A Cidade Contra Os Barões - Piseagrama

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  • 7/24/2019 A Cidade Contra Os Bares - Piseagrama

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    A CIDADE CONTRA OS BAREST e x t o d e R o b e r t o A n d r s

    F o t o g r a f i a s d e F l o r a R a j o , P r i s c i l a M u s a e V i t o r L a g o e i r o

    Mesmo os que tiram proveito econmico da tragdia urbana vivenciam o trnsito engarrafado e temem pela violncia em seus espaos blindados.Ganham muito com a cidade como valor de troca e se do ao luxo de abrir mo dela como valor de uso. So o 1%. Os outros 99% parecem buscar,cada vez mais, a cidade como valor de uso.

    Se as cidades so complexas e geram debates controversos, h tambm em torno delas alguns consensos. Um deles que no est bom para

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    ningum. Claro que a cidade pior para alguns do que para outros, mas fica evidente que a maioria das pessoas ressente da rotina opressora e dasmuitas violncias: o trnsito, o transporte precrio, as periferias maltratadas, a poluio, o cinza do asfalto, o vazio, o calor.

    Mesmo os que tiram proveito econmico da tragdia urbana (indstria automobilstica, empresas de nibus, exploradores de servios pblicos,construtoras) vivenciam o trnsito engarrafado e temem pela violncia em seus espaos blindados. Ganham muito com a cidade como valor detroca e se do ao luxo de abrir mo dela como valor de uso. So o 1%.

    Os outros 99% parecem buscar, cada vez mais, a cidade como valor de uso. O sonho privatista dos anos 90 quis fazer do espao urbano meraconexo entre espaos privados. Muitos acreditaram que a felicidade viria com o carro novo, a casa murada, o shopping center, a escola particular.Esse modelo faliu, por negar o outro e cultivar paranoia e tdio. Estar nas cidades s faz sentido como possibilidade de encontro, de vivncia dacoletividade e dos espaos abertos.

    Esse desejo se expressa na retomada das ruas em muitas cidades. Em Belo Horizonte, com o carnaval de rua, a Praia da Estao, o Duelo de MCs, aGaymada, s para citar alguns. Tambm com movimentos que reivindicam reas verdes, como o Parque Jardim Amrica e a Mata do Planalto, apreservao do patrimnio, como o Salve Santa Tereza, o ciclismo seguro e democrtico, como o Bike Anjo, BH em Ciclo, etc.

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    C a r n a v a l e m B e l o H o r i z o n t e d e 2 0 1 2 , e x p e d i o p e d e s t r e e m r e g i e s i n s p i t a s d a c i d a d e . F o t o g r a f i a d e F l o r a R a j o

    Mas se a rede de pessoas em torno dos espaos pblicos se fortalece, fato que espaos continuam maltratados. Que as polticas pblicas

    continuam a promover cidades ruins, hostis, poludas, lugares da depresso e da tristeza, mantenedoras da violncia e da desigualdade seculares.Tratamento que garante privilgios para poucos e fomenta um ciclo vicioso prejudicial coletividade. Me proponho aqui, num exerccio desntese, a pincelar esse ciclo.

    Comecemos pelos c rros. No espao em que dois carros transportam 3 pessoas, um nibus transporta 50. Um estudo recente mostra que, nohorrio de pico, em So Paulo, os automveis ocupam 78% das ruas, mas transportam 28% dos passageiros. Os nibus ocupam 8% dos espaosdas ruas e transportam 67% dos passageiros.

    Embora transportem menos gente, os automveis geram nove vezes mais poluio que os nibus, e 36 vezes mais que o metr. A poluio do armata mais que Aids e Dengue no Brasil. S em So Paulo, so 4.000 mortes por ano. Os acidentes de trnsito matam mais no Brasil do que as

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    armas de fogo. Foram mais de 40.000 mortes no ano de 2014.

    O automvel um meio ineficiente de mobilidade urbana. Mas muito mais do que isso. Trata-se de uma epidemia que ceifa dezenas de milharesde vidas por ano no pas. O que justifica a continuada iseno de impostos para a indstria automobilstica, sem nem mesmo a cobrana demelhorias ambientais? Nada, a no ser o aquecimento da economia para a manuteno do poder no curto prazo, mas baseado num crescimentoirresponsvel e invivel. A economia estaria aquecida se o governo financiasse fbricas de metrs, bondes, nibus eltricos e bicicletas, comoapontou o cineasta Michael Moore, em uma carta a Obama na crise de 2008.

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    O a l t o c u s t o d a s p a s s a g e n s t o r n a o t r a n s p o r t e p b l i c o e x c l u d e n t e e i n e f i c i e n t e . F o t o g r a f i a d e P r i s c i l a M u s a

    nibus, ssim como metrs e bondes, transportam muita gente e ocupam pouco espao. Para serem atrativos, precisam ter oferta abundante,tarifa baixa e alta qualidade. A maneira de fazer essa mgica pelo subsdio da tarifa. Todas as cidades em que admiramos o transporte coletivosubsidiam as tarifas, muitas em mais de 50%.

