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A COISA Martin Heidegger 1950

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a coisa

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-----A COISA -----

~ r=>.Todo distanciamento no tempo e todo afastarnento no 'espa~o

estao encolhendo. Ontem, 0 homem levava semanas, senao meses-para chegar onde, hoje, 0 aviao 0 leva da noite para 0 dia. 0 que,outrora, somente depois de anos, se sabia ou ate nunca se vinha asaber, agora, 0 radio toda hora anuncia, no mesmo instante. Osprocessos de gerrninacao e desenvolvimento de tudo, que nascia ecrescia na vegetacao, se mantinham escondidos durante as esta-coes do ano, hoje 0 filme os leva a publico num minuto. Os lugaresafastados das culturas mais anti gas, os filmes no-los mostramcomo se estivessem no trans ito das ruas e avenidas. E ainda 0 com-provam, apresentando, junto em plena atividade, as filmadoras e ostecnicos, que as operam. Mas e a televisao que atinge 0 cumulo dasupressao de qualquer distanciamento. Logo, logo a televisao vaicorrer atras e controlar todo 0 burburinho do trafego,

o homem esta superando as longitudes mais afastadas no me-nor espaco de tempo. Esta deixando para tras de si as maiores dis-tancias e pondo tudo diante de si na menor distancia.

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E, no entanto, a supressao apressada de todo distanciamento. nao Ihe traz ~midade. Proximidade nao e pouca distancia. 0'que, na perspectiva da metragem, esta perto de nos, no menor afas-tamento, como na imagem do filme ou no som do radio, pode estarlonge de nos, numa grande distancia. E 0 que, do ponto de vista dametragern, se acha longe, numa distancia incornensuravel,pode-nos estar bern proximo. Pequeno distanciamento ainda nao eproximidade, como urn grande afastamento ainda nao e distancia,

Mas 0 que e, entao, proximidade se nao se da nem mesmoquando 0 distanciamento mais longo se torna a distancia mais cur-ta? 0 que e a proximidade, quando mesmo a supressao, sem des-canso, dos afastamentos nem a resguarda? 0 que e a proximidadequando, em sua falta, ate a distancia se ausenta?

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o que acontece quando, na supressao dos grandes distancia-mentos, tudo se torna igualmente proximo e igualmente distante?o que e esta igualdade em que tudo nao fica nem distante nem pro-ximo, como se fosse sem distancia?

Tudo esta sen do recolhido a monotonia e uniformidade do quenao tern distancia. Como assim? Sera que tal recolhimento e aindamais angustiante do que a explosao de tudo? 0 homem se estarre-ce com 0 que poderia ocorrer na explosao das bombas atomicas. 0homem nao percebe 0 que, de ha muito, ja esta acontecendo, e estaacontecendo, num processo, cujq dejeto mais recente e a bombaatomica e sua explosao, para nao falar na bomba de hidrogenio.Pois, levada as ultimas possibilidades, bastaria apenas a sua espole-ta para eliminar toda a vida na terra. 0 que esta angustia desespe-rada ainda esta esperando, quando 0 terror se esta dando e 0

horror ja esta acontecendo? IL 'l\l'

Horror e terror e 0 poder que joga para fora de suama,sempre vigente, tudo 0 que e e esta sendo. Em que consiste este po-der de horror e terror? Ele se mostra e se esconde na maneira co-mo, hoje, tudo esta em yoga e se poe em vigor, a saber, no fato de,apesar da superacao de todo distanciamento e de qualquer afasta-mento, a proximidade dos seres estar ausente.

Que ha com a proximidade? Como poderemos fazer a expe-riencia de sua yigencial Parece que a proximidade nao e algo que,direta e imediatamente, se possa encontrar. 0 que, assim, se con-segue e, antes, 0 proximo, 0 que se acha nas proximidades. Ora,na proximidade, esta 0 que costumamos chamar de coisa. Que euma coisa? Ha quanta tempo 0 homem ja refletlii e perguntoupela coisa? Ouantas vezes e de quantas formas 0 homem ja usou eabusou da coisa? Com quanta profundidade ja explicou as coisas,de acordo com seus propositos, e explicou, no sentido de recon-duzi-Ias as suas causas? De ha muito, 0 homem lida e continuasempre a lidar com as coisas, sem, no entanto, pensar, uma vez se-quer, a coisa, como coisa! Ate hoje, 0 homem nao pensou a coisa,em seu modo de ser coisa, como nao 0 fez tambern com a proximida-de. Coisa e uma jarra. Que e uma jarra? - Nos dizemos: urn recepta-culo, algo que recebe outro dentro de si, urn recipiente. 0 que, najarra, recebe e parede e fundo. Pode-se receber 0 recipiente, seguran-

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do pela asa. Como receptaculo, a jarra subsiste em si por si mesma.o ser e estar em si por si mesma caracteriza a jarra, como algo sub-

"J-, \ sistente. Subsistencia de urn subsistente, a jarra se distingue de urn[,1'~V\ objeto, isto e, de algo que subsiste por opor-se e contrapor-se a urn!\"",( .•Il.~.A sujeito, Urn subsistente pode tornar-se objeto, quando 0 colocamos'i'·\... diante de nos, seja na percepcao imedfata, seja na presentificacao da~\t memoria. Mas 0 ser coisa da coisa nao esta em se fazer dela objeto.~". Il .~de uma representacao nem em deterrnina-la, a partir e pela objetivi-\: dade do obieto, mesmo se 0 opor-se e contrapor-se do objeto nao se

'.'I '1 ~ reduzir meramente a conta da representacao do sujeito mas deixartodo opor-se e contrapor-se, como tarefa do proprio objeto.

