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A cidade de São Paulo no século XIX: ruas e pontes em ... · A ponte chamava a atenção por causa ... Para o autor da carta isso era inconcebível, uma vez que se pagavam pesados

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A cidade de São Paulo no século XIX:ruas e pontes em transformação

Paulo de Assunção*

As ruas de São Paulo no século XIX formavam uma teia. Ruas que se cruzavam, estrei-tas e tortuosas, marcadas pela irregularidade da largura e cheias de becos. As vias eramlocais privilegiados, onde uma diversidade de indivíduos circulava com os mais diferentesofícios. Vendedores ambulantes cruzavam o caminho com escravos que carregavam barriscom os despejos de dejetos fecais e lixo. Ao cair da noite, a cidade descansava numa esplên-dida escuridão. Aqueles que se aventuravam a sair pela noite levavam consigo uma lanterna.Nas noites de luar, o andarilho noturno poderia aventurar-se pelas ruas da cidade, o que nãoimpedia que surpresas e imprevistos acontecessem.

Nos primeiros tempos os caminhos foram sendo construídos de forma espontânea,sem planejamento, ligando a região central aos arredores. A Câmara da cidade, reiteradasvezes, decidiu pela participação dos moradores na construção dos caminhos, os quais serecusavam a participarem ou enviar mão-de-obra para a realização das obras públicas.1

O desenvolvimento da cidade levou a população a ocupar as terras que ficavam alémdo Tamanduateí, Anhangabaú, Pinheiros e Tietê. O avanço para o interior e o crescimento dealdeias e povoações exigiu a criação de pontes a fim de facilitar o deslocamento dos morado-res dessas regiões para o centro da cidade.

Na região central destacava-se a Ponte do Lorena, sobre o Anhangabaú, que ligava aLadeira do Piques com a Ladeira da Memória (atual Praça da Bandeira).2 O caminho queligava São Paulo à aldeia de Pinheiros era conhecida como Estrada do Araçá (rua da Conso-lação e Av. Rebouças). Por este trajeto era possível também utilizar uma das vertentes que iaem direção ao Rio Tietê, seguindo para Jundiaí. A ponte existia desde as primeiras décadasdo século XVII. Todavia, foi durante o Governo de José Bernardo de Lorena que reformasforam feitas e a ponte passa a ser conhecida como Ponte do Lorena, passou após a abdica-ção de Dom Pedro I, em sete de abril de 1831, a ser conhecida como Ponte Sete de abril.Apesar de a ponte ser vital para o desenvolvimento da cidade e caminho obrigatório para aque-les que vinham do interior e da região da aldeia de Pinheiros, a pequena ponte vivia em reparos.

Muitas pontes foram construídas de maneira rudimentar nos primeiros anos de ocupa-ção, e no período seguinte o poder público ocupou-se em mandar fazer e reparar-las comoaquela que ficava sobre o Rio Pinheiros, conhecida por Jurubatuba. As condições da PonteGrande, como era conhecida a ponte que passava sobre o Rio Tietê, não eram diferentes. Noséculo XVIII, por diversas vezes, a ponte sofreu com as inundações.

As pontes periodicamente eram reparadas, pois a circulação de animais e pessoascausava uma deterioração rápida. Além disso, as chuvas de verão causavam enchentes eenxurradas promovendo as erosões do solo contribuindo para que as pontes ficassem comsuas estruturas comprometidas. Nessas ocasiões, o órgão municipal proibia a passagem detropas e boiadas a fim de preservar as estruturas que haviam restado das inundações.

Saint-Hilaire foi o viajante que descreveu com mais cuidado algumas pontes da cidade.Por ocasião da sua visita em 1819, ele descreve as pontes que ficavam por sobre o Anhangabaú.A primeira a ser mencionada foi a do Lorena, que dava acesso para Sorocaba e Jundiaí, aqual era quase plana, com parapeitos e sem ornamento e que teria aproximadamente “12passos de largura por 25 de extensão”. A segunda era a do Açu, que permitia a ligação com a

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região oeste e considerada a mais bonita. A ponte chamava a atenção por causa dos para-peitos que, segundo Saint-Hilaire, tinha certa elegância arquitetônica. A mesma possuía noacesso, um aclive com cerca “150 passos de extensão e 16 de largura”. A terceira era conhe-cida por ponte do Ferrão, pois nas imediações havia a chácara de José da Silva Ferrão. Estaponte dava acesso à estrada para o Rio de Janeiro medindo cerca de “40 passos de compri-mento por 7 de largura”. 3

O crescimento da vila e posteriormente da cidade fizeram com que as ruas existentesfossem melhores preparadas, bem como a abertura de novas ruas e becos que facilitavam oacesso dos moradores aos campos e ao litoral. Apesar das melhorias que surgiam pouco apouco com a pavimentação, Saint-Hilaire observou que o calçamento era mal feito.4

O calçamento era péssimo, feito de pedras irregulares e não oferecia nenhuma resis-tência o que provocava uma deterioração rápida, após ser danificada. A circulação de pesso-as e animais fazia que as condições da via ficassem comprometidas. Faltavam recursos fi-nanceiros e técnicos para que as vias fossem pavimentadas de forma conveniente para uso.Além disso, o calçamento danificado, o mato crescido e a sujeira de animais contribuíam paraum aspecto desagradável registrado pelos próprios moradores e visitantes.

A Câmara Municipal solicitara reiteradas vezes que os proprietários de moradias nacidade cuidassem do calçamento defronte as suas residências. Contudo, nem todos tinhamrecursos para realizar as obras. As ruas e caminhos que cortavam a cidade eram cheios devaletas e buracos que causavam incomodo aos que passavam, exigindo que o poder públi-co investisse na pavimentação. Desta maneira, o poder municipal solicitou ao governo dasprovíncias adiantamento de recursos para que fossem feitos os calçamentos de proprietári-os pobres.

Saint-Hilaire ao entrar na cidade, provavelmente pela região da atual Rua da Consola-ção, registrava que as casas eram pequenas e bem cuidadas, passando por uma fonte bonita,depois atravessando a Ponte do Lorena e chegando ao Bexiga. Daniel Parish Kidder, por suavez, observara que as ruas eram “acanhadas e construídas sem um traçado geral”.5

O calçamento da cidade São Paulo, de forma mais intensa, iniciou-se durante o gover-no do capitão-general Francisco da Cunha Meneses (1782-1786). Durante o seu governo no-vas ruas foram abertas na região da Igreja de São Bento em direção aos Campos do Guaré.

João da Costa Ferreira foi o engenheiro responsável pelo calçamento que melhorouas condições de circulação de pessoas e animais. Em primeiro de outubro de 1828, foramfixadas normas pela municipalidade que definiu critérios para o alinhamento, a abertura dasruas, o calçamento, a edificação e reedificado das casas e da concessão de terrenos. Asnormas também regulavam sobre os edifícios em ruína, as escavações e os precipícios nasvizinhanças da cidade. Tentava-se desta maneira controlar o abandono de algumas proprie-dades e a exploração de áreas indevidamente.

As instruções também determinavam sobre a limpeza e desobstrução de ruas, cami-nhos, estradas e praças, plantações de árvores e destruição de formigueiros, atentando paraa higiene e a salubridade pública. Estas medidas visavam a estabelecer parte de uma políticasanitária para que os habitantes pudessem utilizar a cidade, de maneira adequada. Nestesentido, outras orientações forma feitas sobre: a criação de gado; a instalação de fábrica decurtumes; o estabelecimento de hospitais, casas de saúde, cemitérios, teatros, bailes, diverti-mentos públicos, jogos; o funcionamento e as condições de higiene dos matadouros e açou-gues públicos.

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Pouco a pouco, as ruas receberam calçamento e foram macadamizadas, com esgotoslaterais, sob orientação do engenheiro Carlos Rath. Apesar das benfeitorias realizadas, ascríticas não diminuíram, pois em muitos locais a pavimentação era feita de forma inadequada.

As condições de segurança e tranqüilidade pública não ficaram fora das determina-ções que definiram sobre: a presença da polícia nos mercados e casas de negócio; o controlede vagabundos, embusteiros, pedintes, vendedores de rifas e mascates; e a preservação damoral e dos costumes nos locais públicos.

Em 15 de abril de 1830, o jornal “O Farol Paulistano” , primeiro periódico de São Paulo,publicou um artigo assinado como ´Um cidadão´. O autor do artigo, dirigindo-se ao redator,dizia ficar com as faces do rosto vermelhas de vergonha ao escrever aquela carta. Contudo,ele via nesta missiva o meio pelo qual os seus reclamos poderiam ser atendidos. De formarígida, o nosso cidadão indagava como a Câmara municipal da cidade “que tão zelosa se temmostrado, onde se encontram Membros tão patrióticos, e que tem a ventura de possuir um tãoótimo Fiscal, como não vê, como não sabe do miserando estado da rua chamada – do Cône-go Leão”? A sua decepção devia-se ao fato de ter passado pela rua, que era passagemobrigatória para todos os carros que vinham de Santo Amaro, e nela encontrou um tronco deárvore, sinal que os tropeiros utilizavam para avisar aos viajantes para não passarem por ali,por causa dos buracos e das más condições de circulação.

