A Cerâmica Marajoara_leituras e Releituras Imagéticas Na Amazônia Brasileira1

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    CERMICA MARAJOARA:

    LEITURAS E RELEITURAS IMAGTICAS NA AMAZNIA BRASILEIRA

    Antnio Jackson de Souza Brando1

    Camila Cristina Guerreiro2

    Larissa Souza Correia3

    Resumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar os alguns aspectos da cermica

    marajoara, como as teorias de sua origem, da sociedade que a produziu, de seu

    desenvolvimento e, de modo especial, da iconografia empregada por aqueles artesos.

    Haveria, por exemplo, alguma relao imagtica entre o que se produzia na Amaznia

    brasileira com aquilo que foi produzido pela Europa num perodo anterior chegada de

    Colombo Amrica? Verificar-se- tambm alguns modelos de objetos cermicos produzidos

    na regio, como eram decorados, alm de seu emprego.

    Palavras-chave:cermica marajoara, iconografia, Amaznia pr-colonial.

    Abstract: This article aims to demonstrate some aspects of Marajs ceramics, as theories of

    its origin, the society that produced it, its development and, in particular, the iconography

    employed by those artisans. Would, for example, a relationship between the imagery that was

    produced in the Brazilian Amazon with what was produced in Europe before the arrival of

    Columbus in America period? Also will check some models of ceramic objects produced in

    the region, as they were appointed, besides his use.

    Keywords:Marajs ceramics, iconography, pre-colonial Amazonia.

    1Antnio Jackson de Souza Brando mestre e doutor em Literatura pela Universidade de So Paulo (USP),alm de professor no Mestrado Interdisciplinar em Cincias Humanas da Universidade de Santo Amaro(UNISA/SP).2

    Camila Cristina Guerreiro ps-graduanda em Arqueologia pela Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP).3Larissa Souza Correia mestranda em Cincias Humanas e especialista em Arqueologia pela Universidade deSanto Amaro (UNISA/SP).

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    Introduo

    Quando se pensa em cermica, especialmente a partir de uma abordagem arqueolgica

    e no to acadmica, tornou-se lugar-comum direcionar-se a memria, quase que,

    instantaneamente, para aquela confeccionada na antiga Hlade tida, em certa medida, comoparadigma talvez por questes etimolgicas, afinal a palavra deriva de (kramosque

    significa barro prprio para modelagem, argila) no s ou devido a sua beleza estilstica,

    ou mesmo sua relevncia histria.

    Esquece-se, porm, de que h registros que comprovam ter sido a cermica empregada

    pelo homem h milhares de anos e em um grande nmero de civilizaes. Dessa maneira,

    possvel encontr-la em muitos outros lugares, alm de formas diversas e empregos to ricos

    quanto aquelas provenientes da Europa, no apenas sob um ponto de vista prtico ou mesmoesttico (a partir de um olhar de nossa contemporaneidade), como tambm cercadas de valor

    intrnseco e ritual, com as quais possvel se compreenderem aquelas sociedades pretritas.

    Esse o caso da cermica empregada pelos antigos habitantes da Ilha do Maraj, no norte do

    Brasil.

    Essa, rica em aspectos grficos, est se tornando muito popular tanto no pas, quanto

    no mundo, a ponto de artesos da regio criarem diversas reprodues das peas

    arqueolgicas e as venderem para compradores tanto no mercado interno quanto no externo;aquecendo, inclusive, de modo considervel, a economia local.

    A aparncia grfica dessa cermica bastante complexa e relaciona-se a aspectos

    sociais, simblicos, mticos e religiosos daqueles antigos grupos tnicos. Ao se buscar

    compreender a significncia destes signos, mister tentar se compreender a viso

    cosmolgica desses grupos. Isso porque, por terem sido sociedades grafas e grande parte de

    sua cultura residir em uma tradio oral, os resqucios de sua cultura residem, de modo

    particular, nos elementos gravados em suas cermicas, por exemplo.

