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A caixa de Natasha e outras histórias de horror

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Um estranho retrato pendurado no corredor da casa de sua avó causa um assombroso fascínio no jovem Alfredo, em “O retrato tétrico”. Duas irmãs sozinhas em casa em um dia nublado, frio e silencioso revelam um segredo que talvez devesse ter permanecido oculto para todo o sempre, em “As inocentes”. A mais pura essência do medo e do terror, personificada em “Malpurga”, é finalmente superada por um homem no começo da velhice – será? A caixa de Natasha e outras histórias de horror reúne 17 contos, 3 poemas e uma narrativa longa do estreante Melvin Menoviks. As histórias, originais e aterrorizantes, exploram várias facetas da ficção de horror, desde o terror psicológico sutil até o exagero escatológico de sangues e carnificinas, passando por todos os sinistros mistérios que existem entre esses dois extremos. Não se atreva! Após tensão e suspense crescentes, a atormentadora revelação final de “A caixa de Natasha” poderá causar pesadelos eternos mesmo no mais corajoso dos le

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a caixa de natashae outras histórias de horror

M e l v i n M e n o v i k s

talentos da literatura brasileira

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Copyright © 2015 by Melvin MenoviksCopyright © 2015 by Novo Século Editora Ltda.

gerente editorial

Lindsay Gois

editorial

João Paulo PutiniNair FerrazVitor Donofrio

gerente de aquisições

Renata de Mello do Valeassistente de aquisições

Acácio Alvesauxiliar de produção

Luís Pereira

preparação

Livia First

projeto gráfico

Dimitry Uziel

revisão

Luiz Alberto Galdini

capa

Monalisa Morato

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Menoviks, MelvinA caixa de natasha e outras histórias de horrorMelvin MenoviksBarueri, SP: Novo Século Editora, 2015.

1. Contos brasileiros I. Título. II Série.

14-09540 cdd-869.93

Índice para catálogo sistemático:1. Contos: Literatura brasileira. 869.93

novo século editora ltda.Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – BrasilTel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br | [email protected]

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009.

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Dedicado ao Murilo Toffanelli, que me mostrou o caminho; e ao João, à Zilda e à Juliana, que possibilitaram que por ele eu caminhasse.

Copyright © 2015 by Melvin MenoviksCopyright © 2015 by Novo Século Editora Ltda.

gerente de aquisições

Renata de Mello do Valeassistente de aquisições

Acácio Alvesauxiliar de produção

Luís Pereira

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A G R A D E C I M E N T O S

Agradeço a toda minha família, em especial aos meus pais, João e Zilda, ao meu irmão e sua esposa, Rafael e Mariana, e à minha sobrinha, Sofia, simplesmente por existirem. Agradeço à Juliana, para quem não tenho palavras suficientes. Agradeço a TODOS os meus amigos: de Tabapuã, de Londrina, de Catanduva, Maringá, Cambé, Ribeirão Preto, Ponta Grossa, São Paulo, Presidente Prudente e onde mais vocês estiverem – a vida não valeria a pena sem vocês. Agradeço ao Trolium Nafiellof, provavelmente o maior sábio da paradoxal psicoalquimia, pelos fundamentais apoios metafísicos e imprescind-íveis conselhos de transcendental sabedoria (“Se cuidem garotos, ouçam muito Danzig”). Agradeço, finalmente, ao Pennywise.

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N O T A P R E L I M I N A R

C a r o s l e i t o r e s ,U m a t e r r í v e l m a l d i ç ã o a g u a r d a a t o d o s

a q u e l e s q u e r e v e l a r e m o f i n a l d e “ A C a i x a d e N a t a s h a ” a q u e m a i n d a n ã o a l e u .

A t e n c i o s a m e n t e ,M . M .

