13
A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes, na aldeia Kumenê, no município do Oiapoque Jussara de Pinho Barreiros 1 [email protected] Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP RESUMO O objeto deste estudo apresenta o resultado parcial da pesquisa de campo envolvendo as práticas tradicionais da cerâmica Palikur como identidade cultural e socioambiental na fabricação de potes, na aldeia Kumenê, no município do Oiapoque, Amapá. Objetiva caracterizar os elementos determinantes de caráter cultural e socioambiental que apresentam um padrão de técnica tradicional e ancestral e que interpretam na significação histórica e simbólica de sua cosmologia. A modelagem dos objetos representa o patrimônio cultural e ambiental, como versa a Constituição Federal de 1988, nas questões do meio ambiente. A pesquisa justifica-se pela importância em descrever os conhecimentos ancestrais sobre a natureza, no trato com a utilização da argila branca, na fabricação artesanal dos potes de cerâmica, saberes tradicionais realizados pelas mulheres indígenas, que realizam o manejo dos diversos recursos naturais, deixados pelos ancestrais em tempos remotos, encontrados a partir de escavações em sítios arqueológicos situados em Terras Indígenas, no norte do Estado do Amapá e identificados pelos arqueólogos como cerâmica Aristé. A metodologia abordou o método qualitativo e a observação participante no Museu Kuahí, com os alunos do Curso Intercultural Indígena da etnia Kumenê, no período de 2013-2015. A investigação apresenta resultados parciais das análises da produção de objeto, com destaque para os potes de cerâmica, utilizando a argila branca, extraída do fundo dos poços dos campos formados pela natureza, localizados ao longo do rio Urukauá. Conclui-se que os aspectos culturais e ambientais necessitam de projetos socioambientais que caracterizem a identidade cultural e étnica junto às comunidades indígenas e negras, buscando parcerias e alternativas que compartilham a responsabilidade de conservação do saber tradicional no manejo com os recursos naturais, para as gerações futuras, no uso da cerâmica pré-histórica no Estado do Amapá. Palavras-chave: Cerâmica. Palikur. Conhecimento 1 Doutoranda do Curso História da Ciência – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP

A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

  • Upload
    others

  • View
    4

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais

na fabricação de potes, na aldeia Kumenê, no município do Oiapoque

Jussara de Pinho Barreiros1

[email protected]

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP

RESUMO

O objeto deste estudo apresenta o resultado parcial da pesquisa de campo envolvendo as práticas tradicionais da cerâmica Palikur como identidade cultural e socioambiental na fabricação de potes, na aldeia Kumenê, no município do Oiapoque, Amapá. Objetiva caracterizar os elementos determinantes de caráter cultural e socioambiental que apresentam um padrão de técnica tradicional e ancestral e que interpretam na significação histórica e simbólica de sua cosmologia. A modelagem dos objetos representa o patrimônio cultural e ambiental, como versa a Constituição Federal de 1988, nas questões do meio ambiente. A pesquisa justifica-se pela importância em descrever os conhecimentos ancestrais sobre a natureza, no trato com a utilização da argila branca, na fabricação artesanal dos potes de cerâmica, saberes tradicionais realizados pelas mulheres indígenas, que realizam o manejo dos diversos recursos naturais, deixados pelos ancestrais em tempos remotos, encontrados a partir de escavações em sítios arqueológicos situados em Terras Indígenas, no norte do Estado do Amapá e identificados pelos arqueólogos como cerâmica Aristé. A metodologia abordou o método qualitativo e a observação participante no Museu Kuahí, com os alunos do Curso Intercultural Indígena da etnia Kumenê, no período de 2013-2015. A investigação apresenta resultados parciais das análises da produção de objeto, com destaque para os potes de cerâmica, utilizando a argila branca, extraída do fundo dos poços dos campos formados pela natureza, localizados ao longo do rio Urukauá. Conclui-se que os aspectos culturais e ambientais necessitam de projetos socioambientais que caracterizem a identidade cultural e étnica junto às comunidades indígenas e negras, buscando parcerias e alternativas que compartilham a responsabilidade de conservação do saber tradicional no manejo com os recursos naturais, para as gerações futuras, no uso da cerâmica pré-histórica no Estado do Amapá.