Para o autor da carta isso era inconcebível, uma vez que se pagavam pesados impos-tos e as condições das vias continuavam a serem péssimas, verdadeiros lamaçais. Tais con-dições colocavam em riscos aqueles que circulavam por ali. Conforme informações que obti-vera no local, um moço que conduzia um carro com lenha, para garantir o sustento da família,foi vítima de morte. Indignado com a situação indagava o cidadão desconhecido, como talsituação era possível, se a câmara determinava por fazer o calçamento de ruas, por onde bempoucos carros transitavam.

Animais soltos eram encontrados pelas ruas centrais da cidade, sem que o seu propri-etário os reclamasse. Em aviso publicado na mesma edição do jornal “O Farol Paulistano”, umleitor informava que em 15 de fevereiro de 1830 encontrara uma besta arreada na Travessa doComércio. Imaginando que o animal estivesse perdido, este foi recolhido pela pessoa que oencontrou. Averiguações foram realizadas para identificar quem era o proprietário, o que até adata da publicação do jornal, em 15 de abril, não havia dado resultado. Desta forma, foi feito oanúncio para que, quem fosse o dono do animal, o procurasse na Travessa do Comércio, casanúmero 16, que dando os sinais corretos e pagando as despesas tidas com o animal, esteseria entregue.

Em 1858, Robert Avé-Lallemant chegando à cidade avistou com alegria São Paulo noalto de uma colina. Muitos lhe haviam contado sobre o ar aristocrático, as igrejas, a elegânciadas ruas e a limpeza das casas. Após conhecer a cidade o seu entusiasmo era mais comedi-do. Reconhecia que algumas ruas e bairros eram magníficos, havia bom calçamento, masressaltava que as ruas eram estreitas e a cidade possuía um traçado irregular.6 A abertura denovas ruas era dificultada pelo próprio traçado original. O crescimento irregular permitiu quemuitos edifícios fossem construídos sem critérios de um planejamento urbano.

Emílio Zaluar que passou mesma época que Avé-Lallemant teve opinião diferente so-bre as ruas, para ele as ruas principais era largas e bem calçadas. Nelas era possível encon-trar elegantes lojas que ofereciam “uma profusão tudo quanto se pode desejar, tanto parasatisfação das exigências da vida como para os desejos mais requintados do luxo e da moda,quase pelo mesmo preço por que se compra na corte”. 7 Zaluar talvez tivesse avaliado de

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forma superlativa a cidade que ainda não possuía a mesma infra-estrutura que a cidade doRio de Janeiro. Contudo, não deixa de ser um indício de que passava por transformações.

A melhoria do calçamento de ruas foi pouco a pouco sendo alvo das atenções do gover-no municipal que expropriou terrenos e mandou refazer velhos caminhos de acesso à cidade,o que permitiu uma circulação mais adequada com o interior. Os movimentos espontâneosnas ruas, as danças, as congadas, os batuques, a venda de alimentos, de forma desordenada, ovaivém de inúmeros personagens, pouco a pouco cede espaço para uma nova cidade que tendeà organização e deseja mudar a vida de todos a partir das inovações tecnológicas e urbanas.

Até a metade do século, a expansão de São Paulo havia sido pequena. A cidade aindaestava ligada ao pulmão formado pelo “triângulo” onde se concentrava a vida religiosa, políti-ca, econômica e social da cidade. A Rua Direita de Santo Antônio (hoje Rua Direita), a Rua doRosário (mais tarde Rua da Imperatriz e hoje Rua XV de novembro) e a Rua Direita de SãoBento (hoje Rua São Bento) formaram a base do triângulo a partir de onde a cidade cresceu.Nessas ruas e nas vias que davam acesso a elas ficavam as principais construções como oconvento de São Bento e do Carmo, Convento e Academia de São Francisco e Pátio doColégio onde se localizava o Palácio do Governo, a Assembléia Provincial, o Correio e asrepartições Fiscais.

Nessas ruas havia grande concentração de moradores e a segregação sócio-espacialnão era bem definida. A lei de Terras de 1850, projeto elaborado pelo fazendeiro e Senadordo Império Nicolau dos Campos Vergueiro, definia que todas as terras devolutas eram propri-edade do Estado, sendo que a sua ocupação ficaria sujeita à compra e venda. As terras livrespassaram a ser propriedade do Estado que poderia vendê-las a quem tivesse condições depagar. A lei acabou por influenciar no aumento do valor dos terrenos na área urbana da cidade.

Em 24 de janeiro de 1854, a Câmara Municipal discutia sobre a questão das pontes eestradas de São Paulo. Conforme os registros, as pontes existentes nas estradas que segui-am para Sorocaba, Bragança, Campinas, São Bernardo, e desta para outros pontos, se acha-vam em bom estado. O mesmo não se poderia dizer a respeito da ponte que existia no Bairrodo Bexiga próxima à propriedade de Malachias Rogério de Salles Guerra, e da ponte denomi-nada do Fonseca, que ficava sobre o Rio Tamanduateí, as quais deveriam ser reparadas.

No mesmo ano, deliberava-se pela abertura de novas ruas na capital. Principalmentena região do Anhangabaú, e no Bairro do Bexiga, passando por terras pertencentes a Vicentede Souza Queirós, que oferecera o terreno necessário para a abertura da rua. Além dessas,foram abertas ligações entre a Ponte do Carmo e a Ladeira do Porto Geral de São Bento,passando por parte do quintal de Dona Anna Oliveira, terras que deveriam ser desapropria-das. Estas novas ruas que eram importantes para a cidade, porém, esbarravam em dificulda-des pecuniárias. A receita diminuta da Câmara não era suficiente para atender a todas asnecessidades, exigindo que novos recursos fossem liberados. Desta forma, a chácara Mauá,no antigo Campo Redondo, foi um dos primeiros locais a passar por loteamento.

A definição pela construção de uma estrada de ferro, que ligava a capital ao litoral einterior, definiu o crescimento da cidade em direção à região da Estação da Luz. Em 1860, aabertura de novas ruas, naquela área, seguia um traçado ortogonal, surgindo as ruas Ipiranga(atualmente avenida), Vitória e Aurora que chegavam até a Alameda dos Bambus (atual Ave-nida Rio Branco).

No decorrer da década de setenta, muitos fazendeiros passaram a residir na cidade,exigindo novos tipos de construção. As casas de taipa, lentamente são substituídas por casa-rões que se destacam do conjunto arquitetônico da cidade.

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João Teodoro Xavier, que foi Presidente da província entre 1872 e 1875, realizou umasérie de melhoramentos urbanos que prepararam a cidade para as grandes transformaçõesque estavam por acontecer. Investindo grandes quantias em obras públicas, João Teodororemodelou o Jardim Público, e o Palácio do Governo, regularizou o Largo dos Curros (atualPraça da República), abriu novas ruas ligando o centro da cidade a outras áreas, nas antigaschácaras que foram sendo incorporadas ao crescimento da cidade, reformou o Hospital deAlienados da Rua da Tabatingüera, construiu o edifício da antiga Escola Normal, melhorou ailuminação pública. Apesar de combatido pelos deputados pelos gastos que empreendia, oPresidente da província investiu no calçamento da cidade nas ruas centrais, utilizando os pa-ralelepípedos, drenou e aterrou áreas inóspitas na Várzea do Carmo, fiscalizando pessoal-mente as obras.

A fim de adequar a infra-estrutura, a Câmara Municipal decidiu, em oito de janeiro de1874, pela publicação de editais que definiam o prazo de noventa dias, sem prorrogação,para os moradores da cidade caiassem a frente de suas casas e muros e calçassem as suastestadas em todas as ruas em que houvesse guias, conforme as posturas municipais.8

A inauguração de linhas de bondes, por tração animal, ligando definitivamente o centro aáreas mais afastadas permitiu que algumas regiões adquirissem uma função residencial ur-bana. Surgiram os bairros com infra-estrutura adequada aos desejos da elite, enquanto outrasáreas continuam à margem do progresso urbano. O fato é que São Paulo se urbanizava, se-guindo uma crescente estratificação social do espaço. Com a remodelação da área central eo surgimento de bairros nobres houve uma elitização dos espaços urbanos. A região central,que até a primeira metade do século XIX era marcada por um número significativo de residên-cias de taipa, foi reestruturada para receber os edifícios de comércio, administração pública,lazer e religião. No final da década de oitenta, havia lojas, cafés, bancos, restaurantes, hotéis,dentre outros edifícios que compunham o cenário urbano com as igrejas do período colonial(Igreja do Pátio do Colégio, Sé, Carmo, Boa Morte, São Gonçalo, Nossa Senhora dos Remédi-os, São Francisco, Santo Antônio, Misericórdia, Rosário, São Bento). Um progresso rápido quechegou nas linhas dos trilhos das Estradas de Ferro e transformou as ruas e pontes da cidade.

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Referências Bibliográficas

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BRUNO, Ernani da Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Prefeitura de São

Paulo/Hucitec, 1984, 3 vols.

DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. São Paulo: Difel, s.d.

KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanências nas Províncias do Sul do Brasil.Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980.

MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo – Povoamento e População (1750-1850). São Paulo:

Pioneira/Edusp, 1974.

MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ EDUSP, 1978.

MORSE, Richard. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difel, 1970.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo

Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1975.

SANT’ANNA, Nuto. São Paulo no século XVIII. São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e

Tecnologia – Conselho Estadual de Cultura, 1977.

TAUNAY, Afonso de E. História da cidade de São Paulo sob o império. São Paulo: Sec. Municipal de

Cultura, 1977.

TSCHUDI, J. J. Von. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte/São Paulo:

Itatiaia/EDUSP, 1980.

ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). Belo Horizonte/

São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1975.

Atas da Câmara Municipal de São Paulo. Vol. XXII. São Paulo: Div. do Arq. Histórico do Estado de

São Paulo, s.d.

Discurso em que o Exmo. Presidente Rafael Tobias de Aguiar abriu a sessão da Assembléia Provin-cial no dia 2 de fevereiro de 1835. São Paulo: Typographia do Governo, 1835.

Documentos interessantes - Atas do Conselho da Presidência da Província de São Paulo ano de1824 – 1829. São Paulo: Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo, 1961.

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NOTAS

* Pós-doutorando em História pela EHESS (Paris), Doutor em História pela Universidade Nova de

Lisboa e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente leciona na Universi-

dade São Judas Tadeu, no Centro Universitário Assunção – UNIFAI e no Centro Universitário Capital

– UNICAPITAL.1 SANT’ANNA, Nuto. São Paulo no século XVIII. p. 27.2 O Largo da Memória era formado pelo triângulo das ruas do Paredão, da Palha e da Ladeira do

Piques. Em 1876, com a reforma do local, o largo passou a ser um marco para a cidade pelo projeto

do Arquiteto Vitor Dubugras.3 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo

Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1975, p. 131.4 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 127.5 KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanências nas Províncias do Sul do Brasil.Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 206.6 AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858).Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 332.7 ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). Belo Horizonte/

São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1975, p. 125.8 Atas da Câmara de 1874. p. 13.

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Rua São Bento. Augusto Militão, 1887.

Rua Direita. Augusto Militão, 1887.

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Rua Alegre. Augusto Militão, 1887.

Ladeira do Carmo e Aterrado do Braz. Augusto Militão, 1962.

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Algumas considerações sobrea repressão e a punição nas Minas setecentistas

André Nogueira *

Fernando Gaudereto Lamas **

À guisa de introdução: uma breve discussão conceitual

Nosso objetivo é discutir os métodos e as razões para a repressão e a punição naAmérica portuguesa durante o século XVIII, enfocando particularmente a capitania das MinasGerais. Acreditamos que ao estudar este tema temos a oportunidade de observar a socieda-de colonial pelo ângulo das relações sociais entre o aparato estatal do colonizador e seuprojeto de reproduzir na América os mecanismos sócio-políticos existentes na Europa, e asformas de sociabilidade de uma sociedade heterogênea que insistia em ser diferente de suacongênere européia.

Antes, contudo, de analisarmos a referida sociedade colonial, optamos por realizar umabreve explicação de caráter etimológico acerca dos termos punição e repressão, uma vez queentendemos que seus sentidos modificaram-se, especialmente a partir do século XIX em diante.1

Segundo consta no “Vocabulário Português e latino” do padre e lingüista Raphael Bluteau,repressão é o termo popular de repreensão e este está associado a fazer o bem àquele aquem se dirige este ato.2 Logo, a repressão praticada pelo aparato estatal lusitano instaladona América visava o bem comum, tanto protegendo a sociedade daqueles que de uma formaou de outra a atrapalhavam, quanto dos que sofriam a repressão, já que esta é percebidacomo parte de um processo de educação e de preparação para o convívio social.

Já o vocábulo punição é definido pelo mesmo dicionário como o ato de castigar, 3 quepor sua vez origina-se da palavra casto, isto é, castigar é tornar alguém casto. Nos dois casosencontramos a preocupação típica das sociedades européias de Antigo Regime em manter aordem estabelecida. Nesse sentido, a punição e a repressão são encaradas como partes dafunção real de manter a ordem social, fazendo parte, portanto, da política de bom governo.4

Em ambos os casos, o sentido dos termos sofreu uma alteração substancial. SegundoAntônio Houaiss, punição está associado a “algo desagradável que alguém é obrigado a su-portar”, 5 enquanto que repressão está associada à “interrupção com utilização de violência”.6

Nota-se, portanto, que em nenhum dos casos os atos de punir e/ou reprimir, no sentido con-temporâneo do termo, está associado, como estava no século XVIII, a algum tipo de benefício.

O estudo de Michel Foucault (“Vigiar e punir”) caminhou na direção da afirmação do fimdo suplício, entre o final do século XVIII e início do século seguinte na França. Segundo Foucault,o suplício público passou a ser visto como uma prática bárbara, “gótica”, típica de temposremotos. Nas palavras do referido autor:

(...) em algumas dezenas de anos desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado,

marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetácu-

lo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.7

A análise foucaultiana atende bem para o caso francês. Contudo, o processo penal naAmérica portuguesa ainda continuou utilizando o suplício público como forma de repressão,

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especialmente em casos de natureza política. Se, por um lado, o suplício público de caráterreligioso recuou com as medidas pombalinas, aqueles que envolviam crimes de lesa majesta-de continuaram sendo punidos com brutalidade, atendendo a lógica do castigo exemplar eobjetivando a manutenção da ordem social.8

Entendemos que, pela ótica etimológica dos termos, a punição e a repressão no séculoXVIII deveria atender ao objetivo de endireitar o punido e não de elimina-lo. Nesse sentido,nossa análise caminha na mesma direção da análise proposta por Foucault. Entretanto, nãopodemos deixar de destacar que os ideais iluministas que forjaram as bases para o fim dosuplício público alcançaram a península ibérica e suas colônias americanas de forma bastanteheterogênea, misturando-se com idéias e comportamentos típicos do Antigo Regime.9

Nesse sentido, muitas das idéias que fundamentaram o fim do suplício público tiveramalcance limitado no universo ibero-americano do século XVIII. Tal fato ocorreu em função daunião Estado/Igreja, muito forte na tradição ibérica, e que transformava os crimes não somen-te em atentado contra o homem, mas também contra Deus.

Segundo Nilo Batista, as origens da união entre Estado e Igreja no que toca à repres-são e à punição remontam ao século XII, momento em que o Direito Romano é redescobertotanto pelos juristas ibéricos quanto pelos juristas canônicos como uma forma de reafirmar opaterfamílias (poder real) e o poder espiritual da Igreja Católica e ao mesmo tempo de negaro direito costumeiro. Nas palavras de Nilo Batista:

Para favorecer essa intervenção moral, o discurso do poder penal canônico podia aproximar-

se, como nenhum outro, dos deveres da obediência filial e das prerrogativas do pater, reforça-

dos a partir do século XII pelo direito romano redescoberto.10

Mais adiante, o mesmo autor destacou o aspecto dogmático desta visão jurídica aoafirmar que:

(...) o conjunto dos grandes textos (Instituta, Digesto, Código e Novelas) (...) chamou-se mais

tarde Corpus Iuris Civilis. Tal patrimônio normativo vê-se metodologicamente apropriado pelo

dogmatismo legal, que naquela conjuntura é quase uma religião do texto jurídico, ameaçada

por qualquer movimento que possa ultrapassar a esterilidade minuciosa do distinguo ou mes-

mo pelo costume.11

Segundo Anita Novinsky, o Regimento Interno que regia o Tribunal da Inquisição, deter-minava que o campo de ação deste incluía, deste de crimes contra a fé, como judaísmo, blas-fêmia, protestantismo, entre outros, até crimes contra a moral e os costumes da época, taiscomo bigamia e sodomia “com toda sua série de modalidades, e que se misturavam com ocampo religioso”.12

Completando esse quadro, o modelo processual penal que vigorou até o final do séculoXVIII e início do século XIX baseava-se na apresentação de provas que eram classificadasem: testemunhos e/ou confissões, escritos e objetos ou prova conjectural. Estes elementoseram trabalhados dentro do princípio da íntima convicção, que proporcionava aos acusadoresampla liberdade de interpretação e, conseqüentemente, de julgamento. Desta forma, defen-der-se era extremamente difícil, sendo mais fácil a confissão. Caso esta não surgisse de for-ma espontânea, a tortura estava prevista como um dos mecanismos legais para obtê-la.13

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Evidentemente que, tratando-se do século XVIII, as idéias iluministas não deixaram deter repercussão no âmbito jurídico, particularmente no que toca à reelaboração dos CódigosPenais. Conforme análise de Cezar Roberto Bitencourt, a segunda metade do século XVIIImarcou a passagem de uma visão absolutista da pena, que visava “evitar a luta entre os indi-víduos”, justificando-se pela idéia de agrupamento social. Tal perspectiva corrobora os estu-dos históricos mais recentes que entendem a sociedade de Antigo Regime como uma socieda-de extremamente compartimentada, onde cada grupo ocupava um espaço pré-determinado.

Ainda segundo Cezar Bitencourt a quebra dessa ordenação social colocava o indivíduona condição de rebelde e este “passava a não ser considerado mais como parte desse con-glomerado social (...) cuja culpa podia ser retribuída com uma pena”. Cezar Bitencourtaprofundou sua análise ao perceber que por traz desse discurso jurídico encontrava-se “umfundo filosófico, sobretudo de ordem ética, que transcende as fronteiras terrenas pretendendoaproximar-se do divino”. 14

Os argumentos até então apresentados não fariam sentido para a sociedade brasileirasetecentista se não levássemos em conta a presença de um Sistema Colonial.15 Russel-Wood,analisando os objetivos da Metrópole fez a seguinte colocação:

“Um dos principais objetivos da administração portuguesa no Brasil foi o de evitar distúrbios

sociais que pudessem colocar em risco a própria dominação metropolitana sobre a colônia

(...) revoltas e motins poderiam comprometer seriamente a arrecadação de impostos e a

própria manutenção do poder Real sobre essa região dispersa e afastada, cercada por mon-

tanhas e matos fechados”.16

A análise de Russel-Wood, portanto, caminhou na mesma direção das anteriormentecitadas, isto é, perceber o aparato jurídico-administrativo implantado na colônia, se não comouma reprodução literal de seu congênere europeu, com um objetivo similar, ou seja, o de evitaro conflito social e o de manter a ordem das coisas.