    A questo da oralidade, contudo, tambm deve ser vista como uma atitude perante a

    realidade, no uma ausncia de habilidade (LEITE, 1998, p. 16), visto que essa ser

    largamente empregada nas obras em questo, j que tais grupos ao empreg-la, fazia uso

    tambm da corporalidadee do gestual como maneiras de transmisso de conhecimento e de

    compartilhamento de conceitos cosmolgicos.(SCHAAN, 2007, p. 100)

    De mesma maneira, -se levado a supor, ainda diante da questo da oralidade, que por

    determinados povos terem acesso a apenas essa forma de comunicao, os mesmos tm de ser

    considerados primitivos, ou ainda que as tradies orais so acessveis a todos, so

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    universalmente mais igualitrias, pelo acesso a voz, ao passo que [apenas] a escrita e a

    tecnologia a ela associada, requerem uma preparao especial.(LEITE, 1998, p. 21)

    No entanto, esquece-se de que tanto os smbolos grafos quanto as palavras inserem-se

    no mundo das representaes e que ambas so imagens: as linguagens efetivaram-se e o

    emprego do (lgos) concretizou-se e com ele o jogo que essa concretizao possibilitou

    como o de criar mundos paralelos, cujo princpio norteador fora a imagem (BRANDO,

    2008, p. 282). Isso porque

    O mundo das imagens no , necessariamente, imagem de mundo, mas cpias mal-ajambradas de vises de mundo estereotipadas e tacanhas. Da a facilidade com que a lgicado texto se impe, inclusive nos forando a olhar o mundo apresentado por imagens comdesconfiana maior do que o mundo apresentado por textos. (BONFIGLIOLI, 2008, p. 7)

    Dessa maneira, fica claro que a acessibilidade a tais culturas pretritas no assim to

    evidente, pelo contrrio. Tais sociedades eram realmente complexas, j que possuem um

    relao muito particular com os seres da natureza (SCHAAN, 2007, p. 100) e essas

    representaes no so meramente ilustrativas, mas possuem um sentido metafrico

    (ibidem, p. 100), o que j pressupe uma interposio de imagens alm do emprego comum,

    logo certa iniciao em seu sentido interpretativo.

    Assim, este artigo se inicia com uma sinopse histrica e conceitual da cermica

    marajoara, levantando os primeiros cientistas que a estudaram, bem como suas principais

    caractersticas estilsticas, para isso se contou com o auxlio de fotografias desses artefatos

    presentes em alguns museus do pas.

    Em seguida, procurar-se- demonstrar certo simbolismo presente em sua iconografia e

    sua relao com a Weltanschauung das etnias indgenas que as empregavam nas quais se

    incluir aspectos de sua mitologia.

    Dessa maneira, discute-se, no presente artigo, a seguinte problemtica: qual o

    significado da cermica marajoara para as etnias indgenas pr-ocupao e para os grupos

    contemporneos; e, como se d seu emprego pelas populaes contemporneas da Ilha de

    Maraj? At que ponto sua utilizao no cria uma memria artificial e de falsas tradies?.

    Existe alguma ligao entre os significados atribudos pelos dois extremos?

    Conceitualizando a cermica marajoara

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    Achamadacermica marajoara originria da Ilha de Maraj, maior ilha fluvial do

    mundo, localizada no Estado no Par, e cercada tanto pelos Rios Amazonas, Tocantins, Par e

    Maraj, quanto pelo Oceano Atlntico.

    Figura 1

    Distribuio dos stios arqueolgicos na Ilha de Maraj (Fonte: Site da RevistaIsto )

    As primeiras pesquisas arqueolgicas na regio, onde se encontram diversos stios

    arqueolgicos (Figura 1), foram realizadas no final do sculo XIX quando viajantes e

    naturalistas tomaram conhecimento de um peculiar tipo de cermica encontrada na ilha.

    Destacou-se ainda mais quando os arquelogos Betty Jane Meggers e Clifford Evans

    realizaram escavaes na regio nas dcadas de 1940 e 1950 e estabeleceram hipteses sobre

    a origem e o desenvolvimento das culturas que habitaram a Ilha de Maraj.

    A partir do material encontrado nessas escavaes, identificaram cinco fases de

    ocupao da regio, as chamadas Fases da Floresta Tropical4, iniciando-se por volta de 700a.C. Outra pesquisadora que se especializou na cultura Marajoara foi a arqueloga americana

    Anna Roosevelt, cujas escavaes realizadas na dcada de 1980 estabeleceram uma ligao

    entre a produo da cermica construo de tesos (aterros artificiais de grande porte

    construdos para a colocao de habitaes e cemitrios, provavelmente visando a evitar as

    inundaes). Isso porque naqueles stios foram encontradas cermicas em abundncia,

    4

    As Fases da Floresta Tropical so: Ananatuba, com durao de 368 anos; Mangueiras, com durao de 330anos; Formiga, com durao de 75 anos; Marajoara, com durao de 200 anos e Aru, que se estendeu at osculo XIX.