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sum

ário

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O r e t r a t o t é t r i c o •

N a t a n •

A n a r r a t i v a d e J o n a t h a n •

M a l p u r g a •

A e x p e r i ê n c i a d e W i l l i a m •

A o r q u e s t r a d i a b ó l i c a •

O g a r o t o q u e p i n g a v a s a n g u e •

A s i n o c e n t e s •

O b s c u r o s d e s e j o s •

O q u a r t o d e G a b r i e l •

A m a n s ã o d a n o i t e e t e r n a •

O m e n d i g o •

M e m ó r i a s •

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R u a P a n d o r a •

N ó s c o m e m o s c o r a ç õ e s d e c r i a n ç a s •

O a m i g o s u i c i d a •

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A c a i x a d e N a t a s h a •

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Sempre que Alfredo olhava para aquele estranho re-trato pendurado na parede do corredor da casa de sua avó Judith, ele sentia uma sensação pavorosa e inquietante tomar conta de seu corpo e de sua mente. Ele já tinha pouco mais de treze anos, mas, mesmo assim, sempre que entrava na casa da avó e se deparava com aquele retrato antigo, de negra e lustrosa moldura ovalada e cores apagadas, quase em preto e branco, exibindo um garoto muito pálido que vestia um terno escu-ro e o encarava constantemente com olhos macabros, Alfredo fi cava com a alma desesperada como se fosse uma criancinha longe dos pais que, no quarto escuro, tem de abrir o armário onde se esconde o temível bicho-papão de seus mais terríveis pesadelos. Apesar disso, Alfredo não se exaltava e, com exceção de sua pele, que fi cava fria, e de suas pupilas, que perversamente e contra sua vontade buscavam a imagem do retrato a todo o momento e se dilatavam em terror, ele não dava indícios do

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que sentia ao ver aquele retrato que, para os outros, segundo lhe parecia, era completamente indiferente e banal.

O medo de Alfredo em relação àquele pequeno re-trato era muito diferente de qualquer outro medo que ele já havia experimentado. Quando mais novo, sentia medo de palhaços e corria gritando e chorando para o colo da mãe, sem nem sequer conseguir olhar novamente para a grotesca criatura multicolorida e de nariz vermelho que o apavorava. Com o retrato, porém, o medo era outro. Ele sentia um pavor inexprimível, mas não conseguia deixar de olhar para o estra-nho garoto pálido que o encarava de dentro da vetusta mol-dura oval. Na verdade, algo naquela imagem o induzia a olhar para ela, como se nela existisse algum segredo oculto que, apesar de perturbá-lo, atraía seus olhos irresistivelmente para as cores sombrias e funestas que engendravam alguma constante men-sagem subliminar. De fato, quando se reunia com a família na sala da casa da avó, imediatamente tentava se sentar no sofá que dava visão à abertura do corredor onde o misterioso re-trato se encontrava; e, mesmo com as luzes acesas e com todas as pessoas rindo e conversando alto, ele ainda não conseguia abandonar aquelas sensações ruins e quase paradoxais que o dominavam ao ver o retrato assombroso. Os sons se transfor-mavam, todos, em um único zumbido abafado que era igno-rado pelo jovem Alfredo, e as luzes eram esquecidas, de modo que sua visão se concentrava na região sombria do corredor onde, entre a penumbra, o retrato tétrico jazia pendurado.

As pessoas percebiam que Alfredo não conseguia tirar os olhos do retrato, mas não percebiam seu terror. Achavam que ele apenas o olhava por estar entediado com as conversas dos adultos e que devaneava sobre alguma bobagem, como natural-mente fazem as crianças quando estão cansadas do assunto ou quando esse não lhes interessa. Assim, enquanto seus pais fica-

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vam entretidos em conversas com a avó em um canto mais afas-tado da sala, apenas sua prima, Giovanna, ocasionalmente nota-va Alfredo de cabeça baixa e olhos semicerrados, encarando o retrato, ou, ao contrário, inutilmente tentando evitar a imagem no corredor enquanto a olhava pelo canto dos olhos, sempre taciturno, o que não era muito comum em sua personalidade. Mas Giovanna não dava grande importância ao que reparava e, quando não deixava o primo do jeito em que se encontra-va, apenas o chamava para brincar na varanda ou ir à cozinha para comer algo. Além disso, Alfredo nunca conseguia falar com ninguém sobre as sensações contraditórias e perturbadoras que se apoderavam de sua mente na sala da casa da avó, de maneira que tudo aquilo ficava pesando dentro dele, fazendo sua cabeça doer, seu coração palpitar mais forte e sua alma reprimir toda para si a inquietação que o assolava.

