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A cidade portuguesa ita Idade Média. Aspectos da estrutura física e desenvolvimento funcional Jorge GASPAR (Universidad de Lisboa) Para a Maria José Em regra, a cidade medieval portuguesa, quer seja urna heranva de períodos anteriores> quer sej a urna criagáo nova, desenvolve-se a partir de urna posigáo topograficamente saliente, para depois descer para os terrenos menos acidentados. Neste, como nontros aspectos a cidade portuguesa nAo constitui um caso original no conjunto da cidade europeia. Se o papel defensivo representa um elemento estru- turante da evolugáo da cidade, desde muito cedo, mesmo quando a posigáo alcandorada ainda era fundamental 1, o crescimento da massa construida se processa mais em funcáo de factores de natureza eco- nómica-funcional, que tendo em conta as necessidades em tempo de confrontaqáo bélica. A estrutura da cidade portuguesa da última parte da Idade Média, constitui urna heranga das inovagées urbanísticas romana e mugul- mana, apresentando semelhan9as e pontos de convergéncia com as demais cidades ibéricas contemporáneas. Por outro lado, ocorreram em Portugal algumas inovagñes no dominio do planeanrento urbanís- tico durante o período que estamos a tratar que naáo tém corres- pondéncia no resto da Península Ibérica. O tipo mais frequente da cidade medieval portuguesa deste pe- ríodo, caracteriza-se peía existéncia de urn núcleo original, fortifica- 1 A situa9áo de oppidum come.a a perder importAncia como base defensiva com a expressáo da artilbaria, que provoca a partir do séc. xvii toda urna nova técnica de defesa dos aglomerados populacionais. Todavia, o simples desen- volvimentos dos subúrbios, envolvendo total ou parcialmente o sistema defensivo da cidade medieval, faz com que por vezes a sua defesa tenha que se proeessar lora da própria ag1omera~áo, cm sistemas defensivos estrategicamente colocados ou en campo abato. La Ciudad Hispánica ... Editorial de la Universidad Complutense. Madrid, 1985.

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A cidadeportuguesaita Idade Média.Aspectosda estrutura física e desenvolvimento

funcional

Jorge GASPAR

(Universidadde Lisboa)

Para a Maria José

Em regra, a cidade medieval portuguesa,quer seja urna heranvade períodosanteriores>quer seja urna criagáo nova, desenvolve-seapartir de urna posigáotopograficamentesaliente,para depoisdescerpara os terrenosmenos acidentados.Neste,como nontros aspectosa cidade portuguesanAo constitui um casooriginal no conjunto dacidadeeuropeia.Se o papel defensivorepresentaum elementoestru-turante da evolugáo da cidade,desde muito cedo, mesmo quando aposigáoalcandoradaainda erafundamental1, o crescimentoda massaconstruidase processamais em funcáo de factoresde naturezaeco-nómica-funcional,que tendo em contaas necessidadesem tempo deconfrontaqáobélica.

A estruturadacidadeportuguesadaúltima parteda IdadeMédia,constitui urna herangadas inovagéesurbanísticasromanae mugul-mana, apresentandosemelhan9ase pontos de convergénciacom asdemaiscidadesibéricas contemporáneas.Por outro lado, ocorreramem Portugal algumasinovagñesno dominio do planeanrentourbanís-tico duranteo período que estamosa tratar que naáo tém corres-pondénciano restoda PenínsulaIbérica.

O tipo mais frequenteda cidade medieval portuguesadeste pe-ríodo, caracteriza-sepeía existénciade urn núcleo original, fortifica-

1 A situa9áode oppidum come.aa perder importAncia como basedefensivacom a expressáoda artilbaria, que provocaa partir do séc. xvii toda urna novatécnica de defesados aglomeradospopulacionais. Todavia, o simples desen-volvimentosdos subúrbios,envolvendototal ou parcialmenteo sistemadefensivoda cidademedieval, faz com que por vezesa suadefesatenhaque seproeessarlora da própria ag1omera~áo,cm sistemasdefensivosestrategicamentecolocadosou en campoabato.

La Ciudad Hispánica... Editorial de la Universidad Complutense.Madrid, 1985.