Controle social e repressão na sociedade do ouro

Uma vez feitas essas considerações mais amplas no que versa sobre os mecanismosde controle e repressão em terras lusas do Antigo Regime, seria o momento de olharmosmais de perto – como se usássemos uma lupa – para o exercício dessa justiça e do “bomgoverno” nas Gerais do século XVIII, dando ênfase para os mecanismos coercitivos que recai-am sobre uma parcela dessa sociedade considerada especialmente truculenta e perigosa: osnegros e seus descendentes. Objetivamos com isso, ainda que de forma bastante pontual,analisarmos um pouco dos mecanismos lusos de aplicação da justiça e do controle em áreasdo além-mar.

Como é sabido, a região das Minas Gerais, e, sobretudo a sua população, não deixari-am ao longo do período de exploração aurífera impressões muito animadoras para as autori-dades regias ou religiosas que se propuseram a pegar na pena para legar-nos descrições doque presenciavam ou ouviam dizer. Nesta perspectiva, é lapidar o dizer do jesuíta Antonil acer-ca do que se fazia nos arraiais auríferos: “E daí vem o dizer que tudo que passo a Serra daMantiqueira, ai deixou dependurada ou sepultada a consciência”17.

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Não podemos perder de vista, contudo, que a documentação compulsada muitas vezesencontra-se impregnada pelo que o historiador italiano Carlo Ginzburg definiu como filtrosculturais. Ou seja, apresentam naturalmente uma forte tendência à distorção e exageros porparte desses letrados ao discorrerem sobre a população que se encontrava sob a sua tutela.Essa postura pode ser atribuída a dois vetores: uma busca de legitimidade nas açõesrepressoras, tendo como aval à alegação de truculência e desgoverno; e a existência declivagens marcantes nos valores e visões de mundo envolvendo, sobretudo as “camadas letra-das” e as “camadas subalternas”, ainda que essas diferenças não anulem a ocorrência de umintenso diálogo entre ambas.18

Desta forma, o Conde de Assumar fora um dos maiores detratores da região aurífera,sinalizando constantemente para a necessidade de maior rigor por parte de El-rey para ocontrole de seus domínios. Em seu conhecido discurso político, para justificar a maneira comque procedeu para debelar a revolta ocorrida em 1720 que inclusive excederia suas atribui-ções, assim se reporta à população das Minas:

E bom para que, como para cessar o ruído daquele lugar, costumam e praticam os mineiros

arrasar a terra, e dar sobre ela algumas catas, desse modo também El-Rei sobre os podero-

sos, não digo que os arrasasse, mas ao menos os tirasse fora da terra, para que nesta parte

acabassem os movimentos, porque enquanto eles cá assistirem hão de fazer, ou o diabo por

eles, que pelas bocas das suas catas, com por bocas do inferno (que com o inferno de

Ovídio, que avizinha ao ouro), esteja atualmente brotando a soberba insolências, o poder

liberdades, a inobediência [sic.] motins, bulhas o desgosto, tumultos a paixão, estrondos a

ira19.

Além da já consagrada associação da população à desordem e ao vício, percebe-sena pena deste letrado, um funcionário laico, uma variação intrigante: por algumas vezes emseu texto há alusão das Minas Gerais ao inferno, matizando sua população como suscetível àstentações e desmandos do diabo. Interessante notar como essa visão demonizadora em tor-no da colônia iria perdurar e mesmo transcender o discurso unicamente religioso. Decerto, o“inferno secular” de Assumar seria diferente do representado por jesuítas e demais autorida-des religiosas, ávidas em extirpar os pecados do Brasil, até porque, para o primeiro, a “dana-ção” viria sob a égide da justiça do soberano. Porém, o que nos chama atenção foi a escolha,ainda que para efeito de figuração retórica, dessa imagem já há tempos explorada, sobretudopela Igreja.20 Se tal zelo estava direcionado especialmente para os poderosos como delimitaAssumar, podemos deduzir que sobre a grande população de africanos e afro-descendentespairava um controle e uma preocupação infinitamente maior, proporcional ao perigo que taisindivíduos supostamente representavam para a ordem imposta por Deus e sancionada pelorei e seus representantes.

Inicialmente, não podemos perder de vista que uma das marcas que talvez chamassemais atenção no espaço urbano das Gerais seria a existência de verdadeiras “cidades ne-gras”, com o contingente de africanos e mestiços atingindo indelével superioridade numérica.Prova capital da citada superioridade seria patenteada pelo censo do ano de 1776, onde,somados, negros e mulatos atingiriam o exorbitante percentual de 77,9% das 319.769 pesso-as que habitavam a região mais populosa da colônia nos setecentos, sendo o percentual ex-clusivamente de negros nada menos que 52,2%.21 Uma vez nas Minas, esses escravos eram

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responsáveis pelo engendramento de um complexo e multifacetado jogo de relações, tantocom seus pares quanto com a elite branca, que por seu turno via a supracitada disparidadenumérica sob o crivo da possibilidade de um sem número de sedições e da necessidadeplena de controle.

Nesta perspectiva, a proeminência da população africana e afrodescendente nas Minas,suscitava uma série de medos no imaginário das elites brancas,22 que viam de formaambivalente as possibilidades de materialização dos mesmos, ainda que em termos concre-tos tal fato, no mais das vezes, se faça remoto. Mesmo assim, a ocorrência de um forte senti-mento de insegurança abria margem para a existência de um significativo aparato coercitivo.Essas medidas – tão numerosas que dificilmente daríamos conta de sua totalidade – podemser visualizadas tomando por base uma série de bandos, alvarás e determinações, cartasrégias, deixando-nos uma sintomática pista sobre suas várias vertentes.

Como fruto dessa constante preocupação chegaria até nós numa carta régia endereçadaao Conde de Galveas, governador da Capitania das Gerais, datada do ano de 1734, emresposta aos alertas deste governante acerca do expressivo e assustador número de negrose mulatos forros que perambulavam pelos arraiais auríferos – uma espécie de ônus político dodinamismo econômico que as atividades mineradoras traziam a reboque.23 Sobre esta maté-ria o soberano seria bastante incisivo:

(...) se devia dar alguma providência com vosso parecer e se devia dar a mesma acerca dos

mulatos forros que vivem também em grande liberdade (...) e para se remediarem as desor-

dens que podem causar os sediciosos e vadios, ordenais aos oficiais dos arraiais e freguesi-

as desse governo que todas as vezes que alguns dos sobreditos cometerem delito pode sem

escândalo vo-los [sic.] remeterem presos24.

Não seria por mero acaso, nessa perspectiva, que os negros, considerados por exce-lência o elemento desestabilizador dessa sociedade, seriam os primeiros a figurar o desfilede “degenerados” que compunha a determinação da pena de morte.25 A propósito de perce-bermos o peso dessas medidas e suas motivações, podemos elencar em linhas gerais osprincipais medos que esses “agentes da desordem” representavam para as elites.

Dentre esses agentes estavam as negras de tabuleiro, provavelmente o mais “criativo”de todos, uma vez que para as autoridades pairava sobre suas ações as mais variadas for-mas de subverter a ordem imposta, sendo lembradas pelo exercício de múltiplos delitos. Alémda atuação das negras de tabuleiro, esse comércio de produtos geralmente baratos e deconsumo variado era encetado em pequenas vendas, mais tipicamente sobre os cuidadosfemininos de escravas ou forras.26 O “viajante” John Mawe seria o dono de uma rica descriçãodesses locais, destilando o mau-humor e o repúdio que muitas vezes acompanhava essesindivíduos em seus relatos:

Dá-se o nome de venda, a uma espécie de loja de regatão, onde se vende vários artigos, tais

como, cachaça, milho e, algumas vezes açúcar. Seus donos têm a pretensão de que elas

correspondem a uma hospedaria, mas são desprovidas de coisas necessárias; os viajantes

que trazem consigo camas e trem de cozinha preferem sempre pousar em algum rancho,

mesmo numa cocheira. Estar ao abrigo da chuva e do orvalho, é tudo aquilo quanto se pode

esperar de hospedarias neste país.27

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Sobre essas mulheres recaíam as acusações de serem as principais responsáveispela distorção nas relações entre os senhores e seus escravos no que tange à entrega dosjornais, como expresso num bando que acusava “o grande prejuízo que se segue de havervenda no morro pobre ouro fino e por todo o morro branco e por todas as mas áreas de mine-rar pelo dano que recebem os homens na falta dos jornais de seus escravos pelos gastoscom os (ileg.) que se lhe vai perder pela lavra”.28 Desnecessário mencionar que essa preocu-pação fundamentada na diminuição da renda da camada senhorial faria com que essas deter-minações fossem reiteradas de forma bastante freqüente, colocando em primeiro plano a pos-sibilidade do castigo com o fito de arrefecer os ânimos dos vendeiros, a exemplo de um ban-do de 1714 que enfatiza a possibilidade de aplicação de penas corporais para que “nenhum[sic] negro ou pardo que seja escravo ou livre ande vendendo coisas de comer”.29

Para além desses desvios de jornais essas vendeiras e negras de tabuleiro eram igual-mente responsabilizadas pela cooptação de escravos fugidos, tornando seus estabelecimen-tos e caminhos um ambiente propício para ludibriar e imprimir mais uma forma de prejuízo aosproprietários, e como desdobramento elementar, à própria lógica do poder embutido nestarelação.30 Grande palco de vícios, essas vendas também eram repudiadas por representaremum espaço onde os ânimos se acaloravam, gerando brigas, “batuques”, e também altos índi-ces de prostituição. Esse despertar de paixões, ameaçando o “sossego público” ficaria pa-tenteado em outro bando contrário a esse tipo de comércio: “pior, com toda a publicidade temvendas abertas com escravos e pardos (...) de cuja ação haverá amores e junto quizila [sic.]”.31

Nesse despertar de “amores e quizilas”, a postura dos donos das vendas em se valer dessasmulheres para aumentar suas rendas, mediante a negociação de seus próprios corpos, seriauma prática deveras recorrente.