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    levando a se acreditar que havia na regio uma sociedade organizada por meio de um

    cacicado (organizao intermediria entre tribo e Estado). A arqueloga brasileira Denise

    Schaan, por sua vez, e com base em seus estudos, sugeriu que os tesos se articulavam em

    redes polticas regionais.

    Em 2009, um grupo de arquelogos afirmou, no entanto, que os tesos foram formados

    naturalmente, desconstruindo a teoria de que as sociedades amaznicas eram complexas e

    organizadas. Tal teoria, porm, no foi aceita por grande parte da comunidade arqueolgica.

    Dentre as diversas ocupaes, a que mais se destacou foi a Marajoara, devido a sua

    produo artstica, sobretudo em cermica, altamente exuberante e bela. Conforme diz Schaan

    (1999, p. 85),

    a cermica da fase Marajoara diferencia-se de outras da Tradio Polcroma da

    Amaznia por reunir caractersticas estilsticas e tecnolgicas bem mais complexas(uso concomitante de exciso, incises e duas camadas de engobo) e por ser maisantiga (500 d.C.).

    Dessa maneira, diferencia-se no s pela combinao de decoraes, mas tambm pela

    maior proporo de peas decoradas, sendo que a decorao possua tambm um papel social,

    alm de embelezamento, conforme explana Cristiana Barreto (2010, p. 201):

    Partimos da ideia de que a decorao de objetos um componente de uma

    tecnologia social, ou uma tecnologia de encantamento nos termos definidos porAlfred Gell (1992; 1998, p. 66) para entender a inteno dos efeitos visuaisalmejados e as formas de conferir agncia aos objetos na cermica decoradamarajoara. Identificamos assim alguns princpios gerais tecno-estilsticos voltados

    para um engajamento entre o objeto (ndice) e os indivduos que o observam(receptores), definidos por Gell como captivation, attachment, animation e outros.So efeitos que alm de provocar experincias sensoriais, exercem controle sobre amaneira como o observador se relaciona com identidades sociais que sorepresentadas de diferentes maneiras na decorao do objeto. (GELL, apudBARRETO)

    Os ndios marajoaras produziram objetos utilitrios e de uso ritualstico, dentre elesvasilhas, potes, urnas funerrias, estatuetas, vasos, pratos e tangas. Utilizaram vrias formas e

    padres de decorao, como engobo (pintura preparada base de barro fino, que pode conter

    ou no pigmentos), uso de incises (linhas ou desenhos em baixo relevo) e excises (linhas ou

    desenhos em alto relevo).

    Para aumentar a resistncia das peas, os marajoaras acrescentavam substncias como

    casca de rvore, carapaa de tartaruga, p de pedra e conchas. Usavam tintas vegetais e

    minerais: para o vermelho usavam o urucum; para o branco o caulim; para o preto o jenipapo,

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    Figura 3

    Tigelas da coleo do MAE, que possuem decoraes diversas: pinturas geomtricas,

    linhas paralelas, zig-zag e exciso (Fonte: Museu de Arqueologia e Etnologia MAE)

    Figura 4

    Urna funerria da coleo do MAE, pintada com o efeito rosto sorridente(Fonte: Museu de Arqueologia e EtnologiaMAE)

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    Figura 5

    Tipologia das urnas funerrias marajoaras(Fonte: Artigo Cermica e complexidade social na Amaznia Antiga: uma perspectiva a partir de Maraj)

    Outro aspecto importante da cermica marajoara a utilizao particular de figuras de

    animais mescladas com elementos humanos em potes, em estatuetas ou em urnas funerrias.H um exemplo na figura 6, quando se podem visualizar traos femininos (antropomrficos)

    que se mesclam com outros zoomrficos que, nesse caso, lembram uma coruja.

    A referncia a esta ave remete, segundo Barreto (2010, p. 4), a representao da

    vigilncia noturna:

    Em contextos funerrios, referncias a aves noturnas ou aves de rapina, como ascorujas, podem ser consideradas de vrias maneiras; como uma representao davigilncia noturna que protegeria o indivduo na escurido ps-morte, ou como umareferncia capacidade do animal de engolir um corpo inteiro e regurgitar seusossos, trazendo-o de volta aps a morte. Aluses semelhantes ideia derenascimento, ou de outra vida ps-morte podem tambm explicar a razo dosenterramentos em recipientes com formas de corpos femininos grvidos, ouginecoformes, nos quais a decorao enfatiza os rgos sexuais femininos, taiscomo mamilos, pbis, e tero (este representados por crculos).