Com o passar do tempo, Alfredo foi estranhando o fato de que ninguém nunca comentava sobre aquele retrato que tanto o assombrava. Quem era aquele garoto, afinal de contas? Por que sua avó o deixava ali, à vista de todos, sem nenhum motivo aparente para isso? Por que a imagem era tão esquisita e sem cores, assemelhando-se mais a uma turva pintura gótica de um passado distante e inacessível do que a uma fotografia propria-mente dita? Diante de tantas questões, as perguntas permane-ciam sem respostas, e a mente de Alfredo, nada tranquila.

Um dia, enquanto seus pais, tios e avó estavam na co-zinha, Alfredo e sua prima Giovanna foram brincar no quarto de visitas da casa, no qual, para se chegar, era necessário passar pelo corredor. Para concluir tão excruciante tarefa, ele abai-xou a cabeça e passou em passos rápidos na frente do retrato, evitando olhá-lo para conseguir disfarçar o medo, afinal ele não queria admitir a estranha fobia para a prima, pois não saberia nem ao menos como explicá-la, preferindo, portanto,

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guardá-la para si mesmo, escondendo-a em seu íntimo o mais seguramente possível. Quando estavam no quarto, no entanto, Alfredo e a prima ficaram conversando e, sem que ele perce-besse de que maneira, o assunto da conversa desviou-se para o retrato do corredor.

– A vovó sempre teve aquele retrato na parede – co-mentou Giovanna, em tom de circunspecta desconfiança.

O quarto em que conversavam estava de janelas fe-chadas, com apenas uma fina fresta aberta, e as luzes estavam apagadas. Apenas a mínima luminosidade da sala que conse-guia penetrar pelo corredor chegava ao quarto, deixando-o um pouco sombrio, o que não estava agradando Alfredo de maneira nenhuma. Com aquela conversa, ele estava ficando nervoso e não sabia ao certo o que falar. De cabeça baixa, sem olhar para os lados, balbuciou, com receio:

– Mas... de quem é aquele retrato?Logo após proferir aquelas quase inaudíveis palavras,

ele não acreditou ter feito tal pergunta. Metade de seu ser queria desesperadamente saber a resposta, mas a metade ha-bitualmente mais forte tremia de medo ao pensar naquilo. E, ainda assim, as palavras haviam escapado de seus lábios.

– Ninguém sabe ao certo – respondeu a prima, abai-xando a entonação da voz como se fosse dizer algo que não deveria ser dito. – Ninguém fala muito sobre isso. As pessoas evitam conversar sobre ele, por causa da tragédia.

Alfredo arregalou os olhos para a prima. Naquele pon-to da conversa, eles já estavam praticamente sussurrando para se comunicar, como se estivessem trocando algum segredo perigoso. De alguma forma, ambos pressentiam que ninguém poderia ouvir o que estavam dizendo.

– Parece que aquele menino era parente da vovó, da época em que ela era mais nova – continuou Giovanna, sus-

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surrando ainda mais baixo. – Ouvi dizer que, numa noite, ele estava brincando sozinho perto de alguns cachorros pretos que tinham raiva e eles o atacaram. Eram muito grandes, qua-se do tamanho de uma ovelha, e eram violentos. Parece que os cachorros estraçalharam todo o rosto do menino com mor-didas. Ele morreu depois de algumas horas e só foi achado de madrugada, jogado no frio, com o rosto todo aberto, ao lado de uma poça de sangue. Dizem que, no outro dia, encontra-ram pedaços de carne na boca dos cachorros e tiveram de matá-los, porque, quando um cachorro come carne humana, ele começa a atacar todas as pessoas que passam na frente dele, para matar e devorar… Aquele retrato no corredor foi pintado um dia antes da morte do menino... Na época, ainda não exis-tiam muitas câmeras fotográficas, por isso eles faziam pinturas.