A feitiçaria pode também ser aqui brevemente indicada como mais um elemento nacomposição desse ambiente hostil às elites brancas. O padre Antonil já havia chamado aten-ção para a necessidade dos senhores serem moderados – ou pelo menos justos – no casti-gar, sob a pena de ao procederem de modo diverso, os escravos pudessem “tirar a vida aosque lhe dá tão má, recorrendo (se necessário) a artes diabólicas...”.32 O zeloso inaciano, emseu muitas vezes inglório intento de moldar o sistema escravista à moral cristã, exortava ossenhores ao cuidado com a salvação de suas “peças” e, em última instância de seu própriocorpo e alma, ratificando em outro trecho de sua obra os perigos da feitiçaria negra, conferin-do a esses indivíduos quase uma aptidão natural para o uso desse tipo de expediente, aosublinhar que não faltava “entre eles mestres insignes nesta arte”.33

No ano de 1791, em Ouro Preto, um negro angolano chamado Caetano da Costa sofre-ria uma devassa civil em que era acusada de, com feitiços, vitimar três pessoas – o que incluíasua própria mulher – os magistrados consideraram Caetano culpado, e, em consonância como trato previsto para feiticeiros nas “Ordenações Filipinas”, fora determinado açoite públicocom baraço e pregão pelas ruas de Vila Rica, além de três anos de galés realizando trabalhosforçados.34 Aqui, mais uma vez, estariam entrelaçadas as preocupações terrenas e celestespara a manutenção do “bom governo” nas áreas de dominação lusas.

Por outro lado, o mundo tangível bem mais que o sobrenatural, despertava especial te-mor na camada senhorial. Doravante seriam – por motivos óbvios – os quilombos e as possí-veis ou reais rebeliões de negros as principais formas de colocar em risco o “status quo”,35

fazendo desses delitos matéria premente nas várias determinações que tentavam afastar essa

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ameaça. Acerca dos quilombos, chama inicialmente nossa atenção a veemência que pairavasobre as práticas de repressão no que versa sobre o discurso oficial, explicável por tratar-sede uma das ações mais diretas de negação do sistema escravista. Embora, estudos maisatuais venham a ventilar nossos conhecimentos sobre as práticas de fuga entre os escravos,passando a percebe-las também enquanto uma poderosa tática de negociação, trazendo àbaila uma modalidade de fuga definida como “reivindicatória”, onde os negros valiam-se cir-cunstancialmente desse expediente com o fito de conseguir melhores condições, como umamelhor alimentação, por exemplo.36 Essa realidade de violência imputada, sobretudo pelasautoridades ficaria expressa através das acusações que pairavam sobre os quilombos, sem-pre lembrados por ameaçarem a ordem, efetuando toda guisa de atrocidades como homicídi-os e roubos.

Um bom exemplo de que as autoridades régias tendiam, em vários momentos, a umcerto exagero ao descreverem as ações dos negros fugidos é uma carta de 1746, onde Go-mes Freire de Andrade menciona o roubo de escravos por parte dos quilombolas, que nãosatisfeitos continuaram agindo, “matando os senhores, violentando-lhes as famílias e quei-mando-lhes as casas”37. Neste sentido, é digna de nota uma determinação régia de 1741 apropósito de punir escravos capturados:

Eu, El-Rei, faço saber aos que este alvará virem que, sendo-me presentes os insultos no

Brasil cometem os escravos fugidos, vulgarmente se chamam calhandolas [sic.] passando a

fazer o excesso de se juntarem em quilombos, e sendo preciso acudir com remédios que

evitem esta desordem: hei por bem que a todos os negros que forem achados em quilombos,

estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a

letra F, que para esse efeito haverá nas Câmaras; e se quando for executar essa pena for

achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha, tudo por simples mandando do

juiz de fora ou ordinário da terra ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela

notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido, antes de entrar para a cadeia.38

Aproximadamente dez anos depois, o autor anônimo de uma proposta para a criação deum seguro para os escravos nas Minas menciona o paradoxal efeito da marca a ferro para osnegros fugidos, servindo muito mais como fonte de orgulho e prova de coragem entre seusiguais. Para dar fim a esse tipo de sentimento, o autor propunha que os quilombolas captura-dos deveriam ser rejetados [sic.] “de um pé pelo nervo do calcanhar (...) por o rústico viver desemelhante gentilidade não se lhe pode há tantos anos aceitar remédio que lhe fosse útil, e sótem mostrado a experiência e algum exemplo que só o rejeto nos pés”.39 Dilaceração doscorpos e pulverização do exemplo no lócus social através das sentenças, como já dito aqui,duas práticas bastante caras às normas de justiçamento do Antigo Regime40 que não poderiadeixar de serem valorizadas na esfera do discurso que tornava oficial a repressão a essaspessoas consideradas tão “vis” e “perigosas” para o bem público.

Apesar da violência expressa nas leis, e mesmo aplicada por vezes nas práticas derepressão aos quilombos, não podemos perder de vista, logicamente, que esse negro confi-gurava-se enquanto um investimento para seu proprietário, e nesta perspectiva podemos de-duzir que a mutilação deveria ser menos freqüente do que a documentação oficial carrega nastintas. Sem contar que essa violência excessiva atingia frontalmente a percepção ideológicada escravidão enquanto uma empresa cristã. E seria justamente neste aspecto que o conde

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dos Arcos iria ater-se ao repreender com duras palavras os oficiais da câmara de Marianaque no ofício anteriormente mencionado ainda requeriam a aval régio para castigar os negrosfugidos com a famosa pena de corte do calcanhar, acerca desta matéria o conde ordena:

Quanto a aprovação de poderem picar o nervo dos pés dos escravos fugidos, em uma pala-

vra digo que isto é uma barbaridade indigna de homens que tem o nome de cristãos e vivem

ao menos com a exterioridade de tais e mereciam ser asperamente repreendidos pela ousa-

dia de assim o requererem, supondo que V. Majestade era rei e senhor capaz de lhes facultar

semelhante tirania41.

Outros dois aspectos que nos chamam atenção no que versa sobre as práticas de re-pressão aos negros, e que obviamente estava circunscrita aos quilombos, seria o carátersumário dos julgamentos, dado a própria urgência de através do sentenciamento exemplardesencorajar novas investidas, como é possível percebermos na supracitada ordem régia de1741. Essa faceta também se faz patente no próprio Regimento dos Ouvidores Gerais do Riode Janeiro, que em 1669 definiria em seu capítulo 6:

Nos casos de crimes dos escravos e índios tereis alçado em todas as penas degredos e

açoites que aos mal feitos pelo onde são postos, e nos casos de morte julgueis com o gover-

nador e provedor da fazenda da até morte inclusive e no que dois confirmarem poreis a

sentença, e a dareis a execução sem apelação.42

Para além dessa justiça de natureza mais imediata, soma-se a existência de uma dife-rença de tratamento bastante tênue dispensada por parte das elites aos negros escravos eaos forros, recaindo sobre os manumissos, a rigor, o peso de práticas que visivelmente osremetiam novamente à condição de escravos. Essa dramática generalização aparece em umbando de 1716, onde o suplicante – um negro forro não nomeado – tentava afirmar por meiodo mesmo a possibilidade de um tratamento consoante com a sua atual condição, recebendoo parecer favorável de ser “conservado na sua liberdade por haver dado o seu valor a seudono e a receber deste carta de alforria”.43 Ou seja, esse caso torna-se elucidativo se pensar-mos que além da “prova capital” da aquisição da liberdade, via carta de alforria, muitos des-ses forros acabaram por serem obrigados a afirmar constantemente a sua nova condição,valendo-se inclusive do aparelho jurídico para atenuar a opressão de uma sociedade que tinhana identificação da cor uma das principais “provas” da truculência e da sedição.

Acerca da quantidade de negros que formavam os quilombos das Gerais há uma inte-ressante idiossincrasia entre os estudos sobre do tema e muitos registros atinentes à docu-mentação oficial. Neste sentido, fica subentendida uma forte tendência por parte da elite emmaximizar o número de “calhandolas”, como na menção à ocorrência de um quilombo em SãoJoão Del Rei que contava com a presença de “mais de mil negros”.44 Em 1747, o governadorem carta expedida mencionaria a descrição da invasão a um quilombo, definindo como “pe-queno”, do qual resultaria a morte de “vinte e tantos e presos sessenta e tantos”.45 Esse con-traste pode ser explicável pelo medo produzido a partir da própria necessidade de funciona-mento da economia mineradora, onde o sistema escravista aguçava a imaginação das elitesno sentido de muitas vezes superdimencionar os perigos e o potencial de destruição que osquilombos representavam à ordem vigente.46 Esse tipo de postura, como será mostrado em

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seu tempo, foi bastante recorrente no que diz respeito às denuncias que envolviam os negrose o contato com o sobrenatural.