    Interessante perceber como h, nas sociedades amerndias, uma relao muito

    diferente entre o homem, os animais e o meio em que se relacionam, o que faz com que em

    sua conceitualizao imagtica haja uma imiscuio desses elementos, afinal os animais no

    esto alijados das sociedades humanas:

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    Os amerndios percebam os grupos animais como se fossem sociedades, com organizaosocial, chefes, pajs, etc. Ou seja, eles entendem que esses animais esto organizados e

    pensam da mesma forma que eles, humanos. Viveiros de Castro explica que, enquanto nsocidentais, percebemos que temos uma natureza comum com os animais por tambm

    sermos animais mas que nos diferenciamos deles por possuirmos cultura, os amerndiosentendem que compartilham com os outros animais a cultura e que se diferenciam deles pelanatureza, por serem de espcies diferentes. (SCHAAN, 2007, p. 101)

    Essa relao, essa imiscuio faz que que haja uma grande complexidade em suas

    representaes e que essas fujam do padro conhecido no ocidente, cuja tradio remete

    Antiguidade clssica. Dessa maneira, essa relao estabelecida pela pesquisadora entre a

    coruja e a vigilncia noturna foge, por exemplo, ao padro iconolgico do modelo

    epistemolgico europeu dos sculos XV a meados do XVIII, representado pela obra de Cesare

    Ripa ou mesmo pelo gnero emblemtico5e que, de certa forma, ainda est presente em nosso

    imaginrio.

    Naquele modelo, a corujapor ser portadora de malagouro(RIPA, 2007, p. 350-456)

    empregada para representar, por exemplo, a alegoria do escrnio sbita afrenta

    realizada contra el honor de alguno(ibidem, p. 350)que se d, de modo especial, noite.

    Assim, devido a seus hbitos noturnos, j que la noche hace que los nimos se entreguen con

    la mayor facilidade, al influjo de los malos pensamentos(ibidem, p. 350), a ave empregada

    na elaborao desse modelo alegrico.

    Convm salientar que Ripa far emprego, em suas construes iconolgicas, de

    elementos provindos no apenas da tradio greco-romana, bem como da egpcia. Assim, ele

    empregar nas mesmas, a ttulo de ilustrao, Ovdio que, em seu livro V de As

    Metamorfoses, dizia que a coruja siniestro presagio para los mortales(ibidem, p. 494), ou

    ainda Plinio ao dizer que a ave es funesto [...]; habita los lugares desiertos [...] monstruo de

    la noche que no emite ningn canto, sino un gemido.(ibidem, p. 494)

    5[...]parte do pensamento iconolgico renascentista era composto: 1) pelo acervo de sentenas, de apotegmase de exempla (paradeigma) dos auctoritas, compilados na Idade Mdia (Cf. CURTIUS, Ernst Robert. Literaturaeuropeia e Idade Mdia Latina. So Paulo, Hucitec/Edusp, 1996, p. 96-97); 2) pelos bestirios e os herbanrios

    aquele eram tratados medievais sobre animais, este sobre as plantas, cuja tradio remonta s verses latinasdoPhisiologus grego; 3) pelo hermetismo imagtico propiciado pelos hierglifos egpcios, decorrentes da obrade Horapolo. Faltava apenas um enlace final que agrupasse todos esses sistemas sgnicos em um. Isso foiefetivado, em 1531, com a obra Emblematum Liber, de Alciati. Este deu corpo quilo que j fazia parte doambiente cultural europeu desde incios do sculo XV, ao amalgamar todas essas figuras alegricas provenientes

    da Bblia, das sentenas, dos hierglifos e dos bestirios, concedendo-lhes, alm de textos elucidativos, umaforma visual: nascia o gnero emblemtico. (BRANDO, Antnio Jackson de S. Da iconologia iconofotologia: uma mudana paradigmtica. In Ghrebh-, PUC/SP, 2010, p. 20).

