apenas uma
repetição temática ou essa ênfase no cotidiano, mas demonstra também como a fotografia
vernacular digital tem acentuado caráter estético. O que antes era fruto do acaso, hoje parece
advir de um olhar treinado pelo bombardeio imagético. No Instagram, cuja principal premissa
é o compartilhamento de imagens previamente editadas, filtradas, coloridas, transformadas de
acordo com os desejos do usuário, essa preocupação estética é esperada, automatizada,
mandatória.
O momento que se ensaia hoje na fotografia vernacular digital difere de anteriores não
de maneira essencial, e sim de modo particular, como uma transição para um futuro ainda
pouco identificável, mas suas principais características – a fugacidade, a transformação, o
caos, a rapidez, a desmemória, o consumo – ainda se conectam de maneira enfática e
acentuada à ideia de modernidade. Neste artigo, analisaremos conceitos chave para
pluralizarmos esta questão.
O REGIME ESTÉTICO
Para Rancière (2009), dentro da tradição ocidental da arte temos três grandes regimes
de identificação: o primeiro, regime ético, apresenta uma arte subsumida na questão das
imagens, ligada a questões da divindade, do significado; em seguida, temos o regime poético
ou representativo, que enfatiza a arte na dicotomia poiésis/mímesis. Nesse momento, surge a
preocupação com os modos de fazer e de apreciar a arte. A seguir vem o regime estético, em
que a identificação da arte não se faz mais por distinção de maneiras de fazer, mas do modo
de ser sensível próprio aos produtos da arte.
O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e
desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas,
gêneros e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barreira mimética que distinguia as
maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem
das ocupações sociais. Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destrói ao
mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a
autonomia da arte e a identidade de suas formas com as formas pelas quais a vida se
forma a si mesma. (RANCIÈRE, 2009, p. 33-34)
Deste regime, o autor destaca o surgimento das artes mecânicas no século XIX, que
promove uma modificação de paradigma na arte para uma nova relação temática: a
possibilidade de dar visibilidade ao indivíduo. No regime estético, o anônimo não só pode se
tornar arte, mas também possui uma beleza específica. “A revolução estética é antes de tudo a
glória do qualquer um” (Idem, p. 48). Esta libertação temática das artes visuais possibilita o
entendimento da fotografia como um modo legítimo de fazer estético:
Para que um dado modo de fazer técnico – um uso das palavras ou da câmera – seja
qualificado como pertencendo à arte, é preciso primeiramente que seu tema o seja. A
fotografia não se constituiu como arte em razão de sua natureza técnica. (...)
Também não foi imitando as maneiras da arte que a fotografia tornou-se arte.
Benjamin mostra-o bem a propósito de David Octavius Hill: é através da pequena
pescadora anônima de New Haven, e não de suas grandes composições picturais,
que ele faz a fotografia entrar no mundo da arte. (Idem, p. 47-48)
Benjamin (2012, escrito em 1931) chama atenção para algo de “estranho e de novo”
na fotografia, algo que se encontra preservado na vendedora de peixes de New Haven,
fotografada entre 1843 e 1848 por David Octavius Hill (fig 3): em seu discreto olhar para o
chão, no seu recato “tão displicente e tão sedutor”.
Figura 3: Jeanie Wilson, pescadora, David Octavius Hill e Robert Adamson
Fonte: National Portrait Gallery, Londres - http://www.npg.org.uk
Nele, “preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que
não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que
também aqui ainda é real, e que não quer reduzir-se totalmente à arte” (BENJAMIN, 2012, p.
100). Nós a observamos, buscando a “pequena centelha do acaso”, aquela marca do tempo e
da realidade que chamuscou esse retrato há mais de um século. Queremos “encontrar o lugar
imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje no “ter sido assim” desses minutos únicos,
há muito extintos, e com tanta eloqüência que, olhando para trás, podemos descobri-lo”
(Idem, p. 100).
A modernidade surge no período em que a literatura, as artes visuais e a ciência
passam à visão dos grandes acontecimentos para “identificar os sintomas de uma época,
sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas
camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios” (RANCIÈRE, 2009,
p.49). Para Benjamin (2012), a fotografia é capaz de nos revelar o “inconsciente ótico”, nos
mostrar o mundo de imagens que habita as coisas mais minúsculas no correr da duração, e, e
que com ela, tornam-se grandes, formuláveis.