Palavras-chave: Cerâmica. Palikur. Conhecimento

1 Doutoranda do Curso História da Ciência – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP

Page 2: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

1. Introdução

Este artigo traz como objeto de estudo o resultado da experiência da pesquisa com os

alunos do curso de formação de professores indígenas no período de 2013 a 2015, voltado à

questão da etnografia, com a temática: A Cerâmica como identidade cultural Palikur: um

estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes, na aldeia Kumenê, no município

do Oiapoque. Objetiva caracterizar os elementos determinantes da técnica tradicional aplicada

na confecção de potes, dentro dos aspectos socioambientais e a concepção historiográfica para

a História da Ciência e a Arte Indígena dos povos indígenas Palikur, do rio Urucauá, no

município do Oiapoque, no Estado do Amapá.

Na metodologia, o estudo requer uma abordagem qualitativa e descritiva, no contexto

histórico, etnográfico e documental, que pretende descrever os elementos formais e o caráter

representacional, simbólico, cultural e artístico, na produção artesanal de objetos de cerâmica

indígena, utilizando argila branca. A intenção do tema em estudo é estabelecer, no campo

teórico e etnográfico, as relações étnicas e remotas de peças cerâmicas encontradas da fase

Aristé, em sítios arqueológicos situados em Terras Indígenas.

Na abordagem historiográfica, evidencia-se os relatos das expedições científicas

realizadas por viajantes alemães, que fizeram suas investigações etnográficas e linguísticas no

Brasil dos povos indígenas da América do Sul, durante os séculos XIX e XX, com destaque

aos etnólogos Karl von den Steinen (1855-1929); Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e

Curt Nimuendajú (1883-1945).

Os estudos etnográficos de Karl von den Steinen, como pesquisador da Universidade

de Berlim, tiveram como resultados duas expedições científicas à região do Xingú/Brasil, a

primeira em 1884 e a segunda em 1887-1888. Estudou os índios Bacairis (língua nativa),

pesquisando os afluentes do Rio Xingu (Brasil) até a foz, seguindo até o Pará. Como resultado

dessa expedição, em 1886, publicou o livro “Durch Central-Brasilien”. A contribuição de

Steinen para o conhecimento científico do Brasil e a exploração etnológica dos indígenas

brasileiros começa no campo da geografia, por meio de suas viagens a partir de 1884, com o

objetivo de explorar o Xingu (Brasil).

Considerando os estudos de Egon Schaden (1913-1991), antropólogo brasileiro, neto

de alemães, dentro do universo da Etnologia Brasileira, podemos destacar algumas pesquisas

nesse campo das culturas indígenas. Para uma informação bibliográfica, citaremos o volume

Page 3: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

da Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira de Herbert Baldus (1899-1970)2, etnólogo

brasileiro nascido na Alemanha que, em viagem para o Brasil, recém-doutorado pela

Universidade de Berlim, visitava tribos do Brasil Central. De sua estada entre os Tapirapé, do

Vale do Araguaia, resultaria a mais completa monografia hoje disponível de uma cultura

Tupí, com a obra Tapirapé, da tribo tupi do Brasil Central, São Paulo, 1970 (NAVARRO,

1999).

Dessa forma, Egon Schaden3 afirma que o marco dos anos 30, com as pesquisas de

Curt Nimuendajú com a tribo «Jê Setentrionais», forneceu as primeiras monografias. Egon

Schaden menciona também as contribuições de Claude Lévi-Strauss, encaminhando-se para o

Oeste do Brasil, estudando principalmente os Borôro e os Nambikuára, de Mato Grosso.