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    Figura 6

    Urna funerria marajoara com referncia a figura feminina(Fonte: Catlogo Simbolismo sexual na Amaznia Antiga: urnas, estatuetas e tangas marajoaras)

    Verifica-se, dessa maneira, que a ideia de vigilncia noturna tambm no

    correspondia com a viso empregada por Horapolo6 em sua interpretao dos hierglifos

    egpcios, pois para ele a coruja representava morte imprevista(HORAPOLO, 1991, p. 350),

    ideia foi assinalada por Aristteles, quando afirmava que havia uma animosidadenatural

    entre a coruja e a gralha, pois Laprimera por ver ms prjima a noche, toma los huevos del

    nido de la segunda y los come; la segunda, al ocurrir el caso contrario, hace lo mismo en el

    da.(ibidem, p. 347)

    Assim, por uma ave, sorrateiramente, invadir o espao da outra, roubando-lhe os ovose levando, destarte, a morte futura cria e por serem animales contrarios y ambos remitir a la

    idea de destruccin, es por lo que aparecen en el grabado dispuestos uno bajo el otro

    remitiendo a la idea de la muerte (ibidem, p. 347), seriam representados um sobre o outro,

    mas em posies contrrias, de forma especular.

    6Autor cuja obra Hieroglyphica, que aparecera em Florena em 1419 e que, em pouco tempo, se tornaria no

    s um anseio intelectual, como tambm uma febre que levaria a uma busca frentica por tudo aquilo que sereferisse ao Egito Antigomanuscritos, papiros, obeliscos; afinal, acreditava-se, a obra seria capaz de desvendara chave sgnica dos hierglifos egpcios. (BRANDO, op. cit., p. 20).

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    Isso demonstra no s a originalidade de Barreto, como se sua interpretao estiver

    correta, a viso peculiar do homem que habitou a Amrica num perodo pr-colombiano.

    Talvez isso seja algo semelhante ao emprego que os antigos egpcios faziam da deusa Nut, ao

    inseri-la dentro de sarcfagos como se abraasse o corpo do morto (JUNG, 2008, p. 173); s

    que, no caso da cermica marajoara, a deusa-me, representada pelos atributos femininos, est

    no lado externo da urna funerria, sob a aparncia estilizada de uma coruja que o protegeria

    em sua viagem na escurido ps-morte.

    Figura 7

    Tanga marajoara com decorao simples

    (Fonte: Catlogo Simbolismo sexual na Amaznia Antiga: urnas, estatuetas e tangas marajoaras)

    As tangas de cermica tambm possuem um grande destaque entre os artefatos da

    cultura marajoara. No possvel determinar qual era sua utilizao, alguns estudiosos

    acreditam que eram de uso cotidiano; outros, que eram utilizadas em cerimnias religiosas,

    pois algumas foram encontradas no interior de urnas funerrias. Possuem um formato

    triangular, superfcie abaulada, com furos nas extremidades onde, provavelmente, eram

    colocados os fios de sustentao. Quanto decorao, foram encontradas tangas mais

    simples, com engobo vermelho (Figura 7), e outras com pintura de traos vermelhos em fundo

    branco (Figura 8).

    Acredita-se, porm, que seja de emprego de certos membros da elite e que

    representem, de alguma forma,status visto que

    Em algumas urnas funerrias, se percebe que a personagem feminina est usando umatanga, e h relatos de que tangas teriam sido encontradas amarradas por fora de urnas

    funerrias, na altura da vagina da personagem representada (PALMATARY, 1950). Astangas so encontradas somente nos tesos da elite, ou seja, naqueles em que hsepultamentos e cermica decorada. So encontradas inteiras dentro de urnas, nos

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    sepultamentos que, se deduz, sejam de mulheres. Tambm so encontradas fragmentadasnas escavaes em reas de moradia, em reas de descarte e em reas de circulao e

    produo de cermica.(SCHAAN, 2007, p. 110)

    Figura 8

    Tanga marajoara com decorao mais elaborada(Fonte: Catlogo Simbolismo sexual na Amaznia Antiga: urnas, estatuetas e tangas marajoaras)

    As estatuetas marajoaras tambm possuam atributos femininos, como seios,

    retngulos ou tringulos pubianos e variaes quanto ao tamanho e s decoraes. Apesar de

    as estatuetas serem visivelmente femininas, muitas se apresentaram com forma flica,

    combinando caractersticas femininas e masculinas ao mesmo tempo. Podem ter sido

    utilizadas, inclusive, como instrumentos musicais, provavelmente em rituais, pois so ocas e

    possuem pedrinhas em seu interior (Figuras 9 e 10).

