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A Chama de Uma Vela - Bachelard, Gaston

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  • Do mesmo autor, nesta Editora:

    O D I R E I T O D E S O N H A R

  • Gaston Bachelard

    A Chama de uma Vela

    Traduo Glria de Carvalho Lins

  • Copyright 1961, Presses Universitaires de France

    Ttulo Original: La flamme d'une chandelle

    Capa: projeto grfico de Felipe Taborda, utilizando detalhe da leia "Efecio de luz artificial", de Schalcken (Museu do Prado, Madri)

    1989

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

    Todos os direitos desta traduo reservados EDITORA BERTRAND BRASIL S.A. Rua Benjamin Constant, 142 Glria 20241 Rio de Janeiro RJ Tel.: (021) 221-1132 Telex: (21) 38074 BESI BR. No permitido a reproduo total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prvia autorizao por escrito da editora.

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  • A H E N R I BOSCO

  • N D I C E

    P R L O G O 9

    CAPTULO L O passado das velas 25 CAPTULO li A solido do sonhador de vela 39 CAPTULO III A verticalidade das chamas 59 CAPTULO iv As imagens poticas da chama na vi-

    da vegetal 73 CAPTULO V A luz da lmpada 91 EPLOGO Minha lmpada e meu papel em

    branco 107

  • Prlogo

    I

    Neste pequeno livro, de pura fantasia, sem a so-brecarga de saber algum, sem nos aprisionarmos na uni-dade de um mtodo de investigao, gostaramos de, numa seqncia de curtos captulos, dizer que a reno-vao da fantasia recebe um sonhador na contempla-o de uma chama solitria. A chama, dentre os obje-tos do mundo que nos fazem sonhar, um dos maio-res operadores de imagens. Ela nos fora a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe no nada, comparado com o que se imagina. Ela traz con-sigo um valor seu, de metforas- e imagens, nos dom-

  • nios das mais diversas meditaes. Tomem-na como su-jeito de um dos verbos que exprimem a vida e vero que ela d a esses verbos um complemento de anima-o. O filsofo que corre atrs das generalizaes afir-ma, com dogmtica tranqilidade: " O que se chama Vida na criao , em todas as formas e em todos os seres, um mesmo e nico esprito, uma chama ni-ca"1. Mas tal generalizao rpido demais alcana sua meta. principalmente na multiplicidade e nos deta-lhes das imagens que devemos fazer sentir a funo de operador da imaginao das chamas imaginadas. O ver-bo inflamar deve, ento, entrar para o vocabulrio do psiclogo. Ele comanda todo um setor do mundo da expresso. As imagens da linguagem inflamada infla-mam o psiquismo, do um tom de excitao que a fi-losofia da potica necessita. As mais frias metforas transformam-se realmente em imagens, atravs da cha-ma, tomada como objeto de fantasia. Ainda que mui-tas vezes as metforas nada mais sejam do que trans-mutaes do pensamento numa vontade de dizer me-lhor, de dizer de maneira diferente, a imagem, a verda-deira imagem, quando vivida primeiro na imagina-o, deixa o mundo real e passa para o mundo imagi-nado, imaginrio. Atravs da imagem imaginada co-nhecemos esta fantasia absoluta que a fantasia po-tica. Correlatamente, como tentamos provar em nosso ltimo livro mas ser que um livro acaba alguma vez de descrever toda convico de seu autor? , co-nhecemos nosso sonhador produtor de fantasias. Um

    1. HFRDKR, citado por BGUIN. L'Ame romantique et le rve, Marseille, Cahiers du Sud, tomo I, p. 113.

  • ser sonhador feliz de sonhar, ativo em sua fantasia, con-tm uma verdade do ser, um destino do ser humano.

    Entre todas as imagens, as imagens da chama das mais ingnuas s mais apuradas, das sensatas s mais loucas contm um smbolo de poesia. Todo so-nhador inflamado um poeta em potencial. Toda fan-tasia diante da chama uma fantasia admiradora. To-do sonhador inflamado est em estado de primeira fan-tasia. Esta primeira admirao est enraizada em nos-so passado longnquo. Temos pela chama uma admi-rao natural, ouso mesmo dizer: uma admirao ina-la. A chama determina a acentuao do prazer de ver, algo alm do sempre visto. Ela nos fora a olhar.

    A chama nos leva a ver em primeira mo: temos mil lembranas, sonhamos tudo atravs da personali-dade de uma memria muito antiga e, no entanto, so-nhamos como todo mundo, lembramo-nos como todo mundo se lembra ento, seguindo uma das leis mais constantes da fantasia diante da chama, o sonhador vive em um passado que no mais unicamente seu, no pas-sado dos primeiros fogos do mundo.

    II

    Assim, a contemplao da chama pereniza essa pri-meira fantasia. Ela nos distingue do mundo e amplia o mundo do sonhador. A chama , em si mesma, uma grande presena, mas, perto dela, sonha-se longe, longe demais: "Perdemo-nos em fantasias." A chama est ali,

  • pequena e medocre, lutando para manter seu ser, e o sonhador vai sonhar em outro lugar, perdendo seu pr-prio ser, sonhando grande, grande demais sonhan-do com o mundo.

    A chama um mundo para o homem s. Ento, se o sonhador inflamado fala com a cha-

    ma, fala consigo mesmo, ei-lo poeta. Ampliando o mundo, o destino do mundo, meditando sobre o desti-no da chama, o sonhador amplia a linguagem, j que exprime uma beleza do mundo. Atravs de tal expres-so pancalizante* o prprio psiquismo se amplia, se ele-va. A meditao da chama deu ao psiquismo do so-nhador uma alimentao de verticalidade, um alimen-to verticalizante. Uma alimentao area, sendo o opos-to de todas as "alimentaes terrestres", o principio mais ativo para dar um sentido vital s determinaes poticas. Voltaremos a essas determinaes num cap-tulo especial para ilustrar o conselho de toda chama: queimar alto, sempre mais alto, para estar certa de dar luz.

    Para atingir esta "altura psquica" preciso en-cher todas as impresses, insuflando-lhcs matria po-tica. A contribuio potica basta, acreditamos, para que possamos dar uma unidade s fantasias que ha-vamos reunido sob o smbolo da vela. Esta monogra-fia poderia trazer como subttulo: A poesia das cha-mas. Realmente, de acordo com nossa vontade de, aqui, apenas seguir uma linha de fantasias, destacamos esta monografia de um livro mais geral que esperamos um dia vir a publicar sob o ttulo: A potica do fogo.

    * Pana alavanca. (N. da T.)

  • Limitando por ora nossas investigaes, mantendo-nos dentro da unidade de um s exemplo, esperamos atingir uma esttica concreta, uma esttica que no se-ria trabalhada por polmicasvdc filsofos, que no se-ria racionalizada por idias gerais fceis. A chama, ela sozinha, pode concretizar o ser de todas as suas ima-gens, o ser de todos os seus fantasmas.

    O objeto uma chama! a ser investido pelas imagens literrias to simples que esperamos poder determinar a comunho das imaginaes. Com as ima-gens literrias da chama, o surrealismo tem alguma ga-rantia de ter uma raiz de realidade! As imagens mais fantsticas da chama convergem. Transformam-se, por meio de notvel privilgio, em imagens verdadeiras.

    O paradoxo de nossas investigaes sobre a ima-ginao literria: achar a realidade por meio da pala-vra, desenhar com palavras, tem, aqui, alguma chance de ser dominado. As imagens faladas traduzem a ex-traordinria excitao que nossa imaginao recebe da mais simples das chamas.

    IV

    Devemos ainda dar uma explicao sobre um ou-tro paradoxo. De acordo com a vontade que temos de viver as imagens literrias dando-lhes toda atualidade,

  • ainda com a ambio maior de provar que a poesia uma potncia ativa da vida atual, no existe, para ns, um paradoxo intil em colocar tantas fantasias sob o smbolo de uma vela? O mundo anda depressa, o s-culo se acelera. O tempo no mais o das lamparinas e das palmatrias. Somente sonhos decrpitos se ligam s coisas sem uso.

    A resposta a essas objees fcil: os sonhos e as fantasias no se modernizam to rapidamente quanto nossas aes. Nossas fantasias so verdadeiros hbitos psquicos fortemente enraizados. A vida ativa tambm no os atrapalha. Existe interesse, para um psiclogo, em reencontrar todos os caminhos da familiaridade mais antiga.

    As fantasias da pequena luz nos levam de volta ao reduto da familiaridade. Parece que existe em ns can-tos sombrios que toleram apenas uma luz bruxulean-te. Um corao sensvel gosta de valores frgeis. Co-munga com os valores que lutam, portanto, com a luz fraca que luta contra as trevas. Assim, todas as nossas fantasias da pequena luz conservam certa realidade psi-colgica na vida atual. Elas tm um sentido e, dira-mos mesmo, tm uma funo. Com efeito, podem dar a uma psicologia do inconsciente toda uma aparelha-gem de imagens para interrogar, calmamente, natural-mente, sem provocar o sentimento de enigma, o ser so-nhador. Com a fantasia da pequena luz, o sonhador se sente em casa, seu inconsciente como se fosse sua casa. O sonhador! esta duplicata de nosso ser, este claro-escuro do ser pensante tem, na fantasia da pe-quena luz, a segurana de ser. Quem confiar nas fan-tasias da pequena luz descobrir esta verdade psicol-

  • gica: o inconsciente tranqilo, sem pesadelos, em equi-lbrio com sua fantasia, exatamente o claro-escuro do psiquismo, ou, melhor ainda, o psiquismo do claro-escuro. Imagens da pequena luz nos ensinam a gostar desse claro-escuro da viso ntima. O sonhador que quer se conhecer como ser sonhante, longe das clari-dades do pensamento, tal sonhador, desde que goste de sua fantasia, tentado a formular a esttica desse claro-escuro psquico.

    Um sonhador de lmpada (a leo) compreender instintivamente que as imagens da pequena luz so lam-parinas ntimas. Suas luzes plidas tornam-se invisveis quando o pensamento trabalha, quando a conscincia est bem clara. Mas quando o pensamento repousa, as imagens vigiam.

    A conscincia do claro-escuro da conscincia tem uma tal presena uma presena duradoura que o ser espera que desperte um despertar de ser. Jean Wahl sabe disso. E o diz num s verso:

    pequena luz, nascente, branda alvorada2

    V

    Propomos, pois, transferir os valores estticos do claro-escuro dos pintores para o domnio dos valores estticos do psiquismo. Se consegussemos, tiraramos

    2 . Jean W A H I Pomes de circonstance. d. Confluences, p. 3 3 .

  • em parte o que h de diminuto, de pejorativo, na no-o de inconsciente. As sombras do inconsciente do tantas vezes valor ao mundo de luminosidade fraca, on-de a fantasia tem mil felicidades! George Sand pres-sentiu essa passagem do mundo da pintura para o mun-do da psicologia. Numa nota de rodap de uma das pginas do texto de Consuelo, ela escreveu, evocando o claro-escuro: "Eu me pergunto muitas vezes em que consiste esta beleza c como seria possvel para mim descrev-la\ se quisesse fazer passar o segredo para a alma de uma outra pessoa. Mas qual! Sem cor, sem for-ma, sem ordem e sem claridade, os objetos exteriores podem, digam-me, revestir-se de uma aparncia que fala aos olhos e ao esprito? Apenas um pintor poder me responder: sim, eu compreendo. Ele se lembrar de O filsofo em meditao, de Rembrandt: este grande quar-to perdido nas sombras, estas escadas sem fim dobrando sem se saber para onde, estas luminosidades difusas do quadro, toda esta cena indefinida e ntida ao mesmo tempo, esta cor poderosa espalhada sobre um assunto que, em resumo, pintado apenas com castanho claro e castanho escuro; esta mgica de claro-escuro, este jogo de luz colocado sobre os objetos mais insignificantes, uma cadeira, uma moringa, um vaso de cobre. Esses objetos, que no merecem ser olhados e muito menos pintados, transformam-se em objetos to interessantes, to bonitos, sua maneira, que no se pode tirar os olhos deles existem, e so dignos de existir."4

    3. Ns que sublinhamos. 4. Consuelo, Michel LVY, 1861, tomo III, p. 264-5.

  • George Sand v o problema, coloca-o: como "des-crever", no pintar, esse claro-escuro eis a o privi-legio dos grandes artistas. Como exp-lo? Queremos mesmo ir mais longe: esse claro-escuro, como inscrev-lo no psiquismo, exatamente na fronteira de um psi-quismo castanho escuro com um psiquismo castanho mais claro?