Os registros arqueológicos com urnas cerâmicas para sepultamento de indígenas no

Amapá estão publicados – por meio dos estudos do historiador Nunes Filho (2010). Os poços

fúnebres descobertos no Amapá, em épocas e lugares diferentes, caracterizam essa forma de

enterramento como própria de grupos étnicos específicos.

A trajetória histórica dos artefatos cerâmicos e líticos encontrados nos túmulos de

poço com câmara no Amapá estão em reservas nos museus Emílio Goeldi, no Pará e Joaquim

Caetano da Silva, no Amapá. Em suas contribuições e publicações à arqueologia e à etnologia

amazônica como zoólogo, Emílio Augusto Goeldi (1859-1917) publicou obras entre 1900 e

1906, quando era diretor do Museu Paraense (1894), em Belém (PA), Brasil (SANJAD;

SILVA, 2009.

Goeldi e sua equipe encontraram em Cunani, poços artificiais contendo grande

quantidade de cerâmica indígena, conhecidos mundialmente graças à publicação da memória

“Excavações archeologicas em 1895”, com a descrição do local do achado e do material,

ilustrada com estampas cromolitográficas ressaltando formas, cores e motivos decorativos

(SANJAD; SILVA, 2009, p. 96).

A questão da origem étnica dessas cerâmicas foi o ponto explorado por Goeldi. A

grande diversidade etnolinguística e etnográfica indígena na Amazônia se manifestou com

2 BALDUS, Herbert, Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira. O primeiro volume foi editado pela Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, São Paulo 1954 e o segundo volume na coleção « Völkerkundliche Abhandlungen » da Secção Etnológica do Nierdersächsisches Landesmuseum (Hanôver, 1986), que também promoveu a reimpressão do primeiro (1970). In: Curt Nimuendajú, As monografias sobre tribos Jê são: The Apinayé, Washington, 1939, reimpresso em 1967; The Serente, Los Angeles, 1942; The Eastern Timbira, Berkeley e Los Angeles, 1946. 3 SCHADEN, Egon. Leituras de Etnologia Brasileira, 6. Cita: Claude Lévi-Strauss tratou os Borôros, em seu notável artigo « Contribution à I’ étude de I’organisation sociale des indiens Bororo », Journal de la Société des Américanistes, n. s., v. XXVII, Paris, 1936, e dos Nambikuára em « La vie familiale et sociale des indiens Nambikuára », na mesma revista, v. XXXVI, Paris, 1948. De sua obra Tristes Tropiques, Paris, 193, dedicada na maior parte a essas tribos mato-grossenses, existe tradução portuguesa ( Tristes Trópicos, São Paulo, 1957 ).

Page 4: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

grande interesse em suas pesquisas, como também o diálogo com outros etnólogos alemães

como Karl Phillip von Martius (1791-1868) e Karl von den Steinen (1855-1929).

As pesquisas arqueológicas realizadas desde o fim do século XIX, no Amapá,

apresentam também muitos pesquisadores como Ferreira Pena, 1872-1877; Emílio Goeldi,

1895; Curt Nimuendajú, 1915 e Betty Meggers, 1949. As fases arqueológicas amapaenses

apresentam quatro fases ceramistas pré-históricas, sendo: Aruã, Aristé, Mazagão e Maracá

(SILVA, 2016).

Este trabalho apresenta arqueólogos como Betty Meggers, Clifford Evans e Mário

Simões interpretando as definições destas fases, em destaque, a fase Aristé, identificada no

Amapá, com localização geográfica das fases arqueológicas no norte do Amapá, limitada, ao

norte, pelo Rio Oiapoque e, ao sul, pelos rios Araguari/Amapari (NUNES FILHO, 2010).

A pesquisa de campo e a observação participante teve como resultado a coleta de

dados, a partir da análise da experiência e vivência do povo Palikur, em destaque as mulheres

artesãs na produção de objetos de barro extraído da argila branca, por meio da técnica

tradicional em que os índios Palikur são experientes no desenvolvimento da cerâmica.