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    Figura 9

    Estatueta antropomorfa(Fonte: Catlogo Cermica Marajoara: A comunicao do silncio)

    Segundo Schaan (2006, p. 31-48), s imagens portteis so atribudas funes deveculos para a encarnao de espritos durante cerimnias. So, dessa maneira, smbolos

    culturais que, para Jung (2008, p. 117), por exemplo, eram

    empregados para expressar verdades eternas e que ainda so utilizados em muitasreligies. Passaram por inmeras transformaes e mesmo por um longo processo deelaborao mais ou menos consciente, tornando-se assim imagens coletivas aceitas pelassociedades civilizadas.Esses smbolos culturais guardam, no entanto, muito de sua numinosidade ou magia original. Sabe-se que podem evocar reaes emotivas profundas em algumas pessoas [...].

    Por outro lado, a postura de certas estatuetas, em que se veem figuras femininas

    acocoradas, como normalmente se encontram, pode sugerir a posio de parto das ndias das

    sociedades amaznicas. (BARRETO, 2007, p. 4)

    Figura 10

    Estatueta antropomorfa(Fonte: Catlogo Cermica Marajoara: A comunicao do silncio)

    possvel que alguns objetos com formas utilitrias fossem utilizados pelos

    marajoaras em rituais de passagem e em funerais. Pratos, tigelas e vasos para o preparo e paraservir os alimentos durante as cerimnias (Figuras 11 e 12). Alm desses objetos, foram

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    encontrados inaladores, que poderiam estar relacionados ao uso de tabaco ou de substncias

    alucingenas (Figura 13).

    Figura 11

    Prato raso(Fonte: Catlogo Cermica Marajoara: A comunicao do silncio)

    Figura 12

    Vaso zoomorfo(Fonte: Catlogo Cermica Marajoara: A comunicao do silncio)

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    O simbolismo

    Schaan (1996, p. 17) atenta para o aspecto sagrado presente na arte7indgena, de

    uma forma geral os desenhos presentes tanto nas pinturas corporais quanto na ilustrao de

    objetos de adorno ou cermicas, que possuem padres estticos prprios e especficos a cadatribo.

    A autora tambm levanta a questo da influncia do mito na arte indgena, pois os

    grupos indgenas, de forma geral, explicam a origem de seus padres estticos por meio de

    uma criatura divina ou um ser mitolgico que, em dado momento, entrega para aquela tribo

    seus smbolos iconogrficos, diferenciando-a de outras que utilizam outras representaes

    tambm recebidas em eventos mticos (tribos pares), diferenciando-a das tribos que sequer

    possuem smbolos iconogrficos, consideradas inferiores.

    Figura 13

    Inalador(Fonte: Catlogo Cermica Marajoara: A comunicao do silncio)

    Devido ao carter sagrado dos smbolos, havia pouca liberdade ao arteso que deve,

    ao criar suas obras, mant-las seguindo a iconografia do grupo; logo, limitar-se tradio

    7Convm ressaltar aqui o emprego da palavra arte, cujo emprego para designar manifestaes estticas desociedades arqueolgicas visto com reserva pelos arquelogos, porque se sabe que as sociedades indgenas noconsideram seus objetos de uso cotidiano, festivo ou cerimonial como obras de arte. Por isso, denominaescomo arte indgena ou etnoarte (SILVER, 1979) tm sido usadas para dife renciar a arte dos povos indgenasda arte da sociedade ocidental (SCHAAN, Denise Pahl. 2007, p. 99), visto que no havia, provavelmente, paraaqueles povos aquilo que conhecemos por valor esttico. Algo diferente, apesar de relacionado em certo sentido(j que no teramos nem tempo nem espao para discorrer aqui), com o que pregava Hegel para a arte, como

    reino da aparncia e da iluso e que, portanto, quilo a que chamamos belo se poderia tambm chamar aparentee ilusrio. [...] a arte cria aparncias(HEGEL, Georg. W. Curso de esttica. So Paulo: Martins fontes, 2009, p.21).

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    esttica8do grupo a que pertence, pois esses traos representam a identidade tnica da tribo,

    seus signos de reconhecimento, entregues pelas prprias entidades divinas.