    Realmente, a est um problema que tem me ator-mentado durante os vinte anos que tenho escrito livros sobre a Fantasia. No sei nem mesmo exprimi-lo de ma-neira melhor que George Sand em sua curta nota. Em resumo, o claro-escuro do psiquismo a fantasia, uma fantasia calma, calmante, que fiel a seu centro, ilu-minada nesse centro e no fechada sobre si mesma, mas transbordando sempre um pouco, impregnando com sua luz a penumbra. V-se claro em si mesmo e no en-tanto sonha-se. No se arrisca toda a luz, no somos o brinquedo, a vtima desta quimera que cai com a noi-te, que nos entrega de ps e mos atados a esses espo-liadores do psiquismo, a esses facnoras que freqen-tam essas florestas do sono noturno que so os pesa-delos dramticos.

    O aspecto potico de uma fantasia nos faz conformarmo-nos com esse psiquismo dourado que mantm a conscincia desperta. As fantasias diante da vela se constituiro em quadros. A chama nos mante-r nessa conscincia da fantasia que nos mantm acor-dados. Dorme-se diante do fogo. No se dorme diante da chama de uma vela.

  • Em livro recente tentamos estabelecer uma dife-rena radical entre a fantasia e o sonho noturno. No sonho noturno reina a claridade fantstica. Tudo cm falsa luz. Muitas vezes v-se claro demais a. Os pr-prios mistrios so delineados, desenhados em traos fortes. As cenas so to ntidas que o sonho noturno faz facilmente literatura literatura, porm jamais poe-sia. Toda literatura do fantstico acha no sonho noturno esquemas sobre os quais trabalha o animus do escri-tor. no animus que o psicanalista estuda as imagens do sonho. Para ele, a imagem dupla, significa sem-pre outra coisa alm dela mesma. uma caricatura ps-quica. preciso esforar-se para achar o ser verdadei-ro sob a caricatura. Esforar-se, pensar, sempre pen-sar. Para aproveitar as imagens, para gostar delas por elas mesmas, seria necessrio, sem dvida, que alm de saber tudo o psicanalista tivesse recebido uma edu-cao potica. Logo, menos sonhos em animus e mais fantasias em anima. Menos inteligncia em psicologia intersubjetiva e mais sensibilidade em psicologia da in-timidade.

    Do ponto de vista que vamos adotar neste peque-no livro, as fantasias da intimidade fogem do drama. O fantstico instrumentado pelos conceitos tirados da experincia dos pesadelos no reter nossa ateno. Pelo menos quando encontrarmos uma imagem de chama singular demais para que possamos faz-la nossa, pa-ra que possamos coloc-la no claro-escuro de nossa fan-tasia pessoal, evitaremos os comentrios longos. Escrc-

  • vendo sobre a vela, queremos ganhar douras d'alma. E necessrio que se tenha vinganas a executar para imaginar o inferno. Existe nos seres do pesadelo um complexo das chamas do inferno que no queremos, nem de perto nem de longe, alimentar.

    Em resumo, estudar o ser de um sonhador com a ajuda das imagens da pequena luz, com a ajuda das imagens humanas bem antigas, d, para uma investi-gao psicolgica, uma garantia de homogeneidade. Existe um parentesco entre a lamparina que vela e a alma que sonha. Tanto para uma quanto para a outra o tempo lento. Tanto no devaneio quanto na luz fra-ca encontra-se a mesma pacincia. Ento o tempo se aprofunda, as imagens e as lembranas se renem. O sonhador inflamado une o que vc ao que viu. Conhece a fuso da imaginao com a memria. Abre-se ento a todas as aventuras da fantasia, aceita a ajuda dos grandes sonhadores e entra no mundo dos poetas. Por conseguinte, a fantasia da chama, to unitria a prin-cpio, torna-se dc abundante multiplicidade.

    Para pr um pouco de ordem nesta multiplicida-de, vamos fazer um rpido comentrio sobre os cap-tulos, s vezes muito diferentes entre si, desta simples monografia.

    VII

    O primeiro captulo ainda um captulo de prem-bulo. Preciso dizer como resisti tentao de fazer, a

  • propsito das chamas, um livro de saber. Este livro te-ria sido longo, mas teria sido fcil. Teria bastado fazer uma histria das teorias da luz. De sculo a sculo o problema tem sido retomado. Mas, por maiores que te-nham sido os espritos que trabalharam na fsica do fo-go, no puderam jamais dar a seus trabalhos a objeti-vidade de uma cincia. A histria da combusto per-manece, at Lavoisier, uma histria de vises pr-cientficas. O exame de tais doutrinas depende de uma psicanlise do conhecimento objetivo. Esta psicanli-se deveria apagar as imagens para determinar uma or-ganizao das idias.'

    O segundo captulo uma contribuio a um es-tudo da solido, a uma ontologia do ser solitrio. A chama isolada testemunha de uma solido, solido essa que une a chama e o sonhador. Graas chama, a solido do sonhador no mais a solido do vazio. A solido, graas pequena luz, tornou-se concreta. A chama ilustra a solido do sonhador, ilumina a fronte pensativa. A vela o astro da pgina branca. Reunire-mos alguns textos, tomados aos poetas, para comen-tar essa solido. Esses textos foram acolhidos por ns pessoalmente de maneira to fcil que temos quase cer-teza que sero bem recebidos pelo leitor. Confessamos assim uma convico de imagens. Acreditamos que a chama de uma vela , para muitos sonhadores, uma imagem da solido.

    5. Cf. La Formai ion de l'esprit scientifique. Contribution une psychanalyse de la connaissance objective, d. Vrin.

  • Se tivemos o escrpulo de evitar todo e qualquer desvio das pesquisas pseudocientficas, fomos freqen-temente seduzidos por pensamentos fragmentados, por pensamentos que no provam mas que, em rpidas afir-maes, do fantasia estmulos sem igual. Ento, no a cincia, mas a filosofia que sonha. Temos lido e relido a obra de um Novalis. Temos recebido dela gran-des lies para meditar sobre a verticalidade da cha-ma.

    Quando estudamos, em um de nossos primeiros livros sobre a imaginao*, a tcnica de sonhar acor-dado, havamos observado a solicitao a um sonho voador que recebamos de um universo em aurora (au-rorai), de um universo que traz a luz em seus vrtices. Comentvamos ento a tcnica psicanaltica de sonhar acordado, instituda por Robert Desoille. Tratava-se de aliviar, pela sugesto de imagens felizes, o ser sobre-carregado por suas faltas, entorpecido no seu fastio de viver. Com a criao de imagens, o guia transforma-se, para o paciente, em um guia de transformao. O guia propunha uma ascenso imaginria, que precisa-va ser ilustrada por imagens bem ordenadas, tendo ca-da uma delas uma virtude de ascenso. O guia alimen-tava o onirismo do sonhador, oferecendo no momento preciso imagens, para lanar e relanar o psiquismo as-cendente. Esse psiquismo ascendente s benfico se sobe alto, sempre mais alto. As imagens desta psican-lise pela altura devem ser sistematicamente bem altas para que se esteja bem seguro de que o paciente, em plena vida metafrica, abandonar as misrias do ser.

    6. L'Air el les songes, d. Corli.

  • A chama solitria, porm, ela sozinha, pode ser, para o sonhador que medita, um guia ascensional. Ela um modelo dc verticalidade.

    Numerosos textos poticos nos ajudaro a desta-car o valor desta verticalidade na luz, pela luz que um Novalis vivia na meditao da chama reta.

    Aps o exame dos devaneios de filsofo voltare-mos, no quarto captulo, aos problemas que nos so familiares: os problemas da imaginao literria. Um livro volumoso no seria suficicntc para estudar a cha-ma, seguindo, em literatura, todas as metforas que su-gere. Pode-se perguntar se a imagem da chama no po-deria associar-se a toda imagem um pouco brilhante, a toda imagem que quer brilhar. Escrcver-se-ia ento um livro de esttica literria geral, organizando todas as imagens que aceitam ser aumentadas, colocando ne-las uma chama imaginria. Esta obra, que mostraria que a imaginao uma chama, a chama do psiquis-mo, seria bem agradvel de se escrever. Mas nela se le-varia toda a vida.

    Falando de rvores, de flores, podemos dizer co-mo os poetas lhes do vida, vida total, potica, atravs da imagem das chamas.

    Para a chama, existe, da vela ao lampio, como que uma conquista de sabedoria. A chama do lampio, graas engenhosidade do homem, agora discipli-nada. Est inteiramente a seu dispor, simples e grande doadora de luz.

    Ns quisemos terminar nossa obra meditando so-bre esta chama humanizada. Seria preciso escrever lo-do um livro para passar realmente da cosmologia da

  • chama cosmologia da luz. Em vez de tratarmos de matria to abrangente quisemos, nesta monografia, ficar na homogeneidade das fantasias da pequena luz, sonhar ainda no interior da familiaridade onde uniam-se o lampio e o castial, par indispensvel numa resi-dncia dos velhos tempos, numa residncia para a qual voltaremos sempre, para sonhar e recordar.

    Encontrei grande auxlio na fantasia da obra de um mestre que conhece os devaneios da memria. Em muitos romances de Henri Bosco, o lampio , em to-da a acepo do termo, um personagem. O lampio tem um papel psicolgico em relao psicologia da casa e psicologia dos seres da famlia. Quando uma grande ausncia deixa um va/io em uma residncia, um lampio de Bosco, vindo de no sei qual passado, man-tm uma presena, espera, com uma pacincia de lam-pio, o exilado. O lampio de Bosco mantm vivas to-das as lembranas da vida familiar, todas as lembran-as de uma infncia, as lembranas de todas as infn-cias. O escritor escreve para ele e para ns. O lampio o esprito que vela sobre seu quarto, sobre todos os quartos. Ele o centro de uma residncia, de todas as residncias. No se concebe uma casa sem lampio, as-sim como no se concebe um lampio sem casa.

    A meditao sobre o ser familiar do lampio nos permitir, portanto, reunir nossas fantasias sobre a po-tica dos espaos da intimidade. Reencontraremos to-dos os temas que havamos desenvolvido em nosso li-vro: A potica do espao. Com o lampio entramos na morada da fantasia da noite, nas residncias de outro-ra, as residncias abandonadas mas que so, em nos-sos devaneios, fielmente habitadas.

  • Onde reina um lampio, reina a lembrana.

    Finalmente, para colocar uma marca um pouco pessoal neste pequeno livro, que comenta as fantasias dos outros, achei que podia acrescentar, no eplogo, al-gumas linhas nas quais evoco as solides do trabalho, as viglias do tempo onde, longe de me relaxar em fan-tasias fceis, trabalhava com tenacidade, acreditando que com o trabalho do pensamento desenvolve-se o es-prito.

  • CAPTULO I

    O passado das velas

    " C h a m a tumulto alado, sopro, vermelho reflexo do cu quem decifrasse seu mistrio saberia o que existe nela de vida

    [e de morte. . . ."

    M A R T I N K A U B I S H . Anthologie de la posie allemande, t.Il.

    I

    Antigamente, em um passado esquecido pelos pr-prios sonhos, a chama de uma vela fazia os sbios pen-sarem; provocava mil devaneios no filsofo solitrio.