No entanto, pretende-se, com este estudo, contribuir ainda para a História da Ciência e

aos aspectos socioambientais dentro da Etnografia Amazônica, especialmente no Amapá. A

importância da expressão gráfica, através dos significados dos signos plásticos (cor, linhas,

textura e forma) na produção dos vasos de barro, enquanto objetos visuais e de ornamentação,

expressa a habilidade de um conhecimento tradicional e artístico com significados míticos,

que regem a composição dos elementos formais, apresentando uma identidade étnica dos

povos indígenas do Oiapoque.

2. A diversidade étnica dos povos indígenas do Uaçá

Os povos que ocupam as Terras Indígenas Uaçá I e II são Galibi-Marworno, Karipuna

do Amapá e Palikur que, segundo o CENSO/2011/FUNAI/MACAPÁ, são, aproximadamente,

4.462 índios localizados no município do Oiapoque, no Estado do Amapá, com situação

jurídica de terras demarcadas e homologadas conforme Decreto 298 de 29/10/1991, publicado

em 30/10/1991 (TASSINARI, 2003).

O povo Palikur compõe um grupo étnico formado por descendentes dos históricos

grupos de origens diversas que confluíram para a região, em diferentes épocas habitam as

margens do rio Urukauá, afluente do Uaçá, na Terra Indígena Uaçá (GALLOIS;

GRUPIONI, 2009, p. 14). No entanto, também formam uma rede de intercâmbio cultural,

Page 5: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

numa política estadual e federal, promotores da unidade interétnica entre as comunidades

indígenas, buscando uma tomada de consciência da realidade dos direitos indígenas em

relação à posse e ao usufruto das terras legalizadas e demarcadas.

Os estudos da arte indígena mostram o sistema social, religioso, mítico e artístico de

um grupo étnico sob duas perspectivas: estrutural representacional e simbólico sociocultural,

associados ao caráter social e mágico-religioso, através do significado da arte indígena, em

especial a cerâmica profundamente enraizada nas suas vivências e sua mitologia. Em virtude

disso, representações iconográficas de identidade étnica são afirmadas, segundo a etnóloga

Berta, “A arte gráfica como linguagem na interpretação dos significados simbólicos tem

função de elementos culturais de contextos etnográficos” (RIBEIRO, 1986, p. 19). A autora

mostra que os sistemas representacionais expressam a estrutura formal e semântica dos

desenhos e os simbolismos socioculturais, que estuda os significados explícitos dos signos

plásticos das artes indígenas.

Propomos, nesta pesquisa, como problematização, os objetos de cerâmica da cultura

material dos índios Palikur da TI Uaçá, seriam mediadores simbólicos que transformam os objetos

naturais em objetos sagrados, na medida em que configuram na autoridade moral dos ancestrais e o

saber milenar, através da técnica artesanal. Sabe-se que não existe uma boa aceitação da mão de obra

indígena no mercado de trabalho formal, no caso dos índios de Uaçá, o que favorece a emigração deles

para Caiena (ASSIS, 1981).

Preservando a identidade étnica e cultural na Pós-modernidade, segundo o sociólogo,

Hall afirma: “no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem, em

uma das principais fontes de identidade cultural” (HALL, 2006, p. 47). A argumentação do

autor faz referência às identidades nacionais, que não são coisas com as quais nós nascemos,

mas são formadas e transformadas no interior da representação. Uma visão preocupada em

captar as singularidades, as particularidades e as diversidades do real.

A região do Uaçá é um lugar de confluência de povos provenientes do Norte do Brasil

e das Guianas e é muito diversificada do ponto de vista ecológico, caracterizando-se por

mangues, campos de várzeas, inundadas durante uma parte do ano; ilhas baixas e de tamanhos

variados, cobertos por florestas de terra firme e entrecortados por rios, igarapés e lagos. A

cidade de Oiapoque é o mais importante centro das transações entre indígenas e a sociedade

envolvente, com a venda de farinha, frutas, caça, artesanato e a compra de bens de mercado

local, além da presença política marcante por meio da sede da APIO – Associação dos Povos

Indígenas do Oiapoque, criada em 1992.

