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1 MANIFESTAÇÕES VISUAIS CONTEMPORÂNEAS Coordenação: Prof. Dr. Roberto Tietzmann ( [email protected]) MESA 1 A BUSCA POR UM CINEMA INTERATIVO EM 365 DAY PROJECT, DE JONAS MEKAS Autor: Rafael Rosinato Valles 1 GT Manifestações Visuais Contemporâneas Coordenador GT: Prof. Dr. Roberto Tietzmann RESUMO Este trabalho pretende refletir sobre como o cineasta Jonas Mekas elaborou a proposta de um cinema interativo através de 365 Day Project (2007) e como a questão tecnológica contribuiu neste processo. Partindo do ponto de que Mekas constrói a sua obra a partir de uma busca por dissensos (Rancière, 2012) dentro do âmbito da representação cinematográfica, 365 Day Project é tanto um novo passo na trajetória deste realizador lituano, como também uma possibilidade para o espectador estabelecer uma nova forma de interação com a obra em si. PALAVRAS CHAVE Comunicação; cinema; espectador; tecnologia; Jonas Mekas. No livro O espectador emancipado, o autor Jacques Rancière propõe analisar o que ele chama “política da estética; ou seja, um efeito, no campo político, das formas de estruturação da experiência sensível próprias a um regime da arte”. Rancière entende a política da estética enquanto as estratégias dos artistas que se propõem mudar os referenciais do que é visível e enunciável, mostrar o que não era visto, mostrar de outro jeito o que não era facilmente visto, correlacionar o que não 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS). Pesquisador, docente e documentarista. Bolsista CAPES. Email contato: [email protected]

A BUSCA POR UM CINEMA INTERATIVO EM 365 DAY PROJECT DE JONAS … · filme ainda mais antigo, como é o caso do pioneiro neste gênero, intitulado Kinoautomat, de Radúz Činčera,

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MANIFESTAÇÕES VISUAIS CONTEMPORÂNEAS Coordenação: Prof. Dr. Roberto Tietzmann ( [email protected])

MESA 1

A BUSCA POR UM CINEMA INTERATIVO EM 365 DAY

PROJECT,

DE JONAS MEKAS

Autor: Rafael Rosinato Valles1

GT Manifestações Visuais Contemporâneas

Coordenador GT: Prof. Dr. Roberto Tietzmann

RESUMO

Este trabalho pretende refletir sobre como o cineasta Jonas Mekas elaborou a proposta de um cinema interativo através de 365 Day Project (2007) e como a questão tecnológica contribuiu neste processo. Partindo do ponto de que Mekas constrói a sua obra a partir de uma busca por dissensos (Rancière, 2012) dentro do âmbito da representação cinematográfica, 365 Day Project é tanto um novo passo na trajetória deste realizador lituano, como também uma possibilidade para o espectador estabelecer uma nova forma de interação com a obra em si.

PALAVRAS CHAVE

Comunicação; cinema; espectador; tecnologia; Jonas Mekas.

No livro O espectador emancipado, o autor Jacques Rancière propõe analisar o que

ele chama “política da estética; ou seja, um efeito, no campo político, das formas de

estruturação da experiência sensível próprias a um regime da arte”. Rancière entende a

política da estética enquanto

as estratégias dos artistas que se propõem mudar os referenciais do

que é visível e enunciável, mostrar o que não era visto, mostrar de

outro jeito o que não era facilmente visto, correlacionar o que não

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS). Pesquisador, docente e documentarista. Bolsista CAPES. Email contato:

[email protected]

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estava correlacionado, com o objetivo de produzir rupturas no

tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos.

(RANCIÈRE, 2012: p.64)

Na essência deste campo mais amplo, encontra-se o que Rancière chama de

dissenso. O que está em funcionamento no dissenso são as dissociações que problematizam

o consenso: a ruptura de uma relação entre sentido e sentido, entre um mundo visível, um

mundo de afeição, um regime de interpretação e um espaço de possibilidades (RANCIÈRE,

2012: p. 67), em que “A ação artística identifica-se então com a produção de subversões

tópicas e simbólicas do sistema” (RANCIÈRE, 2012: p.71). Ainda segundo o autor, “dissenso

não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade”.

Ao termos em conta essas definições, podemos afirmar que Jonas Mekas é um

cineasta que sempre encontrou no dissenso uma essência na sua obra. Sobrevivente dos

campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, exilado nos Estados Unidos há mais

de 60 anos, este realizador lituano sempre encontrou no cinema independente

underground uma forma de pensar outro tipo de cinema, muito distante dos estúdios de

Hollywood. Com seus filmes-diário sendo realizados a partir do registro de imagens

caseiras de celebrações familiares e do seu próprio cotidiano, Mekas é um entusiasta do

cinema amateur e das rupturas dentro de certos cânones cinematográficos. A partir de

relatos autobiográficos que abdicam de uma estrutura dramática ou de uma elaboração

narrativa clássica, com início, meio e fim, a sua obra propõe uma reflexão sobre a posição

do realizador diante do seu registro fílmico.

Mas, para Mekas, mostrava-se necessário realizar o dissenso não somente no

registro fílmico e nas estruturas narrativas e estéticas, mas também nas formas de

estruturação da experiência sensível a partir de outro integrante fundamental de todo este

processo: o espectador. Partidário de que o cinema não é somente entretenimento e deve

desafiar a posição do espectador, Mekas decidiu pensar o processo de recepção dos filmes.

Isso começou ainda nos anos1960, quando ele escrevia críticas cinematográficas nas

revistas Film Culture e Village Voice.

Mekas evidenciava, a cada artigo, que não bastava somente procurar uma forma de

se comunicar com o leitor através dos seus textos. Era também necessário encontrar uma

nova forma de conceber o homem. No texto intitulado Notas sobre o Novo Cinema

Americano, publicado na edição de número 24, em 1962, Mekas assume um caráter de

manifesto sobre uma nova forma de conceber o cinema dentro de um contexto mais amplo

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que o cinematográfico. Nesse artigo, ele procura defender a ideia de que o novo cinema

americano não revela somente um novo cineasta e um novo cinema, mas, sobretudo,

revela um novo homem: “A questão não é dos filmes serem artisticamente bons ou ruins. A

questão é do aparecimento de uma nova atitude diante da vida, uma nova compreensão do

homem” (MEKAS, 2013: p.42). Estava em jogo a criação de um novo entendimento do

homem, de uma nova percepção do homem. Os filmes surgiriam como uma consequência

disso.

Para sair das molduras culturais feitas pelo cinema tradicional dos estúdios e

assumir uma expansão de percepções, Mekas coloca o novo cinema independente

americano como parte fundamental neste processo de transformações: “O novo cinema,

assim como o novo homem, não é nada em definitivo, em nada concluído. Ele é algo vivo. Ele é

imperfeito, errante” (Mekas, 2013: p.36-37). Dentro deste sentido de errância, o novo

cinema afirmava-se nos seus ruídos, nas suas asperezas, num entendimento sensitivo que

buscasse sair do modelo canônico, proposto pelo cinema realizado em Hollywood.

Questões como buscar a espontaneidade e a improvisação no registro, assim como o

entendimento de que a beleza e a felicidade surgiriam das pequenas efemeridades contidas

nesse processo, tornam-se fatores responsáveis para a construção deste novo homem,

segundo a concepção de Mekas.

O que o realizador lituano busca através desta proposta é que o cinema, enquanto

expressão artística, assuma protagonismo nas transformações da percepção do homem.

Através de obras que busquem romper com o sentido ilusionista e da perfeição técnica

pertencente á representação no cinema espetáculo, Mekas procurava afirmar que este

novo cinema deveria revelar as suas fragilidades, expor a sua câmera tremida, assumir a

sua imagem fora de foco, revelar os seus dispositivos e inventar novos para, assim,

estabelecer outro tipo de vínculo entre a obra e o seu espectador. Afirma o realizador

lituano, no artigo A linguagem mutante do cinema, de 25 de janeiro de 1962:

Mesmo os erros, os planos fora de foco (...), os pedaços

superexpostos ou subexpostos fazem parte do vocabulário. As

portas para a espontaneidade se abrem; o ar viciado do

profissionalismo rançoso e respeitável escapa.

(MEKAS, 2013: p.72)

Para constituir este novo homem, buscar o espectador tornou-se parte essencial do

processo de transformação. Nos seus textos, Mekas intimava o espectador a que se

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desprendesse da sua comodidade, de uma recepção mais passiva para a qual o cinema

espetáculo o domesticou. Se este novo cinema buscava fugir das regras técnicas e

narrativas que ainda hoje regem o sistema, e afirmar o seu sentido autoral, cabia também

ao espectador entender que o sentido de representação nessas produções independentes

não era o mesmo.

Os filmes que Mekas realizou a partir dos anos 60 – como Walden (1969),

Reminiscenses from a Journey to Lithuania (1972), Lost, Lost, Lost (1976), As I was Moving

Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000) e Out-takes from the Life of a

Happy Man (2012) – evidenciam que a relação entre autor-espectador torna-se mais

íntima que nos seus trabalhos anteriores. Não somente por evidenciar suas imagens

caseiras, mas também pelas reflexões que assume sobre essas imagens, Mekas termina

acentuando esse caráter de cumplicidade com o espectador, como se procurasse abrir o

seu “álbum de fotografias” para mostrá-lo a quem quisesse conhecer fragmentos da sua

vida. É o que ocorre, por exemplo, logo no início do sexto capítulo do filme As I moving

ahead..., em que Mekas, a partir do uso da voz em off, comenta a seguinte questão:

Para quando o espectador, ou seja, você, chega ao sexto capítulo,

alguém espera, melhor dizendo, você espera, espera descobrir mais

coisas sobre o protagonista, ou seja, sobre mim, o protagonista deste

filme. Assim que não quero lhe decepcionar. Tudo o que quero lhe

contar está aquí. Apareço em cada imagem deste filme. Estou em

cada fotograma deste filme. O único que necessita saber é como ler

estas imagens.

Mas Mekas buscaria ir além nesta relação com o espectador, através da

incorporação do vídeo e do meio digital na sua obra. Para o realizador lituano, a partir do

aprimoramento digital e cibernético na virada de século, já não bastava mais a exibição dos

seus filmes nas salas de cinema. Mekas procurava um dissenso no próprio formato de

mostrar os seus filmes, trazer eles mais ao alcance do espectador, fazer com que seus

filmes pudessem ser manuseados, manipulados, ressignificados. Já não bastava mais a

projeção numa sala escura de cinema, pois o que instigava Mekas era o processo de

interação da obra com o espectador.

Assim nasceu o projeto intitulado 365 Day Project (2007). Ao assumir o dispositivo

de realizar um vídeo por dia, durante todo o ano de 2007, e postar esses vídeoa

diariamente na sua página web na internet, Mekas expandia tanto o seu cinema através de

diferentes suportes tecnológicos, como também propunha ao espectador uma nova forma

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de lidar com a sua obra. Dentro da posição de cada vídeo dentro do site, o espectador não

somente assume a escolha daquilo a que pretende assistir, como também se coloca na

posição de “editor”, na medida em que pode escolher também a ordem do que se propõe a

assistir.

365 Day Project é composto não somente por registros diários de Mekas sobre o seu

cotidiano ao longo do ano de 2007, mas também é um projeto que se refere a como nós,

enquanto espectadores, queremos ver Mekas através desses vídeos. O que selecionamos

para assistir ou deixar de assistir? Em qual ordem? Que relação de significados

estabelecemos entre os vídeos? Ao colocar sobre o poder do espectador estas escolhas,

Mekas pretende realizar um trabalho que traduz uma intenção de pensar como o

espectador pretende lidar com este material.

Na medida em que os vídeos estão expostos de forma separada no site e ordenados

cronológicamente de acordo com o calendário, cabe a quem pretende assisti-los, a ideia de

fazer a sua própria edição-seleção sobre os filmes de Mekas. Se eu, enquanto espectador-

editor, quiser selecionar somente os vídeos feitos por Mekas que estão datados no

primeiro dia de cada mês, posso estar trazendo um processo de significação diferente do

que se eu buscasse selecionar os vídeos dos últimos dias de cada mês.

Este projeto de Mekas não foi o primeiro e nem será o último cinema interativo a

ser realizado. Como afirma Carlos Merigo, no texto “Uma breve retrospectiva do cinema

interativo”, existem casos anteriores, como o filme Mr. Payback (1995), de Bob Gale, que

passou por diversos cinemas norte-americanos. Nesses locais, as pessoas escolhiam como

as cenas continuavam, por meio de joysticks instalados nas poltronas, com as sequências

disponíveis sendo apresentadas pelas cores vermelha, azul e verde, definidas por um dos

três botões do joystick e com a contagem exibida na tela em tempo real. Ou também um

filme ainda mais antigo, como é o caso do pioneiro neste gênero, intitulado Kinoautomat,

de Radúz Činčera, que foi apresentado na EXPO de 1967, em Montreal, tendo a sala do

evento sido construída especialmente para o filme, com dois botões em cada poltrona –

um vermelho e outro verde – em que as decisões eram simples, como decidir se o

personagem, Mr. Novak, deveria ignorar ou não um policial na estrada, abrir ou não a

porta para uma mulher.

No entanto, dentro do âmbito das salas de cinema, esses experimentos não

passaram de exceções, uma vez que este meio se encontra originalmente pensado para

projeções em que a intervenção do espectador não é possível. É dentro de um contexto

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digital que se revela assim o potencial que a internet trouxe na relação do espectador com

as mídias. O meio cibernético acabou se tornando protagonista neste processo, na medida

em que disponibilizou uma nova forma de interação com os suportes tecnológicos. O

aprimoramento da internet ao longo destas duas últimas décadas tornou-se também um

meio para se entender as transformações na relação entre o receptor-espectador-leitor

como um agente ativo de criação. Cabe a obras como 365 Day Project a posição de refletir

sobre essas experiências de interação e de seguir provocando dissensos nas formas de

representação tradicionais dentro do âmbito cinematográfico e audiovisual.