É como na fotografia favorita de Alfred Stieglitz, da mulher de um pescador holandês,
feita em 1894, em Katwyk (fig 4). Ela se dedica a reparar uma rede: “a atenuação dos
contornos ao redor da mulher sentada de perfil se justifica pela inquietude que realça a
atenção dada a esse trabalho, e o universo inteiro de vida e de pensamento que nele se
concentra nele” (RANCIÈRE, 2011, p. 55, tradução nossa3). Para Stieglitz, a fotografia
expressa a vida da jovem holandesa: em cada ponto que ela conserta da rede de pesca se
revela o rudimento da própria existência. Como definiu o crítico Paul Rosenfeld, na ocasião
de uma exposição em 1921, para Stieglitz não há no mundo qualquer objeto que não seja de
extrema importância metafísica. “Os mais humildes objetos parecem ter uma vida mágica”
(In: RANCIÈRE, 2011, p. 241).
3
No original: “(…) la atenuación de los contornos alrededor de la mujer sentada de perfil se justifica por la
inquietud de pone de relieve la atención prestada al trabajo y el universo entero de vida y pensamiento que se
concentra en el”
Figura 4: Mending Nets, Alfred Stieglitz
Fonte: Photoseed - http://photoseed.com/collection/single/netzflickerin/
Para Rancière (2011), ao abordar a “prosa do mundo” a arte se redefine por esses
mergulhos, trocando “as idealidades da história da forma e do quadro, pelas do movimento da
luz e do olhar” (Idem, p. 11, tradução nossa4). Assim, constrói seu próprio domínio, diluindo
qualquer especificidade sobre o que é arte, e borrando as fronteiras que a separavam do
mundo cotidiano, movimento esse que é próprio do regime estético.
Este conceito nos parece, então, uma ferramenta analítica para melhor nos
aproximarmos do objeto da fotografia vernacular digital contemporânea, um tipo de fazer
fotográfico que enfatiza o mundano, o banal, o irrisório, o cotidiano, o qualquer um. Assim
como Murray detecta sobre o Flickr em 2008, um passeio pelo Instagram revela que um dos
tipos mais comuns de fotografia nesta rede é a do detalhe, do miúdo. Juntas, por exemplo, as
hashtags #detail (detalhe) e #details compõem um universo de quase seis milhões de imagens
de todas formas de detalhe da vivência cotidiana dos usuários da rede (fig 5). Em português,
temos mais de meio milhão de imagens marcadas com #detalhe ou #detalhes, além de 12 mil
dedicadas à exploração do olhar urbano, marcada com a hashtag #detalhesdacidade (fig 6)
4
No original: “(…) las idealidades de la historia, la forma y el cuadro por las del movimiento, la luz y la mirada
(…)
Figura 5: #Detail no Instagram
Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015
Figura 6: #Detalhesdacidade no Instagram
Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015
Uma fotografia que promove e estimula um olhar estetizado sobre a vida de um
indivíduo comum só nos parece possível na arte desobrigada de regras e hierarquias,
autônoma e múltipla. A difusão desse olhar estetizante foi um processo lento e gradual, que
hoje ultrapassou os limites do universo artístico para chegar aos mínimos detalhes da vivência
cotidiana. Fazendo esta conexão com as ideias de Rancière, não queremos afirmar que todos
os usuários do Instagram têm a pretensão de fazer arte, ou que todas as imagens do Instagram
são artísticas, e sim que as fotos por eles produzidas são imagens estetizadas, frutos da
experiência sensível desses indivíduos no mundo, só possíveis devido à crescente valorização
estética do detalhe e da vida cotidiana.
A ESTETIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA
Para Featherstone (1995), há usualmente três sentidos concebidos para explicar a
questão da estetização da vida cotidiana. Primeiro, o conceito pode designar o apagamento
das fronteiras entre arte e cotidiano promovido pelas vanguardas no início do século 20. Há
aqui um movimento duplo: um desafio de tentar dissimular a aura e questionar a posição da
obra de arte no espaço do museu e da academia, e uma suposição “de que a arte pode estar em
qualquer lugar ou em qualquer coisa” (FEATHERSTONE, 1995, p. 99).
Marcel Duchamp é um exemplo de artista que dialoga com essa maneira, trazendo
objetos banais para as salas de exposição, ready-mades, como A fonte (1917). Um mictório
branco assinado sob o pseudônimo de r.mutt. foi inicialmente submetido à exposição da
Society of Independent Arts e Nova York, e negado, mesmo que a aceitação fosse apenas
mediante o pagamento de taxa. Do original resta apenas uma fotografia (fig 7), feita por
Alfred Stieglitz. Hoje, diversas cópias autorizadas estão espalhadas em museus pelo mundo.