Alfredo estava atônito. O quarto parecia ainda mais escuro. Sua prima permanecia séria, não mostrava indícios de estar brincando ou inventando nada naquela história toda. Ele estava com medo e com repulsa. Aquela palavra – “estraçalha-ram” – o afetara intimamente, como uma facada na alma. Ele podia ver os cachorros negros devorando o rosto do menino, arrancando pedaços, mastigando a carne... – os cachorros estraça-lharam todo o rosto do menino com mordidas, foi o que ela dissera.

Aquela palavra o afetara de verdade, mais forte do que se tivessem lhe mostrado um vídeo com os cachorros ras-gando o rosto do garoto, dilacerando e brutalmente destro-çando a face enquanto ele gritava e berrava, no frio da noite deserta, implorando por ajuda sem que ninguém o ouvisse, enquanto o sangue espirrava aos jorros dos ferimentos, com os cachorros latindo, rosnando e mastigando. Mastigando e babando sangue borbulhante. Os pedaços de carne grudan-do nos caninos afiados e nas grossas gengivas espumantes de raiva, o frio adentrando dolorosamente nos cortes abertos, as

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mordidas arrancando e mutilando lábios, orelhas e bochechas, a ferocidade canina rasgando o pescoço e cruelmente devo-rando a carne em grandes pedaços grotescos e molhados... Até sobrarem apenas ossos, sangue e morte.

Um rosto mutilado afogado em sangue e raivosas ba-bas caninas.

Estraçalharam.Os cachorros estraçalharam todo o rosto do menino com mordidas.Alfredo estava imaginando aquela carnificina sem fim,

a dor e o sofrimento do garoto sendo devorado vivo, quando seu pai apareceu na porta do quarto e disse:

– O que estão fazendo aqui? Vão bagunçar o quarto de visitas da vovó. Vamos, levantem-se, estamos indo embora. Vamos dar um beijo na vovó Judith para dar tchau.

Alfredo levantou-se em um pulo e seu coração dispa-rou, mas, depois, ele se acalmou e seguiu o pai pelo corredor para ir dar o beijo na avó. No caminho, olhou de soslaio para o retrato na parede e um arrepio percorreu-lhe todo o corpo.

Em casa, Alfredo não conseguia parar de pensar na pa-vorosa história que sua prima lhe contara no quarto escuro, e um terror sem igual dominava-o por completo. Alguma coisa naquela história toda lhe era estranhamente familiar, como se ele já a conhecesse, como se ele já a houvesse sentido. Como se ele já houvesse vivido aquilo tudo e uma perturbadora me-mória distante tentasse, como um fantasma, sussurrar algo em seu ouvido para lhe revelar o que significava. Mas sombras ne-gras turvavam-lhe os pensamentos e ele não conseguia com-preender o que se passava em sua mente e em seu espírito. No quarto fechado e pouco iluminado, as sensações que o controlavam enquanto involuntariamente remoía a história dos cachorros pareciam-lhe irreais, como se ele estivesse em

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outro plano de existência, mas, mesmo assim, elas lhe eram medonhamente familiares; insuportavelmente familiares. Tudo se assemelhava a um perturbador déjà vu de uma realidade lúgu-bre e sinistra em que pesadelos e realidade se mesclavam como sombras trêmulas em um corredor escuro.

Os dias foram passando e, noite após noite, em seu quarto, Alfredo pensava na história dos cachorros e se lembra-va daquela imagem funesta no infausto retrato do corredor. A imagem, assustadora, vinha nítida em sua mente quando fechava os olhos: um garoto, mais ou menos da idade dele, extremamente pálido e com cabelos da cor do mais negro dos breus impecavelmente penteados para o lado, vestindo um terno escuro e encarando quem quer que o olhasse, inde-pendentemente de onde o observador estivesse, como uma lutuosa versão amaldiçoada da Monalisa. O rosto do miste-rioso menino possuía uma incompreensível expressão gótica e fria que não era natural, mas, por trás das leves olheiras que davam a todo o retrato uma impalpável, porém, por isso mes-mo, irremediavelmente penetrante atmosfera de depressão e melancolia, as feições daquele garoto assemelhavam-se muito às do próprio Alfredo. De fato, ele percebia que o garoto no retrato se parecia demais com ele mesmo, apesar de não querer ou ao menos conseguir admitir isso para si de maneira articu-lada e consciente. De forma indireta e mascarando os próprios pensamentos, dizia a si mesmo que aquela semelhança (que ele, contraditoriamente, insistia em não reconhecer) era devida à relação de parentesco que tinha com o menino: ora, se sua avó era parente do garoto, nada mais natural do que entre eles haver algumas semelhanças... Mas a região mais recôndita e profunda da mente de Alfredo via que entre ele e o garoto existia algo a mais do que mera semelhança por laços sanguíneos.