REFERÊNCIAS

MEKAS, Jonas. Notas sobre o Novo Cinema Americano. In: MEKAS, Jonas/ MOURÃO,

Patricia (org.). Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Pró-Reitoria de

Cultura e Extensão Universitária – USP, 2013.

MEKAS, Jonas. A linguagem mutante do cinema. In: MEKAS, Jonas/ MOURÃO, Patricia

(org.). Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Pró-Reitoria de Cultura e

Extensão Universitária – USP, 2013.

MERIGO, Carlos. Uma breve retrospectiva do cinema interativo. Disponível em:

http://www.b9.com.br/10976/diversos/uma-breve-retrospectiva-do-cinema-interativo/

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,

2012.

Referências Audiovisuais

ČINČERA, Radúz. Kinoautomat. Tchecoslováquia, 1967. 63 min. p&b/color. son.

GALE, Bob. Mr. Payback: An interactive movie. EUA, 1995. 30min. color. son.

MEKAS, Jonas. 365 Day Project. EUA, 2007. color. son.

______________Walden. EUA, 1969. 180min. p&b/color. son.

_____________ Reminiscenses from a Journey to Lithuania. EUA, 1972. 82min. p&b/color.

son.

_____________Lost, Lost, Lost. EUA, 1976. 178min. p&b. son.

_____________As I was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty. EUA,

2000. 288min. color. son.

_____________Out-takes from the Life of a Happy Man. EUA, 2012. 68min. color. son.

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Tempos hipermodernos ao nosso redor

Autora: Cristiane Scheffer Reque

Titulação de autora: Mestranda em Comunicação Social PPGCOM

Instituição da autora: PUC RS

E-mail da autora: [email protected]

Resumo (500 caracteres)

A proposta é relacionar algumas ideias do livro Os tempos hipermodernos, do filósofo

Gilles Lipovetksy, com aspectos relevantes do enredo, cenas e personagens do filme brasileiro O

som ao redor, de Kleber Mendonça Filho. Alguns dos temas abordados no livro, como excesso

de consumo e busca pelo prazer, medo da violência e hipervigilância, o caos organizador e a

confiança instável presentes na nossa sociedade, provocam uma reflexão crítica a partir de uma

outra leitura que se pode fazer do filme.

Palavras-chave

Sociedade hipermoderna. Cinema brasileiro. Medo da violência.

Tudo muito, tudo hipervigiado

O filme brasileiro O som ao redor é um exemplo de obra bem sucedida na nossa

cinematografia recente, especialmente por parte da crítica. Lançado em 2012 com direção do

cineasta Kleber Mendonça Filho, o longa metragem fez extensa carreira em festivais mundo

afora e arrebatou prêmios nos festivais do Rio, Rotterdam e Copenhague. Foi incluído entre os

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dez melhores filmes de 2012 no jornal ‘The New York Times’ na lista do crítico A. O. Scott. O

som ao redor trata de questões contemporâneas sobre a forma como vive a classe média de

Recife, que poderia ser também de qualquer outra grande cidade brasileira.

A leitura de Os tempos hipermodernos, de Gilles Lipovetsky, me trouxe muitas

lembranças da obra de Kleber Mendonça Filho. Do site oficial do filme foi extraída a sinopse

que apresenta sua essência temática.

A vida numa rua de classe-média na zona sul do Recife toma um rumo inesperado após a

chegada de uma milícia que oferece a paz de espírito da segurança particular. A presença

desses homens traz tranquilidade para alguns, e tensão para outros, numa comunidade que

parece temer muita coisa. Enquanto isso, Bia, casada e mãe de duas crianças, precisa achar

uma maneira de lidar com os latidos constantes do cão de seu vizinho. Uma crônica brasileira,

uma reflexão sobre história, violência e barulho.

Esta crônica brasileira diz muito sobre nossa sociedade de hoje, especialmente no que se

refere a novos modos de vida e as relações entre os indivíduos. Para Lipovetsky, o pós-moderno

ficou marcado pela primazia do aqui-agora. Este tempo não morreu, mas se desinstitucionalizou,

se transformou no liberalismo globalizado, na mercantilização dos modos de vida e na

individualização. O autor refere-se a uma “segunda modernidade”, desregulamentadora, baseada

em três alicerces da modernidade anterior: o indivíduo, o mercado e a eficiência técnica.

Esta sociedade, que estimula o uso excessivo de mercadorias e consumo em todos os

níveis e se apresenta capaz de possibilidades ilimitadas, é a locação perfeita escolhida para o

filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho. O espaço urbano da classe média, prédios

altos, cercas, muros por todos os lados, o universo individual protegido. A especulação

imobiliária descontrolada que destrói casarões antigos com suas histórias e memórias para ceder

lugar a novos espigões, símbolos urbanos dos excessos desta sociedade hipermoderna. O ponto

de vista da câmera, na maior parte das cenas, é como uma visão pelas janelas, pelas frestas, entre

as grades, enclausurado como os moradores deste lugar.

Para lutar contra o terrorismo e a criminalidade, nas ruas, nos shopping centers, nos

transportes coletivos, nas empresas, já se instalaram milhões de câmeras, meios eletrônicos de

vigilância e identificação dos cidadãos: substituindo-se à antiga sociedade disciplinar-

totalitária, a sociedade da hipervigilância está a postos. (LIPOVETSKY, 2004, p. 55).

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No filme de Kleber, esta ideia da hipervigilância é o que regula as relações de poder

entre os ricos e os pobres, os patrões e os empregados, os condôminos e o porteiro, os

seguranças particulares e os moradores da rua deste bairro de classe média. Sempre uma relação

de poder e submissão, um clima de tensão permanente. A rotina aparentemente pacata destes

moradores vive cercada pelo medo da possibilidade – e pela existência real - da violência

urbana.

Pode-se identificar três núcleos principais de personagens que participam da narrativa:

Bia é uma dona de casa entediada que não consegue dormir pelos latidos do cão do vizinho;

João é corretor de imóveis e neto de Francisco, que é dono de vários imóveis da rua; e

Clodoaldo é o personagem que surge para oferecer serviços de segurança privada aos moradores

da rua. Vigilância e tranquilidade por toda a noite, por uma pequena quantia mensal.

Lipovetsky fala de um tempo atual do risco e da incerteza, onde o Zeitgeist, antes

despreocupado com o futuro, deu lugar à “sensação de insegurança que invadiu os espíritos” no

presente.

As lutas sociais e os discursos críticos não mais oferecem a perspectiva de construir utopias e

superar a dominação. Só se fala de proteção, segurança, defesa das “conquistas sociais”,

urgência humanitária, preservação do planeta. Em resumo, de “limitar os estragos”. O clima do

primeiro presentismo liberacionista e otimista, marcado pela frivolidade, desapareceu em favor

de uma exigência generalizada de proteção. (LIPOVETSKY, 2004, p. 64).

Pode-se afirmar que a citação acima descreve, em parte, a essência do que trata o filme

O som ao redor. A dominação nas relações de classe orientadas pelo capital e a tensão entre os

dois lados nas relações sociais entre patrão e empregado não fazem parte de nenhuma luta,

ideologia ou discurso dos personagens, mas estão ali o tempo todo, presentes, pulsantes, é a

realidade vivida por eles na maior parte das situações. A narrativa nos faz refletir sobre o que

evoluiu nas relações de trabalho de fato, desde os tempos da Casa Grande do engenho próspero,

mantida às custas da escravidão, para uma metrópole moderna de prédios gigantes cercados por

muros e grades, que abriga não só as famílias de classe média, como também suas empregadas,

porteiros e seguranças.

Kleber estabelece esta relação logo nas primeiras imagens com a apresentação de uma

sequência de fotos em P&B antigas que mostram paisagens de campo e trabalhadores rurais,

inclusive crianças, que serviram nas plantações de cana de açúcar do Nordeste. Mas, no filme, as

crianças de hoje podem estar em dois lugares: ou brincando enclausuradas nos pátios dos

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edifícios como filhos e netos dos patrões, ou acompanhando o serviço doméstico da casa dos

outros, como filhos e netos dos empregados. O filme não parece revelar nenhuma perspectiva

para superar a dominação de classe.

A crítica social está evidente em todas as cenas e dialoga intensamente com a ideia de

Lipovetsky dessa exigência de proteção e segurança generalizada. A questão é que os moradores

da rua não chegam a tomar uma atitude em busca desta exigência de proteção, mas ela vem ao

encontro deles através da figura de Clodoaldo. Uma proposta de segurança privada surge no

momento mais conveniente e oportuno, e responde imediatamente a esta demanda por mais

tranquilidade de uma classe que historicamente apreciou ser servida e manter privilégios.

Prazer contra stress

O filósofo francês analisa a dicotomia desta sociedade hipermoderna, onde um dos lados

estimula os gozos do consumo, do prazer e do bem-estar pessoal, e o outro revela as existências

dominadas pela insegurança, cada vez mais apreensivas e estressantes. É exemplificada esta

nova relação com o tempo através de paixões consumistas, o que identificamos na personagem

Bia. Sua insatisfação com a rotina em casa é amenizada pela aceitação do apelo ao consumo,

mas também com o uso inusitado que ela destina a alguns de seus eletrodomésticos, para suprir

desejos e viver pequenas aventuras.

Na verdade, o que nutre a escala consumista é indubitavelmente tanto a angústia existencial

quanto o prazer associado às mudanças, o desejo de intensificar e reintensificar o cotidiano.

Talvez esteja aí o desejo fundamental do consumidor hipermoderno: renovar sua vivência do

tempo, revivificá-la por meio das novidades que se oferecem como simulacros de aventura.

(LIPOVETSKY, 2004, p. 79).

Dentro de casa, em seu espaço privado de conforto e segurança, devidamente cercado e

protegido do mundo exterior, a dona de casa Bia sente-se bem à vontade. Quando está sozinha,

Bia é livre para ter prazer e esquecer o stress do cotidiano durante alguns momentos. É livre

para fumar seu cigarro de maconha e soltar a fumaça no aspirador de pó, é livre para gozar ao se

masturbar com o movimento da máquina de lavar roupas.

Uma relação íntima com seus eletrodomésticos, uma pequena fuga da realidade do dia a

dia, apoiada em objetos de consumo. A busca angustiante por uma vida tranquila, ameaçada

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noite e dia com os uivos do cachorro do vizinho, vai da oferta de carne crua com sonífero para o

animal, passa pelo som ligado no último volume e segue até o uso de aparelho de ultrassom

anticães. Mais uma dependência no uso de eletrodomésticos por Bia, tão intensa que ela se

descontrola e discute com a empregada ao descobrir que esta queimara o ultrassom ao ligá-lo na

voltagem errada. A violência psicológica mostra suas garras na relação entre o dominador e o

submisso.

A violência que paira sobre toda trama não é somente externa e não vem só de agentes

estranhos ou de outras classes sociais. É evidente mesmo entre os moradores: Bia disputa com a

vizinha quem tem o maior poder de consumo e influência. O momento da entrega dos novos

aparelhos de TV pela loja provoca um atrito para ver quem recebe primeiro o entregador e qual

é o maior monitor, o que culmina em uma briga física no meio da rua. A sociedade

hipermoderna à beira da barbárie.

O caos organizador

Lipovetsky destaca o aspecto de cultura desunificada e paradoxal da sociedade

ultramoderna, verificado pela dualidade entre o tempo do imediato, da eficiência e da vida em

fluxo nervoso, confrontado a esta época que também é a da estetização dos gozos, da busca da

qualidade no agora, da sensualização do instante. A junção de opostos que reforça dois

importantes princípios da modernidade: “a conquista da eficiência e o ideal da felicidade

terrena”. Neste sentido, a sociedade ultramoderna mostrada no filme apresenta várias

dimensões, como um “caos paradoxal, uma desordem organizadora”.

O personagem João é corretor de imóveis e está começando um relacionamento com

Sofia. Ele é neto de seu Francisco, proprietário de vários imóveis da rua e que também possui

um antigo engenho no interior. João personifica um pouco deste caos, desta desordem, destas

múltiplas dimensões de uma sociedade ultramoderna. Ao mesmo tempo que João integra a

“classe dos patrões”, pois cuida dos imóveis do avô junto com um dos tios, na maior parte das

cenas ele não apresenta um comportamento esnobe ou de reafirmação de poder. Ao contrário, é

extremamente educado, se relaciona bem com os porteiros e serviçais, se preocupa com a

empregada, e não se importa quando ela precisa trazer suas netas para ficarem o dia com ela.

Trata-os com carinho e deixa-os à vontade na casa, como um espaço coletivo.

Ainda assim, a relação não deixa de ser de poder e submissão. Desde um simples pedido,

em tom de exigência, feito por João pelo café ao acordar, até a verificação da perpetuação deste

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poder, talvez secular entre as famílias, evidenciam esta diferenciação entre as classes. Os

diálogos revelam que Mariá, a empregada mais velha, que já serviu ao avô e pai de João, um dia

é substituída na casa pela filha dela, e provavelmente as netas ainda pequenas seguirão o mesmo

caminho de servidão à família de posses. João é extremamente gentil com todos, independente

da classe a qual pertencem, mas não deixa de exigir e provavelmente nunca abdicará de ser

servido, como é costume e tradição em sua família. Um paradoxo dos jovens patrões?