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do, a alcágova(alcaceron cidadela), no interior da qual existia ocasteloou sub-sistemadefensivocorrespondente;estenúcleo ocupaaposigáo topográficamais saliente,portanto mais facilmente defensá-vel e com ele articulava-sea cidadepropriamentedita (a medina, nocasodaherangamugulmana),geralmentemuraihada,como em Evora,Coimbra, Lisboa, Beja, Santaréme muitas outras.

na cidadeinicial que se váo instalaros novos senhores,apósaexpulsño dos mugulmanos,tendo na primeira fase especialénfase opapel da igreja e da nobreza.Os tragadosdessascidadesvariam, po-dendo apresentaraindavestigios do antigo urbanismoromano,comoEvora ou Santarém,ou desenvolver-sesegundopadróesaparentementemais anárquicos,herangasquer da acgáodos mugulmanos,quer docrescimento lento e natural, típico da cidade medieval europeiadoperíodo intermédio da Idade Média. Nestes casos observa-seumarelagáo mais estreita entre a topografia e o desenvolvimentoda es-trutura morfológica. Do ponto de vista funcional é por vezespossíveldetectardois aspectosde malor interesse; por um lado, a valoriza-gáo de espagosabertos,propicios á eclosáode manifestagñescomer-ciais, caso dos largos junto da alcácer ou da catedral e, por outrolado, a maior densidadede unidades de comércio e artesanatoaolongo dos eixos viários de comando,em geral aquelesque levam ásportas principais. Na major parte dos casos esta situagáo resume-se a um sé eixo, muitas vezesherangade um caminhopré-urbano,queatravessaa cidade e se prolonga para fora, já como caminho rural,é a chamada rua Direita (ou rna directa), que enquanto elementourbano atrai actividadesde tipo variado, constituindo com os largosa que fizemos referéncia, os locais de contacto entre as populagóesurbana e rural. Aqueles largos sáo lugares de mercado, por vezes—nos centrosde major dimensáo,já com carácterespecializado.Como desenvolvimentodas cidadeso papel funcional destesdois elemerf-tos da estruturamorfológica,largose ruas,migram paraa periferia,para os arrabaldes,que se desenvolvempara lá dos núcleosurbanosiniclais.

Após a reconquista,e com particular relevo a partir de meadosdoséculo xrn (fina da Reconquistaem Portugal> dá-se una extravasa-mento da cidade primitiva, a partir das suas portas —sáo os arra-baldes. Estes assumemdiferentes características,tanto do ponto devista físico, como funcional, social e até racial. Uma aglomeragáotanto poderia ter vários arrabaldes,como apenasum, dependendoda sua importáncia; Fernáo Lopes na Crónica del Rei D. Fernando,por exemplo, refere-seao «arrabalde»de Palmela e ao «arrabalde»de Almada. Note-se que esta dinámica poderia já existir antes daReconquista,nos casos das cidades mais desenvolvidas, como porexemplo enaCoimbra, onde já ocorreraum crescimentode um arra-

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balde entre a porta principal da parte baixa e o rio Mondego, e,com maior expressáoem Lisboa. Ña futura capital do país, quandoda sua conquista pelos cristáos(1147) já existiam dois arrabaldes,um a leste (Alfama) e outro a oeste (a futura Baixa); o primeirohabitadopor trabaihadoresmais ligados ao mar (pescadores,marí-timos, exploradoresde ouro nas arelasdo Tejo — os adiceiros)e osegundopor comerciantes,artesñose, na periferia norte, por genteligada á agricultura. Em qualquer destesdois arrabaldesde Lisboao tragado viário apresentavaas característicastípicas de cidadesmu~u1manas(hierarquia viária, especializaqáofuncional e ausénciade geometrismo),ainda hoje patentesno bairro de Alfama, que nAosofren, como a Baixa, urna transformagáoradical após o terramotode 1755 (fig. 1).