  • Sobre a mesa do filsofo, ao lado dos objetos prisio-neiros em suas formas, ao lado dos livros que instruam lentamente, a chama da vela chamava pensamentos sem medida, suscitava imagens sem limite. A chama era, en-to, para um sonhador de mundos, um fenmeno do mundo. Estudava-se o sistema do mundo nos grandes livros, e eis que uma simples chama escrnio do saber! vem colocar diretamente seu prprio enigma. O mundo no est vivo, numa chama? A chama no tem uma vida? No ela o smbolo visvel do interior de um ser, o smbolo de um poder secreto? Esta cha-ma no tem todas as contradies internas que do di-namismo a uma metafsica elementar? Por que procu-rar dialticas de idias quando se tem, no corao de um fenmeno simples, dialticas de fatos, dialticas de seres? A chama um ser sem massa e, no entanto, um ser forte.

    Qual campo de metforas precisaramos examinar se quisssemos, num desdobramento de imagens que unissem a vida e a chama, escrever uma "psicologia" das chamas ao mesmo tempo que uma "fsica" dos fo-gos da vida! Metforas? Nesse tempo de longnquo sa-ber, onde a chama fazia os sbios pensarem, as met-foras eram o pensamento.

    II

    Mas se o saber dos velhos livros morreu, o inte-resse da fantasia continua. Tentaremos, neste pequeno

  • livro, colocar todos os nossos documentos, quer ve-nham de filsofos ou de poetas, em primeira fantasia. Tudo nosso, tudo para ns, quando reencontramos em nossos devaneios ou na comunicao dos devaneios dos outros as razes da simplicidade. Diante de uma cha-ma nos comunicamos moralmente com o mundo. Em uma simples viglia, a chama da vela , desde ento, um modelo de vida tranqila e delicada. Sem dvida, o menor sopro a atrapalha, assim como um pensamento estranho na meditao de um filsofo. Mas quando vem realmente o reinado da grande solido, quando soa real-mente a hora da tranqilidade, ento a mesma paz es-t no corao do sonhador e no da chama, ento a cha-ma mantm sua forma e corre, direta, como um pen-samento firme, a seu destino de verticalidade.

    Assim, nos tempos em que se sonhava pensando, em que se pensava sonhando, a chama da vela podia ser um sensvel manmetro da tranqilidade da alma, uma medida da calma fina, de uma calma que desce at os detalhes da vida de uma calma que d uma graa de continuidade durao que segue o curso de uma fantasia pacfica.

    Quer ficar calmo? Respire suavemente diante da chama leve que faz sossegadamente seu trabalho de luz.

    III

    Logo, pode-se fazer de um saber muito antigo fan-tasias vivas. No entanto no procuraremos nossos do-

  • cumentos nos antigos pergaminhos. Gostaramos, mui-to ao contrrio, de devolver a todas as imagens que con-servaremos sua densidade onrica, uma bruma de im-preciso para que possamos faz-las entrar em nossa prpria fantasia. Pode-se comunicar imagens singula-res pela fantasia pura. A inteligncia inepta quando preciso analisar fantasias de ignorantes. Apenas em algumas pginas deste pequeno ensaio evocaremos tex-tos onde as imagens familiares so ampliadas ao pon-to de visarem dizer os segredos do mundo. Com que facilidade o sonhador do mundo passa de sua peque-nina luz s grandes luminrias do ccu! Quando somos apanhados, em nossas leituras, por tais ampliaes, po-demos nos entusiasmar. Mas no podemos mais siste-matizar nossos entusiasmos. Em todas as nossas inves-tigaes s conservaremos jatos de imagem.

    Quando a imagem particular assume um valor cs-mico, produz o efeito de um pensamento vertiginoso. Uma tal imagem-pensamento, um tal pensamento-imagem no tem necessidade de contexto. A chama vis-ta por um vidente uma realidade fantasmagrica que pede uma declarao da palavra. Daremos, a seguir, vrios exemplos desses pensamentos-imagens que se enunciam numa frase brilhante. s vezes tais imagens-pensamentos-frases colorem subitamente uma prosa tranqila. Joubert, o razovel Joubert, escreveu: "A chama um fogo mido."1 Daremos a seguir algumas variaes desse tema: unio da chama com o riacho.

    1. JOUBERT. Penses, 8." ed.. 1862, p. 1 6 3 . Os primeiros fogareiros eram chama-dos, s vezes, de "fontes de fogo". Cf. Edouard FOIICAUD. Ijes Ariisans Mustres, p. 263, Paris, 1841.

  • Neste captulo de prembulos, indicaremos essas varia-es apenas para ilustrar, de imediato, esse dogmatis-mo de uma fantasia que usa toda sua glria para pro-vocar um saber adormecido. Apenas uma contradio lhe basta para atormentar a natureza e liberar o sonha-dor da banalidade dos julgamentos sobre os fenme-nos familiares.

    Ento, tambm o leitor dos Pensamentos de Jou-bert se compraz em imaginar. V essa chama mida, esse lquido ardente, escorrer para o alto, para o cu, como um riacho vertical.

    Deveremos notar de passagem uma nuance que pertence propriamente filosofia da imaginao lite-rria. Uma imagem-pensamcnto-frase como aquela de Joubert uma proeza de expresso. As palavras vo alm do pensamento. E a fantasia que fala , por sua vez, ultrapassada pela fantasia que escreve. Essa fan-tasia de um "fogo mido" ningum ousaria diz-la, mas escreveram-na. A chama foi uma tentao do es-critor. Joubert no resistiu a ela. preciso que as pes-soas racionais perdoem queles que escutam os dem-nios do tinteiro.

    Se a frmula de Joubert fosse um pensamento, no seria mais do que um paradoxo simples demais; se fos-se uma imagem, seria efmera e fugaz. Mas, tendo lu-gar no livro de um grande moralista, a frmula nos abre o campo das fantasias srias. O indefinido tom de fan-tasia c de verdade nos d o direito, simples leitores que somos, de sonhar seriamente, como se, em tais fanta-sias, nosso esprito trabalhasse com lucidez. Na fanta-sia sria, qual Joubert nos conduz, um dos fenme-nos do mundo expresso, logo, dominado. expresso

  • em algo alm da sua realidade. Troca sua realidade por uma realidade humana.

    Refazendo para ns mesmos imagens do cubculo do filsofo meditando, vemos sobre a mesma mesa a vela e a ampulheta, dois seres que medem o tempo hu-mano, mas em estilos bem diferentes! A chama uma ampulheta que escorre para o alto. Mais leve do que a areia que desmorona, a chama constri sua forma, como se o prprio tempo tivesse sempre alguma coisa a fazer.

    Chama e ampulheta, na meditao pacfica, ex-primem a comunho do tempo leve com o tempo pe-sado. Em minha fantasia, diz-se a comunho do tem-po de anima com o tempo de animus. Gostaria de so-nhar com o tempo, na durao que escorre e na dura-o que voa, se eu pudesse reunir em meu cubculo ima-ginrio a vela e a ampulheta.

    Mas para o sbio que imagino, a lio da chama maior que a da areia escorrendo. A chama leva o lei-tor vigilante a levantar os olhos de seu folheto, a dei-xar o tempo das tarefas, da leitura, do pensamento. Na chama o prprio tempo se pe a velar.

    Sim, o leitor vigilante diante da chama no l mais. Pensa na vida. Pensa na morte. A chama precria e vacilante. Essa luz, um sopro a aniquila; uma fasca a reacende. A chama nascimento e morte fceis. Vida e morte aqui podem ser justapostos. Vida e morte so, em suas imagens, contrrios bem distintos. Os jogos de pensamento dos filsofos levando suas dialticas do ser e do nada num tom de simples lgica tornam-se, diante da luz que nasce e que morre, dramaticamente concretos.

  • Mas quando se sonha mais profundamente, o be-lo equilbrio do pensamento entre a vida e a morte perdido. No corao de um sonhador de vela, que res-sonncia tem essa palavra: apagar-se! As palavras, sem dvida, desertam de suas origens e retomam uma vida estranha, uma vida emprestada ao acaso de simples comparaes. Qual o maior sujeito do verbo apagar-se? A vida ou a vela? Os verbos metaforizantes podem fazer os sujeitos mais exticos agirem. O verbo apagar-se pode fazer morrer qualquer coisa, tanto um baru-lho quanto um corao, tanto um amor quanto uma clera. Mas quem quer o sentido verdadeiro, o sentido primeiro, deve lembrar-se da morte de uma vela. Os mi-tlogos nos ensinaram a ler os dramas da luz nos espe-tculos do cu. Mas no cubculo de um sonhador os objetos familiares tornam-se mitos do universo. A vela que se apaga um sol que morre. A vela morre mesmo mais suavemente que o astro celeste. O pavio se curva e escurece. A chama tomou, na escurido que a encer-ra, seu pio. E a chama morre bem: ela morre ador-mecendo.

    Todo sonhador de vela, todo sonhador de peque-nas chamas sabe disso. Tudo dramtico na vida das coisas e do universo. Sonha-se duas vezes quando se sonha cm companhia de uma vela. A meditao dian-te de uma chama torna-se, segundo a expresso de Pa-racelso, uma exaltao de dois mundos, uma exaltado utriusque mundi.1

    Daremos, a seguir, apenas alguns testemunhos, em-prestados aos poetas, desta dupla exaltao simples

    2 . Citado por C. G . J U N C . Paracelsica, p. 123.

  • filsofo da expresso literria que somos. Como diza-mos no comeo dessas pginas, os tempos de ajudar tais sonhos, sonhos desmedidos, pelos pensamentos, pensamentos trabalhados, pensamento dos outros, vol-taram.

    Alis, ser que j se fez poesia com o pensamento?

    IV

    Para justificar nosso projeto de nos limitarmos a documentos que podem ainda nos levar s fantasias s-rias prximas dos devaneios do.poeta, vamos comen-tar um exemplo, entre muitos outros, de um conglo-merado de imagens e de idias tomado emprestado a um velho livro que no pode, tanto por suas idias co-mo por suas imagens, atrair nossa participao. As p-ginas que vamos citar, separadas de sua situao his-trica, no podem ser designadas como uma explora-o da fantasia. Essas pginas no correspondem tam-bm organizao de um saber. No se deve ver nelas nada alm de uma mistura de pensamentos pretensio-sos e imagens simplistas. Nosso documento ser, por-tanto, exatamente o contrrio da exaltao das imagens que gostamos de viver. Ser uma atrocidade da imagi-nao.

    Depois de ter comentado esse documento pesado, voltaremos s imagens mais delicadas, reunidas em sis-tema menos grosseiro. Reencontraremos ento impul-

  • sos que poderemos seguir pessoalmente, vivendo a ale-gria de imaginar.

    V

    Blaise de Vigenre, em seu TYatado do fogo e do sal, escreve, comentando o Zohar:

    "Existem dois fogos, um mais forte que devora o outro. Quem quiser conhec-lo, deve contemplar a cha-ma que parte e sobe de um fogo aceso ou de um lam-pio ou archote, pois ela s sobe se estiver incorpora-da a alguma substncia combustvel e em unio com o ar. Mas nessa chama que sobe existem duas chamas: uma branca, que brilha e clareia, tendo uma raiz azul na ponta; outra vermelha, que ligada madeira e ao pavio que queima. A branca sobe diretamente para o alto e, embaixo, fica firme e vermelha, sem se despren-der da matria, provendo os meios para a outra arder e brilhar."'

    Aqui comea a dialtica do passivo e do ativo, do movido e do mvel, do queimado e do queimante a dialtica dos particpios passados e dos gerndios, que d satisfao aos filsofos de todos os tempos.

    Mas para um "pensador" da chama, como foi Vi-genre, os fatos devem abrir um horizonte de valores. O valor a conquistar aqui a luz. A luz ento uma supervalorizao do fogo. uma supervalorizao j

    3 . Blaise de VICENRF Trail riu feu el tlu sei. Paris, 1628, p. 108.