Um “perigo” que também expressa de forma direta essa realidade seriam as rebeliõesescravas – muito mais imaginárias do que reais47 –, sendo registradas geralmente na penados “portadores do saber” em descrições vagas e sincopadas. Como ocorre com uma malo-grada rebelião em Ribeirão do Carmo, tida como uma “confederação de negros minas”, queobjetivavam nada menos que “matarem os brancos”, 48 embora não haja menções mais amiú-de de como os negros iriam realizar esse intrépido plano. Um outro dado interessante atinentea este acontecimento seria o fato dessa possível insurreição ter sido delatada por outros es-cravos: a despeito do que muitos senhores pensavam os escravos não se organizavam comoum grupo homogêneo, doravante possuíam rivalidades bastante acirradas, algumas delasremissíveis à própria África.49 Outra rebelião registrada com lacunas consideráveis teria ocor-rido em 1735, sendo definida como um “levante de negros” em Catas Altas, onde se registrouinclusive a existência de mortes efetuadas por esses negros rebelados.50

Sobre este acontecimento, Carla Anastásia, após elencar outras rebeliões escravastipicamente de envergadura bastante limitada, sendo no mais das vezes desbaratadas antesde sua eclosão, o que insistimos no argumento, contrasta diretamente com a forma com quemuitas vezes as autoridades descrevem tais mecanismos de negação do escravismo, tam-bém enfatiza que, como reflexo, a citada rebelião acaba, por acarretar o fomento da pena demorte, com o propósito de minimizar esse presente medo das elites, onde segundo o discursooficial, “a liberdade com que vivem os escravos nessas Minas, sendo principal motivo de suasdesordens o verem que não se punem os atrozes delitos que escadalosamente cometem”.51

Embora sejam recorrentes relatos desta natureza, em estudo acerca dos padrões decriminalidade na capitania, Magalhães conclui que o índice de registros de rebeliões organi-zadas por negros, ou mesmo de violência individual dos escravos contra seus senhores erabastante diminuto.52 Neste sentido, como já fora mencionado, o medo e a insistência em regis-trar essas insurreições seriam de muitas formas mais fruto de um imaginário cunhado a partirdos principais matizes responsáveis pela formação da sociedade colonial.

Interessante pensar, nessa perspectiva, como esse sentimento de insegurança iria ecoarde forma extremamente viva, alimento os medos dos sempre minoritários grupos de brancospossuidores de escravos e forçando o poder coercitivo que funcionava ao nível do Estado àconstante vigilância e preocupação. O que faz com que no início do século XIX o funcionáriorégio Joaquim Marrocos, transferido para o Brasil com a instalação da corte, registre nascopiosas cartas que remeteu aos seus familiares em Portugal o sempre vivo medo da suble-vação dos negros, “materializado” através de assassinatos e toda gama de expressões deviolência contra os brancos. Segundo Marrocos, tais ações eram recorrentes, “assim comopretas matarem seus senhores com veneno: a tempos [a pena capital] é necessária a estacanalha, aliás está tudo perdido”.53

Considerações finais

Procuramos imprimir a esse artigo, que na verdade nos possibilita apenas o vislumbrede uma das faces desse multifacetado espelho, uma dupla linha de abordagem. Primeiramen-te, objetivamos discutir como o Estado luso organizava seu sistema de justiça e punição, dia-

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logando de maneira bastante direta com o que acontecia no resto da Europa do Antigo Regi-me, ou seja, privilegiando o mecanismo de execuções exemplares, calcadas no mais dasvezes em grandes espetáculos públicos e expondo o corpo dilacerado de seus delinqüentes,em prol da afirmação da idéia de “bom governo”.

Nos domínios d’além-mar essas formas de justiça mantiveram parte significativa de suaessência, porém, com necessidades de uma série de adequações e especificidades para agarantia do sucesso da empresa colonizadora. Criava-se, com isso, uma sociedade com for-tes matizes do Antigo Regime europeu, mas que guardava simultaneamente uma realidade pró-pria, por assim dizer várias expressões de uma espécie de “Antigo Regime nos Trópicos”.54

As ações jurídico-administrativas da Coroa em terras brasileiras devem, portanto, serentendidas ao mesmo tempo como um prolongamento da realidade metropolitana aplicadaao universo da colônia. Tal fato implica em reconhecer a diferença do estatuto de colônia parao estatuto de parte do Império português. O Brasil era sim parte de um Império, mas de umImpério Colonial, Ultramarino, que reconhecia as diferenças de tratamento entre reinol e colono.

Talvez dessa maneira é que podemos vislumbrar as ações e impressões que pairavamsobre a sociedade mineira do século XVIII, sob o crivo de uma variedade de funcionários aserviço do rei e de Deus. Nessa perspectiva, situamos os constantes mecanismos de repres-são que recaíam, em especial, sobre os africanos e seus descendentes, fossem “negras detabuleiro”, quilombolas ou simplesmente pessoas que conseguiram garantir a sua liberdade.A necessidade de garantir o “bom governo” e a tensão sempre presente na pena das autorida-des que serviram nesta região tornariam especialmente viva mais uma das metáforas de nos-so Conde de Assumar, quando compara os arraiais auríferos à ” extraordinários labirintos” .

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NOTAS:

* Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Tutor de História na Educa-

ção do Consórcio CEDERJ – Pedagogia Unirio.** Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Faculdade

de Minas (FAMINAS) em Muriaé e do Departamento de História das Faculdades Integradas de

Cataguases (FIC).1 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história das violências nas prisões. Tradução: Lígia Ponde

Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1983.2 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Lisboa: Oficina de Pascoal da Silva, 1720, p.

263.3 Idem, p. 828.4 Sobre a política do bom governo em Minas Gerais durante o século XVIII, cf. CAVALCANTI, Irenilda.

Foi vossa majestade servido mandar: representações e práticas do bom governo nas cartas admi-nistrativas de Martinho de Mendonça (MG, 1736-1737). Rio de Janeiro: UFRJ, Dissertação de Mestrado,

2004.5 HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.2336.6 Idem, p. 2433.7 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 14.8 Sobre a severidade das punições de cunho político e suas justificativas cf. PORTUGAL, Pedro de

Almeida. Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720.

(estudo crítico: Laura de Mello e Souza). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994.9 Para uma análise mais detida do caso da América espanhola cf. SOLER, Ricauter. Universo inte-

lectual Del ideário ilustrado iberoamericano. In: PIZARRO, Ana (org.) América Latina: palavra, litera-tura e cultura Vol. 2: emancipação do discurso. Campinas: UNICAMP, 1994, pp. 101-116.10 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2º ed. Rio de Janeiro: Revan,

2002, p. 164.11 Idem, p. 167.12 NOVINSKY, Anita. A inquisição. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 56.13 GONZAGA, João Bernardino. A inquisição em seu tempo. 8 ed., São Paulo: Saraiva, 1994, pp.

30-31.14 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, parte geral, Vol. 1. 9º ed. São Paulo: Sarai-

va, 2004, pp. 74-75.15 Para uma análise mais aprofundada sobre o sistema Colonial cf. NOVAIS, Fernando. Aproxima-

ções: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosacnaify, 2005.16 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Precondições e precipitantes do movimento de independência da Amé-

rica portuguesa. In: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas aborda-gens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001, p. 321.17 ANTONIL, André. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Melhoramen-

tos, 1923, p. 213.18 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pelaInquisição. São Paulo: Cia das Letras, 1998. pp. 18 et. seq.19 PORTUGAL. op. cit. p. 62.20 SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito. Aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo

Horizonte: Ed. da UFMG, 1999. p. 58.

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21 Cf. IGLESIAS, Francisco. Estrutura social do século XVIII. In: Anuário do Museu da Inconfidência,

, v.9, 1993. p. 55.22 Nas palavras de Laura de M. e Souza: “conforme a população escrava – nas Minas, em muito

superior à branca –, o terror crescia”. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII.Rio de Janeiro: Graal, 1990. p. 108-109.23 Entre outros autores conferir PAIVA, Eduardo F. Escravidão e universo cultural na Colônia. MinasGerais, 1716-1789. Belo Horizonte: UFMG, 2001.24 Arquivo Público Mineiro (doravante, APM). Seção Colonial 44. fls. 9-9v.25 Cf. Junta de justiça para a imposição e execução da pena de morte dos negros, bastardos ecarijós. In: RAPM. Vol. IX, 1903. pp. 347-348. grifo nosso.26 Cf. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória Cotidiano e trabalho da mulher em Minas Ge-rais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. p. 43

p. 43.27MAWE, John. Viagem ao interior do Brasil. [1812]. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1978.

p.111.28 APM. CMOP. Cód. 6 fl. 3129 APM. SC. Cód. 9 fl. 6v.30 Cf. Figueiredo. op. cit. p. 54.31 APM. CMOP. Cód. 6 fls. 8-8v.32 Antonil. op. cit. p. 95.33 Ibidem p. 93.34 Arquivo Histórico do Pilar. Emenda por feitiçaria: Caetano da Costa. Auto 9470. códice 449. fls. 14v-15.35 Cf. ANASTASIA, Carla. Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do

século XVIII. Belo Horizonte: C. Arte, 1998. p. 125.36 REIS, João J. e SILVAS, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista.