Sobre o grupo étnico Palikur:

Page 6: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

Existem registros muito antigos sobre a população que, em 1513 aparece mencionada nos relatos do navegador espanhol Vicente Yanez Pinzon, sob o nome Parikura, e, ao longo dos séculos seguintes, aparece em outros escritos históricos e etnológicos, sendo referida diversamente por nomes como Pariucur, Paricurene, Paricour, Pariucour, Palicors (GALLOIS, 2009. p. 15).

As expedições estrangeiras realizadas ao Brasil, no final do século XIX, em sua

maioria atuaram para o desenvolvimento das pesquisas com as populações indígenas, como

também as contribuições das missões católicas como a Missão Franciscana (CIMI), dos

protestantes (Summer Institute of Linguistics/SIL) e da agência governamental brasileira como

Serviço de Proteção aos Índios/SPI, atuante na primeira metade do século XX.

Na trajetória dos historiadores, existe a ilustração “Indiens de Guyane”, da obra de P.

Barrère. Nouvelle Relation de la France Equinoxiale. Paris, 1743. Retrata as imagens

indígenas da sua passagem da França Equinoxial, pelas Guianas e Amazônia, mostrando os

Akoquoua e os Palikur e registrando a primeira escavação do sítio Aristé, no período de

junho/julho 1883, na excursão do CUNANIE (GALLOIS, 2009. p. 21) (Figura 1).

FIGURA 1. “Indiens de Guyane” - Ilustração de Pierre Barrère (1690-1755) 4.

Henri Anatole Coudreau, em seu livro LA France Équinoxiale: Voyage à travers les

Guyanes et L’Amazonie Tome II, em 1887, faz referência a uma “construção histórica, em

traços gerais da ocupação indígenas Palikur, onde foram encontrados fragmentos cerâmicos

(objetos de casa, utensílios e ferramentas) como vestígios arqueológicos” (SILVA, 2016, p.

27).

4 Barrère, Pierre. Nouvelle Relation de la France Equinoxiale. Paris: Imprimerie de Moreau, 1743. p 15. https://ia802501.us.archive.org/25/items/nouvellerelation00barr/nouvellerelation00barr.pdf

Page 7: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

Jules Crevaux (1847-1882), médico e explorador francês, em seu desbravamento

científico, fez explorações no interior da Guiana Francesa e na Amazônia. Mostra a história

de contato dos ameríndios e a convivência das populações indígenas com os animais,

dividindo o espaço doméstico (Figura 2).

FIGURA 2. De Cayenne aux Andes - Ilustração de Jules Crevaux (1876-1879)5

Os Palikur são mencionados em relatos de viajantes, em destaque os alemães, como

ocupantes, desde o século XVI, do litoral do Cabo Norte, entre a foz do rio amazonas e o

Cabo Orange, na foz do rio Oiapoque.

Desde a década de 50, os Palikur são Pentecostais e realizam os cultos da Assembleia

de Deus, com uma igreja localizada em uma das aldeias – na vila principal, Kumenê.

Falantes de línguas da família Aruaque, os Palikur, de ambos os lados da fronteira do

Brasil com a Guiana Francesa, possuem o palikur como idioma original. No lado brasileiro,

exceto algumas pessoas mais idosas, que são monolíngues, a maioria utiliza-se do patuá, ou

crioulo francês, como língua de comunicação com os Karipuna. Fazem uso também do

português, em seus contatos com os brasileiros, assim como do francês, no país vizinho

(GALLOIS, 2009, p. 48).

Sua organização social é baseada em clãs patrilineares e exogâmicos; os Palikur falam

o mesmo idioma filiado ao tronco linguístico Aruak. “Entre os Galibi Marworno, consta que

seus antepassados fossem falantes das línguas aruã e maraon”. (GALLOIS, 2009. p. 49).