Figura 7: “A fonte”, 1917, Marcel Duchamp. Fotografia: Alfred Stieglitz
Fonte: Cabinet Magazine - http:// www.cabinetmagazine.org/issues/27/duchamp.php
Pensando na fotografia praticada no Instagram, parece haver um elemento
duchampiano na maneira de estetizar o cotidiano, na forma de olhar o mundo. O usuário
@widestreamfilms (o nome é sempre marcado com o símbolo arroba), ao enxergar um vaso
sanitário encostado no meio fio, não hesitou em o clicar com seu celular e compartilhar a
imagem (fig 8) com a seguinte legenda “Meu vizinho Duchamp está se mudando... #duchamp
#beauty #truth #VSCOcam #london #kilburn #widestramfilms”. Quase cem anos depois de A
fonte, encontrar beleza num objeto comum não é mais algo chocante ou ofensivo, é algo
compartilhável.
Figura 8: #Duchamp: foto de @widestreamfilms
Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015
Num segundo sentido, estetização da vida cotidiana designa projetos de transformar a
a vida em obra de arte. Há tempos, artistas nutrem este fascínio, cujo início podemos remeter
a era dos dândi no século XIX. A busca por novos gostos e sensações estéticas estão no centro
dessa “filosofia” de vida. Featherstone (1995) associa o duplo foco dessa lógica – a
necessidade de dar à vida uma forma que proporcione prazer estético, e uma vida de consumo
estético – ao desenvolvimento do consumo de massa, à construção de estilos de vida distintos.
Na fotografia vernacular digital contemporânea, a ênfase no “eu” é notável, seja na
sua prática mais comum hoje, o selfie, ou na exibição de detalhes corriqueiros do dia a dia,
como por exemplo, o que se veste, com a popular hashtag #lookdodia (fig 10), em que
usuários e usuárias se fotografam para mostrar quais roupas escolheram para determinada
ocasião. Bauman (2008) afirma que as pessoas na era do consumo são estimuladas a
promover uma mercadoria atraente e desejável, utilizando-se dos melhores recursos para
aumentar o valor do produto que vendem no mercado: elas mesmas.
Figura 10: Perfil do usuário @felipeveloso
Fonte: Instagram - captado em outubro de 2014, pelo aplicativo Flow for Instagram.
Num terceiro sentido, a estetização da vida cotidiana “designa o fluxo veloz de signos
e imagens que saturam a trama da vida cotidiana na sociedade contemporânea”
(FEATHERSTONE, 1995, p. 100). Essa concentração de imagens nos empurra para uma
sociedade nova, um mundo simulacional, no qual Baudrillard enxerga a abolição entre a
distinção do que é realidade e do que é imagem, ou seja, a vida cotidiana absolutamente
estetizada. Simulations (1983) parece descrever a era da internet e das redes sociais, em que
contradições entre real e imaginário são difusas. O irreal não se localiza mais nos sonhos ou
nas fantasias: ele tem uma semelhança alucinatória com o real. “No limite desse processo de
reprodutibilidade, o real não é somente o que pode ser reproduzido, mas aquilo que está
sempre já reproduzido. O hiper-real.” (BAUDRILLARD, 1983, p. 146, tradução nossa5).
Algo que transcende a representação, é totalmente simulação, no mundo codificado.
O segredo do surrealismo já era que a realidade mais banal podia se tornar surreal,
mas somente em certos momentos privilegiados que não obstante estão conectados
com a arte e com o imaginário. Hoje, é a realidade cotidiana em sua totalidade –
política, social, histórica, e econômica – que de agora em diante incorporam a
dimensão simulatória do hiper-realismo. Por toda parte já vivemos numa alucinação
estética da realidade. (Idem, p. 147, tradução nossa6)
No mundo do hiper-real, a fascinação estética está em todos os cantos. A arte hoje está
em “reprodução indefinida”: tudo que se duplica, até a realidade mais banal, é identificado
sob o signo da arte, se torna estético. Assim, os conceitos de Baudrillard nos fazem refletir
sobre as “simulações” que a fotografia vernacular digital promove sobre a realidade. A
capacidade da fotografia de representar o real e o tempo passado de maneira verossímil é uma
crença comum entre fotógrafos. O “isso-foi” barthesiano não é contestado. Mas hoje, com a
fotografia digital, as possibilidades de transformação da imagem são tão simples quanto
automatizadas. No Instagram, transformar, filtrar, colorir, dar outro aspecto, estetizar a
imagem é algo estimulado, praticamente a essência do aplicativo. É o “isso-foi” editado.