Em uma reunião de condomínio no prédio, João é o único morador que diverge dos

demais por ser contra a demissão do porteiro que trabalha ali há mais de dez anos. Os outros

moradores elencam inúmeras razões para mandá-lo embora, um garoto chega a editar um vídeo

com imagens do homem dormindo durante o expediente, e todos demonstram insatisfação com a

falta de eficiência do empregado. É a supremacia do mercado, da eficiência e dos direitos do

indivíduo da sociedade que hoje se apresenta, como nos aponta Lipovetsky. João pensa que

todos os anos de dedicação do porteiro ao prédio deveriam ser considerados, mas a preocupação

da maioria dos condôminos é como se livrar dele com o menor custo trabalhista possível, pois

julgam que ele não é mais eficiente e não atende aos seus direitos enquanto consumidores. O

mercado hoje exige eficiência.

João destoa dos semelhantes da sua classe, mas não destoa do homem hipermoderno,

aquele que ainda tem apreço às relações afetivas e amorosas, entretanto se perde na imensidão

de possibilidades que o universo de relações a sua volta lhe apresenta.

Ainda que as uniões sejam mais frágeis e mais precárias, nossa época, apesar de tudo,

testemunha a persistência da instituição do matrimônio, a revalorização da fidelidade, a vontade

de contar com relações estáveis na vida amorosa. Observam-se mais insatisfações ou

frustrações referentes às experiências sem futuro do que odes aos amores casuais. (Lipovetsksy,

2004, p.74)

João conhece Sofia em uma festa, a paixão à primeira vista traz o sexo no primeiro

encontro. A história se desenvolve, parece o início promissor de um relacionamento apaixonado,

mas o desfecho é tão inesperado quanto o começo. Em uma conversa com o primo, na última

cena em que aparece no filme, João simplesmente informa que não está mais com Sofia, que ela

tinha outra história em outro lugar e foi embora. Ainda que tenha surgido de um encontro

casual, havia um desejo em João para que o namoro com Sofia seguisse para uma relação

estável, pois o amor estava ali. Mas é preciso levar em conta que Sofia também faz parte deste

universo caótico, também é um ser aberto, independente, e em determinado momento a

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fragilidade desta relação não mais consegue mantê-la. Tudo acaba da mesma forma como

começou. Teria Sofia apostado em um antigo relacionamento que lhe desse mais estabilidade?

Não saberemos.

Assim, o indivíduo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e socialmente

independente. Mas esta volatilidade significa muito mais a desestabilização do eu do que a

afirmação triunfante de um indivíduo que é senhor de si mesmo. (LIPOVETSKY, 2004, p. 83.)

O personagem se encaixa perfeitamente neste indivíduo cambiante, desinserido, fora dos

esquemas sociais estruturantes que outrora estimularam a solidez de uma força interior para

enfrentar as desventuras da existência humana. João tenta se enquadrar fora da estrutura social

ao qual está inserido, mas não consegue se livrar de suas origens, tampouco de seu desejo de

valorização do duradouro. “Quanto mais ele quer viver intensa e livremente, mais se acumulam

os sinais do peso de viver”. (LIPOVETSKY, 2004, p. 84).

Confiar ou não confiar. Eis uma questão.

A confiança instável da hipermodernidade é um dos temas pertinentes trazidos pelo

filme. Clodoaldo, chefe dos vigilantes responsável pela prestação do serviço – empregado mas

também patrão dos seus próprios empregados – oferece segurança e uma vida tranquila nesta

rua sob seus cuidados. Ele divulga o serviço para os moradores, mas descobre que precisa da

permissão de Seu Francisco, “proprietário de mais da metade dos imóveis da área”.

Francisco é a personificação do patrão urbano e, ao mesmo tempo, rural. Na cidade, vive

da renda das posses no ramo imobiliário, que também ajuda a sustentar e empregar a família.

No interior, desfruta da beleza e paz da vida no campo, em sua propriedade que um dia já foi

Casa Grande de engenho de cana de açúcar. Portanto, Francisco também foi patrão de

trabalhadores rurais, provavelmente explorados como nos remetem as fotografias P&B da

sequência de abertura em O som ao redor.

Uma relação inicial de confiança entre Francisco e Clodoaldo fica estabelecida com a

permissão para que o segurança – empregado – vigie toda a rua, as propriedades do patrão e de

outros patrões menores. Mas é uma vigilância subordinada ao controle de quem autoriza o

serviço, Francisco. O poder aparece evidente especialmente nas duas cenas em que Clodoaldo é

recebido na casa de Francisco: sempre pela porta dos fundos, aguardando a empregada chamar o

14

patrão, e mesmo quando é recebido na sala para tratar de assunto sério não é convidado a sentar-

se no sofá - reservado ao dono da casa - mas sim em um banco pouco confortável, para deixar

bem claro a todo instante quem é que manda.

Pouco é dito no filme sobre quem é Clodoaldo, de onde veio, como foi sua formação e

preparação para o serviço, quem o enviou ali. Quando indagado por João sobre quem o havia

recomendado, Clodoaldo responde: “foi a gente mesmo”. Em outro núcleo de personagens

moradores da rua, um comentário de Bia no jantar com a família é que os arrombamentos de

dois carros no entorno podem ter alguma intenção de motivar os moradores a contratarem os

serviços de segurança oferecidos. Seria pura coincidência ou teria sido marketing? Poderiam os

seguranças serem os próprios assaltantes ou estarem ligados a eles para provocar uma demanda

pelo serviço? Em quem devemos confiar?

Essa confiança dos consumidores, dos investidores, dos empresários, sabe-se, é volátil e agora

regularmente medida pelas pesquisas de opinião. Na hipermodernidade, a fé no progresso foi

substituída não pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma confiança instável, oscilante,

variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias. (LIPOVETSKY, 2004, p. 70)

Em uma conversa tensa entre Francisco, Clodoaldo e um dos vigilantes, o tom de

escárnio do detentor do poder fica evidente, afinal de contas este poder precisa não somente

existir como ser ostensivamente demonstrado. E é neste clima que a permissão é concedida, que

a confiança é firmada. Dentro do contexto apresentado pela narrativa, o voto de confiança pode

ter sido dado: 1) pelos índices de assaltos na região comentados no filme, que geram maior

insegurança aos moradores; 2) pela sutil imposição desta necessidade de vigilância. Afinal, o

que poderia acontecer aos moradores caso eles se recusassem a aceitar o serviço? Sofreriam

alguma retaliação? Sentem-se ameaçados?

Clodoaldo tem acesso a uma das casas da rua para molhar as plantas enquanto o

proprietário viaja. Clodoaldo leva para essa casa a empregada de Francisco, onde tomam a

liberdade de beber água direto da jarra da geladeira da família e transar na cama da suíte do

casal. Seu Francisco telefona várias vezes para Clodoaldo e o celular fica horas desligado. A

confiança, ainda em fase de testes, balança.

Francisco exige uma conversa particular com Clodoaldo. Na sequência final e

reveladora, que é esta conversa entre os dois, um terceiro elemento é adicionado à trama: mais

um integrante da equipe de seguranças, irmão de Clodoaldo. Francisco fala sobre um fato

recente que abalou sua tranquilidade: o assassinado de um ex-capataz, administrador do seu

15

engenho, indivíduo de extrema confiança que estava aposentado há mais de dez anos. Desconfia

se tratar de algum tipo de vingança e pede reforço de Clodoaldo na sua segurança pessoal. Neste

instante acontece a grande virada do filme, pela descoberta de que Francisco na verdade já

conhecia Clodoaldo e seu irmão há muitos anos mas não os havia reconhecido, pois eram

crianças de uma família vizinha do interior. Com emoção e extrema tensão, é revelado que o ex-

capataz foi na verdade morto por Clodoaldo e seu irmão, como vingança por ter assassinado o

pai e o tio deles na infância, provavelmente sob ordens de Francisco, por causa de uma cerca.

Descobre-se então uma relação antiga de poder, de violência e morte no campo, e a

relação entre eles imediatamente se inverte. A confiança, volátil, instável, é irreversivelmente

perdida. O empregado tido até então como protetor passa a ser o principal inimigo do patrão.

Uma ameaça antes invisível passa a ser revelada, a confiança estava depositada justamente em

quem não deveria estar. Não se pode mais confiar em ninguém? A relação de poder se

transforma: quem protege quem? Quem amedronta quem? Quem domina quem a partir de

agora?

Considerações finais: uma sociedade autocrítica

Lipovetsky traz as análises da alta modernidade do sociólogo Ulrich Beck (La Société du

risque, apud LIPOVETSKY, 2004, p.97), que fala de uma segunda modernização, mais

autocrítica e reflexiva após uma primeira modernização centrada na oposição entre tradição e

modernidade. Mas afirma que ela é mais do que auto-referencial, pois invade todos os sentidos e

tradições do Ocidente e Oriente, todos os saberes e crenças. No longa-metragem a tradição e a

modernidade não se opõe, mas convivem de forma que algumas de suas características

marcantes são mescladas, adaptadas, rearranjadas.

O que define a hipermodernidade não é exclusivamente a autocrítica dos saberes e das

instituições modernas; é também a memória revisitada, a remobilização das crenças

tradicionais, a hibridização individualista do passado e do presente. Não mais apenas a

desconstrução das tradições, mas o reemprego delas sem imposição institucional, o eterno

rearranjar delas conforme o princípio da soberania individual. (LIPOVETSKY, 2004, p. 98)

Alinhando esta definição de hipermodernidade ao universo que o filme pretende

reproduzir, pode-se afirmar que O som ao redor é mais do que a crônica brasileira sobre

16

história, violência e barulho que propõe sua sinopse. O filme em si se configura na autocrítica e

reconstrução das tradições com base na soberania do indivíduo, pois o roteiro foi criado em

cima de uma realidade social conhecida do diretor, e estimula o espectador a se identificar com

algumas das situações mostradas, mas principalmente a refletir sobre sua condição nesta

sociedade.

Trata-se uma obra cinematográfica que considero representar o espírito da

hipermodernidade democrática e mercantil, movida pelo hedonismo e pelo consumo, mas

também pela manutenção das relações sociais de amor, afeto e valorização da memória, que

reconstrói as tradições neste “caos organizador”. Uma nova era que ainda não mostrou

totalmente a que veio, pois está apenas começando.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livro:

LIPOVETSKY, Gilles; Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Bancarolla, 2004.

Sites:

O SOM AO REDOR. Sinopse e outras informações disponíveis em:

<http://www.osomaoredor.com.br> Acesso em 06 de junho de 2015.

G1 de São Paulo. Filme brasileiro “O som ao redor” fica fora da disputa por Oscar 2014.

Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2013/12/filme-brasileiro-fica-de-

fora-da-disputa-por-oscar-2014-diz-site.html> Acesso em 07 de junho de 2015.

17

Apontamentos genealógicos sobre a condição de presença das imagens

Tiago R. C. Lopes – UNISINOS

[email protected]

Resumo

O texto aborda as relações entre a imagem e o espaço desde um ponto de vista que enfatiza a

passagem do conceito de imagem enquanto modelo de representação da experiência ao de

imagem como agente produtor de experiência. Assim, propõe-se demarcar as principais

tendências no campo estético que enunciam a imagem como uma superfície que não se deixa

penetrar, que assume-se como um dispositivo ou como um ato performativo, substituindo a ideia

de imagem como sinônimo de “representação” pelo princípio da imagem como presença.

Palavras-chave: telas; presença; representação; espaço

Introdução

Ao longo deste texto buscamos produzir um deslocamento no conceito de imagem

enquanto modelo de representação da experiência em direção à noção de imagem enquanto

agente produtor de experiência. Propomos, através de uma visada genealógica, demarcar as

principais tendências no campo estético que enunciam a imagem como uma superfície que

demanda engajamentos outros por parte do espectador, os quais diferenciam-se dos modelos de

consumo de imagens ditas tradicionais, e, por isso mesmo, produzem instabilidades na ideia de

imagem como sinônimo de “representação”, fazendo emergir o princípio de imagem concebida

enquanto ato performativo produtor de presença2.

2 Tomamos de empréstimo o conceito de Hans Ulrich Gumbrecht (2010). Para o autor, “Uma

coisa ‘presente’ deve ser tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode

18

Na primeira parte, exploramos duas tendências de utilização de recursos audiovisuais em

obras de instalação artística que apontam em direção ao conceito de imagem-dispositivo

(DUBOIS, 2009): em primeiro lugar, são descritas técnicas que utilizam o potencial projetivo da

imagem para gerar ambientes audiovisuais que envolvem o olhar do espectador; em segundo

lugar, abordamos algumas estratégias de criação artística em que o caráter expositivo da imagem

é usado como recurso para confrontar o olhar do espectador e produzir experiências de reflexão

sobre a própria imagem.

Na continuação, avançamos sobre o estudo de interfaces audiovisuais urbanas, as

quais apresentam-se acopladas e misturadas à materialidade dos lugares e dos corpos

humanos. Trata-se de imagens que apresentam o potencial de “aderir” a quaisquer superfícies,

seja através de painéis de LED, projeções mapeadas, pinturas de trompe-l’oeil ou realidade

aumentada móvel.

Videoinstalações

No campo das artes, a chegada do vídeo aos ambientes de instalação significou a

possibilidade de incorporar elementos arquitetônicos adicionais ao espaço expositivo; elementos

estes que significavam, sobretudo, uma ampliação da dimensão temporal das obras. Para Rush

(2006) a imagem de vídeo permitiu a expansão do conceito de escultura, tornando-o mais fluido

e ativo. Nesse sentido, se a exploração do tempo já era um ponto central em várias obras de

videoarte, as possibilidade se tornaram ainda maiores com o emprego de recursos de vídeo nas

instalações. A projeção com múltiplas telas (fossem telas cinematográficas ou telas de aparelhos

televisores) foi, de longe, uma das estratégias mais exploradas. Para Dubois (2009), as telas

múltiplas enunciam um princípio de transposição das formas temporais do cinema, em especial

daquelas tributárias das técnicas de montagem, para uma disposição espacial no ambiente

expositivo, seja o da galeria de arte ou outro.