  • que ela d sentido e valor a fatos que para ns, agora, so insignificantes. A iluminao realmente uma con-quista. Vigenre nos faz sentir a dificuldade que a cha-ma grosseira tem para tornar-se chama branca, para conquistar este valor dominante que a brancura. Es-sa chama branca "sempre a mesma, sem mudar nem variar como a outra, que s vezes escurece, depois torna-se vermelha, amarela, anil, verde-azulada c azulada."

    Ento a chama amarelada ser o antivalor da cha-ma branca. A chama da vela o campo fechado para uma luta de valor e de antivalor. preciso que a cha-ma branca "extermine e destrua" as grosseiras que a alimentam. Logo, para um autor da pr-cincia, a cha-ma tem um papel positivo na economia do mundo. Ela um instrumento para melhorar o cosmos.

    A lio moral est pronta ento: a conscincia mo-ral deve tornar-se a chama branca "queimando as ini-quidades que ela aloja".

    E quem brilha bem, brilha alto. Conscincia e cha-ma tm o mesmo destino de verticalidade. A simples chama da vela designa bem esse destino, ela que "vai, deliberadamente, para o alto e volta ao lugar prprio de sua morada, depois de ter cumprido sua misso em-baixo sem mudar seu brilho para nenhuma outra cor alm da branca."

    O texto de Vigenre longo. Ns o abreviamos muito. Ele pode cansar. Deve cansar se for considera-do como um texto de idias que organiza conhecimen-tos. Pelo menos, como texto de fantasias, ele me pare-ce um claro testemunho de uma fantasia que supera to-dos os limites, que engloba todas as experincias, ex-perincias essas oriundas do homem ou do mundo. Os

  • fenmenos do mundo, uma vez que tenham um pouco de consistncia e unidade, tornam-se verdades huma-nas. A moralidade que termina o texto de Vigenre deve refluir sobre toda a narrativa. Essa moralidade estava latente no interesse que o sonhador tinha por sua vela. Ele a observava moralmente. Ela era, para ele, uma en-trada moral no mundo, uma entrada na moralidade do mundo. Teria ele ousado escrever sobre isso se no vis-se mais que sebo queimando? O sonhador tinha sobre sua mesa o que podemos chamar de um fenmeno-exemplo. Uma matria, vulgar entre outras, que pro-duz a luz. Ela se purifica no prprio ato de dar a luz. Que incrvel exemplo de purificao ativa! E so as pr-prias impurezas que, aniquilando-se, do a luz pura. O mal , assim, o alimento do bem. Na chama o fil-sofo reencontra um fenmeno-exemplo, um fenmeno do cosmos, exemplo de humanizao. Seguindo esse fe-nmeno-exemplo, "queimaremos nossas iniqidades".

    A chama purificada, purificante, clareia o sonha-dor duas vezes: pelos olhos e pela alma. Aqui as met-foras so reais e a realidade, j que contemplada, uma metfora da dignidade humana. Ela contemplada metaforizando a realidade. Deformar-se-ia o valor do documento que Vigenre nos deixou se fosse analisa-do no horizonte de um simbolismo. A imagem demons-tra, o simbolismo afirma. O fenmeno ingenuamente contemplado no , como o smbolo, carregado de his-tria. O smbolo uma conjuno de tradies de ml-tiplas origens. Todas essas origens no so reanimadas na contemplao. O presente mais forte do que o pas-sado da cultura. O fato de Vigenre haver estudado o Zohar no impede que tenha retomado em toda sua

  • primitividade de fantasia o que tinha a pretenso de ser um saber no velho livro. Se a vela ilumina o velho livro que fala da chama, a ambigidade dos pensamen-tos e das fantasias extrema.

    Nada de smbolos, nada tambm de dupla lingua-gem para traduzir o material em espiritual, ou vice-ver-sa. Com Vigenre estamos dentro da unidade forte de uma fantasia que une o homem e seu mundo, na uni-dade forte de uma fantasia que no pode se dividir nu-ma dialtica do objetivo e do subjetivo. O mundo, em tal fantasia, leva, em todos os seus objetos, um desti-no do homem. Ora, o mundo, na intimidade de seu mis-trio, quer o destino de purificao. O mundo o ger-me de um mundo melhor, como o homem o germe de um homem melhor, como a chama amarela e pesa-da o germe da chama branca e leve. Reencontrando seu lugar natural, por meio de sua brancura, de seu di-namismo da conquista da brancura, a chama no obe-dece somente filosofia aristotlica. Um valor maior que todos aqueles que presidem os fenmenos fsicos conquistado. A volta aos lugares naturais , certamen-te, uma colocao de ordem, uma restituio da ordem no cosmos. Mas, no caso da luz branca, a ordem mo-ral vem primeiro que a ordem fsica. O lugar natural para onde a chama se dirige um centro de moralidade.

    E por isso que a chama e as imagens dela desig-nam os valores do homem como valores do mundo. Elas unem a moralidade do "pequeno mundo" morali-dade majestosa do universo.

    Os msticos da finalidade do vulco no dizem ou-tra coisa no decorrer dos sculos. Afirmam que, pela ao benfazeja de seus vulces, a Terra "purga todas

  • suas imundcies". Michelet repetia-o ainda no ltimo sculo. Quem pensa to grande pode muito bem so-nhar pequeno e crer que sua pequena luz serve puri-ficao do mundo.

    VI

    claro que, se dirigssemos nossas investigaes para os problemas da liturgia, se nos apoissemos so-bre uma espcie de simbolismo maior, sobre um sim-bolismo primitivamente constitudo cm seus valores mo-rais e religiosos, no teramos nenhuma dificuldade em achar para a chama e para as labaredas labareda, grande chama que brilha gloriosamente simbolismos mais dramticos que aquele nascido, ingenuamente, nas fantasias de um sonhador de vela. Mas achamos que existe interesse em seguir uma fantasia que acolhe as mais longnquas comparaes diante do fenmeno mais familiar. Uma comparao , s vezes, um smbolo que comea, um smbolo que no tem ainda sua responsa-bilidade total. O desequilbrio entre o percebido e a ima-gem , de imediato, extremo. A chama no mais um objeto de percepo. Transformou-se em um objeto fi-losfico. Ento tudo possvel. O filsofo pode muito bem imaginar diante da vela que ele a testemunha de um mundo em ignio. A chama , para ele, um mun-do dirigido para a transformao. O sonhador v nela seu prprio ser e seu prprio vir a ser. Na chama o es-pao mexe, o tempo se agita. Hido treme quando a luz

  • treme. A mutao do fogo no a mais dramtica e a mais viva das mutaes? O mundo anda depressa se for imaginado em fogo. Assim o filsofo pode sonhar tudo violncia e paz quando sonha com o mun-do diante da vela.

  • CAPTULO LI

    A solido do sonhador de vela

    "Minha solido j est pronta Para queimar quem a queimar."

    Louis M I . Le nom du feu.

    I

    Aps um curto captulo de prembulos, em que esboamos os temas de pesquisas que um historiador de idias e de experincias deveria perseguir, voltamos a nosso simples ofcio de descobridor de imagens, ima-gens suficientemente atraentes para fixar a fantasia. A chama da vela chama fantasias da memria. Ela nos

  • devolve, em nossas longnquas lembranas, situaes de viglias solitrias.

    Mas a chama solitria agrava a solido do sonha-dor ou consola sua fantasia? Lichtenberg disse que o homem tem tanta necessidade de uma companhia aue sonhando na solido sente-se menos s diante da vela acesa. Este pensamento impressionou tanto Albert B-guin que ele deu, para o captulo que consagrou a Georg Lichtenberg, o ttulo de: "A vela acesa."1

    Mas todo "objeto" que se torna "objeto da fan-tasia" assume um carter singular. Que grande traba-lho qualquer um gostaria de fazer se fosse possvel reu-nir um museu dos "objetos onricos", dos objetos so-nhados por uma fantasia familiar dos objetos familia-res. Cada coisa dentro de casa teria assim seu "duplo", no um fantasma de pesadelo, mas uma espcie de es-pectro que freqenta a memria, que d nova vida s lembranas.

    Sim, a cada grande objeto corresponde uma per-sonalidade onrica. A chama solitria tem uma perso-nalidade onrica, diferente da do fogo na lareira. O fo-go na lareira pode distrair o atiador. O homem diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, co-loca no tempo devido uma acha suplementar. O ho-mem que sabe se aquecer mantm uma atitude de Pro-meteu. Modifica os pequenos atos de Prometeu, da seu orgulho de atiador perfeito.

    Mas a vela queima s. No precisa de auxlio. No temos mais, sobre nossas mesas, espevitadeiras* e por-

    1. Albert BOGLIN. L'Ame romantique et le rve, tomo 1. p. 28. * Tesoura espevitadeira servia para aparar a vela. (N. da T.)

  • ta-espevitadeiras. Para mim, o tempo das velas o tem-po das "velas de cera com ranhuras". Ao longo desses canais lacrimais corriam lgrimas, lgrimas ocultas. Be-lo exemplo para ser imitado por um filsofo lamurien-to! Stendhal j sabia reconhecer as boas velas de cera. Em suas Memrias de um turista, conta seu cuidado em ir melhor mercearia do lugar para munir-se de boas velas, com as quais substitua os sujos cotocos do albergue.

    , portanto, na lembrana da boa vela de cera que devemos reencontrar nossos devaneios de solitrios. A chama s, naturalmente s, ela quer ficar s. No fim do sculo XVIII, um fsico da chama tentou em vo colar as duas chamas de duas velas: colocava as velas pavio contra pavio. Mas as duas chamas solitrias, na sua embriaguez de crescer e subir, esqueciam de unir-se, e cada uma conservava sua energia de verticalida-de, preservando em seu vrtice a delicadeza de sua ponta.

    Nessa "experincia" do fsico, que desastre de sm-bolos para dois coraes apaixonados que se empenham em vo em se ajudarem um ao outro a queimar!

    Pelo menos, que a chama seja para o sonhador o smbolo de um ser absorvido por sua transformao! A chama um ser-em-mutao, uma mutaao-em-ser. Sentir-se chama inteira e s, dentro do prprio drama de um ser em mutao, que ao clarear se destri es-ses so os pensamentos que brotam sob as imagens de um grande poeta. Jean de Boschre escreve:

  • Meus pensamentos, no fogo, perderam suas tnicas.

    com as quais as reconhecia; consumiram-se no incndio do qual sou origem e alimento. E, no entanto, no sou mais. Sou o interior, o eixo das chamas.

    E no entanto no sou mais.2

    Ser o eixo de uma chama! Grande e forte imagem de um dinamismo unitrio! As chamas de Jean de Bos-chre, as chamas de Sat o Obscuro no tremiam. Pode-se tom-las como a divisa de uma grande obra.

    II

    Um herosmo vital toma, com Jean de Boschre, seu exemplo numa chama enrgica que "rasga suas t-nicas". Mas existem chamas de solido mais pacfica. Falam mais simplesmente conscincia solitria. Um poeta, em cinco palavras, conta-nos o axioma da con-solao das duas solides:

    Chama s, eu estou sozinho3

    2. Jean de BOSCHRE. Derniers pomes de l'Obscur, p. 148. 3. Tristan TZARA. O boivent les loups, p. 15.

  • Tristeza ou resignao? Simpatia ou desespero? Qual o tom desse apelo a uma comunicao impossvel?

    Queimar s, sonhar s grande smbolo, duplo smbolo incompreendido. O primeiro para a mulher que, toda ardente, deve ficar s, sem nada dizer o segundo para o homem taciturno que tem apenas uma solido para oferecer.