    Nas cidades brasileiras, o subsdio praticamente inexistente. As frotas so ruins e as tarifas altas. O que gera um sistema precrio, uma violnciacontra quem usa. Em Belo Horizonte, h uma debandada em massa do transporte coletivo, apesar do marketing do Move. O que compreensvel,

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    pois temos uma das tarifas mais altas do mundo (trabalha-se em mdia 20 minutos para pagar uma passagem, contra 6 em Barcelona e 2 emBuenos Aires), que subiu muito acima da inflao nos ltimos 2 anos. Como se no bastasse, a oferta de nibus foi reduzida, aumentando a esperanos pontos.

    Ora, quem quer pagar caro para esperar muito e pegar o balaio lotado? Ningum, claro. O que ocorre a fuga, dos que podem, para carros e motos,fomentando a tragdia motorizada que vemos todo dia. E quem ganha com isso? Meia dzia de empresrios pouco srios, para quem quanto pior oservio maior o lucro.

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    V i a d u t o s s o a m a n e i r a m a i s r p i d a d e c o n e c t a r d o i s e n g a r r a f a m e n t o s . F o t o g r a f i a d e V i t o r L a g o e i r o

    A chegamos avi dutos e bulev res. Na nsia de ampliar espaos para automveis, aparecem essas aberraes. Que, claro, no funcionam. Asnovas pistas ficam rapidamente saturadas e os engarrafamentos so empurrados alguns metros a frente. No h exemplo de cidade no mundo quetenha melhorado o trnsito aumentando espaos para carros seria como combater obesidade ampliando o estmago.

    Em Belo Horizonte, a maior parte dos recursos de mobilidade investida em obras desse tipo. So bilhes e bilhes nos ltimos anos, quepoderiam ter financiado o metr do Barreiro, centenas de ciclovias, etc. Quando um viaduto cai, v-se que no faz falta alguma. O trnsito flui

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    normal e a vida segue.

    Mas o problema no s a ineficincia. Essas obras geram um grande estrago no tecido urbano. No clssico livro Morte e Vida de GrandesCidades, Jane Jacobs mostra como a hegemonia dos automveis causa eroso urbana: gera espaos e cidades inspitos, desestimulando pedestrese ciclistas. Ir padaria vira uma tarefa rdua, se voc mora ao lado de um viaduto ou do Bulevar Arrudas. O perverso do modelo do automvel que ele destri tudo por onde passa.

    Destri rvores, rios, c l d s, pr s e p rques. E a cidade precisa desses elementos. No atual contexto de aquecimento, sombra e frescor soqualidades essenciais. rvores e rios abertos e limpos urgem! Uma medio recente registrou diferena de temperatura de 5 graus entre a Mata doPlanalto, na regio norte de BH, e uma avenida na regio. A reabertura de um rio urbano em Seul reduziu a temperatura no entorno em mais de10%.

    U m a m e d i o r e c e n t e r e g i s t r o u d i f e r e n a d e t e m p e r a t u r a d e 5 g r a u s e n t r e a M a t a d o P l a n a l t o e u m a a v e n i d a n a r e g i o .

    Belo Horizonte cobre seu principal curso dagua e cortou mais de 40 mil rvores nos ltimos anos. Pretende privatizar parques (que custammenos de 0,5% do oramento) e deixa de investir nas reas verdes demandadas pela populao. O descompasso com os interesses reais daspessoas alarmante.

    Descompasso que se intensifica no caso extremo dah bit o. De 2008 a 2013, os alugues dobraram no pas, embora a inflao no tenhachegado a 40%. A falta de regulao foi catastrfica, expulsando muita gente de suas casas. Em Belo Horizonte, so 148.000 famlias sem moradiadigna, segundo o Instituto de Pesquisa Aplicada. No ritmo atual da poltica habitacional do municpio, quem est no fim da fila aguardar 175 anos

    para conseguir a casa prpria. Por outro lado, um levantamento recente apontava mais de 40 mil imveis desocupados no centro de Belo

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    Horizonte.

    A moral liberal lava as mos para os excludos. Mas qual soluo oferece para que essas pessoas possam compartilhar da vida urbana? Algum ems conscincia imagina a cidade funcionar sem a presena de toda essa gente que atua de maneiras to diversas? A moral liberal no d conta dacoletividade. E, na verdade, de liberal ela tem pouco. O que se v o privilgio de alguns poucos via monoplios e prticas de corrupo do poderpblico.

    Ou encontramos maneiras de viver juntos, compartilhando afeto, respeito e dignidade, ou a cidade carece de sentido. Ou os 99% fazem valer seusdireitos e desejos, ou vamos ficar merc dos bares. Que j esto planejando o financiamento aos candidatos para as eleies de 2016.

    Roberto AndrsE d i t o r d e P I S E A G R A M A