Desse modo, a sucessão temporal que se efetua na montagem cinematográfica é encenada

por princípios de simultaneidade espacial através de inúmeros recursos, dentre os quais, a

projeção em múltiplas telas se apresenta como uma das alternativas. Peter Greenway, conhecido

cineasta e artista plástico, produziu várias instalações baseando-se no princípio de projeção da

ter impacto imediato em corpos humanos. Assim, uso ‘produção’ no sentido de sua raiz

etimológica (do latim producere), que se refere ao ato de ‘trazer para diante’ um objeto no

espaço. Aqui, a palavra ‘produção’ aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais

se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos. (2010, p.

13).

19

imagem fílmica sobre o espaço. Para Manovich (2006, p. 306, tradução nossa), ao “transferir”

para o espaço do museu os elementos estéticos e narrativos cinematográficos, Greenaway

expressava um desejo de “arrancar o cinema de dentro do cinema” 3, dando a ver o caráter

modular e fragmentado inerente à natureza desse meio. Em suas instalações, as imagens e sons

dispostos através de estruturas espaciais endereçavam ao próprio corpo do participante a tarefa

de agrupar e significar os estímulos sensoriais captados dispersamente no ambiente da

exposição.

Seguindo estratégias semelhantes às de Greenway, a artista norte-americana Amy Jenkins

projetava imagens sobre objetos comuns, como camisas ou banheiras. Neste ponto, já não

estamos mais diante de um processo de inserção de telas audiovisuais em espaços antes

ocupados pelas imagens-objeto (o quadro, a escultura), mas, por outro lado, estamos diante de

técnicas a partir das quais o próprio cinema (ou a televisão) são projetados em direção ao espaço

que habitamos e aos objetos do cotidiano (uma camisa, uma colher). Obras desse tipo, que

lançam mão de expedientes audiovisuais sobre objetos concretos, sobretudo através de formas

familiares (cubos, utensílios cotidianos etc.), produzem um distúrbio na superfície dos objetos

cotidianos, tornando-os ao mesmo tempo estranhos e familiares aos olhos dos espectadores.

Se a videoarte introduziu a imagem de vídeo nas galerias de arte, por outro lado, foi o

cinema que primeiro se manifestou a favor da “instalação”, em sentido amplo, através de

inúmeras estratégias que promoviam uma expansão do seu campo em direção a outras formas de

arte (DUBOIS, 2009). Por esse caminho, vários artistas passaram a trabalhar sobre a imagem

cinematográfica, tendo em vista a exploração do seu potencial expositivo. Para Dubois (2009),

em uma obra como 24 hours Psycho (Douglas Gordon, 1990), em que o artista se apropria do

filme Psicose (Hitchcock, 1960) e o transforma numa projeção de vídeo que dura exatas 24

horas, o poder de exposição das imagens do filme atua no sentido contrário ao potencial das

técnicas de projeção. Enquanto a qualidade de projeção é responsável por acionar diversos

mecanismos psicológicos do espectador (a empatia com os personagens, o voyeurismo escópico,

o devaneio etc.), a qualidade expositiva, por outro lado, “deflagra mecanismos mais analíticos

ou teóricos, e muitas vezes autorreflexivos, que levam o espectador a uma postura mais crítica

ou desconstrucionista” (DUBOIS, 2009, p. 199). A imagem fílmica, quando trabalhada assim,

de modo a potencializar suas qualidades expositivas, se apresenta diante do espectador como

uma presença que necessariamente o conduz através de uma experiência analítica em que o

próprio ato de ver imagens é interrogado. O olhar busca se aprofundar na imagem, mas rebate

3 No original, em espanhol: [...] sacar el cine del cine.

20

em sua superfície e se volta sobre si mesmo, colocando em questão as condições de sua própria

fenomenologia.

Videoartistas como Bruce Nauman souberam extrair o poder expositivo do vídeo. Em

várias de suas obras de videoarte, vemos o artista sozinho em seu estúdio trabalhando ou

simplesmente não fazendo nada. “Nada” talvez seja a melhor palavra para definir a visualidade

de algumas das obras dos referidos artistas, pois a imagem pouco tem para mostrar. O

espectador deposita seu olhar sobre ela, mas ela o rebate de volta, como em um circuito fechado

que provoca uma intensidade espaço-temporal cada vez maior. Como diria Dubois (2004), a

imagem, neste contexto, assume-se como um dispositivo, um estrito ato performativo que deixa

de lado tudo o que é supérfluo para substituir a ideia de representação pelo princípio mesmo da

presença. Uma imagem-dispositivo, isto é, uma imagem que apela aos sentidos corpóreos mais

do que aos sentidos semióticos, que se institui, portanto, não como imagem que representa

alguma coisa, mas como imagem que se mostra, ela própria, como uma presença.

Atualmente, os artistas começam a se deparar com um cenário em que os espaços se

apresentam cada vez mais atravessados por múltiplos fluxos de dados informacionais dinâmicos,

com os quais é possível interagir e acrescentar novas camadas de conteúdo. Contudo, se no

espaço fechado das galerias de arte e dos pavilhões de mostras e exposições as possibilidades

crescem na mesma proporção em que novos recursos tecnológicos se colocam à disposição dos

artistas, não podemos negligenciar que também fora desses espaços acumulam-se em quantidade

e qualidade cada vez maiores os hardwares e softwares de produção de imagens: desde painéis

luminosos de LED, passando por tecnologias de projeção sobre fachadas urbanas até chegarmos

nos acessórios tecnológicos vestíveis e inteligentes, por todo o lado presenciamos a emergência

de interfaces imagéticas, as quais transformam a paisagem e a cultura (áudio)visual urbana.

Espaços ampliados urbanos

Nas metrópoles comunicacionais de nossa época, multiplicam-se as edificações que

apresentam estratégias de integração de imagens eletrônicas em seus projetos arquitetônicos –

pensemos nos painéis dinâmicos de LED que iluminam e colorem as empenas de edifícios nas

grandes metrópoles, ou, ainda nos ambientes de lojas de departamento dos shopping centers, que

misturam displays eletrônicos, espelhos e superfícies brilhantes e translúcidas, gerando a

sensação de um espaço visualmente dinâmico; por outro lado, a expansão dos usos operados

sobre mídias móveis pauta uma outra tendência em promover a associação de conteúdos

informacionais às materialidades e territorialidades dos espaços urbanos: seja através de telas

multitouch ou de acessórios vestíveis inteligentes, as imagens podem agora se acoplar a um

21

conjunto vasto de objetos do cotidiano e, inclusive, ao corpo humano, contribuindo

decisivamente para fomentar ainda mais um quadro de ruptura com o modelo de tela tradicional.

Estratégias de integração de imagens tecnológicas a objetos arquitetônicos ocorrem, pelo

menos, desde a passagem do século XIX para o século XX, período em que a modernidade

elétrica transformou o espaço público. Desde então, arquitetos e artistas envolvidos com as

transformações culturais emergentes buscam novas formas de apropriação de recursos

tecnológicos de imagens em projetos arquitetônicos. Ao assumirem essa postura, tais estratégias

enunciam as superfícies de edificações como meio de expressão comunicacional. Nessas

condições, a fachada assume uma dupla função: ao mesmo tempo que esconde o que há por

detrás, ela revela o que nela é projetado, como uma tela de cinema. (DUARTE; DE MARCHI,

2010).

Manovich (2006b, p. 219) se refere a esses ambientes permeados por conteúdos

informacionais multimídia como “espaços ampliados” (augmented spaces) – espaços físicos e

geográficos densamente preenchidos por dados informacionais, que são “despejados” por

diferentes tipos de mídias digitais, desde displays e painéis luminosos anexados às paredes e

fachadas de construções urbanas até as telas dos dispositivos móveis utilizados pelas pessoas

que circulam nesses locais.

Para Firmino e Duarte (2008), os espaços ampliados não deveriam constituir novidade,

visto que comparecem ao longo de toda a história da humanidade estratégias artísticas e

arquitetônicas – e mesmo religiosas ou metafísicas – que apresentavam no horizonte de seus

propósitos estender, senão o espaço em si, a percepção que se tem do espaço. Técnicas seculares

de trompe-l’oeil são utilizadas para promover a fusão entre o campo da representação imagética

e a estrutura arquitetônica das edificações. Desde o conhecido afresco renascentista de

Michelangelo Buonarotti, que recobre o teto da Capela Sistina, realizado no início do século

XVI, até as intervenções urbanas realizadas pelos artistas Joe Hill e Max Lowry, as técnicas de

trompe-l’oeil vêm sendo utilizadas como artifício para simulação de volumes em fachadas de

prédios, interiores, cenários teatrais ou de apresentações musicais, etc.

O que deve ser destacado nas técnicas de trompe-l’oeil é a sua capacidade de conferir à

imagem uma qualidade que ultrapassa sua função de representação para adentrar o terreno da

ilusão. O que se destaca, portanto, é o potencial para produzir presença que a imagem pode

alcançar. No caso específico das técnicas de trompe-l’oeil, o potencial para produção de efeitos

de presença reside sobretudo em seu teor mimético, que comunica-se diretamente com os

sentidos do corpo, antes mesmo de se relacionar com os sentidos semióticos das obras

apresentadas.

22

No entanto, há que se considerar diferenças em relação às estratégias de ampliação

espacial adotadas nas técnicas, por assim dizer, analógicas (como a de trompe-l’oeil) daquelas

que marcam a experiência proporcionada por tecnologias eletrônicas e informacionais. Em

primeiro lugar, o emprego de tecnologias computacionais em espaços físicos apresenta como

principal vantagem a possibilidade de inserção de dados dinâmicos, isto é, conteúdos que podem

ser alterados de diferentes maneiras e por isso oferecem um amplo repertório de possibilidades

de diálogo com o contexto ambiental: uma fachada de prédio recoberta por displays eletrônicos

pode ser utilizada tanto para comunicar mensagens publicitárias quanto funcionar como uma

tela de cinema ou mesmo como elemento que se integra à arquitetura, como é o caso das

projeções audiovisuais sobre edifícios, conhecidas como projeção mapeada de vídeo. Tais

práticas tomam a superfície arquitetônica como o suporte para a projeção de imagens e, com

isso, atualizam as técnicas de trompe-l’oeil para o contexto urbano contemporâneo,

potencializando de forma radical os efeitos de anamorfose possibilitados através da projeção de

audiovisuais sobre edificações.

Como consequência desse modo de intervenção urbana, observamos a emergência de

estéticas que mesclam a territorialidade de espaços físicos à efemeridade e leveza que

caracterizam a (i)materialidade dessas imagens. Contudo, as alternativas de incorporação de

tecnologias informacionais a edificações e demais objetos do mobiliário urbano extrapolam o

uso de projetores ou de displays eletrônicos para geração de sequências pré-gravadas de

audiovisuais, visto que a relação entre dados informacionais e espacialidades físicas não

necessita estar, necessariamente, limitada a fluxos unidirecionais de informação “despejados” no

ambiente sem nenhum tipo de feedback.

Várias obras artísticas e projetos com tecnologias digitais estabelecem uma relação

dialógica com o ambiente através do emprego de tecnologias que capturam dados contextuais,

como aquelas empregadas em sistemas de vigilância e monitoramento, que captam e traduzem

informações do ambiente em uma extensa gama de imagens (vídeos de câmeras de vigilância,

gráficos de controle de temperatura e luminosidade, imagens obtidas através de sinal

infravermelho, fotografias capturadas via-satélite). Em conjunto, tais tecnologias expressam um

certo desejo de penetrar, capturar, mapear e remontar o “real” segundo as lógicas de

manipulação e perfectibilidade que caracterizam os ambientes computacionais.

Intervenções urbanas do tipo laser tag, como as realizadas pelo grupo de artistas Graffiti

Research Lab,4 geram grafites tecnologizados (SILVEIRA, 2007) sobre fachadas de edificações

4 Disponível em: <http://graffitiresearchlab.com/>. Acesso em 06 de junho de 2014.

23

com o uso de projetores e canetas laser, indicando mais uma possiblidade de como técnicas de

projeção de imagens podem transformar o mobiliário urbano em enormes superfícies de

enunciação imagética. Nesse formato de acoplamento da imagem com o espaço urbano, o efeito

visual (o grafite tecnológico) resulta de processos técnicos que caracterizam, pelo menos, dois

tipos de fluxos informacionais que atuam no sentido de promover efeitos de ampliação espacial:

um fluxo que vai do equipamento de projeção em direção ao espaço e outro que vai do espaço

em direção ao equipamento de captura de informação. Trata-se, portanto, de uma outra

possibilidade de produção de acoplagens imagéticas a objetos urbanos que utiliza-se de

expedientes de captura de informação, além, é claro, dos recursos de projeção audiovisual.

Tal processo de acoplamento imagético em que por um lado informações são capturadas

do ambiente, processadas e revertidas em projeções audiovisuais, constitui a base sobre a qual

produzem-se atualmente muitas aplicações para dispositivos móveis. Neste contexto, o emprego

dos chamados serviços de informação baseados em localização estão se tornando cada vez mais

comuns. Tais serviços oferecem informação customizada a partir do posicionamento no espaço

geográfico. Entre os sistemas de localização mais conhecidos estão aqueles que operam através

da rede GPS. Até alguns anos atrás, os dados de GPS só podiam ser acessados através de

aparelhos especializados, contudo, nos últimos tempos, diversos hardwares portáteis –

smartphones, tablets, videogames, relógios, dentre outros – já trazem essa funcionalidade

embarcada em seus sistemas. Como consequência do processo de estandardização do sistema

GPS nesses aparelhos, cresce em igual proporção a oferta de aplicações (softwares) que baseiam

seus serviços em funções de geolocalização.