    E, todavia, a solido, para o ser que poderia amar, que poderia ser amado, que adorno! Os romancistas nos disseram belezas sentimentais desses amores escon-didos, dessas chamas no declaradas. Que romance se faria se fosse possvel continuar o dilogo comeado por Tzara:

    Chama s, eu estou sozinho

    mas este dilogo no continua pelo silncio, pelo si-lncio de dois seres solitrios?

    Mas, guando se snnha, r prp^jsn falar N^ fanta-sia de uma noite, sonhando diante da vela, o sonhador devora o passado, recupera-se com o falso passado. O sonhador sonha com aquilo que poderia ter sido. So-nha, em revolta contra si mesmo, com o que deveria ser, com o que deveria ter feito.

    Nas alternncias da fantasia, essa revolta contra si acalma-se. O sonhador rendeu-se melancolia que mistura as lembranas efetivas e as da fantasia. nes-sa mistura, repetimos, que nos tornamos sensveis s fantasias dos outros. O sonhador de vela se comunica com os grandes sonhadores da vida anterior, com a grande reserva da vida solitria.

  • Se meu livro pudesse ser o que eu gostaria que fos-se, se eu pudesse reunir, lendo os poetas, bastante ex-ploraes da fantasia para forar a barreira que nos pra diante do Reino do Poeta, gostaria de achar, no fim de todos os pargrafos, na extremidade de uma longa seqncia de imagens, a imagem realmente terminal, aquela que se designa como imagem exagerada para o julgamento dos pensamentos razoveis. Minha fanta-sia, ajudada pela imaginao dos outros, iria bem alm de meus prprios devaneios.

    Diante da vela, para dizer algo alm das lembran-as da solido, algo alm tambm das lembranas da misria, evocarei, neste curto pargrafo, um documento literrio em que Thodore de Banville fala de uma vi-glia de Cames. Quando um poeta fala simpaticamente de outro poeta, o que diz duas vezes verdadeiro.

    Banville conta que a vela de Cames, estando apa-gada, o poeta continuou a escrever seu poema luz dos olhos de seu gato.'

    luz dos olhos de seu gato! Branda e delicada luz, que se deve ver como algo alm de toda e qualquer luz trivial. A vela no mais, mas ela foi. Ela havia come-ado a viglia, enquanto o poeta comeava seu poema. Ela havia levado vida em comum, vida inspirada, vida inspirante com o poeta inspirado. luz da vela, no fo-go da inspirao, verso aps verso, o poema desenvol-via sua prpria vida, sua vida ardente. Cada objeto so-

    4. Thodore dc BANVILLE. Comes bourgeois, p. 194.

  • bre a mesa tinha sua luminosidade como aurola. E o gato l estava, sentado sobre a mesa do poeta, com a cauda muito branca contra a escrivaninha. Olhava seu dono e a mo dele correndo sobre o papel. Sim, a vela e o gato olhavam o poeta com o olhar cheio de fogo. Tudo era olhar nesse pequeno universo, que uma me-sa iluminada dentro da solido de um trabalhador. En-to, como se pode dizer que tudo no guardaria seu impulso de olhar, seu impulso de luz? O declnio de um compensado por um acrscimo da cooperao dos outros.

    E depois, os seres fracos tm um algo alm mais sensvel, menos brutal que os seres fortes. A solido da no-vela continua sem chocar a solido da vela. Ca-da objeto do mundo, amado por seu valor, tem direito a seu prprio nada. Cada ser verte do ser um pouco de ser, a sombra do seu ser, em seu prprio no-ser.

    Ento, na sutileza dos acordos que um filsofo de ultradevaneios percebe entre os seres e os no-seres, o ser do olho do gato pode ajudar o no-ser da vela. O espetculo de um Cames escrevendo no meio da noi-te era muito .grande! Tal espetculo tem sua prpria du-rao. O prprio poema quer esperar seu trmino, o poeta quer alcanar sua meta. No momento em que a vela desfalece, como no notar que o olho do gato um porta-luz? O gato de Cames certamente no se sobressaltou quando a vela morreu.5 O gato, este ani-mal vigilante, este ser atento que observa dormindo,

    3. Note-se que o gato no , de jeito algum, um ser tmido. Acredita-se muito facilmente que tudo que fraco frgil. Assim Le Sieur de la Chambre cr que quando o vagalume tem medo. ele apaga sua luz. Cf. Le Sieur de L A CHAMBRE, Nouvelles penses sur les causes de la lumire, 1634, p. 60.

  • continua a viglia de conceder luz com o rosto do poe-ta iluminado pelo gnio.

    IV

    Agora que nos tornamos sensveis aos dramas da pequena luz, com uma imagem exagerada, podemos es-capar aos privilgios das imagens imperativamente vi-suais. Sonhando, solitrio e ocioso, diante da vela, sabe-se logo que essa vida que brilha tambm uma vida que fala. Os poetas, ainda a, vo nos ensinar a escutar.

    chama murmura, a chama geme. A chama um ser que sofre. Sombrios murmrios saem desse infer-no. Toda pequena dor a representao da dor do mun-do. Um sonhador que leu os livros de Franz von Baa-der encontra, em miniatura e em surdina, nos gritos de sua vela, fragmentos do relmpago. Escuta o baru-lho do ser que queima, esse Schrack que Eugne Susi-ni nos diz ser intraduzvel do alemo para o francs.6 curioso constatar que o que h de mais intraduzvel de uma lngua para a outra so os fenmenos do som e da sonoridade. O espao sonoro de uma lngua tem suas prprias ressonncias.

    Mas ser que sabemos acolher bem, em nossa ln-gua materna, os ecos longnquos que ressoam no cn-cavo das palavras? Lendo as palavras, ns as vemos e entendemos melhor. Que revelao foi para mim o Di-

    6. Eugne SUSINI. Franz von Haader el la connajssance mystique, Vriti, p. 321 .

  • cionrio das onomatopias francesas, do bom Nodier. Ele me ensinou a explorar com o ouvido a cavidade das slabas que constituem o edifcio sonoro de uma palavra. Com que espanto, com que admirao, aprendi que, para o ouvido de Nodier, o verbo clignoter [pis-car continuamente] era uma onomatopia da chama da vela! Sem dvida o olho se revolta, a plpebra treme quando a chama treme. Mas o ouvido que se deu por inteiro conscincia de escutar j ouviu a inquietao da luz. Sonhava-se, no se olhava mais. E eis que o ria-cho de sons da chama escoa mal, as slabas da chama coagulam-se. Escutemos bem: a chama clignote [pis-ca], As palavras primitivas devem imitar o que se ouve antes de traduzirem o que se v. As trs slabas da cha-ma da vela que pisca [clignote] se chocam, batem-se umas contra as outras. CU, gno, ter, nenhuma slaba quer se fundir com a outra. A inquietao da chama est inscrita nas pequenas hostilidades das trs sonori-dades. Um sonhador de palavras no pra de com-padecer-se com esse drama de sonoridades. A pa-lavra clignoter uma das mais tremidas da lngua fran-cesa.

    Ah! essas fantasias vo longe demais. EJas s po-dem nascer sob a pena de um filsofo perdido em seus devaneios. Ele esquece o mundo de hoje, onde o pis-car constante um sinal estudado pelos psiquiatras, on-de o "pisca-pisca" um mecanismo que obedece ao dedo do automobilista. Mas as palavras, prestando-se a tantas coisas, perdem sua virtude de fidelidade. Es-quecem a primeira coisa, a coisa bem familiar, da pri-meira familiaridade. Um sonhador de vela, que se lem-

  • bra de ter sido um companheiro da pequena luz, rea-prende, lendo Nodier, as primeiras simplicidades.

    Como indicamos em nosso captulo de prembu-lo, um sonhador de chama torna-se facilmente um pen-sador de chama. Quer compreender por que o ser si-lencioso da sua vela de repente se pe a gemer. Para Franz von Baader esse craque (Schrack) "precede ca-da inflamao, qualquer que ela seja, silenciosa ou ba-rulhenta". Ele produzido "pelo contato de dois prin-cpios opostos, no qual um comprime o outro ou su-bordina-o a ele". Sempre queimando, a chama deve re-inflamar-se, manter, contra uma matria grosseira, o comando de sua luz. Tivssemos ns o ouvido mais apurado, escutaramos todos os ecos dessas agitaes internas. A vista d unificaes facilmente. Os sussur-ros da chama, ao contrrio, no se resumem. A chama narra todas as lutas que preciso sustentar para man-ter uma unidade.

    Mas os coraes mais ansiosos no se tranqili-zam com vistas cosmolgicas, inscrevendo as infelici-dades de uma coisa num inferno universal. Para um sonhador de chama, o candeeiro uma companhia as-sociada a seus estados d'alma. Se ele treme, porque pressente uma inquietude que vai perturbar todo o quarto. E, no momento em que a chama pisca, eis que o sangue pula no corao do sonhador. A chama est angustiada e a respirao no peito do sonhador tem so-bressaltos. Um sonhador, unido to fisicamente vida das coisas, dramatiza o insignificante. Para tal sonha-dor de coisa, tudo tem uma significao humana, em sua minuciosa fantasia. Reunir-se-iam facilmente nu-merosos documentos sobre a sutil ansiedade da luz sua-

  • ve. A chama da vela revela pressgios. Daremos um r-pido exemplo disso.

    Numa noite de pavor, eis que o lampio de Strind-berg diminui a intensidade de sua luz:

    "Vou abrir a janela. Uma corrente de ar est amea-ando apagar o lampio.

    O lampio se pe a cantar, a gemer, a choramin-gar."'

    Lembremo-nos que este trecho foi escrito direta-mente em francs por Strindberg. Uma vez que a cha-ma choraminga, ela tem um desgosto infantil, logo, to-do o universo est infeliz. Strindberg sabe, uma vez mais, que todos os seres do mundo lhe pressagiam in-felicidades. Choramingar no piscar de maneira me-nor, com lgrimas nos olhos? Com lgrimas na voz, tal palavra no c uma onomatopia da chama lquida da qual se faz meno na filosofia do fogo, de tempos em tempos?

    Em outra pgina do mesmo trecho", Strindberg suspeita de m vontade da luz: um barulho de vela de cera que pressagia a infelicidade':

    "Acendo a vela para passar o tempo lendo. Reina um silncio sinistro, e escuto meu corao bater. En-to um pequeno barulho seco me sacode como uma fasca eltrica.

    O que isso? Um bloco enorme de parafina acaba de cair da vela

    7. STKlNDBtRO. Inferno, Ed. Stock, p. 189. 8. Loc. cit., p. 205. 9. "Na Lombardia, o crepitar do tecido, os gemidos da acha dc madeira so pres-sgios funestos" (Angelo de GunrRNATis, Mythologie des plantes, tomo I, p. 266).

  • no cho. Nada alm disso, mas era uma ameaa de mor-te, em nossa casa."

    Sem dvida, Strindberg tem um psiquismo de es-corchado. sensvel aos menores dramas da matria. O carvo, em seu fogareiro, produz tambm alarmes quando se esmigalha demais ao queimar, quando os resduos fundem-se mal. Mas o desastre , por sua vez, mais sutil e maior quando vem da luz. O lampio, a vela, no so eles que do o fogo mais humanizado? Uma vez que o fogo que d a luz, no ele o autor de maior valor? Uma perturbao no pice dos valo-res da natureza rasga o corao de um sonhador que gostaria de estar em paz com o universo.

    Vejam bem que na ansiedade de Strindberg, dian-te de uma infelicidade da vela, no se encontra nenhum trao de atrativo simblico. O acontecimento tudo. Por menor que seja, designado como um destaque da atualidade.

    A puerilidade desta alienao ser facilmente de-nunciada. Ser motivo de espanto o fato dela ter lugar em uma relao cheia de sofrimentos domsticos reais. Mas o fato l est; o fato psicolgico vivido pelo escri-tor duplica-se no fato literrio. Strindberg acredita que um acontecimento insignificante pode agitar o corao humano. Com um pequeno medo, pensa que colocar o medo na solido do leitor.