    So essas representaes que tornam um objeto socialmente aceito por aquele grupo,

    tanto do ponto de vista de torn-lo beloquanto funcional, pois tais signos so considerados

    sagrados, divinos e que fazem com que o objeto torne-se adequado a cumprir suas funes,

    seja cotidiana, funerria ou ritualstica, j que carregam no s significados cosmolgicos,

    como tambm a identidade tnica do grupo que, para isso,

    trazem em geral a figura humana em destaque, mas sempre associada com animais como acobra, o escorpio, o urubu-rei, o jacar ou o lagarto, entre outros. Alm disso, a figurahumana predominantemente feminina, quando o sexo pode ser identificado, o que podeindicar que a matrilinearidade era a maneira organizativa do parentesco.Um dos exemplosmais conhecidos uma urna que congrega caractersticas da ave (coruja) e do gnerofeminino (representado pela vagina e tero, s vezes grvido). [conforme visto na figura 6](SCHAAN, 2007, p. 108-109)

    Dessa maneira, uma urna funerria decorada com determinado padro estilstico traz

    inserida, mensagens relativas tanto vida ps-morte, quanto identidade tnica do corpo que

    ela est guardando, servindo como identificao do grupo tnico ao qual pertencia.

    Os smbolos grficos so, portanto um importante patrimnio cultural para esses

    povos, uma identidade cultural diretamente ligada a seu arcabouo mitolgico: Os desenhos,

    assim dispostos no vaso, representam a viso cosmolgica da tribo e so um veculo de

    comunicao de seus valores e tradies, podendo ser utilizados para o ensino-aprendizagem

    dos mais jovens. (SCHAAN, 1996, p. 19) Dessa maneira, os grafismos presentes na

    cermica marajoara tambm fazem parte dessa ligao da tribo com o divino por meio do

    mito.

    Os objetos cermicos marajoaras podem ser tanto antropomrficos, ao representar

    figuras humanas, quanto zoomrficos, ao fazer o mesmo com figuras animais. Schaan

    (ibidem) levanta a hiptese de que as figuras zoomrficas esto ligadas fauna da regio e

    que seus motivos geomtricos (muito presentes nos grafismos marajoaras) poderiam ser umaforma simplificada de desenhos figurativos e que tambm representariam figuras

    zoomrficas; inserindo, dessa maneira, a representao de mitos da regio.

    A releitura da cermica marajoara no presente

    8No no sentido de Baumgarten, como o da fruio da obra artstica.

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    importante diferenciarmos o conceito de cermica marajoara relativos aos

    artefatos arqueolgicos localizados na ilha do Maraj, datados de um perodo anterior ou

    simultneo a ocupao portuguesa, com aquela feita no presente sob a forma de releitura da

    anterior, para fins comerciais.

    Atualmente, a cermica marajoara, sob a forma de releitura de artesos da regio

    amaznica, uma forma de artesanato bastante popular tanto nacional, quanto

    internacionalmente, gerando uma importante fonte de renda para a populao da regio.

    Essa releitura da cermica de etnias antigas teve incio, na dcada de 70, com o

    Mestre Cardoso, importante ceramista autorizado pelo museu Emlio Goeldi, que executou

    uma srie de rplicas pertencentes ao museu. A partir de seus ensinamentos , diversos artesos

    comearam a reproduzir a cermica marajoara, e hoje seu comercio impulsiona a economia da

    regio. Schann, porm, nos alerta para o processo de inveno de tradies, que vem

    ocorrendo dentro da releitura da cermica marajoara.

    O conceito de inveno de tradies proposto pelo historiador Eric Hobsbawm, no

    livro A inveno das tradies de modo a compreender como as elites nacionais criam

    tradies para justificar a existncia de suas naes.

    Schann utiliza-se desse conceito em seu texto para abordar a crescente releitura da

    cermica marajoara com frequente descaracterizao de suas caractersticas estticas, seus

    mitos e at suas dataes originais, para o favorecimento de um mercado consumidor

    crescente. Mas ressalta que, alm das questes capitalistas envolvidas nesta descaracterizao,

    tambm est presente a falta de informao da populao sobre o assunto. Pode-se inferir que,

    se h uma culpa, esta poderia recair sobre o prprio meio acadmico que no interesse ou

    mesmo condies de dedicar-se a uma educao patrimonial que leve, de fato, populao

    informaes mais completas e aprofundadas sobre a temtica.