A valorização da pluralidade cultural pelo respeito à diferença do outro, por meio, da

conservação da técnica artesanal e ancestral do povo Palikur na confecção dos potes de barro, 5 CREVAUX, Jules, Le mendiant de l’Eldorado: de Cayenne aux Andes (1876-1879). Paris: Editions Phébus, Coll. D”ailleurs, 1987.

Page 8: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

representam o universo simbólico da cultura material indígena, buscando valorizar o meio

natural e ambiental que transcende as relações interétnicas entre o homem e a natureza. O

respeito, a diversidade e os elementos da natureza com os quais estabelecem relações de

cooperação e intercâmbio a fim de adquirir e assegurar determinadas qualidades, de uma

tradição milenar de épocas e identidades étnicas diferentes.

As pesquisas sobre estudos culturais étnicos nacionais enfatizam a obra sobre

Culturas Híbridas, em que Canclini, afirma: “A ênfase na hibridação na pretensão de

estabelecer identidades puras ou autênticas”, onde o autor faz relevância que atualmente os

grupos étnicos sofreram mudanças e misturas nas formas de organização social e influências

de contatos com a sociedade civil nas suas diversas formas de sobrevivência, vendas de

produtos, laços de parentescos e casamentos, criação de organizações no respeito e

preservação da natureza (CANCLINI, 2003, p. 23).

Enfatizamos a História da Ciência que trata, portanto, das formas de elaboração,

transmissão e adaptação de antigos conhecimentos sobre a natureza, as técnicas e a sociedade,

considerando a esfera historiográfica de análise que conferem identidade étnica. Desse modo,

trata de épocas e culturas do passado e dos antigos conhecimentos elaborados, transmitidos,

adaptados em diferentes épocas e culturas (RUFFALDI, 2002).

A História da Ciência e a Etnografia descrevem uma trajetória, por meio dos filósofos

e historiadores, a interpretação científica de visão de mundo e das coisas, tendo como marco a

construção na interface entre a História Oral e a História da Ciência, valorizando as pesquisas

nas culturas indígenas e os saberes tradicionais.

3. Matérias primas para fabricação de objetos de cerâmica

O Povo Indígena Palikur, do rio Urucauá, é o povo mais antigo a trabalhar com

argila branca em produção de objetos de cerâmicas. O conhecimento da arte e técnica

tradicional do uso da cerâmica vem sendo repassado de geração em geração há séculos

(Figuras 3 e 4).

Page 9: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

FIGURA 3: Potes Palikur FIGURA 4: Pote Palikur Museu Kuahí, Oiapoque, 2013. Museu Kuahí, Oiapoque, 2013.

Segundo Vidal (2009, p. 50), “os índios Palikur são conhecedores das técnicas de

produzir objetos de barro desde há muito tempo, sendo conhecidos pela produção de grandes

potes que armazenam caxiri, durante as festas”. A pesquisadora afirma ainda, a bebida

caxiri6 é utilizada em mutirões, ou trabalhos coletivos, na derrubada ou plantio das roças

(Figura 5).

FIGURA 5: Potes de reservatório de água ou caxiri (tuk-tuk ou tukutuku)

Fonte: Museu Kuahí, Oiapoque, 2013.

3.1 As matérias-primas

A produção de objetos de cerâmica é composta de algumas matérias que são utilizadas

para a mistura da massa (argila branca), extraída do fundo dos poços dos campos formados

pela natureza. Nem todas as argilas brancas são proveitosas para a fabricação das cerâmicas,

6 CAXIRI: (Caxihí/Woska) bebida fermentada preparada em grande quantidade durante a festa do turé e também para os mutirões (maiuhí) de plantio e derrubada de roça.

Page 10: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

pois a maioria dessas despedaça facilmente nas horas da queima depois de pronto. Esses

materiais são pesquisados e testados antes de serem usados para a produção de cerâmicas

pelas artesãs mais velhas e experientes da aldeia Kumenê.