    Naturalmente o psiquiatra no tem dificuldade em diagnosticar a esquizofrenia quando l os textos de Strindberg. Porm tais textos, tomando forma liter-ria, colocam um problema: esses escritos no so es-quizofrenizantes? Lendo Inferno com interesse, cada leitor no ter suas horas de esquizofrenia? Strindberg

  • sabe que escrevendo na mais absoluta solido se comu-nica com o grande Outro dos leitores solitrios. Sabe que, dentro de toda alma, existe, alm da razo, um lugar onde sobrevivem os medos mais pueris. Est cer-to de poder propagar suas infelicidades de vela. Em In-ferno, segue a divisa que exprime em sua autobiogra-fia: "V l e os outros tero medo."10

    V

    Quando a mosca se atira dentro da chama da ve-la, o sacrifcio ruidoso, as asas crepitam, a chama tem um sobressalto. Parece que a vida se quebra no cora-o do sonhador.

    O fim da traa menos sonoro, mais cuidadoso. Ela voa sem barulho, toca de leve a chama e instan-taneamente consumida. Para um sonhador que sonha grande, quanto mais simples o incidente, mais longe vo os comentrios. C. G. Jung escreveu assim um ca-pitulo inteiro para expor esses dramas sob o ttulo: " O canto da traa"." Jung cita um poema de Miss Miller, uma esquizofrnica cujo exame foi o ponto de partida da primeira edio das Metamorfoses da alma.

    Ainda a, a poesia vai dar a um insignificante fa-to a significao de um destino. O poema aumenta tu-do. E em direo ao sol, a chama das chamas, que o

    10. STRINDBERG. L'crivain. Irad., Stock, p. 167. 11. C. G. JUNG. Mtamorphoes de l'me el ses symboles, trad., 1953, p. 156 e segs.

  • ser minsculo, tanto tempo dobrado em sua crislida, vai buscar o sacrifcio supremo, glorioso.

    Eis como canta a traa, como canta a esquizofr-nica: "Aspirava a ti desde o primeiro acordar de mi-nha conscincia de bichinho. Sonhava apenas contigo quando era crislida. Muitas vezes milhares de meus semelhantes pereciam voando em direo a alguma fra-ca fasca emanada de ti. Mais uma hora e minha fraca existncia ter acabado. Mas meu ltimo esforo, co-mo meu primeiro desejo, no ter outra finalidade alm de aproximar-se de tua glria. Ento, tendo te visto por um instante de xtase, morrerei contente, j que, pelo menos uma vez, terei contemplado, em seu perfeito es-plendor, a fonte de beleza, de calor e de vida."

    Este o canto da traa, smbolo de uma sonhado-ra que queria morrer no sol. E Jung no hesita em com-parar o poema de sua esquizofrnica com os versos em que Fausto sonha em se perder na luz do sol:

    Oh! pena no ter asas para sair voando do solo E persegui-lo sem parar em seu curso! Veria na irradiao do som, eternamente, O mundo silencioso exposto a meus ps.

    Mas um novo impulso desperta em mim. Lano-me cada vez mais longe para beber de sua luz

    [eterna.12

    No hesitamos em seguir Jung na comparao que faz do poema de sua esquizofrnica com o poema de

    12. Cf. loc. cit, p. 162.

  • Goethe porque assistimos a essa ampliao de imagens que um dos dinamismos mais constantes da fantasia escrita.

    Em Le Divan, Goethe toma como tema a selige Sehnsucht, da nostalgia bem-aventurada, o sacrifcio da borboleta na chama:

    Quero louvar o Vivente Que aspira morte na chama No frescor das noites de amor.

    s tomada de sentimento estranho Quando luze a labareda silenciosa No ficas mais fechada Na sombra tenebrosa E um desejo novo te leva Em direo a mais alto himeneu

    Corres voando fascinada, E enfim, amante da luz, Te vemos, borboleta, consumida.

    Este destino recebe de Goethe uma grande divisa: "Morre e transforma-te."

    E tanto no compreendeste Este: Morre e transforma-te! Que s apenas hspede obscuro Sobre a terra tenebrosa.

    No seu prefcio ao Divan, Henri Lichtenberger faz

  • um grande comentrio ao poema." O misticismo da poesia oriental "aparece para Goethe como aparenta-da com o misticismo antigo, filosofia platnica e he-racltica. Goethe, que mergulhou na leitura de Plato e de Plotino, percebe distintamente o parentesco que une o simbolismo grego e o simbolismo oriental. Re-conheceu a identidade do tema sfico da borboleta que se joga na chama do archote e do mito grego que faz da borboleta o smbolo da alma, que nos apresenta Psi-que sob a forma de moa ou de borboleta, apanhada e capturada por Eros, queimada pela tocha."

    VI

    A traa se joga na chama da vela: fototropismo positivo, diz o psiclogo que mede as foras materiais; complexo de Empdocles, diz o psiquiatra que quer ver a raiz dos impulsos iniciais do ser humano. E todos os dois esto com a razo. Mas a fantasia que pe todo mundo de acordo, pois o sonhador, vendo a traa sub-missa a seu tropismo, a seu instinto de morte, se diz, diante dessa imagem: por que no eu? J que a traa que um Empdocles minsculo, por que no ser eu um Empdocles faustiano que na morte pelo fogo vai conquistar a luz do sol?

    13. G O E T H E . Le Divan, trad. de L I C H T E N B E R G E R , p. 45-46.

  • O fato de a borboleta vir queimar suas asas na cha-ma sem que se tenha o cuidado de apag-la antes que isso acontea uma falta csmica que no revolta nos-sa sensibilidade. Entretanto, que smbolo formidvel este de um ser que vem queimar as asas! Queimar seus adornos, queimar seu ser, uma alma sonhadora no pa-rou de meditar sobre isso. Quando a Paulina de Picrre-Jean Jouve se v to bela antes de seu primeiro baile, quando quer ser pura como uma religiosa e, ao mes-mo tempo, tentar todos os homens, a morte de uma borboleta na chama que ela evoca: "Mas, querida bor-boleta, toma cuidado com a chama, olha l outra que vai morrer como aquela da outra noite, vai morrer ime-diatamente. Volta para o fogo apesar de tudo, no com-preende o fogo, e a metade dc uma asa j est queima-da, volta, uma vez mais, mas o fogo, borboleta infe-liz, o fogo!""

    Paulina uma chama pura, mas uma chama. Ela quer ser uma tentao, mas cia mesma se v tentada. to bela! Sua prpria beleza um fogo que a tenta. Desde esta primeira cena, o drama da morte da pureza no erro est em ao. O romance de Jouve o roman-ce de um destino. Morrer por amor, no amor, como a borboleta na chama, no realizar a sntese de Eros e Tanatos? O texto de Jouve animado, por sua vez, pelo instinto da vida e pelo instinto da morte. Esses dois instintos, revelados como o faz Jouve, em profundida-de, em sua primitividade, no so contrrios. O psic-logo das profundezas que Jouve mostra que eles agem

    14. Pierre-Jean JOUVE. Paulina, Mercure de France, p. 40.

  • nos ritmos de um destino, nesses ritmos que colocam incessantes revolues numa vida.

    E a primeira imagem, a imagem de um destino fe-minino escolhida por Jouve, aquela imagem de uma borboleta queimada pela vela na noite de seu primeiro baile.

    Eu quis seguir os sonhadores de chama mais dife-rentes, mesmo aqueles que meditam sobre a morte das falenas atradas pela luz. Mas essas so as fantasias das quais no participo. Conheo bem as vertigens. O va-zio me atrai e me assusta. Mas no sofro de vertigens empedoclianas.

    A solido da morte um tema de meditao gran-de demais para o sonhador de solido que sou. Falta-me, portanto, para terminar este captulo, redizer co-mo fao minhas as fantasias simples e tranqilas que evoquei no incio dele.

    VII

    Jean Cassou sonhava sempre em abordar o grande poeta Milosz com esta pergunta, digna de ser colocada a uma majestade: "Como se comporta Sua Solido?"

    Esta pergunta tem mil respostas. Em que recanto da alma, em que canto do corao, em que lugar do esprito, um grande solitrio est s, bem s? S? Fe-chado ou consolado? Em que refgio, em que cubcu-lo, o poeta realmente um solitrio? E quando tudo muda tambm segundo o humor do cu e a cor dos

  • devaneios, cada impresso de solido de um grande so-litrio deve achar sua imagem. Tais "impresses" so, primeiro, imagens. jjreciso imaginar a solido para conhec-la, para am-la ou para defender-se dela, pa-ra ser tranao ou Dara ser coraioso. Quando se qui-ser fazer a psicologia do claro-escuro psquico em que se clareia ou se escurece esta conscincia do nosso ser, ser preciso multiplicar as imagens, duplicar toda ima-gem. Um homem solitrio, na glria de ser s, acredi-ta s %'ezes poder dizer o que a solido. Mas a cada um cabe uma solido, E o sonhador de solido no po-

    nos dar mais que algumas poucas pginas deste l-bum de claro-escuro das solides.

    Quanto a mim, totalmente em comunho com as imagens que me so oferecidas pelos poetas, totalmente em comunho com a solido dos outros, eu me fao s com as solides dos outros.

    Fao-me s, profundamente s, com a solido de um outro.

    Mas preciso, claro, que esta solicitao soli-do seja discreta, que seja, precisamente, uma solido de imagem. Sc o escritor solitrio quiser me contar sua vida, toda sua vida, me transformar imediatamente em um estranho. As causas da sua solido no sero nunca as causas da minha. A solido no tem hist-ria. Toda a minha solido cabe numa primeira imagem.

    t i s , portanto, a imagem simples, o quadro central no claro-escuro dos devaneios e da lembrana. O so-nhador est sua mesa; est em sua mansarda; acende sua lmpada. Acende uma vela. Acende sua vela de ce-ra. Ento eu me lembro, ento eu me reencontro: sou o sonhador que ele . Estudo como ele estuda. O mundo

  • , para mim, como para ele, o livro difcil clareado pe-la chama de uma vela. Pois a vela, companheira de so-lido, principalmente companheira do trabalho soli-trio. A vela no ilumina um cubculo vazio, ilumina um livro.

    S, noite, com um livro iluminado por uma vela livro e vela, dupla ilha de luz, contra as duplas tre-vas do esprito e da noite.

    Eu estudo! Sou apenas o sujeito do verbo estudar. No ouso pensar. Antes de pensar, preciso estudar. S os filsofos pensam antes de estudar. Mas a vela se apagar antes que o difcil livro seja

    compreendido. preciso no perder nada do tempo de luz da vela, grandes horas da vida estudiosa.

    Se levanto os olhos do livro para olhar a vela, em vez de estudar, sonho.

    Ento as horas se alternam na viglia solitria. As horas se alternam entre a responsabilidade de saber e a liberdade das fantasias, esta liberdade fcil demais do homem solitrio.

    A imagem de um leitor vigilante luz de vela me basta para que comece esse movimento alternado dos pensamentos e das fantasias. Sim, eu me perturbaria se o sonhador, no centro da imagem, me dissesse as causas da sua solido, alguma histria longnqua de traies da vida. Ah! meu prprio passado basta para ine atrapalhar. No orcciso do Dassado dos outros. Mas preciso das iruagen&_xlos outros nara recolorir as mi-nhas. Preciso das fantasias dos outros para me lembrar

    "de meu trabalho sob as pequenas luzes, para me lem-brar que, eu tambm, fui um sonhador de vela.

  • CAPTULO III

    A verticalidade das chamas

    " N o alto... a luz se despoja de seu vestido."

    OCTVIO PAZ. guia ou SoH

    I

    Entre as fantasias que nos aliviam, bem eficazes e simples so as da altura. Todos os objetos retos e em p designam um znite. Uma forma reta e de p se lan-a e nos leva em sua verticalidade. Conquistar um pi-co real continua sendo uma proeza esportiva. O sonho vai mais alto, ele nos leva para alm da verticalidade.

