A Cissiparidade - Georges Bataille - Tradução de Alexandre Rodrigues Da Costa

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A Cissiparidade - Georges Bataille.

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    A CISSIPARIDADEGeorges Bataille

    Traduo:Alexandre Rodrigues Da Costa

    I

    Tomado de raiva e de raiva.Minha cabea? Uma unha, uma unha de recm-nascido.

    Eu grito. Ningum me entende. A opacidade, a eternidade, o silencio esvazia evidentemente de mim.

    Eu me suprimiria me esganiando: esta convico digna de louvor.

    Eu comeria, f..., escreveria, riria, mentiria, temeria a morte, e ficaria plido diante da ideia de retornar s unhas.

    II

    Eu amaria me aderir ideia cortante de mim mesmo, elevando no ar minha cabea enrugada e negando o cheiro da morte.

    Eu amaria esquecer o inatingvel deslocamento de mim mesmo ante a corrupo.

    Eu tenho a nusea do cu cuja doura estridente tem a obscenidade de uma filha adormecida.

    Eu imagino uma linda puta, elegante, nua e triste na sua alegria de porquinha.

    Um sol de festa inundava o quarto. Eu me barbeava nu diante do espelho, limitado por um quadro de molduras douradas. De p, eu virei as costas ao disco solar, mas o espelho, sobre minha cabea, reproduzia a imagem. Quem sou eu? Eu poderia, sobre o vidro ensolarado, traar meu nome, a data, em letras de sabo: eu cessaria de acreditar nisso e no mais riria. Este desembarao comigo mesmo, esta mentira de espelho, a imensidade da luz, da qual eu sou o efeito?

    Eu teria de mim mesmo uma ideia sublime: na verdade, eu teria a fora necessria. Eu igualaria o amor (o indecente corpo a corpo) ao ilimitado do ser nusea, ao sol, morte. A obscenidade oferece um longo momento ao delrio dos sentidos.

    Esse quem, no meu carter, o menos acusado (mais enfim...): o lado gustave (ou porco).

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    III

    Carta do autor a Sra. E...

    Recebi de Monsenhor um telegrama:xito. Venha. Situao difcil.Olhei por muito tempo no espelho e tinha medo de gargalhar.A duplicao de Monsenhor me irrita a ponto de perder a cabea.O que ele sugere o fundo das coisas e isso definitivamente falso.

    Carta da Sra. E... ao autor.

    ...finalmente estou com n na garganta. O estado em que vossa palavra me encontrou o mais irritante que eu j conheci. s vezes, eu gargalho. E eu acho que, a partir de agora, esse riso de loucura no vai parar mais. Ele para, e ento eu tenho o sentimento penoso, mas voluptuoso de ser assoada, e feito como um rato...

    IV

    Encontro com Sra. E... em Paris. Partimos de amanh para Roma, onde nos espera Monsenhor. Monsenhor ou melhor...pera. Grande msica. Quantidade de lcool.

    Esta manh, ao cair com uma faca afiada na mo, cortei um dedo. A Sra. E... riu muito alto ao me ver cair, mas o sangue que jorrava e o riso muito alto a incomodavam. Eu acabei por incomod-la rindo: eu era gentil, flutuante, adorvel: ela dissimulada, plida e voluntariamente indecente.

    Se a inteligencia feminina...... Eu gostaria que um movimento fizesse da minha semelhana uma mulher mpia.H uma conjugao de verbos da carne da qual a cano cmica a desinncia.Cantarei at a vergonha em uma mesa de banquete:

    Ravadja la moukreRavadja bono

    e a violncia do canto, apesar de mim, fora de mim, saltasse:

    Mergulhe teu cu na tigelaTu vers se est quente.

    Se ela no estava indo ao revadja, a mulher mpia no teria o poder de apodrecer resolutamente a luz, nem de ser to decididamente bonita: podrido e raios do sol. Mas esta a minha maneira de amar a Sra. E..., de rir e, finalmente, de raciocinar.

    Visita de Alexandrette s duas horas. Eu tremia (lcool de ontem?). Havia o ar rancoroso dessas gaiolas minsculas para moscas, que as crianas enchiam de insetos odiosamente vivos. Ele partiu e ns ficamos, Sra. E... e eu, em um deserto de f... Ao ataque das estrelas, em um movimento de grandiloquncia. Pegamos s duas horas o trem para Roma.

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    Msica na noite passada saltando na cabea. A chorar, a vomitar alegremente. Fluxos desordenados. Cortesia de Sra. E... Decote, boa educao, mas que indecncia!