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Dia após dia, mais o pensamento de Alfredo se direcio-nava para a atmosfera sombria causada pelo retrato. Quando visitava a avó com a família, com mais frequência olhava com sentimentos inomináveis e desesperadores para o retrato, e cada vez mais acreditava que o garoto pálido era muito pa-recido com ele próprio. Aliás, não demorou muito para ele perceber que, na verdade, o garoto era exatamente igual a ele.

Aquela revelação súbita (pois, inconscientemente, Alfredo caminhou de maneira muito gradativa para perceber a semelhança absurda que havia entre ele e o garoto) atingiu-o como um raio que inflama terrífica e instantaneamente todos os nervos do corpo em um choque devastador e paralisante. Perceber que o garoto no retrato era a sua imagem levemente distorcida foi como revelar de uma só vez terríveis significados que não podiam ser compreendidos de imediato. Mas aquela percepção fora suficiente para causar o mais irreversível desespe-ro em Alfredo, apesar de ele ainda não saber o que exatamente lhe provocava tamanho medo. Afinal, qual era o problema na-quela similaridade? Tudo poderia não passar de mera coincidên-cia, no fim das contas. Mas... Por que ninguém nunca havia observado a semelhança exageradamente evidente que ele notara? Por que é que todos evitavam conversar com ele a respeito do garoto no retrato e pare-ciam fazer segredo sobre a história da pequena imagem emoldurada no corredor? Estariam escondendo alguma coisa dele? Ele percebia que, entre pequenas fugas disfarçadas e pretensas desculpas que po-deriam passar despercebidas, ninguém nunca tocava no assunto na presença dele. Mesmo sua prima havia contado a história do garoto de forma muito segredada e imprecisa...

Algum segredo sujo estavam escondendo dele, e isso o inquietava profundamente.

Com o passar dos dias, Alfredo transformou seus pen-samentos a respeito do retrato em uma verdadeira monomania.

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Quando estava perto dele, escrutinava-o com os olhos por-menorizadamente para tentar extrair dele todas as mensagens subliminares que trazia em segredo entre sombras e nuances artificiosas. Quando estava em casa, relembrava o aspecto fú-nebre de sua imagem no retrato ovalado e tentava entender o que aquilo significava. Quando saía com o pai e passava na frente de algum terreno baldio perto de sua casa, era com des-confiança e receio que ele olhava para os cachorros de rua que lá viviam. À noite, no quarto, demorava para dormir, pois se lembrava daquele lutuoso rosto acinzentado, macilento, com detestáveis olheiras melancólicas. E não podia ouvir um latido de cão vindo da vizinhança sem que sua pele se arrepiasse e ele se pusesse a tremer incontrolavelmente sob os lençóis. Em seguida, aquele rosto retornava à sua mente com toda a força: o rosto pálido de cadáver. O seu rosto pálido de cadáver.

E então ele compreendeu.A mensagem se tornou tão clara quanto aterradora.

Agora, tudo fazia sentido. O garoto no retrato era ele! Ele es-tava morto! Aquele retrato era dele!