  • Muitos sonhos de voar nascem num estmulo da verti-calidade diante dos seres retos e verticais. Perto das tor-res, das rvores, um sonhador de altura sonha com o ccu. As fantasias de altura alimentam nosso instinto de verticalidade, instinto recalcado pelas obrigaes da vida comum, da vida vulgarmente horizontal. A fan-tasia verticalizante a mais liberadora das fantasias. No h melhor meio para se sonhar bem do que so-nhar com outro lugar. Porm o mais decisivo dos ou-tros lugares no o outro lugar que fica acima? Os so-nhos com o acima fazem esquecer, suprimir os do em-baixo. Vivendo no znite do objeto cm p, acumulan-do as fantasias de verticalidade, conhecemos uma trans-cendncia do ser. As imagens da verticalidade fazem-nos entrar no reino dos valores. Comungar por meio da imaginao com a verticalidade de um objeto reto receber o benefcio de foras ascensionais, partici-par do fogo escondido que habita as formas belas, as formas seguras de sua verticalidade.

    H algum tempo havamos desenvolvido longa-mente esse tema da verticalidade em um captulo de nosso livro L'air et les songes.' Se quiserem se trans-portar a esse captulo vero todo o plano anterior de nossas presentes fantasias sobre a verticalidade da chama.

    I. L'air ei les songes, Corti, caps. 1 e IV.

  • Quanto mais simples for seu objeto, maiores se-ro as fantasias. A chama da vela sobre a mesa do so-litrio prepara todas as fantasias da verticalidade. A chama uma valente e frgil vertical. Um sopro a atra-palha, mas ela logo se endireita. Uma fora ascensio-nal restabelece seus prestgios.

    A vela queima alto e sua prpura se ergue

    diz um verso de Trakl.2 A chama uma verticalidade habitada. Todo so-

    nhador de chama sabe que a chama est viva. la ga-rante sua verticalidade por meio de reflexos sensveis. Mesmo quando um incidente de combusto vem per-turbar o impulso zcnital, ela reage prontamente. Um sonhador de vontade verticalizante aue estuda sua li-o diante da chama aprende que deve se endireitar. Reencontra a vontade de queimar alto, de ir, com to-das as suas foras, ao pice do ardor.

    E que grande hora, que bela hora quando a vela queima bem! Que delicadeza de vida h na chama que se alonga, que se afila! Os valores da vida e do sonho se encontram ento associados.

    Uma haste de fogo! Nunca se sabe tudo sobre o que [perfuma?

    diz o poeta.'

    2. Anlhologie de ia posie Aliemande, Stock, tomo II, p. 109. 3. Edmond J A B S . Les Mots tracem, p. 15.

  • Sim, a haste da chama to ereta, to frgil que a chama mais parece uma flor.

    Assim as imagens e as coisas trocam suas virtu-des. Todo o quarto do sonhador de chama recebe uma atmosfera de verticalidade. Um dinamismo suave mais seguro leva os devaneios em direo ao pice. Podemos muito bem nos interessar pelos turbilhes internos que cercam o pavio, ver no ventre da chama tumultos onde lutam trevas e luz. Mas todo sonhador de chama eleva seu sonho em direo ao ponto mais alto. l aue o fogo torna-se luz. Villiers de 1'Isle-Adam tomou como inscrio de um captulo de sua Isis o provrbio rabe: "A labareda no ilumina sua base."

    no pico que os maiores sonhos esto. A chama to essencialmente vertical que apare-

    ce, para um sonhador do ser, estendida em direo ao alm, em direo a um no-ser etreo. Num poema que tem por ttulo Chama, l-se1:

    Ponte de fogo lanada entre o real e o irreal coexistindo a todo instante com o ser e o no-ser

    Brincar de ser e de no-ser com um nada, com uma chama, com uma chama talvez apenas imaginada, , para o filsofo, um belo instante de metafsica ilustrada.

    Mas toda alma profunda tem seu alm pessoal. A chama ilustra todas as transcendncias. Diante da cha-ma, Claudel se pergunta: "De onde a matria tira o impulso para se transportar para a categoria do divino?"5

    4. Roger ASSELINEAL). Posies incompltes, d. Debresse, p. 38. 5. Paul CLAUDEL. L'Oeil coute, p. 134.

  • Se nos dssemos o direito de meditar sobre os te-mas litrgicos, no teramos dificuldades em achar do-cumentos sobre o simbolismo das chamas. Seria ento preciso fazer face a um saber. Ultrapassaramos o pro-jeto de nosso pequeno livro que deve se contentar em apanhar os smbolos em seus esboos. Quem quiser en-trar no mundo dos smbolos colocados sob o signo do fogo, poder pegar a grande obra de Carl-Martin Eds-man: Ignis divinus

    III

    Havamos descartado, em nosso captulo de prembulos, toda inquietao de saber, toda experin-cia cientfica ou pseudocientfica sobre os fenmenos da chama. Fizemos o melhor possvel para ficar na ho-mogeneidade das fantasias que imaginam, que so aquelas de um sonhador solitrio. No se pode ser dois auando se sonha em profundidade com uma chama. As observaes ingnuas feitas juntas por Goethe e Ec-kermann, por um mestre e um discpulo, no prepa-ram nenhum pensamento, no podem ser refeitas com a seriedade que convm pesquisa cientfica. Alm dis-so no nos do aberturas sobre esta filosofia dos cos-mos que influncia to grande teve sobre o romantis-mo alemo.'

    6. Carl-Martin EDSMAN. /gnis divinus, Lund, 1949. Do mesmo autor: Le baptme du feu, Uppsala, 1940: 7. Cf. Conversations de Goethe et d'tZckermann, trad.. tomo I, p. 203. 255, 258, 259.

  • Para provar de imediato que com Novalis deixa-se o reino de uma fsica de fatos para entrar no reino de uma fsica de valores comentaremos uma curta di-visa reproduzida na edio Minor8: "Licht macht Feuer", " a luz que faz o fogo". Em sua forma ale-m, esta frase em trs slabas anda muito rpido, uma flecha de pensamento to rpida que o senso comum no sente imediatamente seu impacto. Toda a vida co-tidiana nos ordena ler a frase ao contrrio pois, na vi-da comum, acende-se o fogo para se ter a luz. Esta pro-vocao s se justificar se se aderir a uma cosmolo-gia de valores. A frase em trs slabas "Licht macht Feuer" o primeiro ato de uma revoluo idealista da fenomenologia da chama. uma dessas frases-eixo que um sonhador se repete para condensar sua convico. Durante horas, imagino, escuto as trs slabas nos l-bios do poeta.

    A prova idealista no saberia enganar: para No-valis a idealidade da luz deve explicar a ao material do fogo.

    O fragmento de Novalis continua: "Licht ist der Genius des Feuerprozesses", "A luz o gnio do pro-cesso do fogo". Declarao das mais graves para uma potica dos elementos materiais, j que a primazia da luz tira do fogo seu poder de sujeito absoluto. O fogo s recebe seu verdadeiro ser no trmino de um proces-so em que se torna luz, quando, nos tormentos da cha-ma, foi desembaraado de toda sua materialidade.'

    8. Tomo III, p. 33. 9. Para um autor da Encyclopdic (artigo: "Fogo", p. 184): "Uma cha-ma viva e clara (d mais calor) do que o braseiro mais ardente."

  • Se lssemos sobre a chama essa inverso da cau-salidade, seria preciso dizer que a ponta que a re-serva da ao. Purificada na ponta, a luz extrai tudo do sabugo. A luz , ento, o motor verdadeiro que de-termina o ser ascensional da chama. Compreender os valores no prprio ato em que ultrapassam os fatos, em que acham seus seres em ascenso, o prprio prin-cpio de cosmologia idealizante de Novalis. Todos os idealistas acham, meditando sobre a chama, o mesmo estmulo ascensional. Claude de Saint-Martin escreveu:

    "O movimento do esprito como aquele do fo-go, acontece em ascenso."10

    IV

    Coordenando todos os fragmentos em que Nova-lis evoca a verticalidade da chama, poder-se-ia dizer que tudo que ereto, tudo que vertical no Cosmos, uma chama. Numa expresso dinmica, seria preciso dizer: tudo o que sobe tem o dinamismo da chama. A rec-proca, apenas atenuada, clara. Novalis escreveu:

    "Na chama de uma vela, todas as foras da natu-reza so ativas."

    "In der Flamme eines Lichtes sind alle Naturk-rften ttig.""

    10. Claude de SAINT-MAKTIN, Le Nouvet homme, ano IV, p. 28. 11. NOVALIS . Les disciples Sas, d. Minor, lna, 1927, II, p. 37.

  • As chamas constituem o prprio ser da vida ani-mal. E Novalis nota inversamente "a natureza animal da chama"12. A chama , de algum modo, a animali-dade nua, maneira exagerada de animal. Ela o glu-to por excelncia (das Gefrssige). O fato desses afo-rismos serem fragmentos dispersos em toda a obra re-vela o carter imediato das convices. So verdades de fantasia que s se pode provar experimentando o onirismo profundo, mais sonhando do que refletindo.

    Cada reino da vida ento um tipo de chama par-ticular. Nos fragmentos traduzidos por Maeterlinck, l-se (pg. 97):

    "A rvore s pode transformar-se em uma chama florida, o homem numa chama falante, o animal nu-ma chama errante."15

    Paul Claudel, sem ter lido esse texto de Novalis, segundo parece, escreveu pginas semelhantes. Para ele, a vida um fogo.14 A vida prepara seu combustvel no vegetal e se inflama no animal: " O vegetal ou elabora-o da matria combustvel. O animal provendo sua prpria alimentao", diz Claudel no resumo prepara-trio de seu texto.

    12. d. Minor, t. Il , p. 206. 13. Cf. uma pgina singular em que tudo que vive dado como o excre-mento de uma chama. Somos apenas os resduos de um ser inflamado (d. Minor, t. II, p. 216).

    Em O Div, GOETHE escreve: Na chama gil da lareira Se elaboram, do disforme, o sumo do animal e

    da planta An des Herdes raschen Feuerkrften Reift das Rohe Tier- und Pflanzensften

    14. Paul CLAUDEL, L'art potique, p. 86.

  • "Se o vegetal pode se definir como 'matria com-bustvel', para o animal ele matria acesa."15

    " O animal mantm (sua forma) queimando o que ir alimentar a energia da qual ela o ato, conseguin-do o que ir satisfazer a fome do fogo nele recluso.""

    O tom dogmtico desta cosmologia sob a forma de divisa, tanto em Novalis, quanto em Claudel, des-cartar sem dvida um filsofo do saber. No ser a mesma coisa se acolhermos tais aforismos no quadro de uma potica. A chama, aqui, criadora. Ela nos entrega instituies poticas para nos fazer participar da vida inflamada do mundo. A chama , ento, uma substncia ativa, poetizante.

    Os seres mais diversos recebem seu substantivo da chama. Basta um adjetivo para particulariz-los. Um leitor rpido talvez veja a apenas um jogo de estilo. Mas se ele participar da intuio inflamante do filso-fo poeta compreender que a chama um ponto de par-tida do ser vivo. A vida um fogo. Para conhecer sua essncia preciso queimar em comunho com o poe-ta. Para empregar uma frmula de Henry Corbin, di-ramos que as frmulas de Novalis tendem a levar a me-ditao incandescncia.