São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 63 et. seq.37 Apud: GUIMARÃES, Carlos M.. Mineração, quilombos e Palmares. Minas Gerais no século XVIII. In:

João Reis. Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

p. 55. Além de SOUZA, Laura de Mello e. Violência e práticas culturais no cotidiano de um expedição

contra quilombolas. Minas Gerais, 1769. In: Reis. Liberdade... p. 194.38 VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides Mineiras. 1664-1897. Belo Horizonte: Fund. João Pinhei-

ro, 1998. vols. 1 e 2. p. 271. grifo nosso.39 Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na Américaque se fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomouposse em fevereiro de 1749. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. p. 533 et. seq.40 Cf. Foucault. op. cit. passim41 Informação nobre do conde. 10/8/1756. Devo esta referência ao professor Luciano Figueiredo,

com meus sinceros agradecimentos.42 APM. SC 02 fl. 100v.43 APM. SC 09 fls. 48 e 48v.44 Efemérides... vols. 1 e 2 p. 483.45 Ibidem p. 479.46 Cf. RAMOS, Donald. O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do século XVIII. In: Reis.

Liberdade... p. 165. Um outro autor que ratifica esse expressivo número de quilombos, embora como

veremos com uma abordagem diferente da apresentada por Ramos, é Carlos Guimarães, que esti-

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ma o número de 160 quilombos reprimidos; GUIMARÃES, Carlos. Mineração, quilombos e Palmares.

Minas Gerais no século XVIII. In: REIS. Liberdade... p. 141.47 Cf. Reis e Silva. op. cit. p. 70.48 Ordem do Sor Gov or e Capan. Genal para o superintendente Jozeph Rabello Perdigão, tirar devassado levantamento que intentarão os negros minas do Ribeirão abaixo. In: RAPM. Vol.: II, 1896 pp.787-788.49 Cf. Reis e Silva. op. cit. pp. 70-71.50 Efemérides... vols. 3 e 4 p. 1102.51 APM SC cód. 46. fl. 27. Apud: Anastasia. op. cit. p. 135.52 Magalhães. op. cit. p. 123 et. seq. Conferir também SOUZA, Lílian Dias de. Capitães-do-mato emMariana (1711-1822). In: LPH/Revista de História. Mariana: UFOP. Nº 8, 1998/1999. p. 28.53 Cartas de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, escritas no Rio de Janeiro 1a sua família em Lisboa,de 1811 a 1821. In: Anais da Biblioteca Nacional. RJ, 1934. vol. 56. Carta 8, p. 40 e carta 33 p. 111.54 Para este conceito conferir GOUVEA, Maria de Fátima (et. al.) O Antigo Regime nos Trópicos: adinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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Eliane Sebeika Rapchan *

Imigração e Identidade:Limites e possibilidades de reprodução da cultura e memória no Brasil

O que une os imigrantes à sua terra natal? Tais vínculos se reproduzem em seus descen-dentes? Como se constituem a memória e a lembrança dos imigrantes quanto a seu país deorigem? O que se esquece, o que permanece e o que se atualiza com o passar do tempo?

Evidentemente as respostas a essas questões variam de acordo com os perfis dos gru-pos de imigrantes, suas origens, destinos e contextos. O texto a seguir apontará alguns cami-nhos para se pensar sobre o caso da imigração lituana para o Brasil, especificamente paraSão Paulo, considerando o recente reavivamento dos interesses de lituanos e descendentescom relação ao seu país de origem que tem se manifestado por meio do crescimento deviagens, do número significativo de solicitações de cidadania lituana e do interesse em viver etrabalhar na Europa. Para isso, será importante recuperar alguns dados da história recente daimigração lituana para o Brasil.

O fenômeno da imigração é complexo e tratar do tema no Brasil não é fácil: a primeiradificuldade que se apresenta para a realização de qualquer reflexão sobre os imigrantes euro-peus no país (pode-se aí incluir, também, a Argentina) liga-se à pequena quantidade de refle-xão científica disponível e à supressão de sua importância enquanto fenômeno social ou cultu-ral: a imigração passou a ser tema presente nos trabalhos acadêmicos. As análises sociológi-cas que se tornaram clássicas acerca da modernização do país priorizaram a reflexão, semdúvida importantíssima, sobre relações raciais e preconceito contra os descendentes de afri-canos, mas ignoraram os destinos dos europeus.

Segundo Bóris Fausto (1991: 12-14), a questão imigratória não só é tratada como se-cundária mas também aparece, de forma implícita ou explícita, como uma história de final feliz,o que não condiz com os relatos dos sujeitos envolvidos. Fausto defende a realização deestudos sobre os imigrantes no Brasil sob o argumento que eles podem iluminar questõescentrais sobre relações entre lealdade étnica e lealdade de classe social, preconceito,integração cultural e formas de reprodução da identidade cultural.

Os lituanos imigrantes não escaparam, no Brasil, da inclusão nesse quadro geral. Háregistros isolados da presença de lituanos no país na segunda metade do século XIX. Destaleva, a maioria parece depois ter imigrado para outros países como os EUA (Chicago) e aArgentina (CCILB, 1976: 7). O primeiro registro de chegada massiva dos lituanos no Brasil(aproximadamente 800 pessoas) deu-se no ano de 1888, no Rio grande do Sul. As informa-ções presentes nos fragmentos de correspondência trocada, às quais tive acesso (CCILB,1976: 21-24), ratificam as hipóteses de Michel Hall (citado por Fausto, 1991) acerca das terrí-veis condições em que viviam os imigrantes europeus que chegaram ao Brasil no período(RABUSKE in CCILB, 1976: 22).

Os problemas enfrentados estendiam-se do desconhecimento completo da língua portu-guesa e do choque cultural. Para aqueles encaminhados às fazendas de café, somaram-se as

LITUANOS E SEUS DESCENDENTESREFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE NACIONAL NUMA

COMUNIDADE DE IMIGRANTES

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dificuldades decorrentes da inclusão de uma população de tradição marcadamente campo-nesa (PILINKAITE-SOTIROVIC, 2005) num sistema de colonato (MARTINS 2002, STOLCKE1986), marcado freqüentemente por exploração, pobreza extrema dos trabalhadores, pelo sis-tema de barracão e por contratos injustos, quando não descumpridos.

No período de 1920-1939 migraram para o Brasil muitos lituanos que saíram de territóri-os ocupados pela Polônia ou que já se encontravam em outros países europeus em busca detrabalho. Por isso, muitos lituanos foram registrados no Brasil como russos ou poloneses emuitas pessoas de outras origens foram registradas como lituanas (CCILB, 1976: 7). Aquelesprovenientes das áreas rurais viam na imigração a saída para manter a condição camponesa.O grande número de filhos, a escassez da terra, a fome e a instabilidade política ameaçavamas possibilidades de reprodução da unidade familiar sem fragmentá-la. Desse modo, a pro-paganda das agências de imigração anunciando terra abundante, clima ameno e fertilidadeda terra, dizia-se que no Brasil nasciam pães em árvores, aguçando o imaginário e estimulan-do famílias extensas inteiras a arrendar seus pequenos lotes e aventurar-se por aqui.

Assim, por todas essas razões, os dados sobre imigração lituana para o Brasil são esti-mados, até 1937, em aproximadamente 37.620 pessoas. Após a Segunda Guerra Mundial,registrou-se a entrada de mais 20 mil lituanos no país (CCILB, 1976: 7). Em 1996, estimava-seque os lituanos, somados a seus descendentes correspondiam a um contingente de aproxi-madamente 100 mil pessoas (Lithuania in the World, 1996: 12).

Entretanto, a reflexão sobre as relações entre identidade e imigração exige a considera-ção de outros fatores além da origem nacional comum. O caso específico da imigração lituanapossui tanto aspectos que contribuíram para aglutinar esforços em favor da manutenção dosvínculos entre os imigrantes lituanos e seus descendentes espalhados pelo mundo com o paísnatal como, na direção contrária, produziu outros que concorreram para a diferenciação dosimigrantes entre si e entre eles e seus conterrâneos.

A segunda maior colônia lituana do mundo localiza-se na cidade de São Paulo, no bairrode Vila Zelina (Lithuania in the World, 1996: 12) e sua história tem quase setenta anos. Suascondições de formação, na mesma medida em que catalizaram forças identitárias, excluíramgrupos em função da força de seus sinais diacríticos (ver Cunha, 1986) como o catolicismo, ocultivo da língua liguana e a residência no bairro. Ou seja, os imigrantes lituanos que, poropção ou necessidade, moravam em bairros distantes, os não católicos, os comunistas, soci-alistas ou simpatizantes do ideário de esquerda do movimento operário, os que buscavamintegração mais rápida à sociedade brasileira ou, ainda, participavam animadamente de ou-tros grupos de imigrantes, como os russos, ficaram de fora.

Ao mesmo tempo, não é difícil perceber que os imigrantes de determinado país diferen-ciam-se daqueles seus compatriotas que permaneceram no país de origem. Diferentes con-textos históricos, sociais, econômicos e políticos, distintas trajetórias pessoais e mesmo sen-timentos e representações diversas com relação a parentes, língua, práticas culturais, históriae memória contribuem para diferenciar pessoas de origem nacional comum. No entanto, exis-tem situações que podem contribuir com a reunião desses sujeitos que tendem à diferencia-ção e experimentaram uma delas.