Tais serviços dependem de algum tipo de infraestrutura locativa que calcula a posição dos

dispositivos no espaço físico e alimenta o serviço com coordenadas através das quais se pode

transmitir informação filtrada geoespacialmente para o usuário. (SHEPARD, 2010). Portanto, a

principal característica das tecnologias locativas é o seu potencial de extração de dados

contextuais – sobretudo dados de localização, mas também outros tipos dados, como

informações sonoras, temperatura, movimentações do corpo.

Aplicativos para dispositivos móveis que articulam em seu funcionamento tecnologias de

realidade aumentada, geolocalização e conexão em rede, como Layar5 e Wikitude6, oferecem a

possibilidades de mostrar, visualmente, uma variedade de conteúdos relacionados ao contexto

dos lugares em que são acessados pelos seus usuários. Por exemplo, através desses aplicativos, é

possível enxergar informações turísticas e de serviços gerais (como a localização de postos de

5 Disponível em: <https://www.layar.com/products/app/>. Acesso em: 11 de dezembro de 2013. 6 Disponível em: <http://www.wikitude.com>. Acesso em: 11 de dezembro de 2013.

24

gasolina ou supermercados), vídeos e fotografias produzidos por outras pessoas, dentre outros

conteúdos que tenham sido disponibilizados na web e que estejam vinculados a coordenadas

espaciais de latitude e longitude.

Em aplicações de realidade aumentada, o que está em jogo é, sobretudo, um

redimensionamento do conceito de “lugar”, que passa a ser percebido como um espaço de

possibilidades (sobretudo simbólicas) que se expande na medida em que valores estéticos e

simbólicos estão associados às camadas técnicas sobrepostas. A imagem, nesse sentido, também

deixa de ser pensada em sua dimensão representacional, isto é, como uma instância que aponta

para um espaço outro, alheio ao ambiente de sua recepção, e passa a ser concebida a partir de

uma concepção de metarreferencialidade, pois é uma imagem que pensa e faz pensar sobre o

próprio lugar e as próprias condições de sua fabricação. No contexto de experiências com

realidade aumentada, a condição de presença da imagem surge, portanto, da dependência que

produz em relação ao espaço em que é constituída e consumida: são imagens incompletas, que

só podem ser concebidas enquanto tal na medida em que corpo, espaço e dispositivo midiático

performatizam juntos operações técnicas e simbólicas.

Considerações finais

Ao longo deste texto, buscamos apontar para a condição de presença das imagens, que ora

se mostra através de uma qualidade de ubiquidade imersiva, como nas instalações que usam

múltiplas projeções de vídeo; ora através de uma qualidade de impenetrabilidade, como em

obras que exploram o potencial expositivo da imagem; e, ainda, ora como uma imagem

performativa, que demanda o engajamento todo do corpo do sujeito para tomar forma e que se

produz em conexão com as materialidades espaciais de objetos do mobiliário urbano e do corpo

de usuários de dispositivos móveis. O que se conclui deste breve trajeto, é que cada vez mais

presenciamos estados da imagem que referendam uma cultura audiovisuoespacial

(MANOVICH, 2006) que emerge dos diferentes usos e apropriações das ferramentas hoje

disponíveis para a produção imagética. As consequências desse novo cenário para o campo

criativo ainda estão por ser descobertas, pois ainda estamos vivendo os primeiros estágios de um

processo que, tudo indica, está apenas começando. Cabe a nós, portanto, pesquisadores que

apreciam e se dedicam a este tema, inventar as ferramentas adequadas para a compreensão de

fenômenos que desafiam próprio entendimento sobre o que é, hoje em dia, uma “imagem”.

Referências:

25

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DUARTE, Fábio; DE MARCHI, Poliese. Fantasmagorias, vitrines, infiltrações: ensaio sobre as

tecnologias e a cidade. In: Mediações, tecnologia e espaço público: panorama crítico da arte

em mídias móveis. BAMBOZZI, Lucas; BASTOS, Marcus; MINELLI, Rodrigo (Org.). São

Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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Livraria/FAPERJ, 2009.

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informação e comunicação e as representações das espacialidades contemporâneas. Arquitextos.

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<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.096/3408>. Acesso em: 25 nov.

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SILVEIRA, Fabrício. Remediação e extensões tecnológicas do grafite. In: INTERCOM, 2007.

Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos: Intercom, 2007.

26

“Só eu tô vendo?” - como explicar fenômenos na recepção

de imagens7

SANDRI, Tammie Caruse Faria8

PUCRS

RESUMO: Uma fotografia, uma recém-casada em choque e uma dúvida compartilhada. Mais

de 200 mil curtidas e mais de 30 mil comentários. Um post da atriz Fernanda Souza em seu

perfil oficial do Instagram mobilizou brasileiros, rendeu inúmeras manchetes em sites de

notícias no país, virou até piada, porém, chamou a atenção para o poder de fenômenos visuais no

imaginário do público. Seria mesmo a imagem de Jesus Cristo presente na clavícula da atriz na

selfie realizada na noite do seu casamento? O tema há muito é discutido no meio acadêmico,

mas as respostas nem sempre estão difundidas, o que só faz aumentar as especulações. Para

auxiliar na compreensão de imagens como a que gerou a postagem e os posteriores curtidas e

comentários, o artigo estabelece uma aproximação entre o fenômeno da Pareidolia e a Teoria

Geral da Imagem, baseada em princípios da Gestalt.

Palavras-chave: Comunicação social. Imagem. Efeitos de sentido. Comunicação visual.

Jesus no casamento

Celebridades brasileiras, a atriz Fernanda Souza e o cantor Thiaguinho casaram-se no

dia 24 de fevereiro de 2015, em uma cerimônia que reuniu 450 convidados, na igreja Nossa

Senhora do Brasil, com posterior recepção na Casa Fasano, em São Paulo. A noite trouxe

inúmeras surpresas preparadas pelo noivo para a amada, como a apresentação do cantor gospel

7 Trabalho apresentado no GT: Manifestações Visuais Contemporâneas - 13º Seminário Internacional de Comunicação.

FAMECOS/PUCRS. 8 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

27

Leonardo Gonçalves, com a música "Quando Deus Criou Você", oferecida a ela no primeiro

encontro, há dois anos e nove meses; a interpretação por Thiaguinho, de "Ainda Bem",

composta por ele para Fernanda e o show do grupo Fundo de Quintal, o preferido da noiva.

Como Fernanda declarou à imprensa, muita emoção marcou o enlace (EGO, PURE PEOPLE,

REVISTA QUEM, UOL, 2015). O que ela não poderia imaginar é que outra surpresa sobre o

matrimônio seria revelada: a presença de um convidado especial, Jesus Cristo.

O detalhe que chamou a atenção foi compartilhado pela própria Fernanda, no dia 26 de

fevereiro, em seu perfil na rede Instagram, como mostra a Figura 1.

Figura 1: Post de Fernanda Souza no Instagram

Fonte: https://instagram.com/p/zjKs0bBfmO/?taken-by=fernandasouzaoficial

Na postagem, a atriz confessou estar “em choque” com a imagem da visita inesperada

revelada entre seu pescoço e ombro direito, na região da clavícula. A postagem conquistou 215

mil curtidas e a pergunta feita pela atriz “Só eu tô vendo?” gerou comentários de mais de 33 mil

inscritos na rede até 23 de junho de 2015, quando foram coletados todos os dados para esta

análise. A maioria dos que comentaram o post revelaram ter também percebido a figura de

Jesus. Alguns demoraram um pouco para percebê-la, criando maneiras específicas para tal ou

auxiliando os demais na tarefa. Outros utilizaram o espaço de comentários para felicitar os

recém-casados. Houve quem, apesar das dicas, declarou não ter conseguido vê-la e ainda

aqueles que encontraram no post motivo para risos e piadas. Numa simples observação e sem

28

firmar uma estatística exata entre todos os comentários, cabe destacar que, seja para concordar

ou discordar de Fernanda, muitos se interessaram pelo tema. Discussão que logo ganhou forma

em sites de notícias e outras redes sociais, além de rádios, tvs, jornais e revistas, principalmente

em espaços voltados para celebridades.

A imagem original era uma selfie tirada pelo casal de padrinhos Luciano Huck e

Angélica, com os recém-casados, durante a festa. A dupla de padrinhos, apresentadores de tv,

além de comandar as selfies da noite, foram responsáveis por exibir os bastidores do casamento,

no programa Caldeirão do Huck, transmitido pela maior rede aberta de televisão do país, a rede

Globo. A selfie foi postada na mesma noite da cerimônia, pelos dois, no Instagram (Figuras 2 e

3).

Figura 2: Post de Angélica no Instagram

Fonte: https://instagram.com/p/zgc6B6rWBI/?taken-by=angelicaksy

Figura 3: Post de Luciano Huck no Instagram

29

Fonte: https://instagram.com/p/zgcpF5TMK7/?taken-by=lucianohuck

A selfie, no momento da postagem, não suscitou nenhum tipo de questionamento por

parte dos donos dos perfis sobre o detalhe percebido, posteriormente, por Fernanda. É provável

que, na pressa em partilhar as imagens em tempo real, nenhum dos dois tenha focado a atenção

sobre o ombro da afilhada. O conteúdo da maioria dos comentários, entretanto, também remete à

dúvida da atriz, demonstrando que quem tomou conhecimento sobre a postagem de Fernanda,

procurou a imagem original. Juntas, as postagens receberam mais de 283 mil curtidas e mais de

três mil comentários até a coleta de dados, números que, somados aos do post de Fernanda

demonstram a repercussão do caso.

Considerando as dificuldades relatadas, em alguns comentários, para ver a figura, um

site de notícias chegou a manipular a imagem para auxiliar o público a encontrar a face

escondida, como na Figura 4 abaixo.

Figura 4: Post e manipulação

30

Fonte: http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/02/fernanda-souza-

ve-imagem-de-jesus-cristo-em-foto-de-casamento.html

Essa demonstração didática do que deveria ser visto na imagem, com a sobreposição de

uma figura representativa de Jesus exatamente no local da suposta aparição sobre o peito da

atriz, revela as proporções que o post tomou, suscitando a preocupação da mídia em facilitar a

interpretação do público sobre o tema, tal qual foi feito por alguns usuários do Instagram nos

comentários. Outro site chamou até perito para explicar como o rosto se formou sobre o peito da

atriz (Figura 5).

Figura 5: Marcações de perito sobre a

imagem Fonte: http://celebridades.uol.com.br/noticias/redacao/2015/02/27/perito-compara-

jesus-do-casamento-de-fernanda-souza-a-imagem-em-marte.htm

Na análise, o perito dr. Ricardo Molina detalha, com marcações sobre a figura, como

ela teria se formado e indica que as bordas de uma segunda pele (linhas verdes), aliada à linha

da clavícula (linha vermelha) e às sombras do rosto (linha amarela) formaram os principais

traços da figura (UOL, 2015b), desconstruindo, por provas materiais, a suposição de uma

31

aparição sobrenatural. Por outro lado, houve site que consultou o padre Reginaldo Manzotti,

responsável por conceder o sacramento do matrimônio aos noivos, para compreender o

que poderia ter acontecido na imagem, algo que, para ele, revela a sensibilidade da atriz ao

sagrado (MIDIANEWS, 2015).

Público, perito, padre, todos, a seu modo, estão corretos e, para a dúvida inicial da atriz, é

necessário afirmar: é comum ver rostos onde eles naturalmente não estariam. Esse fenômeno é

tão corriqueiro, quanto a inocente brincadeira de encontrar formas em nuvens. E para aqueles

que não conseguiram ver o rosto de Jesus, também existe uma explicação.

Fenômeno conhecido

Desde 1757, o filósofo, historiador e ensaísta escocês David Hume esclareceu a

questão: há uma tendência universal em concebermos os outros como a nós mesmos e

transferirmos aos objetos qualidades próprias dos humanos, com as quais estamos

familiarizados. “Nós encontramos rostos humanos na lua, exércitos nas nuvens; e por uma

propensão natural, se não corrigida pela experiência e reflexão, atribuímos malícia ou boa-

vontade para cada coisa, que dói ou nos agrada” (HUME, 1757, p.19). Mais de dois séculos

depois, o astrônomo Carl Sagan ocupou-se da compreensão sobre o tema, a partir da visão da

lua a olho nu, em que o brilho irregular e as manchas escuras do satélite terrestre não

representam nenhum objeto próximo a nossa realidade. Para o reconhecimento de algo familiar,

“os nossos olhos conectam as marcas, enfatizando algumas, ignorando outras. Procuramos um

padrão e nós encontramos um” (SAGAN, 1995, p.44). Para o astrônomo, esse é um processo

irresistível e a forma mais familiar aos humanos é a do rosto, ligada aos nossos primeiros

contatos com o mundo externo.

Os humanos, como outros primatas, são muito agregadores. Gostamos

da companhia uns dos outros. Somos mamíferos, e o cuidado dos pais

com o jovem é essencial para a continuação das linhas hereditárias. Os

pais sorriem para a criança, a criança retribui o sorriso, e com isso uma

ligação é forjada ou reforçada. Assim que o bebê consegue ver, ele

reconhece faces, e sabemos agora que essa habilidade está programada

em nossos cérebros (SAGAN, 1995, p.46).

Da habilidade cerebral de reconhecimento de padrões, segundo o autor, surge um efeito

colateral: o mecanismo é tão eficiente “que às vezes vemos rostos onde não existem nenhum.

Reunimos pedaços desconectados de luz e sombra, e, inconscientemente, tentamos ver um

32

rosto” (SAGAN, 1995, p.46). Ou, em outras palavras, a partir do que não está definido de

maneira suficiente para o reconhecimento, formamos o que nos é mais familiar: rostos.

Klaus Conrad, em 1958, propôs o termo Apofenia (do grego apo, longe de, e phaenein,

mostrar) para descrever o fenômeno cognitivo de percepção de padrões ou conexões em dados

aleatórios. Como um tipo de Apofenia, a percepção de imagens ou sons específicos em

estímulos aleatórios é chamada de Pareidolia (do grego para, ao lado, com, e eidōlon,

diminutivo de eidos, imagem). Estudos recentes sobre Pareidolia são desenvolvidos em

diferentes partes do mundo, a partir de linhas de pesquisas distintas, mas que guardam uma

conexão com os estudos anteriores.