    V

    Quando eu fao amor, hoje, minha alegria roubada pela sensao de que isso vai acabar e que morrerei sem ter convulso. Acontecia-me de, no excesso de felicidade, o prazer escaldante se anular, como em um sonho: eu imaginava um momento em que eu no teria mais meios de renov-lo. Eu perdia a sensao de riqueza exuberante da festa, a malcia ingnua e o riso que se iguala a Deus! O poder em si fugidio, verdade: da mesma natureza que a dor. Eu me abandono ao seu humor? Imediatamente, eu me dou ao impossvel e gozo como um monstro que morre.

    Roma, uma carruagem, Sra. E... Violenta iluminao eltrica. Chuva e lua nas ruas brancas da pera cmica: desejos, delcias e indolncia.

    Eu aceito a vida sob uma condio.Atravs do sublime, a eternidade, a mentira, deitado, cantar com toda fora, apoiado por um coro de teatro.Um lobo foi comprado para a Sra. E... Eu me coloco em jogo, vido de insolncia, nas festas de Monsenhor.

    Eu me embebederei pela velocidade inslita.Cantar para a multido seno aquela que se embebede?Dez mil olhos na noite so o cu estrelado.

    O mais ansioso, o mais feliz dos homens.Invocar a morte, gritando para ela: Agarre tuas facas de comdia, afie-as em teus dentes!A dama de decote (indecente, eu j o disse, profundamente): seu decote na medida da morte, a morte na medida do decote.

    VI

    Aldeia de mentira!Diante do papelo e da falsificao, tomei a atitude de reunir tudo na noite, de no mais dizer o que nos ocupa, a nica medida do meu desejo. necessrio ir muito longe... Ser estrela e desonrar o alto dos cus. No escutar nada, gritar ou discorrer nas solides do cu. Eu telefonei ao Monsenhor.

    E ns, ns chegamos em uma hora.Alpha, Beta (assim distinguimos nossos ssias resultantes de um desdobramento), Sra. E... e eu.

    Como eu, Sra. E... na carruagem aberta, bbado sem lcool, e rindo baixinho: Mas quem te respondeu? Alpha? Beta?A pertubao dava aos seus traos uma convulso lenta e voluptuosa.

    O prelado desce as escadas de pedra e vem at ns, segurando nossas mos.

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    Sra. E..., embaraada, disse com um riso de menina: Bom dia, Beta!

    Aqui, quando Sra. E... disse: Bom dia, Beta! bateu-me (senti-me ento feliz como os painis menos ensolarados onde deusas em vestidos levantados rendiam, como cassolettes de especiarias, uma dissimulada homenagem ao prazer) foi a vulgaridade de meu amigo. Ela beijou, curvando-se, o anel episcopal e esse movimento humilde, como o instante antes de seu riso canalha, acusou sua natureza, sob o alfaiate da vila, deixando entrever o animal. Lembrei-me de ver na atitude de Senhora E. .. apenas a menina e, nessas riquezas irreais, eu estava feliz que a misria verdadeira respondesse s minhas paixes.

    Sem transio, o tempo tornava-se grave.De repente, eu soube que no topo da escada, em uma confuso obscena, eu veria a outra encosta.

    Dos palcios de tragdia que parecem vazios, porque a entrada no mais o sangramento, e os ces de Jezebel fugiram, percebi que, apesar de sua aparncia agradvel, eles continuam a ser favorveis aos desejos mais debochados.

    O que surpreende em um palcio como em uma rpida transio de teatro o dio dos homens entre ns. O topo da escada monumental, que Monsenhor e Sra. E... subiram rindo, me atraia como se fosse o limiar de uma terrvel reino. Eu no podia deixar de ver em contraste o momento de triunfo da Sra. E..., sua medida e suas melodias, muito ousadas, de grande dama enobrecida pela moldura de pedra o quadro da mulher lapidada. Ento vi nada mais do que uma entrada real. Eu no vi o meu amigo pavimentado no sangue, na lama, no rudo imundo da multido. (O telhado no sugere o corpo esmagado, mas a vertigem.)

    Aos poucos, o desejo do meu amigo me tomou da maneira mais bestial. Um calor em um sentido gracial me prendeu. Eu tinha a sensao da multido louvvel, que sabe como odiar.Que no pode esperar um momento.Sra. E... rapidamente atravessa o limiar.Alpha abria as portas duplas.

    Este texto foi publicado originalmente, em 1949, em Les Cahiers de la Pliade. A nossa traduo se baseia no texto encontrado no terceiro volume das Obras Completas de Georges Bataille, editado pela Gallimard, em 1971.