No que respeitaa diferenciagáoracial dos arrabaldesou subú-bios2, ocorrem, como nontros áreas da Península, dois tipos: asMourarias e as Tudiarias. As primeiras sAo consequénciada Recon-quista e váo geralmenteinstalar-seena locais menos atractivos tantodo ponto de vistaambiental(clima, topografia), como funcional (afas-tados dos principais acessosá cidade); em Lisboa, por exemplo, aMouraria instala-seno fundo de um vale, pouco insolado, a norte daAlcágova. Também ena Evora a Mouraria se vai instalar a norte,precisamentecm oposiqAo aos novos arrabaldes«burgueses»da Su-diaria e da Vila Nova. Já cm Moura, centro alentejanode menoresdimensñes,a Mouraria se instala cm contiguidadecom a expansñodo aglomeradopara fora das muraihas,ou seja no conjunto que de-vería constituir o único arrabalde,Em Lisboa, a nova muraiha dasegundametadedo séculoxrv (CercaFernandina)deixaráLora do seuperímetroa Mouraria para que a Alcá~ova pudesseser mais facil-mente defensável, isto apesar de os seus moradoresterem sofri-do com o ataquede D. Henrique de Castela,em 1373 como refereFernáoLopes,na Crónica de D. Fernando,cap. 73: «Os mourosforrosdo arrebaldeforamsetodos com seusgasalhadospera o curral doscoelhos,junto com a fortalezados pagos delRei, que he em um altomonte ah estavanacm tendilMes acoutadospor sua defenssom».

Em Elvas, reconquistadadefinitivamentecm 1230> a Mouraria éerguidaentre a Porta Nova e a porta da estradade Badajoz, numterrenoque foi objectode aforamentocolectivo cm 1270. Nestacidadeo rei também promoveu a expansáode um arrabaldecristño, áporta que dava acessoa Badajoz, para o que concedevários afora-mentosa partir de 1262, acgáocontinuadano reinado seguinte.

Nena todosos mourosresidentesem cidades(Ravara,1967> pp. 56-

2 Preferimoso termo arrabalde,de origem árabe.Subúrbio na terminologiamedievalportuguesatinha um sentido mais amplo, podendocorresponderporvezesa núcleosmullo afastadosda cidade(cfr. GAMA BARROS, 19, XI, p. 19).

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58 e 169-170) viviam cm mourarias; nalgunscasoso número redu-zido de mugulmanosnáo justificava um bairro próprio. Por outrolado, a propriedadeno interior das mourariasnAo era exclusivodosseushabitantes,como se vé nestecasomulto curioso: O. Isabel,muí-her de O. Dinis, tinha urnamoura,Fátima«mourada rainha’>, aquenao rei doaurna casano «arrabaldedos mouros»(Ravara,1967, p. 153).

As rnourarias tinham a sua administragáoprópria e a sua po-pula9áogozavade certaautonomia,mormentede costumese religiáo.Ñas suasactividadestinham certo peso o artesanato,mas a agricul-tura era uma fungáo muito importante,por vezes largamentedomi-nante.No caso de Lisboa, a Mouraria localizava-sejunto da princi-pal mancha de hortas que abasteciaa cidade. Nesta mouraria eratambémsignificativa a actividade dos oleiros.

Enquanto os bairros dos mugulmanosse limitana ás cidadesme-ridionais, as judiarias ocorremtambémno norte do país. Estesbal-rros já existianaanteriormenteá Reconquista,mas tiveram um papelde realce nas ac9ées de reorganizagáodo espagoempreendidasnosprimeiros séculos da monarquia portuguesa.Os judeus teráo comfrequénciaocupado os lugares deixadospeía popula9áoartesanalemercantil mugulmanaque abandonouo territério, desempenhandoassimuna papel semeihanteao dos Francos noutras áreasda Penín-sula — ao longo do caminhode Santiago,por exemplo.