Nessa hiper-realidade, parece que não se espera mais que a fotografia reproduza o real com
perfeição: já se espera o real filtrado, o real transformado, o real não mais real: o real
estetizado.
A ERA TRANSESTÉTICA
Para Lipovetsky e Serroy (2015), na era contemporânea, os sistemas de produção, de
distribuição e de consumo estão “impregnados, penetrados, remodelados por operações de
natureza fundamentalmente estética” (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p. 13).
Se é verdade que o capitalismo engendra um mundo “inabitável” ou “o pior dos
mundos possível”, ele também está na origem de uma verdadeira economia estética
e de uma estetização da vida cotidiana: em toda parte o real se constrói como uma
imagem, integrando nesta uma dimensão estético-emocional que se tornou central na
concorrência que as marcas travam entre si. (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p.
14)
5
No original: “At the limit of this process of reproductibility, the real is not only what can be reproduced, but
that which is always already reproduced. The hyperreal.” 6
No original: “Surrealism's secret already was that the most banal reality could become surreal, but only in
certain privileged moments that nevertheless are still connected with art and the imaginary. Today it is quotidian
reality in its entirety-political, social, historical and economic- that from now on incorporates the simulatory
dimension of hyperrealism.”
Esse processo de estilização da vida e do mundo tem raízes muito mais antigas do que
a modernidade. Os autores o dividem em quatro modelos; o primeiro deles, a artealização
ritual, que vigorou por milênios, quando as artes não possuíam intenção estética tendo em
vista o consumo “desinteressado” e sim uma finalidade ritual. Na estetização aristocrática,
que perdura da Idade Média ao século XVIII, o artista se separa do artesão e surge a ideia do
poder criador, do artista genial que assina suas obras. Neste período, acontece a criação de um
conceito unitário de arte no seu sentido moderno.
A partir do século 18, temos a moderna estetização do mundo, que liberta a arte de
seus poderes religiosos ou nobiliárquicos, e adquire um grau de autonomia, com instâncias de
consagração internas. A arte se torna o caminho da idealidade da vida, nada pode ser mais
precioso ou mais sublime: é o caminho para se superar os problemas do mundo e da própria
existência. Para afirmar sua autonomia, os artistas da modernidade se apropriam de elementos
do real e da vida comum para fins puramente estéticos. Estilizam tudo: o medíocre, o trivial, o
indigno, o espaço urbano. Inicia-se aqui a era das artes reprodutíveis, das artes de massa,
ampliando o consumo estético para a escala da maioria.
Há ainda uma quarta e atual fase: a era transestética. Nela, “as vanguardas são
integradas na ordem econômica, aceitas, procuradas, sustentadas pelas instituições oficiais”
(Idem, p. 27). A arte, ou melhor, a hiperarte, encontra-se infiltrada em todos os cantos do
mundo, da indústria, do comércio e de nossa vida cotidiana. A hiperarte perde o caráter
sublime, não expressa mais a transcendência: funciona como uma estratégia de marketing,
para assegurar que os desejos sejam respondidos, para aumentar faturamentos. Os autores
falam de um hiperconsumo estético, ou seja, um consumo de sensações, de experiências
sensíveis, um consumo hedonista e emocional.
Os valores preconizados hoje por esse capitalismo do consumo – hedonismo, criação,
realização de si, autenticidade, busca por experiências – são justamente aqueles celebrados
por artistas boêmios do século XIX. Assim como os dândis e estetas, o capitalismo de hoje
prega antitradiconalismo, anticonvencionalismo, antiburguesismo, antipuritanismo, mas o faz
não por meio da negação da normatividade moral e religiosa, mas como um convite para
“aproveitar a vida” pela seleção de estilos e experiências dentro da oferta dos bens de
consumo.