    Por outro lado, evidente que seu emprego tambm pode ser visto

    de maneira positiva para sensibilizar as pessoas sobre a importncia de aprendermos econhecermos o passado e, nesse sentido, sobre a importncia de protegermos e

    preservarmos o patrimnio arqueolgico. Atravs da preservao, garantimos que muitasinterpretaes ainda sero possveis nos sculos vindouros e que o passado sejaconstantemente reatualizado e utilizado de maneira construtiva para criar identidade,cidadania e histria. (SCHAAN, 2007, p. 114)

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    Figura 14

    Vaso produzido pelo Mestre Cardoso(Fonte: Acervo Museu do Folclore Edison Carneiro, Rio de Janeiro/RJ)

    Consideraes finais

    Estudar a cermica marajoara adentrar em um universo muito mais amplo, no qual

    possvel encontrar mais do que um objeto bem detalhado e ornamentado que chegou a gerar

    interesse tanto de pesquisadores naturalistas no sculo XIX quanto nos turistas da

    contemporaneidade.Esse interesse, curiosidade, ateno pode suscitar, imediatamente, a questo: qual o

    motivo de suas caractersticas decorativas? Essa pergunta vem sendo respondida atravs dos

    estudos da relao simblica das etnias indgenas com seus signos grficos, j que a relao

    muito mais ampla do que apenas a utilizao dos signos grficos para fins estticos. Isso

    porque, essa relao percorre caminhos da funcionalidade, do mito e do sagrado, de forma que

    os signos grficos presentes na cermica marajoara carregam em si uma carga simblica que

    fazem deles uma representao tnica daquele grupo.

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    evidente que esta difere muito da tradio ocidental como um todo, como se viu ao

    contrastar alguns elementos empregados por essa tradio amaznica com os presentes na

    formao imagtica da Antiguidade Clssica que permearam, de modo especial, o imaginrio

    europeu ao longo dos sculos XVI ao XVIII.

    Uma questo que ainda pode suscitar questionamentos, aps a busca por se

    compreender o significado imagtico empregado por esses grupos amaznicos, a da

    apropriao, pela contemporaneidade, de seus modelos representativos, por grupos hodiernos

    residentes da Ilha do Maraj.

    Esses, muitas vezes, reproduzem a cermica arqueolgica, utilizando-se de tcnicas e

    instrumentos mais avanado; e, mais que uma simples fonte de renda para a regio e de um

    meio de recuperao de uma identidade coletiva, podem ser lavados criao de falsas

    tradies.

    Como os mitos ligados aos signos presentes na cermica devem ser, provavelmente,

    relacionados ao passado heroico dessas pr-colombianas, sua ressignificao hodierna acaba

    sendo, de certa forma, um resgate de tradies.

    Dessa maneira, pode-se inferir que tanto os grupos pr-colonizao quanto os

    contemporneos da ilha do Maraj so levados a manter entre si uma ligao na significao

    atribuda cermica marajoara, afinal a entendem como um veculo de reafirmao de uma

    memria coletiva, independente desta memria ser legitima ou falseada, para fins de

    preservao de laos sociais.

    Referncias bibliogrficas

    BARRETO, Cristiana. Cermica e complexidade social na Amaznia Antiga: uma

    perspectiva a partir de Maraj. In Arqueologia Amaznica. Volume 1. Belm: Museu

    paraense Emilio Goeldi, 2010.

    BONFIGLIOLI, Cristina P. Representao e pensamento: a visibilidade dependente. In

    Comps: Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao, 2008.

    BRANDO, Antnio Jackson de S. O Lgos e a especificidade da linguagem potica. In

    Eutomia, UFPE, 2008.

    HORAPOLO. Hieroglyphica. Madrid: Ediciones Akal, 1991.

    JUNG, Carl. O homem e seus smbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

    LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e escritas. Lisboa, Colibri, 1998.

    RIPA, Cesare. Iconologia I. Madrid: Ediciones Akal, 2007.

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    SCHAAN, Denise Pahl. A linguagem iconogrfica da cermica marajoara.Dissertao de

    mestrado apresentada na PUC/RS, 1996.

    ________. Arqueologia, Pblico e comodificao da herana cultural: o caso da cultura

    marajoara. In Revista Arqueologia Pblica, n 1 p 31-48, So Paulo, 2006.

    ________. A Representao humana na arte marajoara. Texto escrito para a exposio

    Maraj: Retratos de Barro. Belm: Museu de Arte de Belm, 1999.

    ________. A arte da cermica marajoara: encontros entre o passado e o presente. In

    Habitus. Goinia, 2007.