Ao contrário das mourarias,as judiarías ocupavamgeralmenteposigóesprivilegiadasdo ponto de vista funcional, adjacentesao nú-cleo de maior densidadescomercial ou correspondendo-ihemesmo.Em Barcelos, pequenacidade condal do Entre Douro e Minho, ájudiaria correspondiaa Rua dos Mercadores,numa posigáobastantecentral. Em Evora a judiaria desenvolve-sea partir do novo centrode gravidadeda cidade, constituindo pegafundamentaldo novo di-namismo que se Ihe imprimiu a partir do século xxii. Em Lisboa> ajudiaria grande estendia-sena continua§áodo centro comercial dacidade, junto do que foi até ao inicio do séculoxiv o principal cixoactivo do arrabaldeocidental— Rua dos Mercadores.Mas em finaisdo século xxrt esta judiaria era insuficiente aparecendourna pró-xima do local da feira (o Rossio),mas que o rei D. Dinis faz logodeslocarpara aextremidadeda nova extensáocomercial queele pró-

3 ParaPortugal s~o atraídosmullos francos e flamengosduranteo inicio damonarqula,mas constitueni fundamentalmentecolonosagrícolas,que se insta-1am sobretudono território a norte de Lisboa (Provincia da Estremadura).

4 A segrcgayáo,apesardo agravameutode Iegislaqáono século xlv, nAo érigorosa.Os judetís podiam viver na judiaria e ter tendastora ou viver mesmotora do bairro que Ihes estava consignado, como acontecía,por exemplo, naGuarda e em Lisboa. Por otitro lado, as casasda judiaria nAo eram necessaria-mente propriedadede judeus,o próprio rei tem al casasque aluga a judeus(dr. RAVARA, 1967, p. 133, e PPÁDALIÉ, 1975, Pp. 78-80).

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prio promoveuao mandarabrir a RnaNova, que viria a ser o prin-cipal eixo comercial da cidade. Mais tarde, no século xiv, é aindacriada uma pequenajudiaria, no arrabaldedc Alfama. Poucodepoisas trés judiarias eranainsuficientese nas cortes de Lisboa de 1438o concelbo de Lisboa comunica-o,tendo o entáo regenteD. Pedromandadoque os judeus se instalassemfora de muros, a norte, masque náo constituissemnenhumajudiaria.

Monrarias e judiarias náo tinham qualquer sistema defensivoparticular, emborapudessemter uma porta, o que trazia problemas,sobretudopara as segundas,devido á frequenteanimosidadeporparte dos cristáos,que por vezes se convertiaena assaltose saques.Ña cidade de Leiria, no século xiv era costumeos cristáossaquea-rem a judiaria nos dias de 5? e 6.’ feira santas,o que foi interditadopor O. Fernando.Em Lisboa ficou memorávelo grande assaltode1449, em queos cristáosalém de roubarem,matarammuitos judeus;vários cristáos forana condenados,mas logo um ano volvido o reicormedenum perdáo colectivo (H. B. Moreno, 1976).

Nas extenséesurbanasdesenvolvidasa partir do núcleoprimitivoe habitadaspeíapopulaqáocristá, ocorremdiferenciagéesfuncionaise sociais,em particular nas aglomeragóesmais importantes.Aos sec-toresde major densidadecomercialcorrespondiamtambémos estra-tos sociais mais elevados,ocupandoposiqéescentrais; pelo contrá-rio, na periferia on junto de áreasjá degradadas(por exemplo juntodas monrarias)instalavam-seos estratosmais débeis,por vezes cmcoincidénciacom actividadesmais poluentese degradadorasdo am-biente, como a indústria dos curtumes ou as cerámicas(olarias).Logicamenteé nestasmesmasáreasque aparecemos bairrosou ruasde prostituiqño (as «mancebias»011 «putarias»).

O arrabaldeon bairro comercial e burguésacabavapor transfor-mar-se no centro de gravidade do aglomerado,constituindo o seueno principal a rua mais importanteda cidade,com designayñesquevariam — Rua Direita, Rnados Mercadores,Rua Nova e outras.Estenovo núcleo activo fazia, por um lado, a articulaqáo com a cidadeprimitiva e, por ontro lado, com a área rural envolvente,urna dassuasrazóesde ser. Estaarticula~áoprocessava-segeneralmenterumlargo, quecorrespondiamuitas vezesa terrenocomunal(o rossio ou adevesa);o largo periférico,que fazia a ligayáo com o mundo rural erao local do mercadoperiódico, semanalnas aglomeraqéesmais impor-tantes,onde se realizavamas trocasentre as populaqéesrurais e aspopulagoesurbanas.Estes espaqosacabampor desempenharpapelsemelbanteao da PlazaMayor da cidade espanhola,embora muitoraramentetenhanauna tratamentourbanístico-arquitectónicoidéntico.