A instantaneidade nominal do aplicativo Instagram demonstra de maneira
característica este hiperconsumo estético. O aplicativo agrega três grandes características do
contemporâneo: o individualismo, o exibicionismo e o voyeurismo. Em sua essência, existe a
13
necessidade de exibir constantemente estados emocionais, quase sempre positivos, através de
imagens, ou representações. A vivência de momentos de prazer é visível em qualquer visita
pelo feed do aplicativo, assim como a representação estetizada do banal, do cotidiano e até
mesmo do tédio. A fotografia digital vernacular hoje parece ligada a este consumo hedonista e
emocional da vida, de compartilhamento da experiência sensível, com a espera de aprovação
na forma de “likes”. “Com o incremento do consumo, somos testemunhas de uma vasta
estetização da percepção, da sensibilidade paisagística, de uma espécie de fetichismo e do
voyeurismo estético generalizo” (Idem, p. 31).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, buscamos olhar para o passado e para o presente, analisando três
momentos teóricos que contemplam mudanças na esfera do sensível, da modernidade até a
contemporaneidade. Em Rancière, abordamos o regime estético, a arte autônoma que se abre
ao surgimento das artes mecânicas com a valorização do indivíduo comum, do qualquer-um.
Esse momento é especialmente importante para a expansão do cotidiano como temática, para
o crescimento da importância do detalhe como uma forma de revelar os principais sintomas
de uma época, e para o apagamento das fronteiras entre arte e cotidiano. Ao olharmos para a
fotografia feita nessa época podemos vislumbrar os deslocamentos no entendimento estético
que proporcionam o gradual caminho que nos traz à fotografia feita hoje.
Com Baudrillard, mergulhamos num mundo onde a fascinação estética está por tudo.
No hiper-real, não há mais contradições entre o que é real e o que é imaginado. Os conceitos
do autor são especialmente importantes num momento em que a fotografia vernacular digital
é essencialmente editada, filtrada, reconfigurada, muito além da codificação inicial no sensor
da câmara fotográfica. É um real filtrado, um real já estético. Ou seja, no mundo hiper-real do
Instagram, são realmente difusas as fronteiras entre o que real, o imaginado, o desejado.
Por fim, Lipovetsky e Serroy nos transportam à era transestética, ao mundo da
hiperarte, uma arte não mais sublime ou transcendente, não mais restrita aos critérios de
consagração do meio artístico, ou restrita aos espaços de exibição. Uma arte não apenas feita
por artistas: “somos todos artistas”. Para os autores, é uma arte que é estratégia de marketing,
caminho para responder a desejos, aumentar faturamentos, uma arte para o mercado. No
mundo do Instagram, as imagens da hiperarte se espalham, se acumulam e criam um
emaranhado de visões de mundo, impactados pelo hiperconsumo, pelo fetichismo, pelo
voyuerismo, pelo individualismo.
Nosso viver cotidiano está artealizado, mas não parece promover uma sensação
harmônica, e sim sentimentos como o déjà vu, a padronagem e a estereotipia perceptíveis na
obra de Joachim Schmid. Viver em uma sociedade estetizada pode ser um problema quando a
vida real não corresponde às imagens de felicidade e beleza difundidas no cotidiano. Essa
contradição causa ranhuras na superfície do consumidor moderno, que podem trazer
sentimentos de ansiedade e solidão, num mundo acúmulo e excesso. Consumir e compartilhar
o cotidiano estetizado não significa exatamente viver uma vida mais bela. Mas significa o
que, então?
Referências
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. Observing by Watching: Joachim Schmid and the Art of Exchange, Aperture
Magazine 210, primavera 2013. Disponível em: http://www.aperture.org/blog/observing-by-
watching-joachim-schmid-and-the-art-of-exchange/, acessado em agosto de 2015.
BAUDRILLARD, Jean. Simulations. New York: Semiotext(e), 1983.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio
de Janeiro: Zahar, 2013.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Politica. São Paulo: Brasiliense, 2012, 8a
edição revista.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
FONTCUBERTA, Joan. A Câmera de Pandora, a fotografia depois da fotografia. São
Paulo: Editora G. Gili, 2012.
LIPOVESTKY, Gilles, SERROY, Jean. A estetização do mundo – Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MURRAY, S. Digital Images, Photo-Sharing, and Our Shifting Notions of Everyday
Aesthetics. IN: Journal of Visual Culture, v.7, 2008, p147-163.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org; Editora 34, 2009 (2
a edição).
. Aisthesis, Escenas del régimen estético del arte. Buenos Aires: Manantial, 2013.
SCHMID, Joachin. Other People’s Photographs. Berlin: 2008-2011. Disponível em http://schmid.wordpress.com/works/2008–2011-other-people’s-photographs/