A descrição das matérias-primas é baseada nos relatos do acadêmico da etnia Palikur,

Nilo Martiniano. Oiapoque, 2013:

1. Argila branca (parowkom) tirada do fundo dos poços dos campos naturais;

2. Cascas da árvore denominada curipé (Kuwepi) encontradas nas matas alagadas ou

terras baixas.

3. Breu-jauaricica (substância de matéria orgânica ou resina) conhecido na região de

Mani ou (TIH);

4. Argila cor vermelha (atamwi) ou tinta vermelha de pedras mortas (tip duwoh), cores

para fazer pinturas e pigmentações;

5. Breu branco SIMIG GUTIHNI (resina de uma árvore tipo breu claro, impermeável

que é passada por dentro da jarra para evitar vazamento);

6. Pigmentos Naturais Substâncias extraídas de casca de árvore cumatê (tinta) para

pinturas de desenhos ou pigmentação.

3.2 Materiais (ferramentas nos trabalhos de molduras)

Os materiais que são usados no trabalho são:

1. Pedaços de tábuas (para sustentar o fundo do pote)

2. Cacos de cuia (para alisar a massa)

3. Pedras lisas (para remodelar)

4. Varetas (para medir e sustentar o corpo do pote em moldura)

5. Peneira para peneirar o pó da casca de curipé queimado, depois de pilado

6. Recipientes como baldes, bacias ou outros

7. Pilão para pilar cascas queimadas.

3.3 A mistura da massa - argila

Depois de extrair o material (argila branca) da casca da árvore curipé, e depois do

processamento de queima, são piladas e peneiradas até se tornarem pó, que é misturado com

água e argila. A mistura da massa é feita pela artesã indígena que amassa a argila até ficar

Page 11: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

mole para começar outro processo, que é a formação (molde) do pote ou outro objeto que ela

deseja produzir.

3.4 A queima dos objetos

A queima dos objetos é feita depois de produzidos e deixados para secar por quarenta

(40) dias. Geralmente, essa queima é conduzida dentro de um buraco com profundidade de

cerca de um metro, para conservar o calor do fogo e para que os objetos sejam bem

queimados. A última ação é a pintura por dentro, com breu, para evitar o vazamento e, por

fora, apenas enfeites (Figura 6).

FIGURA 6: Pote de caxiri Palikur (darivwit)

Fonte: Nilo Martiniano. Oiapoque, 16/02/2013

A cultura Palikur, apesar das influências da sociedade envolvente, ainda permanece

viva, com a confecção dos artefatos e objetos utilitários como: os potes (darivwit) de barro,

que são objetos utilizados no dia-a-dia, como também a cuia (tumowri), que serve para beber

água ou caxiri. Além disso, a canoa (umuh) é utilizada para o deslocamento da pesca, caça e

carregar suas mercadorias. O arco (imedrit) e a flexa (yakot) utilizados bastante na pesca. O

conhecimento ancestral do povo Palikur mais importante que é preservado é a língua nativa.

Conclusão

Diante dos resultados do estudo, concluiu-se que as discussões sobre as questões

ambientais indígenas e aspectos etnográficos são fundamentais para evidenciar os projetos em

Terras Indígenas direcionados aos povos indígenas, a partir da Constituição Federal de 1988 e

Page 12: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

as suas implicações quanto à proposição de alternativas que visem a sustentabilidade do

território da aldeia Kumenê a Terra Indígena Uaçá.

Atualmente, as conquistas da autonomia indígena vêm rompendo barreiras e

legitimando a diversidade, as identidades étnicas, proporcionando uma relação integrada e

direta. A representação simbólica e gráfica dos índios do município do Oiapoque enfatizando

significados míticos e cosmológicos dentro do contexto etnográfico, histórico, da identidade

étnica e cultural dos povos indígenas do Oiapoque.