Por sen turno, os ontros arrabaldesou bairros tinhana urna or-ganizayáofuncional própria, com as suasigrejas, os seus largos e

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tambémum eixo principal, frequentementechamadoRnaDireita, de-signativo a que se acrescentavao nome do bairro 011 arrabalde.

As cidadesmedievaisportuguesasnáo se expandiramsemprecmcontinuidadefísica cona o núcleo original, embora fosseesseo pa-dráo dominante. Um aspectosaliente da cidade de entáo era oaparecimentode conventosou mosteirossuburbanosque constituíamfocos aglutinadoresde povoamentoperiurbano que nos casos dasurbes mais dinámicas acabaranapor ser envolvidos peía onda dasconstrugóes,constituindomuitas vezesdescontinuidadesfísicas no te-cido urbano.

Poderia ainda acontecerque> por razées topográficase necessi-dadesfuncionais,os arrabaldesficassemafastadosdo núcleo princi-pal, como na Ribeira de Santarém,porto fluvial (que até ao sécu-lo xiv recebia os barcos do alto mar) que servia a importanteaglo-meragaourbanade Santarém;este arrabaldeconcentravaactividadesde transportes,armazenagena,comercio grossistae a retalho. San-taréin,urna dasprincipaisurbesmedievaisportuguesasque náocon-seguiuo título de cidade,era constituidapor 4 núcleos: a Alcágova,Marvila — a parte alta muraihada,equivalenteá medina; a Ribeira,arrabaldeportuário, junto ao rio, que devido á topografia muitoacidentadanuncase uniu ao núcleo principal; Alfange, arrabaldees-sencialmentede rurais.

Outro aspectorelevantenalgumasagloineragoesdo norte do país,ondeo hiato de vida urbanafol mais nítido por ausénciado dominiomugulmanolongo e permanente,é o de cidadesque se organizampor aglutinagao de núcleos distintos, especializadosfuncional e/ousocialmente,que tambémpodemcorresponderamomentosdiferentesda formagáodo organismourbano. Em Viseu, por exemplo,existiamno século xxx dois pontos de desenvolvimento,«duascidades»— acidade alta e a cidadebaixa, as duas constituindo a cidade velha,que a muraiha romanacircunscrevia,deixando vazios no seu inte-rior (A. Giráo, 1825, Pp. 47-48); com o tempo estesdois núcleos fun-diram-see den-sea expansáocm manchacontinua.Em Lamego,umadescriyáode 1531, tambémsugerea existénciade descontinuidadeemesmoindependénciade trésnúcleos,quer do ponto de vista físico,quer funcional e social: «... está o asento dela mui mal concertado>a saber: a asentodasvivendas,dado que estécm bom sitio> por queestáena tresbairros,búae aprincipal vivenda da praga,ondeacudemtodasas mercadorias,e vivem os mercadores,e ondehe o trato todo>e onde está a audiéncia,e relagam sobrefla, e pousam as justicasseculares.Gutro he o bairro da Sée,qued>antiguidadese soiachamaro conto da Sée, por que era dos bispos,onde vivem os conegos,ebeneficiados,eoutrasnobrespessoas;Ondeestanxospaagosde vossasenhoria[o bispo], e com o femosojardim, e grandeterreiro, e cér-

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Ere. 1—LAMISCO.O Nucleo central muraihado <«cidade-tortaleza»);a Norte oerraba/decomercialda idade Média («cidade-burguesa»)e a Su? o arrabalde daSé («cidade-bispado»).t. Castelo.—2.Muralh&—3. Cisterna.—4.Porta do SoL—5. Porta dos Fogos.—6. Igreja de Almacave.—7.Casa senhorial.—8. Pa9osdoConcelho.—9.Sé.—l0. PacoEpiscopal.(Adaptado de Guía de PortugaL)

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co de muro quevossasenhoriamandoufazer... ha outro bairro emméo destescm mais alto, oxide esta a fortaleza desta cidade, cmque moraráo cincoentavizinhos.. . ». Separavam-seassim a cidade-fortaleza, a mais decadente>a cidade-bispadoe a cidade-burguesa(figura 2).