Dr. Kang Lee9, da University of Toronto, Canadá, mapeou a atividade cerebral durante

o processo de reconhecimento e descobriu que são ativadas as áreas de nível superior de

pensamento, relativas a planejamento e memória, especialmente a área facial fusiforme direita -

a parte do cérebro que responde a rostos reais, o que pode refletir na sensação de que estamos

olhando para um pensamento real e sentindo mesmo isso. Ou seja, os rostos vistos, por

Pareidolia, onde não estão naturalmente, produzem as mesmas reações subconscientes de

quando olhamos para uma pessoa real, aumentando a sensação de realidade desses rostos. Uma

das experiências consistiu em mostrar padrões de cinza semelhantes à estática de tv e os

participantes relataram ter visto uma pessoa na maior parte do tempo. Como explicação, Lee

afirma que “a retina registra uma imagem imperfeita e confusa que precisa ser arrumada pelo

cérebro”. A essa arrumação, o pesquisador denomina de "topdow processing", que poderia ser

traduzido como processo de varredura (BBC, 2015).

Dr. Tapani Riekki10 e equipe, da Universidade de Helsinki, na Finlândia, descobriram

que as pessoas religiosas são mais propensas a ver rostos em fotografias ambíguas do que ateus,

o que pode estar relacionado com os padrões memorizados e as nossas expectativas sobre o que

estamos vendo. Dra. Sonja Windhager11, da Universidade de Viena, na Áustria, realizou um

estudo sobre a tendência ocidental de ver rostos nas frentes de carros. Para isso, viajou à Etiópia

rural para descobrir se, lá, as pessoas veem da mesma maneira, hipótese que foi comprovada. O

estudo considerou ainda características específicas dos carros atribuídas a gêneros masculino e

feminino ou a percepção de jovialidade, sublinhando a forma como o cérebro está preparado

para ler informações biológicas básicas, como idade ou sexo de qualquer coisa que lembra

9 Artigos sobre as pesquisas desenvolvidas no laboratório de Dr. Lee podem ser acessadas gratuitamente pelo

http://www.kangleelab.com/Publications.html 10 As pesquisas realizadas pela equipe estão disponíveis gratuitamente em artigos no http://www.researchgate.net/

profile/Tapani_Riekk. 11 Alguns artigos da dra. Windhager possuem acesso gratuito no http://www.anthropology.at/people/swindhager.

33

vagamente um rosto. Outros estudos da doutora apontam a preferência por formas nos carros e

afetaram o design nas fábricas como estratégia para aumentar as vendas (BBC, 2015).

A Pareidolia auxilia os membros da Sociedade dos Céticos a explicar fenômenos

paranormais, por exemplo. Para o psicólogo norte-americano, diretor da Sociedade e editor da

revista Skeptik, dr. Michael Shermer12, muitos dos fenômenos visuais, aparentemente de ordem

paranormal ou extraterrena, estão relacionados com um nível simples de compreensão dos

envolvidos, ligado ao nosso repertório e crenças. A explicação, um pouco mais complexa, vem

da tendência em ver rostos, mesmo quando ninguém nos estimula ou induz a isso. “Se eu não

dissesse a vocês o que enxergar, ainda sim veriam o rosto, porque fomos programados pela

evolução para enxergar rostos. Rostos são importantes socialmente para nós” (TED, 2015). O

pesquisador considera que, quando há o estímulo ou indução, não há erro na interpretação da

imagem: todos veem o que se pretende que seja visto. Isso leva a pensar que, a não ser que

existam problemas nas nossas funções cognitivas, é esperado que vejamos rostos em tudo e que,

baseados no nosso repertório de padrões memorizados e crenças, vemos o que queremos ver.

Se compararmos essas conclusões com os estudos de dr. Lee, não apenas vemos o que

queremos, como acreditamos que o que estamos vendo é real. Se temos uma ligação forte com o

sagrado, figuras representativas de Deus, Jesus Cristo, santos, e histórias de aparições fazem

parte de nosso repertório e, conforme as pesquisas de dr. Riekki, aumentam a tendência em ver

rostos em imagens ambíguas. O que leva a pensar que o padre Reginaldo Manzotti tem razão,

quando acredita que os motivos para a interpretação de Fernanda sobre o fenômeno visual

presente na selfie como sendo a figura de Jesus Cristo, estão relacionados com a sensibilidade da

atriz ao sagrado. A partir das experiências realizadas pela dra. Windhager e pelo dr. Shermer,

podemos reafirmar que a tendência em ver rostos é universal, independente do lugar ou

nacionalidade dos indivíduos envolvidos no fenômeno. No caso do post de Fernanda Souza

essas marcas foram bem definidas e analisadas pelo perito dr. Molina, para derrubar a crença de

que o fenômeno era sobrenatural. Não só tendemos a perceber algo específico, familiar (não

necessariamente rostos, mas formas conhecidas), em marcas aleatórias, como atribuímos sentido

a esse percebido. E a construção de sentido está relacionada com nosso repertório de padrões

memorizados, sejam eles ligados, por exemplo, à religiosidade ou a questões culturais de

gênero, entre inúmeros outros padrões.

Se não conseguimos ver, nem por indução, o que temos tendência universal e natural

para ver, podemos pensar que ou existem problemas de cognição, ou a imagem padrão a qual os

12 Dr. Shermer também disponibiliza artigos gratuitos pelo http://www.michaelshermer.com/category/essays/.

34

outros estão remetendo os estímulos aleatórios não faz parte do nosso repertório visual ou não

atribuímos importância a ela em nosso repertório cultural (usando os termos do padre, não

somos sensíveis a esse padrão cultural). Isso leva a considerar que todos nós estamos sujeitos

aos mesmos mecanismos de percepção e representação visuais para estabelecer significados.

Mas como se formam os padrões em nossa memória? De que maneira os estímulos visuais são

percebidos por nossa retina e representados em nosso cérebro no processo de significação, para

que dados aleatórios sejam interpretados como conhecidos? Em busca dessas respostas, dois

autores, Justo Villafañe e Norberto Mínguez (2002, 2000), ao estabelecer a Teoria Geral da

Imagem como modelo para análise do discurso visual, encontraram nas ideias da Gestalt,

originadas entre 1930 e 1940, as bases para elucidar o problema que até hoje confunde e

provoca discussões.

Gestalt explica

A Teoria Geral da Imagem, de Villafañe e Mínguez (2002, 2000), compreende o

funcionamento e comportamento cerebrais no momento da produção e recepção de imagens a

partir dos principais conceitos gestálticos, para explicar os efeitos de sentido produzidos, seja

por elementos próprios da imagem, seja pelos receptores no processo de significação. Para os

autores, a vertente psicofísica deixa à margem, no objeto de estudo, a via cerebral da percepção,

ou seja, os mecanismos internos do processo perceptivo, depois da representação retiniana dos

estímulos; a vertente neurofisiológica estuda esses mecanismos sob o ponto de vista funcional,

com aspectos válidos, mas somente a Gestalt apresenta o ponto de vista fenomenológico do

processo.

Os estudos gestálticos partem da premissa de Von Ehrenfels (1890) de que a ideia do

todo está acima das partes de um estímulo e estabelecem alguns princípios básicos, relacionados

entre si, a que todos estamos submetidos no processo de percepção e representação de uma

imagem, dentre eles: o isomorfismo, a pregnância e o campo. Melhor dizendo, todos nós vemos

segundo esses princípios. A Fernanda Souza, o Thiaguinho, a Angélica, o Luciano Huck, seus

fãs e seguidores no Instagram, o público em geral, o perito dr. Ricardo Molina, o padre

Reginaldo Manzotti, eu, você, crianças, jovens adultos e idosos, desde que dotados do sentido da

visão e sem problemas de saúde nas funções cognitivas, vemos do mesmo jeito. O que pode

variar é o repertório de padrões memorizados.

35

Em linhas gerais, o isomorfismo está associado à ideia de contorno e é descrito

(KÖHLER, 1972; BORING, 1942) como a relação correspondente entre a realidade e a

experiência de realidade, o estímulo e o padrão memorizado, baseado nas características

estruturais do objeto, considerando que todas as partes do objeto estão relacionadas e possuem a

mesma forma (Gestalt). Nosso cérebro faz uma equivalência estrutural entre “o objeto

reconhecido como tal e a estrutura correspondente ao conceito genérico de classe a que esse

objeto pertence” (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002, p.91-92).

A pregnância está relacionada com a qualidade que rege a organização do campo

perceptivo (WERTHEIMER, 1960). O observador estabelece hierarquias na imagem, a partir

dos contornos internos do objeto e externos do fundo, levando à predominância de uma

organização perceptiva. Como na realidade, as formas estão amalgamadas, é necessário um

fechamento, um complemento ou semelhança entre o estímulo real e o conceito genérico

(padrão memorizado), o que leva à forma do estímulo a adquirir pregnância. Trata-se da "força

da estrutura do estímulo, capaz de impor uma determinada organização perceptiva e de

constituir fenomenicamente um objeto visual" (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002, p.94).

Derivados da pregnância, dois tipos de leis regem a organização perceptiva, definidas

por Wertheimer (1960) como intrínsecas e extrínsecas. Esse último tipo, as leis extrínsecas, são

relativas ao conjunto de normas mais próximas das leis de aprendizagem, do que da organização

perceptiva. Estão ligadas às experiências passadas e à formação de padrões a partir dessas

experiências e do aprendizado (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002). É algo que varia de pessoa

para pessoa e determina o repertório de padrões memorizados. O que pode explicar porque,

quem possui, em seu repertório, ícones religiosos, tenha tendência maior em associá-los ao

reconhecimento desses ícones em imagens que reúnem estímulos aleatórios que possam ser

equivalentes, ou, em termos teóricos, isomórficos.

As leis intrínsecas estão relacionadas com aspectos mais perceptivos, sobre a

organização estrutural do estímulo, do que de experiência e aprendizagem e baseiam-se no

princípio de simplicidade. São elas: lei do fechamento, lei da articulação figura-fundo ou

mascaramento, lei da boa continuidade e direção, lei da proximidade e lei da semelhança. A lei

do fechamento determina que, no processo de percepção, toda figura incompleta será acabada

pelo observador, a partir do trabalho perceptivo, para maior simplicidade e estabilidade. A lei da

articulação figura-fundo ou mascaramento demonstra que uma zona se impõe como figura

(endótópica) e outra como fundo (exotópica). Segundo Kanizsa (1986), a função de figura,

frente a um fundo, depende da articulação de fatores como tamanho relativo, relações

36

topológicas, tipos de contornos (convexos e simétricos, frente a côncavos e assimétricos) e

orientações horizontal e vertical. A partir dessa articulação, uma figura mais simples pode ser

mascarada em uma estrutura complexa, perdendo sua identidade e deixando de ser reconhecida,

como se fosse incluída pela outra (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002).

A lei da boa continuidade e direção, indica que toda configuração visual, formada por

elementos contínuos e ininterruptos, é mais estável e percebida mais facilmente como

independente. Segundo a lei da proximidade, os estímulos próximos são percebidos como

integrantes de uma mesma figura. Pela lei da semelhança, mantida a paridade das condições que

intervêm na segregação, os elementos que possuem semelhança (por forma, cor, localização...)

tendem a se organizar como constitutivos de uma mesma figura (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ,

2002).

Já o último princípio, o campo, diz respeito ao que se registra nas retinas (campo

visual) e onde culmina a percepção visual, com a representação do estímulo (campo cerebral).

Esses dois campos são diferentes entre si, mas isomórficos, graças a um trabalho perceptivo que

tem diferentes manifestações, chamadas processos de campo e relacionados com as leis

intrínsecas da pregnância, como o fechamento de figuras geométricas, a regularização de um

estímulo e o agrupamento de estímulos semelhantes. Os processos de campo “fazem com que os

objetos alcancem uma Gestalt e sejam conceituados” (VILLAFAÑE, 2000, p.58). É nesse ponto

que se formam os conceitos genéricos sobre um objeto. A diferença entre o estímulo (parecido

com um rosto) e a experiência (um rosto) demonstra que "foi produzido um trabalho perceptivo

aplicado a corrigir o estímulo original" (VILLAFAÑE e MÍNGUEZ, 2002, p.93).

É o processo de campo, por exemplo, que faz com que fechemos mentalmente um

círculo, cuja linha não estava fechada, para reconhecê-lo como círculo. Esse trabalho perceptivo

ocorre porque o campo cerebral é dinâmico, devido às forças de atração, coesão, entre processos

semelhantes. Osgood (1973) descreve que as forças serão maiores, quanto maiores forem as

semelhanças qualitativa e de intensidade entre os processos desenvolvidos no campo visual e

quanto menores forem a distância entre os processos e o intervalo entre eles.

Baseada nesses princípios gestálticos, a Teoria Geral da Imagem considera que a

organização perceptiva está relacionada com princípios de simplicidade e economia, e de

composição normativa dos elementos da imagem. Toda imagem guarda um grau de

correspondência com a realidade que modeliza e quanto mais simples sua estrutura melhor será

a compreensão, a retenção e a lembrança da imagem na mente, pois remeterá às formas simples

dos padrões memorizados. Como preconizou Arnheim (1979, p.70), “todo esquema estimulador

37

tende a ser visto de maneira tal que a estrutura resultante seja tão simples quanto permitam as

condições dadas”. A partir desses princípios, podemos afirmar que a tendência sempre é de

simplificar a imagem vista. Para o reconhecimento de uma imagem, recorremos às formas

simples, das quais derivam todas as outras.