A criação das associações representativas das etnias tem implementado um apoio

substancial, sejam em forma de convênios, projetos ou associações, como: Associação dos

Povos Indígenas do Oiapoque (APIO); Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque

(APITU); Associação das Aldeias do Wajãpi (APINA); Centro de Cultura Indígena Aparai

Wayana/CCIAW; Associação Galibi Marworno/AGM; Associação dos Povos Indígenas

Tiriyó, Kaxuyana e Txikuyana/APITIKATXI e Organização dos Professores Indígenas do

Município do Oiapoque/ OPIMO. Essas parcerias buscam realizar ações que envolvem as

questões fundiárias, política, social, econômica cultural e educacional, para uma melhor

integração e intercâmbio étnico e cultural (GEERTZ, 2003).

Nesse contexto, pretende-se, com este estudo, contribuir, ainda, para a Ciência e para a

História da Ciência na valorização dos saberes ancestrais indígenas da Amazônia,

principalmente no Amapá. Espera-se, ainda, que as ideias formuladas nesta proposta possam

proporcionar reflexões, discussões sobre as pesquisas que envolvem os povos da floresta e

suas terras, reconhecendo seus conhecimentos indígenas em especial as técnicas tradicionais,

como a confecção de potes Palikur, numa visão científica e etnográfica amazônica, em

destaque os Povos Indígenas do Oiapoque, no Estado do Amapá.

Referências

ASSIS, Eneida Corrêa de. Escola indígena: uma “frente ideológica”? Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade de Brasília, Brasília, 1981. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução Holopiza Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 2. ed. São Paulo: USP, 2003. GALLOIS, Dominique Tilkin; GRUPIONI, Denise Fajardo. Povos indígenas no Amapá e norte do Pará: quem são, onde estão, quantos são, como vivem e o que pensam. São Paulo: Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena, Museu do Índio, Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo, 2009.

Page 13: A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos ...€¦ · A cerâmica como identidade cultural Palikur: um estudo dos aspectos socioambientais na fabricação de potes,

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpelativa. Tradução Vera Mello Joscelyne. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomas Tadeu da Silva, Guacira Lopes Lauro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. NAVARRO, Eduardo de Almeida. Método moderno de Tupi Antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. NUNES FILHO, Edinaldo Pinheiro. Túmulos pré-históricos no Amapá: sepultamentos em poço. Macapá: Editor, 2010. p. 20-21. RIBEIRO, Berta. G. O. Índio na cultura brasileira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2000. RIBEIRO, Berta G. A linguagem simbólica da cultura material. In: RIBEIRO, Darcy (editor). Suma etnológica brasileira. Petrópolis. RJ: FINEP, 1986. Vol. 3: Arte Índia. p. 11-27. RUFFALDI, Pe. Nello; SPIRES, Rebecca. Povos indígenas no Pará e Amapá. Rio de Janeiro: Conselho Indigenista Missionário-CIMI, 2002. 96 p. SANJAD, Nelson; SILVA, João Batista Poça da. Três contribuições de Emílio Goeldi (1859-1917) à arqueologia e etnologia amazônica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas. Belém, v. 4, n. 1, p. 95-133, jan.-abr., 2009. SCHADEN, Egon. Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. SCHADEN, Egon. Karl von den Steinen e a exploração científica do Brasil. Revista de Antropologia, v. 4, n. 2, p. 117-128. 1956. SILVA, Aracy Lopes; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Práticas pedagógicas na escola indígena. São Paulo: Global, 2001 (Série Antropológica e Educação).

SILVA, Michel Bueno Flores da. Aldeias e organização espacial dos povos produtores da cerâmica Aristé. Dissertação (Mestrado em Arqueologia). Faculdade de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. No bom da festa: o processo de construção cultural das famílias Karipuna do Amapá. São Paulo: Editora Edusp, 2003. VIDAL, Lux Boelitz. Povos indígenas do baixo Oiapoque: o encontro das águas, o encruzo dos saberes e a arte de viver. 3. ed. Rio de Janeiro: Museu do Índio e Iepé, 2009.