Mais a norte> no Entre-Douro e Minho, Guimaráes,que teve noinicio da nacionalidadeo papel de resid&ncia realmais frequente,ex-pande-sepeía aglutinagáoda vila velba, junto ao antigo núcleo acas-telado> e de vários núcleosorganizadoscm torno de institutos reli-giosos e a que tambémcorrespondiamdiferenciagéessoclais.A cer-ca, da segundametadedo séculoxm, tem urna forma bastanteealon-gadasegundoo eixo maior, decorrenteda necessidadede englobaros diferentesnúcleos urbanos. Esta forma de crescimentoexplicaainda o tragadoviário muito irregular que se detectaintramuros,jáque o processode desenvolvimentonáo poderia ter pennitido urnaacgáo de planeamentocomo se observounoutros casos(figs. 3 e 4).

Na maior parte das cidadesportuguesasas expanséesa partirdo núcleoprimitivo náoobedecema qualquerintengáode planeamen-to, desenvolvendo-secm fungáode antigoscaminhosrurais de acessoá urbe> apresentandopor isso multas cidadesde entáourna estruturaradial a partir das entradasprimitivas. No entanto, nalgunscasos,particularmentecm Evora e cm Lisboa, cidadesmais dinámicasnoperíodoque estamosa tratar> sAo frequentesas situagóesde desen-volvimento urbanoplaneado,pelo menosdesde o século xxxi e pro-vavelmentejA no século XII; a maior tradicáo urbana, romano-mu-gulmana,do sul do paístambémexplicaamajor preocupagáono tra-tamentodas aglomeragóesurbanas.

O aparecimentode Norte a Sul de tragadosgeométricosdas no-vos centrosequivalentesAs «bastides»,tém um significado distinto>já que correspondema iniciativas reais, andeportanto a ordem di-manadeum foco, aoqual náoeramestranhososprincipios do planea-mentourbanístico(J. Gaspar,1969). Note-sequetambémnoutrasci-dades e comn mais insisténciacm Lisboa, muitas das iniciativas ur-banísticaspertenceramao rei, que intervejo nAo sé como inovador ecoordenador>masainda como promotore atécomo especuladorimo-biliArio e fundiário.

De facto, apartir de meadosdo séculoxxix, o rei Alfonso III inter-vem activamenteno mercadoimobiliário da que se tornavaa capitaldo reino>mostrandoparticular interessepeíaáreacentralde comércio,o arrabaldeda Baixa. O seu sucessor,D. Dinis, activa este processo,

5 É significativo o papeldos reis no mercadoimobiliário das cidades.Man-so III e 13. Dinis, cm especialeste>efectuammuitas transagñesem vArias agIo-meragoesurbanas: Évora, Santarém,Elvas, Guimaráes, Guarda, Faro, Coim-bra e Leiria, apresentamos maioresquantitativos (RAVARA, 1967).

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Ño. 3.—G(JIMARÁES.O núcleo medievaln.a actualidade. (Extraído de Guía dePortugal.)

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Fra. 4.—GVIMARAESantesdas trans/orma~úes modernas. (SegúnMário Cardo-so. Extraídode Guía de Portugal.)

promovendoa expensáodessaArea central> com novas orientag6es.O arrabaldeburguésdesenvolvia-seapartir da porta da CercaMourapara o interior, na direc9áodo Rossio(para onde Afonso IV deslo-caraa feira das3Y feiras, que se realizavaáportada alcágova),tendoa RuadosMercadorescomoeixo principal,afastando-seassimdo porto(a Ribeira), por certo devido gos perigos da pirataria.D. Dinis, como municipio decide a construgáode uma muralfia para defesa doarrabaldemercantil do lado do rio> ao mesmo tempo que promovea ocupa9áourbanado terreno agora protegido peía nova muralha,a nova extensáoterá na Rna Nova (ou Rua Nova dos Mercadores,mais tardeRua Moya dos Ferros)o seueixo fundamental,que desen-volvendo-separalelamenteao rio (ao contrArio da Ruados Mercado-res) daráurna nova orientacáoao crescimentoe á estrutura9áohin-

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cional da cidade.A Rna Nova,commais de 30 palmosde largura (trésvezesmaisqueasmaislargasdacidade)seráembreveo principal eixoda urbe,local de comércio,residénciados grandesburguesese passeiodos lisboetas, papel que desempenharáaté ao terramoto de 1755.Próximo da sua extremidadeocidental cria D. Dinis, como vimos>uma nova judiaria, o que ¿ bastantesignificativo, e o rei intervémmuito activamentena promo~ñoimobiliária da noveextensáourbana.

