10
A CARTOMANTE Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinouas, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! interrompeu Camilo, rindo. — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disselhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro

A Cartomante - Machado de Assis

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Literatura

Citation preview

A CARTOMANTEHamlet observa a Horcio que h mais coisas no cu e na terra do que sonha anossa filosofia. Era a mesma explicao que dava a bela Rita ao moo Camilo,numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido navspera consultar uma cartomante; a diferena que o fazia por outras palavras. Ria, ria. Os homens so assim; no acreditam em nada. Pois saiba que fui, eque ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o queera. Apenas comeou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de umapessoa..." Confessei que sim, e ento ela continuou a botar as cartas, combinouas,e no fim declarou-me que eu tinha medo de que voc me esquecesse, mas queno era verdade... Errou! interrompeu Camilo, rindo. No diga isso, Camilo. Se voc soubesse como eu tenho andado, por sua causa.Voc sabe; j lhe disse. No ria de mim, no ria...Camilo pegou-lhe nas mos, e olhou para ela srio e fixo. Jurou que lhe queriamuito, que os seus sustos pareciam de criana; em todo o caso, quando tivessealgum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disselheque era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sab-lo, e depois... Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. Onde a casa? Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; no passava ningum nessa ocasio.Descansa; eu no sou maluca.Camilo riu outra vez: Tu crs deveras nessas coisas? perguntou-lhe.Foi ento que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que haviamuita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele no acreditava,pacincia; mas o certo que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova que ela agora estava tranqila e satisfeita.Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. No queria arrancar-lhe as iluses.Tambm ele, em criana, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteirode crendices, que a me lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No diaem que deixou cair toda essa vegetao parasita, e ficou s o tronco da religio,ele, como tivesse recebido da me ambos os ensinos, envolveu-os na mesmadvida, e logo depois em uma s negao total. Camilo no acreditava em nada.Por qu? No poderia diz-lo, no possua um s argumento: limitava-se a negartudo. E digo mal, porque negar ainda afirmar, e ele no formulava aincredulidade; diante do mistrio, contentou-se em levantar os ombros, e foiandando.Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada;Camilo, no s o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr scartomantes, e, por mais que a repreendesse, no podia deixar de sentir-selisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava umacomprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direo deBotafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando depassagem para a casa da cartomante.Vilela, Camilo e Rita, trs nomes, uma aventura e nenhuma explicao dasorigens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infncia. Vilela seguiu acarreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai,que queria v-lo mdico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu no ser nada, atque a me lhe arranjou um emprego pblico. No princpio de 1869, voltou Vilelada provncia, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou amagistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para oslados de Botafogo, e foi a bordo receb-lo. o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mo. No imagina como meumarido seu amigo, falava sempre do senhor.Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela no desmentia ascartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos clidos, bocafina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos,Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela faziaoparecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingnuo na vidamoral e prtica. Faltava-lhe tanto a ao do tempo, como os culos de cristal, quea natureza pe no bero de alguns para adiantar os anos. Nem experincia, nemintuio.Uniram-se os trs. Convivncia trouxe intimidade. Pouco depois morreu a me deCamilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele.Vilela cuidou do enterro, dos sufrgios e do inventrio; Rita tratou especialmentedo corao, e ningum o faria melhor.Como da chegaram ao amor, no o soube ele nunca. A verdade que gostava depassar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irm, masprincipalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela,e em volta dela, para incorpor-lo em si prprio. Liam os mesmos livros, iamjuntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam snoites; ela mal, ele, para lhe ser agradvel, pouco menos mal. At a ascoisas. Agora a ao da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muitavez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mos frias, asatitudes inslitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala depresente, e de Rita apenas um carto com um vulgar cumprimento a lpis, e foiento que ele pde ler no prprio corao, no conseguia arrancar os olhos dobilhetinho. Palavras vulgares; mas h vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,deleitosas. A velha calea de praa, em que pela primeira vez passeaste com amulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim o homem,assim so as coisas que o cercam.Camilo quis sinceramente fugir, mas j no pde. Rita, como uma serpente, foi-seacercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingoulheo veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitriadelirante. Adeus, escrpulos! No tardou que o sapato se acomodasse ao p, e aforam ambos, estrada fora, braos dados, pisando folgadamente por cima deervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quandoestavam ausentes um do outro. A confiana e estima de Vilela continuavam a seras mesmas.Um dia, porm, recebeu Camilo uma carta annima, que lhe chamava imoral eprfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, paradesviar as suspeitas, comeou a rarear as visitas casa de Vilela. Este notou-lheas ausncias. Camilo respondeu que o motivo era uma paixo frvola de rapaz.Candura gerou astcia. As ausncias prolongaram-se, e as visitas cessaraminteiramente. Pode ser que entrasse tambm nisso um pouco de amor-prprio,uma inteno de diminuir os obsquios do marido, para tornar menos dura aaleivosia do ato.Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu cartomante paraconsult-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que acartomante restituiu-lhe a confiana, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito oque fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou trscartas annimas, to apaixonadas, que no podiam ser advertncia da virtude,mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinio de Rita, que, por outraspalavras mal compostas, formulou este pensamento: a virtude preguiosa eavara, no gasta tempo nem papel; s o interesse ativo e prdigo.Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o annimo fosse ter comVilela, e a catstrofe viria ento sem remdio. Rita concordou que era possvel. Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartasque l aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...Nenhuma apareceu; mas da a algum tempo Vilela comeou a mostrar-se sombrio,falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em diz-lo ao outro, e sobreisso deliberaram. A opinio dela que Camilo devia tornar casa deles, tatear omarido, e pode ser at que lhe ouvisse a confidncia de algum negcio particular.Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita oudenncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas.Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, esepararam-se com lgrimas.No dia seguinte, estando na repartio, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:"Vem j, j, nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia.Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural cham-lo aoescritrio; por que em casa? Tudo indicava matria especial, e a letra, fosserealidade ou iluso, afigurou-se-lhe trmula. Ele combinou todas essas coisas coma notcia da vspera. Vem j, j, nossa casa; preciso falar-te sem demora, repetia ele com osolhos no papel.Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa,Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que eleacudiria, e esperando-o para mat-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depoissorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idia de recuar, e foi andando. Decaminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lheexplicasse tudo. No achou nada, nem ningum. Voltou rua, e a idia deestarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossmil; era natural umadenncia annima, at da prpria pessoa que o ameaara antes; podia ser queVilela conhecesse agora tudo. A mesma suspenso das suas visitas, sem motivoaparente, apenas com um pretexto ftil, viria confirmar o resto.Camilo ia andando inquieto e nervoso. No relia o bilhete, mas as palavrasestavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou ento, o que era ainda pior, eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a prpria voz de Vilela. "Vem j, j, nossacasa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham umtom de mistrio e ameaa. Vem, j, j, para qu? Era perto de uma hora da tarde.A comoo crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, quechegou a cr-lo e v-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em irarmado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precauo era til.Logo depois rejeitava a idia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, nadireo do Largo da Carioca, para entrar num tlburi. Chegou, entrou e mandouseguir a trote largo."Quanto antes, melhor, pensou ele; no posso estar assim..."Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoo. O tempo voava, e eleno tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, otlburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroa, que cara.Camilo, em si mesmo, estimou o obstculo, e esperou. No fim de cinco minutos,reparou que ao lado, esquerda, ao p do tlburi, ficava a casa da cartomante, aquem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lio das cartas.Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadasde curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.Camilo reclinou-se no tlburi, para no ver nada. A agitao dele era grande,extraordinria, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas deoutro tempo, as velhas crenas, as supersties antigas. O cocheiro props-lhevoltar primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que no, queesperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrdulo: era aidia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastasasas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no crebro; masda a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns girosconcntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroa: Anda! agora! empurra! v! v!Da a pouco estaria removido o obstculo. Camilo fechava os olhos, pensava emoutras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta:"Vem, j, j..." E ele via as contores do drama e tremia. A casa olhava para ele.As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo vuopaco... pensou rapidamente no inexplicvel de tantas coisas. A voz da merepetia-lhe uma poro de casos extraordinrios: e a mesma frase do prncipe deDinamarca reboava-lhe dentro: "H mais coisas no cu e na terra do que sonha afilosofia..." Que perdia ele, se...?Deu por si na calada, ao p da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rpidoenfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dosps, o corrimo pegajoso; mas ele no viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Noaparecendo ningum, teve idia de descer; mas era tarde, a curiosidadefustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas,trs pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultla,ela f-lo entrar. Dali subiram ao sto, por uma escada ainda pior que aprimeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por umajanela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, umar de pobreza, que antes aumentava do que destrua o prestgio.A cartomante f-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com ascostas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rostode Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas eenxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, no derosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou trs cartas sobre amesa, e disse-lhe: Vejamos primeiro o que que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. E quer saber, continuou ela, se lhe acontecer alguma coisa ou no... A mim e a ela, explicou vivamente ele.A cartomante no sorriu: disse-lhe s que esperasse. Rpido pegou outra vez dascartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhouasbem, transps os maos, uma, duas, trs vezes; depois comeou a estendlas.Camilo tinha os olhos nela curioso e ansioso. As cartas dizem-me...Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Ento ela declarou-lhe queno tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, oterceiro, ignorava tudo. No obstante, era indispensvel muita cautela: ferviaminvejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camiloestava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as nagaveta. A senhora restituiu-me a paz ao esprito, disse ele estendendo a mo por cimada mesa e apertando a da cartomante.Esta levantou-se, rindo. V, disse ela; v, ragazzo innamorato...E de p, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como sefosse a mo da prpria sibila, e levantou-se tambm. A cartomante foi cmoda,sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, comeou adespenc-las e com-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam asunhas. Nessa mesma ao comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo,ansioso por sair, no sabia como pagasse; ignorava o preo. Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quermandar buscar? Pergunte ao seu corao, respondeu ela.Camilo tirou uma nota de dez mil-ris, e deu-lha. Os olhos da cartomantefuzilaram. O preo usual era dois mil-ris. Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito dosenhor. V, v, tranqilo. Olhe a escada, escura; ponha o chapu...A cartomante tinha j guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando,com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada quelevava rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tlburi esperando; a rua estava livre.Entrou e seguiu a trote largo.Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o cuestava lmpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamoupueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram ntimos efamiliares. Onde que ele lhe descobrira a ameaa? Advertiu tambm que eramurgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negcio grave egravssimo. Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece queformou tambm o plano de aproveitar o incidente para tornar antigaassiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras dacartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, aexistncia de um terceiro; por que no adivinharia o resto? O presente que seignora vale o futuro. Era assim, lentas e contnuas, que as velhas crenas do rapaziam tornando ao de cima, e o mistrio empolgava-o com as unhas de ferro. svezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, aspalavras secas e afirmativas, a exortao: V, v, ragazzo innamorato; e nofim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementosrecentes, que formavam, com os antigos, uma f nova e vivaz.A verdade que o corao ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes deoutrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glria, Camilo olhou para o mar,estendeu os olhos para fora, at onde a gua e o cu do um abrao infinito, eteve assim uma sensao do futuro, longo, longo, interminvel.Da a pouco chegou casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro dojardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e malteve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. Desculpa, no pude vir mais cedo; que h?Vilela no lhe respondeu; tinha as feies decompostas; fez-lhe sinal, e forampara uma saleta interior. Entrando, Camilo no pde sufocar um grito de terror: ao fundo sobre o canap, estava Rita morta e ensangentada. Vilela pegou-o pelagola, e, com dois tiros de revlver, estirou-o morto no cho.