As marcas, traços ou contornos mais simples e próximos uns dos outros, são agrupados

e conceituados no processo de reconhecimento de uma imagem. Recorrer à forma de um rosto,

uma das primeiras formas conceituadas e transformadas em padrões memorizados no nosso

desenvolvimento, é o arranjo mais simples que nosso cérebro encontra para estabelecer o

reconhecimento de estímulos aleatórios. Foi o que aconteceu com Fernanda Souza diante da

selfie postada no Instragam. É o que acontece todos os dias com aqueles que são dotados do

sentido da visão e de funções cognitivas saudáveis.

Considerações

Fenômenos visuais de diferentes naturezas são explicados pela ciência, mas o

conhecimento científico nem sempre está acessível ao público em geral. Inúmeros podem ser os

motivos: falta de divulgação, desuso, atração por outras linhas de pesquisa... O fato é que o

desconhecimento ainda gera discussões e suposições sobre fenômenos já descritos, ou gera

novas descrições sem base nas antecessoras, o que provoca a sensação de que, se ainda há

dúvidas, pouco adiantou tê-los estudado. O caso do post da atriz Fernanda Souza, à luz das

teorias, é um exemplo de como a ciência pode auxiliar a explicar o que muitos desconhecem.

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REVISTA QUEM. Exclusivo! Veja fotos inéditas do casamento de Fernanda Souza e

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WERTHEIMER, Max. Princípios de organización perceptual. Buenos Aires: Tres, 1960.

A fotografia vernacular digital e a estetização

da vida cotidiana

Manuela de Mattos Salazar1

RESUMO

Neste trabalho, evidencia-se um quadro conceitual em que a prática vernacular da fotografia

digital contemporânea tangencia noções sobre estetização da vida cotidiana. Pesquisam-se

aqui não somente rupturas, mas deslocamentos na esfera do sensível que acendem as fagulhas

das transformações estéticas vislumbradas hoje na produção fotográfica vernacular,

principalmente no aplicativo social Instagram. A ênfase num olhar estético sobre o qualquer

um, sobre o cotidiano, a valorização do detalhe no universo de consumo estetizado e as

conseqüentes mudanças na prática fotográfica são alguns dos pontos aqui abordados.

40

Palavras-chave: Fotografia Vernacular; Estetização; Cotidiano; Regime Estético.

INTRODUÇÃO: Por uma ecologia visual

Na obra Other People’s Photographs, o artista visual alemão Joachim Schmid tenta

domar o aparente caos da fotografia vernacular2

digital contemporânea. Em obras anteriores,

Schmid trabalhava com found photography, fazendo uma curadoria de fotografias

encontradas de autores desconhecidos. Sua busca precisou tomar um novo rumo com a

diminuição da impressão de fotografias, o conseqüente declínio das imagens que encontrava,

e uma vontade de olhar menos para o passado e mais para o contemporâneo. De 2008 a 2011,

Schmid iniciou um trabalho de caça ao tesouro na rede social de imagens Flickr, fazendo

curadoria e edição de fotografias alheias encontradas na página de mais atuais da rede.

Durante a busca, ele enxergou categorias temáticas que se repetiam em diversos

momentos e assim compôs uma biblioteca de 96 livros sobre os mais diversos temas, apenas

com imagens apropriadas da rede. Há livros com imagens sobre “refeições de aviões”,

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco,

especialista em jornalismo digital pela Aeso – Faculdades Integradas Barros Melo, e graduada em Comunicação

Social – Jornalismo na Universidade Federal do Paraná. Email: [email protected]

2

Segundo Batchen (2000) é a fotografia excluída da história da fotografia: a fotografia comum, feita ou

comprada por pessoas comuns, de 1839 até hoje. “A fotografia que preocupa o lar e o coração, mas raramente o

museu ou a academia” (BATCHEN, 2000, p. 57, tradução nossa). São imagens pouco estudadas, o que faz delas

o parergon da fotografia, a parte de sua história empurrada para as margens. “Como um parergon, a fotografia

vernacular é a presença faltante que determina a identidade histórica e física de seu meio; é o que decide o que

não é a fotografia adequada” (BATCHEN, 2000, p. 59, tradução nossa2).

41

“mãos”, “quartos de hotéis”, “objetos no espelho”, “pizza”, ou mais comuns como “self”,

“comida”, ou curiosos, como “trópico de capricórnio” (fig 1), com 32 páginas de imagens de

pessoas posando ao lado de placas que indicam por onde passa a linha imaginária.

Figura 1: Página do livro “Tropic of Capricorn” de Joachim Schmid

Fonte: Other People’s Photograph by Joachim Schmid - https://otherpeoplesphotographs.wordpress.com

As categorias se assemelham às hashtags do Instagram, ferramenta de indexação de

conteúdo que permite visualizar postagens mais atuais sobre determinado assunto em redes

sociais. Se realizada no Instagram, a pesquisa visual de Schmid poderia ter sido diferente, já

que para acessar determinada categoria é preciso buscá-la de maneira voluntária,

contrariando, em parte, a lógica de acaso da busca no Flickr. Ao digitar #tropicofcarpricorn

(fig 2) no Instagram, por exemplo, encontram-se mais de 2 mil imagens semelhantes às do

livro de Schmid.

Figura 2: #TROPICOFCAPRICORN no Instagram

Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015

A partir da escolha de temas conectados diretamente à vivência cotidiana, o trabalho

de Schmid reflete a onda de transformação vivida pela fotografia vernacular hoje, onda essa

que se fortalece com o advento do Instagram. Pesquisando o Flickr, Susan Murray (2012),

detecta o surgimento de uma “estética do cotidiano” na prática vernacular. Para ela, a

fotografia hoje é menos uma embalsamadora do tempo, conforme a visão de Bazin, e mais

algo transitório, maleável, imediato, e efêmero, a partir da lógica do feed — o carrossel de

imagens das redes sociais, em que a cada segundo, novos conteúdos substituem os “velhos”,

compartilhados segundos antes.

Ao entesourar e justapor imagens encontradas, Schmid não nos mostra apenas uma

repetição temática ou essa ênfase no cotidiano, mas demonstra também como a fotografia

vernacular digital tem acentuado caráter estético. O que antes era fruto do acaso, hoje parece

advir de um olhar treinado pelo bombardeio imagético. No Instagram, cuja principal premissa

é o compartilhamento de imagens previamente editadas, filtradas, coloridas, transformadas de

acordo com os desejos do usuário, essa preocupação estética é esperada, automatizada,

mandatória.

O momento que se ensaia hoje na fotografia vernacular digital difere de anteriores não

de maneira essencial, e sim de modo particular, como uma transição para um futuro ainda

pouco identificável, mas suas principais características – a fugacidade, a transformação, o

caos, a rapidez, a desmemória, o consumo – ainda se conectam de maneira enfática e

acentuada à ideia de modernidade. Neste artigo, analisaremos conceitos chave para

pluralizarmos esta questão.

O REGIME ESTÉTICO

Para Rancière (2009), dentro da tradição ocidental da arte temos três grandes regimes

de identificação: o primeiro, regime ético, apresenta uma arte subsumida na questão das

imagens, ligada a questões da divindade, do significado; em seguida, temos o regime poético

ou representativo, que enfatiza a arte na dicotomia poiésis/mímesis. Nesse momento, surge a

preocupação com os modos de fazer e de apreciar a arte. A seguir vem o regime estético, em

que a identificação da arte não se faz mais por distinção de maneiras de fazer, mas do modo

de ser sensível próprio aos produtos da arte.

O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e

desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas,

gêneros e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barreira mimética que distinguia as

maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem

das ocupações sociais. Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destrói ao

mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a

autonomia da arte e a identidade de suas formas com as formas pelas quais a vida se

forma a si mesma. (RANCIÈRE, 2009, p. 33-34)

Deste regime, o autor destaca o surgimento das artes mecânicas no século XIX, que

promove uma modificação de paradigma na arte para uma nova relação temática: a

possibilidade de dar visibilidade ao indivíduo. No regime estético, o anônimo não só pode se

tornar arte, mas também possui uma beleza específica. “A revolução estética é antes de tudo a

glória do qualquer um” (Idem, p. 48). Esta libertação temática das artes visuais possibilita o

entendimento da fotografia como um modo legítimo de fazer estético:

Para que um dado modo de fazer técnico – um uso das palavras ou da câmera – seja

qualificado como pertencendo à arte, é preciso primeiramente que seu tema o seja. A

fotografia não se constituiu como arte em razão de sua natureza técnica. (...)

Também não foi imitando as maneiras da arte que a fotografia tornou-se arte.

Benjamin mostra-o bem a propósito de David Octavius Hill: é através da pequena

pescadora anônima de New Haven, e não de suas grandes composições picturais,

que ele faz a fotografia entrar no mundo da arte. (Idem, p. 47-48)

Benjamin (2012, escrito em 1931) chama atenção para algo de “estranho e de novo”

na fotografia, algo que se encontra preservado na vendedora de peixes de New Haven,

fotografada entre 1843 e 1848 por David Octavius Hill (fig 3): em seu discreto olhar para o

chão, no seu recato “tão displicente e tão sedutor”.

Figura 3: Jeanie Wilson, pescadora, David Octavius Hill e Robert Adamson

Fonte: National Portrait Gallery, Londres - http://www.npg.org.uk

Nele, “preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que

não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que

também aqui ainda é real, e que não quer reduzir-se totalmente à arte” (BENJAMIN, 2012, p.

100). Nós a observamos, buscando a “pequena centelha do acaso”, aquela marca do tempo e

da realidade que chamuscou esse retrato há mais de um século. Queremos “encontrar o lugar

imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje no “ter sido assim” desses minutos únicos,

há muito extintos, e com tanta eloqüência que, olhando para trás, podemos descobri-lo”

(Idem, p. 100).

A modernidade surge no período em que a literatura, as artes visuais e a ciência

passam à visão dos grandes acontecimentos para “identificar os sintomas de uma época,

sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas

camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios” (RANCIÈRE, 2009,

p.49). Para Benjamin (2012), a fotografia é capaz de nos revelar o “inconsciente ótico”, nos

mostrar o mundo de imagens que habita as coisas mais minúsculas no correr da duração, e, e

que com ela, tornam-se grandes, formuláveis.

É como na fotografia favorita de Alfred Stieglitz, da mulher de um pescador holandês,

feita em 1894, em Katwyk (fig 4). Ela se dedica a reparar uma rede: “a atenuação dos

contornos ao redor da mulher sentada de perfil se justifica pela inquietude que realça a

atenção dada a esse trabalho, e o universo inteiro de vida e de pensamento que nele se

concentra nele” (RANCIÈRE, 2011, p. 55, tradução nossa3). Para Stieglitz, a fotografia

expressa a vida da jovem holandesa: em cada ponto que ela conserta da rede de pesca se

revela o rudimento da própria existência. Como definiu o crítico Paul Rosenfeld, na ocasião

de uma exposição em 1921, para Stieglitz não há no mundo qualquer objeto que não seja de

extrema importância metafísica. “Os mais humildes objetos parecem ter uma vida mágica”

(In: RANCIÈRE, 2011, p. 241).

3

No original: “(…) la atenuación de los contornos alrededor de la mujer sentada de perfil se justifica por la

inquietud de pone de relieve la atención prestada al trabajo y el universo entero de vida y pensamiento que se

concentra en el”

Figura 4: Mending Nets, Alfred Stieglitz

Fonte: Photoseed - http://photoseed.com/collection/single/netzflickerin/

Para Rancière (2011), ao abordar a “prosa do mundo” a arte se redefine por esses

mergulhos, trocando “as idealidades da história da forma e do quadro, pelas do movimento da

luz e do olhar” (Idem, p. 11, tradução nossa4). Assim, constrói seu próprio domínio, diluindo

qualquer especificidade sobre o que é arte, e borrando as fronteiras que a separavam do

mundo cotidiano, movimento esse que é próprio do regime estético.

Este conceito nos parece, então, uma ferramenta analítica para melhor nos

aproximarmos do objeto da fotografia vernacular digital contemporânea, um tipo de fazer

fotográfico que enfatiza o mundano, o banal, o irrisório, o cotidiano, o qualquer um. Assim

como Murray detecta sobre o Flickr em 2008, um passeio pelo Instagram revela que um dos

tipos mais comuns de fotografia nesta rede é a do detalhe, do miúdo. Juntas, por exemplo, as

hashtags #detail (detalhe) e #details compõem um universo de quase seis milhões de imagens

de todas formas de detalhe da vivência cotidiana dos usuários da rede (fig 5). Em português,

temos mais de meio milhão de imagens marcadas com #detalhe ou #detalhes, além de 12 mil

dedicadas à exploração do olhar urbano, marcada com a hashtag #detalhesdacidade (fig 6)

4

No original: “(…) las idealidades de la historia, la forma y el cuadro por las del movimiento, la luz y la mirada

(…)

Figura 5: #Detail no Instagram

Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015

Figura 6: #Detalhesdacidade no Instagram

Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015

Uma fotografia que promove e estimula um olhar estetizado sobre a vida de um

indivíduo comum só nos parece possível na arte desobrigada de regras e hierarquias,

autônoma e múltipla. A difusão desse olhar estetizante foi um processo lento e gradual, que

hoje ultrapassou os limites do universo artístico para chegar aos mínimos detalhes da vivência

cotidiana. Fazendo esta conexão com as ideias de Rancière, não queremos afirmar que todos

os usuários do Instagram têm a pretensão de fazer arte, ou que todas as imagens do Instagram

são artísticas, e sim que as fotos por eles produzidas são imagens estetizadas, frutos da

experiência sensível desses indivíduos no mundo, só possíveis devido à crescente valorização

estética do detalhe e da vida cotidiana.

A ESTETIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA

Para Featherstone (1995), há usualmente três sentidos concebidos para explicar a

questão da estetização da vida cotidiana. Primeiro, o conceito pode designar o apagamento

das fronteiras entre arte e cotidiano promovido pelas vanguardas no início do século 20. Há

aqui um movimento duplo: um desafio de tentar dissimular a aura e questionar a posição da

obra de arte no espaço do museu e da academia, e uma suposição “de que a arte pode estar em

qualquer lugar ou em qualquer coisa” (FEATHERSTONE, 1995, p. 99).

Marcel Duchamp é um exemplo de artista que dialoga com essa maneira, trazendo

objetos banais para as salas de exposição, ready-mades, como A fonte (1917). Um mictório

branco assinado sob o pseudônimo de r.mutt. foi inicialmente submetido à exposição da

Society of Independent Arts e Nova York, e negado, mesmo que a aceitação fosse apenas

mediante o pagamento de taxa. Do original resta apenas uma fotografia (fig 7), feita por

Alfred Stieglitz. Hoje, diversas cópias autorizadas estão espalhadas em museus pelo mundo.

Figura 7: “A fonte”, 1917, Marcel Duchamp. Fotografia: Alfred Stieglitz

Fonte: Cabinet Magazine - http:// www.cabinetmagazine.org/issues/27/duchamp.php

Pensando na fotografia praticada no Instagram, parece haver um elemento

duchampiano na maneira de estetizar o cotidiano, na forma de olhar o mundo. O usuário

@widestreamfilms (o nome é sempre marcado com o símbolo arroba), ao enxergar um vaso

sanitário encostado no meio fio, não hesitou em o clicar com seu celular e compartilhar a

imagem (fig 8) com a seguinte legenda “Meu vizinho Duchamp está se mudando... #duchamp

#beauty #truth #VSCOcam #london #kilburn #widestramfilms”. Quase cem anos depois de A

fonte, encontrar beleza num objeto comum não é mais algo chocante ou ofensivo, é algo

compartilhável.

Figura 8: #Duchamp: foto de @widestreamfilms

Fonte: Instagram – acessado em agosto de 2015

Num segundo sentido, estetização da vida cotidiana designa projetos de transformar a

a vida em obra de arte. Há tempos, artistas nutrem este fascínio, cujo início podemos remeter

a era dos dândi no século XIX. A busca por novos gostos e sensações estéticas estão no centro

dessa “filosofia” de vida. Featherstone (1995) associa o duplo foco dessa lógica – a

necessidade de dar à vida uma forma que proporcione prazer estético, e uma vida de consumo

estético – ao desenvolvimento do consumo de massa, à construção de estilos de vida distintos.

Na fotografia vernacular digital contemporânea, a ênfase no “eu” é notável, seja na

sua prática mais comum hoje, o selfie, ou na exibição de detalhes corriqueiros do dia a dia,

como por exemplo, o que se veste, com a popular hashtag #lookdodia (fig 10), em que

usuários e usuárias se fotografam para mostrar quais roupas escolheram para determinada

ocasião. Bauman (2008) afirma que as pessoas na era do consumo são estimuladas a

promover uma mercadoria atraente e desejável, utilizando-se dos melhores recursos para

aumentar o valor do produto que vendem no mercado: elas mesmas.

Figura 10: Perfil do usuário @felipeveloso

Fonte: Instagram - captado em outubro de 2014, pelo aplicativo Flow for Instagram.

Num terceiro sentido, a estetização da vida cotidiana “designa o fluxo veloz de signos

e imagens que saturam a trama da vida cotidiana na sociedade contemporânea”

(FEATHERSTONE, 1995, p. 100). Essa concentração de imagens nos empurra para uma

sociedade nova, um mundo simulacional, no qual Baudrillard enxerga a abolição entre a

distinção do que é realidade e do que é imagem, ou seja, a vida cotidiana absolutamente

estetizada. Simulations (1983) parece descrever a era da internet e das redes sociais, em que

contradições entre real e imaginário são difusas. O irreal não se localiza mais nos sonhos ou

nas fantasias: ele tem uma semelhança alucinatória com o real. “No limite desse processo de

reprodutibilidade, o real não é somente o que pode ser reproduzido, mas aquilo que está

sempre já reproduzido. O hiper-real.” (BAUDRILLARD, 1983, p. 146, tradução nossa5).

Algo que transcende a representação, é totalmente simulação, no mundo codificado.

O segredo do surrealismo já era que a realidade mais banal podia se tornar surreal,

mas somente em certos momentos privilegiados que não obstante estão conectados

com a arte e com o imaginário. Hoje, é a realidade cotidiana em sua totalidade –

política, social, histórica, e econômica – que de agora em diante incorporam a

dimensão simulatória do hiper-realismo. Por toda parte já vivemos numa alucinação

estética da realidade. (Idem, p. 147, tradução nossa6)

No mundo do hiper-real, a fascinação estética está em todos os cantos. A arte hoje está

em “reprodução indefinida”: tudo que se duplica, até a realidade mais banal, é identificado

sob o signo da arte, se torna estético. Assim, os conceitos de Baudrillard nos fazem refletir

sobre as “simulações” que a fotografia vernacular digital promove sobre a realidade. A

capacidade da fotografia de representar o real e o tempo passado de maneira verossímil é uma

crença comum entre fotógrafos. O “isso-foi” barthesiano não é contestado. Mas hoje, com a

fotografia digital, as possibilidades de transformação da imagem são tão simples quanto

automatizadas. No Instagram, transformar, filtrar, colorir, dar outro aspecto, estetizar a

imagem é algo estimulado, praticamente a essência do aplicativo. É o “isso-foi” editado.

Nessa hiper-realidade, parece que não se espera mais que a fotografia reproduza o real com

perfeição: já se espera o real filtrado, o real transformado, o real não mais real: o real

estetizado.

A ERA TRANSESTÉTICA

Para Lipovetsky e Serroy (2015), na era contemporânea, os sistemas de produção, de

distribuição e de consumo estão “impregnados, penetrados, remodelados por operações de

natureza fundamentalmente estética” (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p. 13).

Se é verdade que o capitalismo engendra um mundo “inabitável” ou “o pior dos

mundos possível”, ele também está na origem de uma verdadeira economia estética

e de uma estetização da vida cotidiana: em toda parte o real se constrói como uma

imagem, integrando nesta uma dimensão estético-emocional que se tornou central na

concorrência que as marcas travam entre si. (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p.

14)

5

No original: “At the limit of this process of reproductibility, the real is not only what can be reproduced, but

that which is always already reproduced. The hyperreal.” 6

No original: “Surrealism's secret already was that the most banal reality could become surreal, but only in

certain privileged moments that nevertheless are still connected with art and the imaginary. Today it is quotidian

reality in its entirety-political, social, historical and economic- that from now on incorporates the simulatory

dimension of hyperrealism.”

Esse processo de estilização da vida e do mundo tem raízes muito mais antigas do que

a modernidade. Os autores o dividem em quatro modelos; o primeiro deles, a artealização

ritual, que vigorou por milênios, quando as artes não possuíam intenção estética tendo em

vista o consumo “desinteressado” e sim uma finalidade ritual. Na estetização aristocrática,

que perdura da Idade Média ao século XVIII, o artista se separa do artesão e surge a ideia do

poder criador, do artista genial que assina suas obras. Neste período, acontece a criação de um

conceito unitário de arte no seu sentido moderno.

A partir do século 18, temos a moderna estetização do mundo, que liberta a arte de

seus poderes religiosos ou nobiliárquicos, e adquire um grau de autonomia, com instâncias de

consagração internas. A arte se torna o caminho da idealidade da vida, nada pode ser mais

precioso ou mais sublime: é o caminho para se superar os problemas do mundo e da própria

existência. Para afirmar sua autonomia, os artistas da modernidade se apropriam de elementos

do real e da vida comum para fins puramente estéticos. Estilizam tudo: o medíocre, o trivial, o

indigno, o espaço urbano. Inicia-se aqui a era das artes reprodutíveis, das artes de massa,

ampliando o consumo estético para a escala da maioria.

Há ainda uma quarta e atual fase: a era transestética. Nela, “as vanguardas são

integradas na ordem econômica, aceitas, procuradas, sustentadas pelas instituições oficiais”

(Idem, p. 27). A arte, ou melhor, a hiperarte, encontra-se infiltrada em todos os cantos do

mundo, da indústria, do comércio e de nossa vida cotidiana. A hiperarte perde o caráter

sublime, não expressa mais a transcendência: funciona como uma estratégia de marketing,

para assegurar que os desejos sejam respondidos, para aumentar faturamentos. Os autores

falam de um hiperconsumo estético, ou seja, um consumo de sensações, de experiências

sensíveis, um consumo hedonista e emocional.

Os valores preconizados hoje por esse capitalismo do consumo – hedonismo, criação,

realização de si, autenticidade, busca por experiências – são justamente aqueles celebrados

por artistas boêmios do século XIX. Assim como os dândis e estetas, o capitalismo de hoje

prega antitradiconalismo, anticonvencionalismo, antiburguesismo, antipuritanismo, mas o faz

não por meio da negação da normatividade moral e religiosa, mas como um convite para

“aproveitar a vida” pela seleção de estilos e experiências dentro da oferta dos bens de

consumo.

A instantaneidade nominal do aplicativo Instagram demonstra de maneira

característica este hiperconsumo estético. O aplicativo agrega três grandes características do

contemporâneo: o individualismo, o exibicionismo e o voyeurismo. Em sua essência, existe a

13

necessidade de exibir constantemente estados emocionais, quase sempre positivos, através de

imagens, ou representações. A vivência de momentos de prazer é visível em qualquer visita

pelo feed do aplicativo, assim como a representação estetizada do banal, do cotidiano e até

mesmo do tédio. A fotografia digital vernacular hoje parece ligada a este consumo hedonista e

emocional da vida, de compartilhamento da experiência sensível, com a espera de aprovação

na forma de “likes”. “Com o incremento do consumo, somos testemunhas de uma vasta

estetização da percepção, da sensibilidade paisagística, de uma espécie de fetichismo e do

voyeurismo estético generalizo” (Idem, p. 31).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos olhar para o passado e para o presente, analisando três

momentos teóricos que contemplam mudanças na esfera do sensível, da modernidade até a

contemporaneidade. Em Rancière, abordamos o regime estético, a arte autônoma que se abre

ao surgimento das artes mecânicas com a valorização do indivíduo comum, do qualquer-um.

Esse momento é especialmente importante para a expansão do cotidiano como temática, para

o crescimento da importância do detalhe como uma forma de revelar os principais sintomas

de uma época, e para o apagamento das fronteiras entre arte e cotidiano. Ao olharmos para a

fotografia feita nessa época podemos vislumbrar os deslocamentos no entendimento estético

que proporcionam o gradual caminho que nos traz à fotografia feita hoje.

Com Baudrillard, mergulhamos num mundo onde a fascinação estética está por tudo.

No hiper-real, não há mais contradições entre o que é real e o que é imaginado. Os conceitos

do autor são especialmente importantes num momento em que a fotografia vernacular digital

é essencialmente editada, filtrada, reconfigurada, muito além da codificação inicial no sensor

da câmara fotográfica. É um real filtrado, um real já estético. Ou seja, no mundo hiper-real do

Instagram, são realmente difusas as fronteiras entre o que real, o imaginado, o desejado.

Por fim, Lipovetsky e Serroy nos transportam à era transestética, ao mundo da

hiperarte, uma arte não mais sublime ou transcendente, não mais restrita aos critérios de

consagração do meio artístico, ou restrita aos espaços de exibição. Uma arte não apenas feita

por artistas: “somos todos artistas”. Para os autores, é uma arte que é estratégia de marketing,

caminho para responder a desejos, aumentar faturamentos, uma arte para o mercado. No

mundo do Instagram, as imagens da hiperarte se espalham, se acumulam e criam um

emaranhado de visões de mundo, impactados pelo hiperconsumo, pelo fetichismo, pelo

voyuerismo, pelo individualismo.

Nosso viver cotidiano está artealizado, mas não parece promover uma sensação

harmônica, e sim sentimentos como o déjà vu, a padronagem e a estereotipia perceptíveis na

obra de Joachim Schmid. Viver em uma sociedade estetizada pode ser um problema quando a

vida real não corresponde às imagens de felicidade e beleza difundidas no cotidiano. Essa

contradição causa ranhuras na superfície do consumidor moderno, que podem trazer

sentimentos de ansiedade e solidão, num mundo acúmulo e excesso. Consumir e compartilhar

o cotidiano estetizado não significa exatamente viver uma vida mais bela. Mas significa o

que, então?

Referências

BATCHEN, Geoffrey. Each Wild Idea – Writing, Photography, History. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 2000.

. Observing by Watching: Joachim Schmid and the Art of Exchange, Aperture

Magazine 210, primavera 2013. Disponível em: http://www.aperture.org/blog/observing-by-

watching-joachim-schmid-and-the-art-of-exchange/, acessado em agosto de 2015.

BAUDRILLARD, Jean. Simulations. New York: Semiotext(e), 1983.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio

de Janeiro: Zahar, 2013.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Politica. São Paulo: Brasiliense, 2012, 8a

edição revista.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

FONTCUBERTA, Joan. A Câmera de Pandora, a fotografia depois da fotografia. São

Paulo: Editora G. Gili, 2012.

LIPOVESTKY, Gilles, SERROY, Jean. A estetização do mundo – Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MURRAY, S. Digital Images, Photo-Sharing, and Our Shifting Notions of Everyday

Aesthetics. IN: Journal of Visual Culture, v.7, 2008, p147-163.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org; Editora 34, 2009 (2

a edição).

. Aisthesis, Escenas del régimen estético del arte. Buenos Aires: Manantial, 2013.

SCHMID, Joachin. Other People’s Photographs. Berlin: 2008-2011. Disponível em http://schmid.wordpress.com/works/2008–2011-other-people’s-photographs/