Duranteos reinadosde 13. ALonso lii (1248-1279)e 13. Dinis (1279-1325) os reis transaccionam>cm Lisboa, 168 tendas,136 fracgóesdetendas,68 casas,16 fracgéesde casase 8 terrenos;as tendase fracgéesde tendasconcentram-secm duasfreguesias(Madalenae S. Nicolau)quecorrespondemááreacentraldo arrabaldeda Baixa (Ravara,1967>p. 42). lIs constru~óeseramgeralmentede um só piso> emboraas dedois pisos (sótáo+ sobradoou loja + sobrado)fossemaumentando>mormentena áreacomercial; segundose podeconcluir de dois docu-mentosde 1276 é provávelqueem Lisboa já existissemcasasdc 3 pi-sos,cm queo primeiro correspondiaa tendas.A popula9aode Lisboanos fins do século xxii seria de cerca de 10.000 habitantes(Pradalie,1975, p. 78). No conjunto do paísno século xm apenasas principaisag1omera~ées>como Lisboa> Evora e Santarém, tinham casas de2 pisos.

A expansáoribeirinha langada por 13. Dinis relaciona-secom oincremento da actividade marítima e comercial, mormentea que searticula com a Europa Média, Setentrionale Mediterránea>náo pa-rando de seresseo sentidodo crescimentoda massaurbanada capi-tal, quese faz frequentementede forma planificada.

E assim quelogo no reinadoseguinte,em 1329, D. Afonso IV doaáCámarade Lisboao terreno(ondesesecavao pescado)queseseguia,paraocidente>ao limite da áreadesenvolvidapor D. Dinis, para queaedilidade al construissecasas,mas«ental gissa q ssejamas ruasbeespagosas,q possamas gentespr cías andare cavalgarssemenbargo,e q lexemgrandeespagoantreascasase as taracenas;outYssyffazedeq lexemcontrao mar espagotamgrande,pr q possamandaras gentese ffolgar, assi como virdes q cumpreaa tal logar como esse»(E. EOliveira> 1, Pp. 97-98).

No querespeitaápolítica urbanaem Lisboa, emboramenosactivo>U. ALonso IV (1325-1357) seguea linha do seu antecessor,transaccio-nando59 tendas,125 casas,10 sótáos,14 sobrados>11 frac~éesde ten-da, 2 casariose 2 terrenos.Estesprédioslocalizavam-sequaseexlusiva-mentenas freguesiasda Madalenae de 5. Juliáo e dentro destasamalor concentragaoverificava-sena Rna Nova; e nos dois reinadosanterioreso lugar de 5. Juliáo era ocupadopor 5. Nicolau, freguesiaa norte (interior) da Rua Nova —vé-se assim como resultou o novorumo que 13. Dinís quis dar ao desenvolvimentoda cidade. Note-se

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ainda que com Afonso IV ocorre urn elevado número de aforamentosa judeus,precisamentena judiaria Nova (S. Juliáo)e semprede sót~osesobrados(Elementosobtidospor Guimaráes,Falcáoe Ferreira>parao Semináriode História Medieval dirigido por Maria JoséLagosTrin-dadena Faculdadede Letras de Lisboa, 1977-1978).