Alfredo nunca havia pensado muito sobre a vida após a morte, mas conhecia histórias de almas que vagavam no limbo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Ele sabia que espíritos perdidos ficavam presos em um lugar estranho, purgando seus pecados sem saber que haviam morrido, exata-mente como estava acontecendo com ele agora. Pois um espí-rito, quando abandona o antigo corpo, não sabe que morreu, mas vagueia em seu próprio universo para descobrir seu cami-nho, para conhecer sua situação e seguir a escada para a luz ou a queda para o abismo das trevas. “Nunca é fácil para uma alma descobrir que já morreu e aceitar essa realidade”, ele sempre ouvira dizer, “pois os indícios da morte são sutis e, ainda fragilizada, a alma

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demora a perceber as dicas que o mundo lhe dá para compreender que já não está mais em seu corpo, que passou para o outro lado”.

Mesmo estando aterrorizado, por dias e dias Alfredo guardou aquela verdade apenas para si. Queria se adaptar à nova realidade antes de conversar com as pessoas para que elas direta-mente lhe fizessem a revelação derradeira. Por outro lado, vez ou outra, Alfredo ainda tinha dúvidas de sua morte, o que lhe causava receios e incertezas sem esclarecimentos. Quando caminhava por perto dos cachorros de rua que viviam no terreno baldio dos arredores de sua casa e eles latiam à sua passagem, temia por sua vida, o que não deveria fazer sentido, estando ele morto. Durante as noites, cobria-se inteiramente e, na escuridão do quarto, tremia e suava por horas a fio sem ter a coragem de tirar a cabeça de debaixo do sufocante lençol para olhar o que havia por ali. Ele sentia os fantasmas deslizando pelo quarto, assombrando-o, pai-rando em impossíveis brumas funéreas do Além que vinham para arrastá-lo. E, em medo irreprimível, preferia suar com calor sob as cobertas a enfrentar o que lhe esperava fora delas.

Estaria ele realmente morto ou tudo aquilo não passava de ilusão de sua cabeça? Dessa pergunta Alfredo já não mais sabia a resposta. Tudo estava muito confuso em sua mente.

As imagens dos cachorros estraçalhando o rosto do ga-roto não saíam de sua cabeça. Pedaços de carne enroscando-se nos dentes ferozes, gritos de dor, rosnados e sangue na escu-ridão fria. Tudo era mais real do que se ele estivesse vendo a cena na sua frente. A cabeça doía. Alfredo precisava esquecer aquelas imagens horríveis, mas também precisava de uma res-posta. Então, sem saber o que fazia, no meio da madrugada in-sone, levantou-se da cama sem acordar os pais e, impulsionado pela inquietação nervosa que vinha lhe dominando como um espírito maligno que retira a vida do corpo para nele embutir

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apenas medo e desespero, decidiu sair de casa para descobrir o que sua intuição estava tentanto lhe mostrar com tamanha força angustiante. Enquanto saía de debaixo dos lençóis e deixava o quarto, viu, com o coração gélido como uma enorme pedra de gelo, em carne e osso, o garoto do retrato parado no meio do corredor de sua casa, com sua pele macilenta contrastando com a escuridão e seus olhos de morto o encarando fixa e friamente, arrancando-lhe a alma do corpo e petrificando-lhe os nervos. Alfredo, então, correu para fora e, desamparado no silêncio da madrugada úmida com o acinzentado garoto morto o seguindo em passos lentos que, no entanto, faziam-no permanecer colado às suas costas, gritou, entre lágrimas de desespero:

– Eu não posso estar morto!Os cães uivaram à distância.Alfredo andou desconcertado pelas ruas escuras e de-

sertas. Correu sem rumo pela vizinhança, tentando deixar para trás o garoto que o perseguia, mas aquelas imagens imundas o acompanhavam, giravam ao seu redor.

Quando se deu conta, Alfredo já estava na frente de um familiar terreno baldio. Entre o matagal iluminado tão só pela fraca luz de um poste velho e desgastado, cachorros negros des-troçavam algo que parecia ser a carcaça de algum animal. Alfredo se aproximou e mal teve tempo de notar que uma espuma bran-ca escorria da boca dos enormes cães. Quando tentou correr, o primeiro pulou nas suas costas e o derrubou. Em poucos se-gundos, toda a matilha estava se alimentando e descontando sua fúria irracional ao repuxar e se debater com os restos retalhados e mutilados da carne que encontraram naquela madrugada fria.

Os cachorros estraçalharam todo o rosto do menino com mordidas.

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