Os paradoxos da independência da Lituânia

Desde aproximadamente 1949 até 11 de Março de 1990, quando a independência daRepública da Lituânia foi proclamada, as organizações de lituanos ao redor do mundo con-

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centraram esforços com o intuito de reproduzir a cultura lituana for a do seu território paraalimentar um núcleo de resistência e luta contra a presença soviética no país. Ou seja, estabe-leceu-se uma relação causal direta entre cultura nacional e independência política concebidade tal modo que a ausência de uma comprometeria a reprodução da outra.

Dentre as repercussões desse movimento, algumas merecem destaque. Uma delas é oparadoxo produzido pelo aprofundamento do contato entre lituanos espalhados pelo mundo,engajados nos movimentos pró-independência, e o isolamento das comunicações entre osimigrantes e seus parentes que permaneceram na Lituânia devido aos períodos de censurana imprensa e nos correios. Daí que sujeitos provenientes de uma sociedade predominan-temente rural fundada em laços comunitários viram-se não só diante do desafio de sobre-viver em outros países e outras culturas, freqüentemente em meios urbanos, mas tambémde criar uma espécie de “comunidade internacional” fundada sobre bases de um senti-mento nacionalista.

Assim, por meio da Comunidade Lituana Mundial, aprofundaram-se os vínculos entre ascolônicas, seja pela via da produção e circulação de documentos e pela participação em ativi-dades realizadas pelos comitês de imigrantes cujas propostas circulavam pelas colônias domundo todo estimulando-os a participar do movimento pela independência da Lituânia, sejapelo material chamado “samizdat” (textos produzidos por movimentos dissidentes organiza-dos em países pertencentes à então União Soviética) e que saíam secretamente da Lituânia(OLESZCZUK, 1985).

Segundo Oleszczuk (1985), a atividade de produção dos “samizdat” iniciou-se na Lituâniaem 1972, tendo ali sido particularmente próspera e contínua até a independência. Além disso,o movimento dissidente lituano parece ter atingido a cifra de centenas de milhares de ade-sões, dado o número de assinaturas em petições não oficiais relatadas para a Catedral deKlaipeda (OLESZCZUK, 1985). O autor caracteriza o caso da luta pela independência lituanacomo marcado pelo nacionalismo, por inquietação religiosa, defesa da singularidade lingüís-tica e defesa dos direitos humanos de presos e militantes.

Esse tipo específico de nacionalismo, próprio das “nações sem Estado” (ESTEVA-FABREGAT1996: 2) marcou-se na Europa por forte apego à idéia de nação, pela defesa dadistinção lingüística e pelo cultivo de formas de resistência cultural e implicava a reinvindicaçãoda legitimidade de sua experiência histórica a partir de seus componentes sócio-étnicos. Talnacionalismo, ou “lituanismo”, quando enunciado por parte das colônias lituanas, tinha um sen-tido muito concreto enquanto aporte e estímulo importante às lutas de independência, ou seja,enquanto a Lituânia era uma “nação sem Estado”. Eram os imigrantes, vivendo no “mundolivre”, como costumavam enunciar em seus textos e documentos, que sentiam-se incumbidosda reprodução da língua e da cultura, oprimidas em sua terra natal, nos países estrangeirosem que vivam, ao mesmo tempo que co-responsáveis pelo processo de independência.

A proeminência radical do nacionalismo lituano foi capaz de, durante décadas atenuardiferenças e reunir grupos alocados em países diferentes e em classes sociais distintas. Umexemplo interessante expressa-se através da comparação entre as duas maiores colôniaslituanas do mundo: a brasileira, concentrada em São Paulo_SP e a que se encontra nos Esta-dos Unidos da América, em Chicago. A reprodução das tradições culturais lituanas nos res-pectivos países produziu resultados um tanto quanto diferenciados.

A origem social da colônia lituana no Brasil é marcadamente camponesa, que passouaqui por experiência rural. O perfil da imigração é caracterizado pelo deslocamento de famíli-as inteiras que imigraram a fim de trabalhar nas fazendas paulistas. A maior parte de seus

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membros encontra-se hoje nas classes populares. A colônia lituana em Chicago, por sua vez,formou-se também a partir de camponeses que, no entanto, caracterizava-se por homens jo-vens e solteiros que obtiveram trabalho nas minas e nas cidades porque tinham interesse emvoltar para o país de origem. Uma parcela significativa, no entanto, fixou-se, alfabetizou-se eminglês, estudou em escolas americanas e obteve cidadania para seus filhos (SENN, 2004).

Apesar das diferenças, à medida em que as relações entre estas duas colônias se man-tiveram, por meio da circulação de publicações, de religiosos, de jovens e de militantes pró-independência, por meio dos Festivais Internacionais da Juventude Lituana e em função daslutas nacionalistas pela independência, estabeleceram-se vínculos entre os grupos, que foramalimentados pelos próprios sentimentos de partilha de uma identidade comum.

Entretanto, a abertura soviética e a posterior independência da Lituânia colocaram umanova questão para as colônias, desta vez contraditória: por um lado, a euforia diante da tãodesejada independência possibilitou a retomada do intercâmbio de escritos, música, objetose pessoas com o país de origem. O número de viagens à Lituânia tem se ampliado e tornou-sepossível localizar parentes com os quais se havia perdido contato há décadas.

Por outro lado, esse contato mais intenso com a terra natal produziu também um curiosoestranhamento. A Lituânia encontrada não é a mesma dos avós e pais imigrantes. As tradi-ções que atravessaram o Atlântico em navios há pelos menos quarenta e cinco anos sãoprofundamente distintas do que se encontra nas viagens de avião ao Báltico. Muitos brasilei-ros descendentes de lituanos não conseguem reconhecer no país que visitam a expressão damemória oral de seus antepassados. Isso é explicável à medida que os imigrantes, distantesna maior parte dos casos definitivamente de seu país de origem, esforçaram-se em protegeralgumas de suas tradições: a culinária, tradições orais, artesanato, canções, danças e a lín-gua e tendem a cristalizá-las.

Aqueles que ficaram na Lituânia, por seu turno, depararam-se com outras condiçõeshistóricas e seus processos de reprodução e de resistência, apesar de terem tido um objetivocomum, manifestaram-se e desencadearam resultados distintos. Suas expectativas e desafi-os são outros e adquiriram singularidade ainda maior com a inclusão da Lituânia na UniãoEuropéia (LANE, 2002) em 2004. Este estranhamento acentuou-se ainda mais à medida queos imigrantes e seus compatriotas estiveram isolados por, no mínimo, quarenta e cinco anos.

A motivação que teceu a rede de relações entre imigrantes lituanos residentes em paí-ses diferentes e alimentou sua singularidade não existe mais, desde a independência. Doponto de vista da identidade sócio-cultural, a questão que se coloca para os descendentes deimigrantes lituanos assenta-se em outras bases. De um lado, a cada geração nascida aqui,aumentam as possibilidades de integração à cultura e à sociedade brasileira de maneira maisintensa, seja pelos casamentos interétnicos, seja pelo distanciamento da memória dos ante-passados estrangeiros ou ainda por uma socialização mais intensamente brasileira. De outrolado, o contexto atual oferece aos interessados um leque maior de possibilidades de acessoà cultura lituana, seja através da obtenção da cidadania, dos cursos de língua, das viagens, dainternet etc. Contudo, a busca dessas vias costuma ser individual e não coletiva. As atividadescomunitárias propostas pela colônia lituana em São Paulo são, além da realização das mis-sas em lituano e das atividades paroquiais em Vila Zelina, o Coral Lituano, o Palanga e oNemunas, respectivamente, o grupo de escoteiros e o de danças folclóricas, para os quaistem-se procurado atrair crianças e jovens.

A intensidade dos vínculos dos descendentes de lituanos com suas raízes e com suasrespectivas comunidades está em transição. Os perfis que irão adquirir não estão delineados.

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É claro, deve-se considerar que os sujeitos constituem seu modo de ser no mundo através desuas culturas e que, o mesmo movimento dialético que as reproduz também as inova de formatal que as culturas, apesar das transformações, possam continuar a ser iguais a si mesmas,mantendo viva a sua identidade.

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Jornal Lietuviu AIDAS Brazilijoj (Eco dos Lituanos no Brasil). São Pau-lo, 02/04/1932. Pront. n.º 5452 - AIDAS Lietuviu Aidas Brazilijoj. DEOPS/SP, DAESP.

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Jornal Musu Lietuva (Nossa Lituânia), n.º 1. São Paulo, 01/01/1948. Exem-plar confiscado durante comemoração da independência da Lituânia naAliança Autoprotetora de Beneficência dos Lituanos no Brasil. São Paulo,16/02/1948. Pront. n.º 51 - Aliança Autoprotetora de Beneficência dosLituanos no Brasil. DEOPS/SP, DAESP.

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Jornal Musu Lietuva (Nossa Lituânia), n.º 2. São Paulo, 15/01/1948. Exem-plar confiscado durante comemoração da independência da Lituânia naAliança Autoprotetora de Beneficência dos Lituanos no Brasil. São Paulo,16/02/1948. Pront. n.º 51 - Aliança Autoprotetora de Beneficência dosLituanos no Brasil. DEOPS/SP, DAESP.