Nosanos 80 do séculoxxv, já construidaanova muralbada cidade,esta crescianovamenteparapoente,ao mesmotempoqueia ocupandoespaqosvazios no interior da cerca,mormentea norte da Baixa; masé significativo o aparecimentojunto ao rio, a ocidente,dc uma VilaNava, Vila Nova de Gibraltar, que elementosposterioresnos mos-tram habitadapredominantementepor populagáoligada ás activida-des marítimas.Seguir-se-áonovasexpansñesdo mesmotipo, que cuí-namaráoem meadosdo séculoxvi comomaior bairro planeadoatéen-táo construidono país,a Vila Nava de Andrade,o actual Bairro Alto:estabelecidosegundoum padráoviário geométrico,obedecendoaosmesmosprincipios do urbanismodo fim da Idade Média.

Como dissemos,é em Évora, cidadeem expansáodesdea Recon-quista,queencontramoso melhor paralelocomLisboa no querespeitao crescimentourbano planificado. Podernosmesmo dizer que nestecapitulo a capital do Alentejo constitui um modelo registandoacqóesplaneadasque váo desdeo fina do séculoXII ou inicio do xiii até aoséculoxvi, altura cm que se observaa suadecadéncia.Assim,ao con-trário de Lisboa, a própria mauraria de Évora obedece>como vimos,aum tragadogeométrico>o mesmose passandocom a judiaria. Juntoaestae igualmentearticuladocomo novo centrocívico-social(a actualpragado Giraldo) desenvolve-sea Vila ¡‘Tova, obedecendoaosmesmosprincipios urbanísticos.

A expansáourbanaquese observaapartir do séculoxiii vai abri-garáconstrugáode novasmuralbasdeprotecgáo.Nestecapítulo temasdois grandesmomentos,o reinadode O. Dinis (1279-1325)e a segundaparte do de Th Fernando(1367-1382),após os fracassosdas guerrasque sustentoucona Castela e que mostraram,por una lado, a impor-táncia das cidadesna defesado país e, por outro lado> a sua fragili-dade sempre que náo estavam devidamenteprotegidos. EnquantoD. Dinis, se preocupousobretudoerr¡ estruturara redeurbanado país,muralhandoos novos centros (criados ou recriados)e aquelesquenáo dispunhanade qualquercerca> D. Fernandopromoveufundamen-talmente a protecgáa das aglomeragóesonde o crescimento,geral-mentea partir de núcleos muraihadosjá existentes,tinha sido maisassinalável:Lisboa> Évora, Porto> entre outros. Na maior parte doscasosas cercasfernandinasqueenglobavamsempreextensosterrenosrurais ficaranacomo as últimas defesasde tipo medieval; o períodoseguintede grande construg~ode baluarte, será o que correspondeáGuerrada Independénciacoma Espanha(1640-1667)em que se cons-

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tróem de norte a sul> commaior densidadeao longo da fronteira (ter-restre e marítima), numerosaslinhas de defesa do tipo Vauban queem muitos casosváo retomar as muralhasfernandinas,mormentenointerior do país>andeseverifica aestagnaqáoa partir de séculoxvi.

TRABALHOS CITADOS

FERNANDES, Rui: Tratado . -. de Compassode duas legoas a redor da cidadedeLameguo...,«Inéditos de História Portuguesa»,V, Lisboa, 1824.

FERNÁO Lopzs: Crónica de D. Fernando,Barcelos, 1966.GAMA BARROS, II.: História da Administra=rdoPública em Portugal nos Sécu-

los XII a XV, 1. ed., Lisboa, 1885-1922, 4 vois.; 2. ed., Lisboa, 1945,1950,11 vois.

GASPAR, 1.: A Morfologia urbana de Padráo Geométricona Idade Média, «Finis-terra», IV, 8 (Lisboa, 1969),pp. 198-215.

Gíido> A.: Viseu - Estudode urna Aglomera§áoUrbana, Coimbra, 1925.MORENO, H. B.: TensdesSociaiscm Portugal na Idade Média, Lisboa, 1976.OLIVEIRA, E. F.: Elementospara a História do Municipio de Lisboa, Lisboa,

1887-1911,17 vois.PRADALIÉ, G: Lisboa da Reconquistaao Fim do SéculoXIII, Lisboa, 1975.RAVAIiA, A. 1’.: A Propriedade Urbana Régia (D. Afonso III e D. Dinis), Disser-

ta~áo de Licenciatura> FoL Faculdadede Letras de Lisboa, 1967.