    15. Loc. cit., p. 92 16. Loc. cie., p. 93

  • Mas eis uma imagem dinmica em que a medita-o da chama encontra uma espcie de impulso sobre-vital que deve aumentar a vida, prolong-la alm de si prpria, apesar de todas as fraquezas da matria co-mum. O trecho 271 de Novalis resume toda uma filo-sofia de chama-vida e da vida-chama'7:

    "A arte de saltar alm de si mesmo considerada em toda parte como o ato mais alto. o ponto de ori-gem da vida. A chama no nada mais que um ato dessa espcie. Assim a filosofia comea a, onde o fi-losofante filosofa a si mesmo, isto , se consome e se renova."1

    Numa reforma de seu texto, Novalis, tendo mo os dois sentidos do verbo verzehren (consumir, consu-mar), indica a passagem, no ato da chama, do deter-minado ao determinante, do ser satisfeito ao que vive sua liberdade. Um ser se torna livre se consumindo pa-ra se renovar, dando-se assim o destino de uma cha-ma, acolhendo principalmente o destino de uma sobre-chama que vem brilhar acima de sua ponta.

    Mas, antes de filosofar, talvez seja preciso rever; talvez, pela falta de reviso, seja preciso reimaginar es-se raro fenmeno da lareira, quando a chama tranqi-

    17. NOVALIS, d . Minor , II, p. 259. 18. C f . NIETZCHE. Poesias:

    A vida criou para si mesma Seu supremo obstculo. Agora ela salta por cima de seu prprio pensamento.

  • la afasta de seu ser as fagulhas que saem voando, mais leves e mais livres sob o manto da chamin.

    Assisti muitas vezes a esse espetculo em sonha-doras viglias. s vezes, minha boa av reacendia, co-locando galhos secos acima da chama, a fumaa lenta que subia ao longo da fornalha negra. O fogo pregui-oso no queima sempre de uma s vez todos os elixi-res da madeira. A fumaa deixa com pesar a chama brilhante. A chama tinha ainda tanta coisa para quei-mar! Na vida tambm h tantas coisas para reacender!

    E quando a sobrechama ganhava vida novamen-te, minha av me dizia: veja, meu filho, so os pssa-ros do fogo. Ento, eu mesmo, sonhando sempre mais distante do que as palavras da av, achava que esses pssaros do fogo faziam seus ninhos no corao das achas de madeira, bem escondido, sob a casca e a le-nha leve. A rvore, esse porta-ninhos, havia prepara-do, durante seu crescimento, esse ninho interno onde esses belos pssaros do fogo se aninhariam. No calor de uma grande lareira, o tempo acaba de eclodir e de levantar vo.

    Teria escrpulos em contar meus prprios deva-neios e distantes lembranas se a primeira imagem, a chama que salta por cima de si mesma para continuar a queimar, no fosse uma imagem real. A chama que se sobrevoa, que toma um novo impulso alm de seu primeiro impulso, alm de sua extremidade, Charles No-dier a viu. Ele fala de "esses fogos sonhados que voam acima das tochas e dos candelabros, quando as cinzas que as produziram j se esfriam."1 '

    19. Charles NODIER. Obras completas, tomo V, p. 5.

  • Esta chama sobrevivente, sobrevoante, ilustra uma comparao longnqua, para Nodier. Ele fala de um tempo em que "o amor, s, vivia acima do mundo so-cial, assim como esses fogos que produzem uma luz mais pura acima das labaredas".

    Para um sonhador novalisiano das chamas anima-lizadas, a chama, j que voa, um pssaro.

    Onde pegareis o pssaro Alm de dentro da chama?

    pergunta um jovem poeta.20

    Havia, portanto, conhecido bem, em meus deva-neios e jogos diante da lareira, a Fnix domstica, et-rea entre todos, pois renascia, no de suas cinzas, mas apenas de sua fumaa.

    Mas, quando um fenmeno raro est na base de uma imagem extraordinria, imagem essa que enche a alma de devaneios desmedidos, a quem ou a que pre-ciso dar realidade?

    um fsico que vai responder: Faraday fez da ex-perincia da vela acesa em seu vapor o assunto de uma conferncia popular.-'1 Esta conferncia teve lugar en-tre outras que Faraday fazia nos cursos noturnos e que reuniu sob o ttulo de Histria de uma vela. Para obter sucesso na experincia, preciso soprar suavemente, bem suavemente, a vela, e bem rpido reacender o va-por e apenas o vapor, sem despertar o pavio.

    20. Pierre GARNIER. Roger Toulouse, Cahiers de Rochefort, p. 40. 21. FARADAY. Histoire d'une chandelle, trad. p. 58.

  • Meio sabendo, meio sonhando, diria ento: para obter sucesso na experincia de Faraday, preciso an-dar depressa, pois as coisas reais no sonham por muito tempo. No se deve deixar a luz dormir. preciso se apressar em acord-la.

  • CAPTULO IV

    As imagens poticas da chama na vida vegetal

    "No sei mais se durmo Pois a luz vela no heliotrpio."

    [ C L I N K A R N A U D . A n t h o l o g i e .

    I

    Quando se sonha um pouco com foras que man-tm em cada objeto uma forma, facilmente imagina-se que em todo ser vertical reina uma chama. Em par-ticular, a chama o elemento dinmico da vida ereta. Citamos anteriormente este pensamento de Novalis: "A

  • rvore no outra coisa alm de uma chama florida." Vamos ilustrar esse tema lembrando as imagens que re-nascem, sem fim, na imaginao dos poetas.

    Antes de contar as explicaes da imaginao po-tica, talvez seja preciso lembrar que uma comparao no uma imagem. Quando Blaise de Vigenre com-para a rvore a uma chama, ele apenas aproxima pala-vras sem conseguir realmente fazer a concordncia en-tre o vocabulrio vegetal com o da chama. Registrare-mos esta pgina que nos parece um bom exemplo de uma comparao prolixa.

    Vigenre apenas falou da chama de uma vela de cera, agora fala da rvore: "Em sentido semelhante (ao da chama) que tem suas razes presas na terra, da qual extrai seu alimento, como a parte inferior da vela ex-trai o seu do sebo, da cera ou do leo que fazem a vela arder. O tronco que suga seu suco ou seiva faz o mes-mo que a base da vela, onde o fogo se mantm atravs do licor que atrai para si, e a chama amarela so seus galhos e ramos revestidos de folhas; as flores e os fru-tos em que a rvore termina so a chama branca na qual tudo se reduz."1

    Ao longo desta comparao exposta, jamais apa-nharemos um dos mil segredos gneos que prepararo distncia a flamejante exploso de uma rvore florida.

    Vamos, portanto, tentar pegar, seguindo os poe-tas, as imagens em primeira poesia, quando elas nas-cem de um detalhe digno de ser enaltecido, de um ger-me de poesia viva, de uma poesia que podemos fazer viver em ns.

    1. Loc. cil., 17.

  • Quando a imagem da chama se impe a um poe-ta para dizer uma verdade do mundo vegetal, preciso que a imagem permanea em uma frase. Explic-la, desenvolv-la, seria diminuir, parar o impulso de uma imaginao que une o ardor do fogo e o paciente po-der do verde. As imagens-frases que pintam, que con-tam as chamas vegetais, so igualmente aes polmi-cas contra o senso comum adormecido em seus hbi-tos de ver e de falar. Mas a imaginao to segura, com uma imagem nova, de conter uma verdade do mundo que a polmica com os no-imaginantes seria tempo perdido. Vale mais a pena para o imaginante fa-lando a outros imaginantes dizer ainda, sem fim, no-vas frases sobre as chamas da vida vegetal.

    Assim comea o reino das imagens decisivas, das decises poticas. Toda poesia comeo. Propomos de-signar essas imagens-frases, ricas de uma vontade de expresses novas, pelo nome de sentenas poticas. O nome de fragmentos, utilizado pelos fragmentistas, prejudica-os. Nada partido numa imagem que encon-tra fora em sua condensao.

    Com um dicionrio de belas sentenas da imagi-nao dogmtica, com uma botnica de todas as plantas-chamas cultivadas pelos poetas, talvez se deci-frassem os dilogos do poeta e do mundo. Sem dvida sempre ser difcil organizar um grande nmero de ima-gens voluntariamente singulares. Mas, s vezes, o atra-tivo da leitura basta para aparentar, a propsito de uma imagem singular, dois gneros diferentes. Por exemplo,

  • como no ter a impresso de que Victor Hugo e Bal-zac pertencem mesma famlia dos botnicos do de-vaneio quando se colocam essas duas sentenas poti-cas uma ao lado da outra:

    "Toda planta um lampio. O perfume a luz."*

    "Todo perfume uma combinao de ar e de luz."'

    claro que, na esttica de Balzac, a planta que, em sua extremidade, na flor, realiza essa sntese prodi-giosa do ar e da luz.

    Uma espcie de correspondncia baudelairiana ativa pelo alto, pelos picos, como se os valores de pico viessem excitar os valores de base. Assim os sonhado-res que vivem nos dois sentidos a correspondncia dos perfumes e da luz lem com convico este "pensamen-to", que valoriza uma luz suave: "Certas rvores tornam-se mais cheirosas quando so tocadas pelo arco-ris."4

    III

    Mais condensado ainda que uma sentena poti-ca o prprio germe da imagem que se pode receber

    2. Victor H U G O . L'homme qui rit, t. II, p. 44. 3. BALZAC. Louis Lambert, 2? ed. p. 296. 4. Le sieur de L A C H A M B R E , Iris, p. 2 0 .

  • de um poeta raro. Trata-se da imagem-germe, do germe-imagem. Eis um testemunho de uma chama que quei-ma no interior da rvore toda uma promessa da fla-mejante vida. Louis Guillaume, em um poema que tem o ttulo: O velho carvalho\ com trs palavras, nos en-che de fantasias: "Fogueira de seivas", diz ele para enal-tecer a grande rvore.

    "Fogueira de seivas", palavras nunca ditas, semen-te sagrada de uma nova linguagem que deve pensar o mundo com a poesia. A sentena potica deixada aos cuidados do leitor. Sonhar-se-o mil sentenas poti-cas sonhando-se com esta seiva gnea que d foras do fogo rainha das rvores. Quanto a mim, acordado de minhas velhas imagens pelo dom do poeta, deixo a grande imagem do grande ser retorcido em sofrimen-tos como aquela de Laocoon, e sonhando com toda essa seiva que sobe e queima, sinto que a rvore um porta-fogo. E um grande destino predito para o carvalho pelo poeta. Este carvalho o Hrcules vegetal que, em todas as fibras de seu ser, prepara sua apoteose na cha-ma de uma fogueira,

    Um mundo de contradies csmicas nasce a partir desse n de poderes hostis. Louis Guillaume ligou em trs palavras o fogo e a gua. Eis a um grande triunfo da linguagem. S a linguagem potica pode ter tanta audcia. Estamos realmente no domnio da imagina-o livre e criativa.

    5 . Louis G I U . A U M E , L.a Nuit parle, cd. Subervie, p. 28.

  • s vezes o germe da imagem parece exagerado. Vai, de uma s vez, aos limites de seu prestgio. Numa ni-ca imagem, Jean Caubre confere um sentido de cha-ma ao jato d'gua solitrio, este ser ereto, mais ereto que todas as rvores do jardim. "O jato d'gua de Cau-bre" grande privilgio esse de dar seu nome a uma imagem incriada , para mim, a vigorosa chama de gua, o fogo que respinga ao chegar ao mximo de sua altura, no trmino de sua ao ereta/

    Existem jardins onde queima um jato d 'gua solitrio entre as pedras ao crepsculo.

    O poeta nos d uma grande alegria de palavras. Por ele transcendemos as diferenas elementares. A gua queima. Ela fria, mas forte, logo ela queima. Ela recebe, numa espcie de surrealismo natural, a vir-tude de um fogo imaginrio. Nada desejado, nada fabricado nesse surrealismo imediato do jato d'gua-chama. Jean Caubre concentrou o surrealismo de sua imagem numa s palavra: a palavra queima desrealiza e surrealiza. E essa palavra queima inverteu a melan-colia crcspuscular do poema. A imagem adquirida , ento, um testemunho da melancolia criativa.

    6 . Jean C A U B R E . Dserts, d. Debressc, p. 1 8 .

  • Tkis snteses de objetos, tais fuses de objetos fe-chados em formas to