A jarra continua receptaculo, quer a representemos ou nao.Com ser receptaculo, a jarra subsiste em si por si mesma, Todavia, 0que podera dizer que urn recipiente subsiste em si por si mesmo?Sera que este subsistir do receptaculo ja determina a jarra, comouma coisa? Ajarra, na verdade, so subsiste como receptaculo a medi-da que foi conduzida a ser e estar em si mesma. Sem duvida, e 0 que ,'..,......aconteceu e acontece numa con-ducao especial, a saber, pela pro-du- '-~ao. 0 oleiro molda a jarra com a argila escolhida especific~aaterra e preparada para a moldagem. Ajarra e feita de argila, Coma argila de que e feita, a jarra pode pousar no chao da terra, seja dire-tamente, seja indiretamente, sobre uma mesa ou banco. A pro-ducaofaz ajarra subsistir em si. Tomando, assim, ajarra, como urn recepta-culo pro-duzido, nos a tomamos, na verdade, como uma coisa, e nao,como simples obieto, ao menos e 0 que parece.

Ou sera que, mesmo entao, ainda tomamos a jarra, como obje-to? De fato. Sem duvida, ja nao sera apenas 0 objeto de uma merarepresentacao mas, em cornpensacao, sera 0 objeto, que umapro-ducao pro-duz e a-duz, pondo defronte de nos. 0 subsistir em sipor si mesmo parecia caracterizar a jarra, como coisa. Na verdade,porem, pensamos 0 ser e estar em si pela pro-ducao e a partir dela.Pois a subsistencia e a meta a que visa a pro-ducao. Neste sentido,pensa-se a subsistencia, ainda e apesar de tudo, pela objetividade,embora 0 opor-se e contrapor-se do objeto pro-duzido ja nao se ba-seie numa simples representacao. De fato, da objetividade do obje-to e da subsistencia em si, nenhum caminho leva ao modo propriode ser coisa da coisa, a coisalidade.

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Que e 0 coisal da e na coisa? Que e a coisa em si mesma? So-mente depois de pensar a coisa, como coisa, e que se pode chegar acoisa em si mesma.

Ajarra e uma coisa, como receptaculo. Sem diivida, 0 recipien-te do receptaculo necessita ser pro-duzido, Todavia, ser pro-duzidopelo oleiro nao constitui nem perfaz, de forma alguma, 0 ser pro-prio da jarra, a medida que e enquanto 0 seu ser e a jarra. A jarranao e receptaculo por ter sido pro-duzida, ao contrario, ela teve deser pro-duzida, por ser e para ser este receptaculo, que e uma jarra,

E, com certeza, a pro-ducao, que deixa a jarra intro-duzir-seno modo proprio de seu ser. Contudo, este modo proprio de serda jarra nunca tern sua propriedade da pro-ducao. Liberada dosvencilhos da moldagem, a jarra se recolhe e concentra em rece-ber. Certamente, no processo de pro-ducao, a jarra tern de apre-sentar, primeiro, ao pro-dutor 0 perfil e a fisionomia de seu ser.Mas esta apresentacao do modo de ser no perfil e na fisionomia(eioo<;, iota) de jarra so a distingue e caracteriza, dentro daperspectiva, em que 0 receptaculo a ser pro-duzido se poe, quan-do encara 0 processo de pro-ducao,

o que 0 modo de ser do receptaculo, que se deixa ver no perfilde jarra, e e 0 que a jarra e, como esta coisa propriamente dita jar-ra, isso nunca se deixa experienciar e muito menos pensar na pers-pectiva do perfil, da icSEa. Platao pensou a vigencia do vigenteapenas pelo perfil de seu ser. Assim pensando, ele nao pensou a vi-gencia essencial da coisa, como tambem nao 0 fizeram Aristotelese todos os pensadores posteriores. De modo decisivo para toda aposteridade, Platao fez a experiencia de todo ser vigente, como ob-jeto de pro-ducao de urn pro-dutor, Em vez de obieto, dizemos, commais precisao de pensamento: pro-duto. Pois, na vigencia total dospro-dutos, opera e vigora urn duplo pro-duzir: de urn lado, urnpro-duzir, no sentido de provir de..., quer se trate de emergir por simesmo ou de ser pro-duzido: de outro, urn pro-duzir, no sentido deinserir 0 pro-duzido num espaco de desencobrimento ja vigente.

E que toda apresentacao de urn vigente, como pro-duto e/oucomo objeto, nunca chega ate a coisa, como coisa. 0 ser coisa da jar-ra esta em ser ela urn receptaculo, Enchendo a jarra, percebemos

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logo 0 recipiente do receptaculo. Fundo e paredes se ocupam, clara-mente, da recepcao. Mas vamos devagarl Ao encher a jarra de vinho,sera mesmo que vazamos 0 vinho nas paredes e no fundo? No maxi-mo, derramamos 0 vinho entre as paredes e sobre 0 fundo. Parede efundo sao, certamente, 0 imperrneavel do receptaculo, Imperrneavelainda nao e, porem, recipiente. Ao encher a jarra..o Ifquidovaza paradentro da jarra vazia. 0 vaziq e 0 recipiente do receptac~lo. 0 ~o,o nada na jarra, e que faz a jarra ser urn receptaculo, que recebe.

E, nao obstante, a jarra consta realmente de parede e fundo.E e com aquilo de que consta, que a jarra se poe e fica de pe,Pois, que seria de uma jarra que nao ficasse em pe? Seria, no mf-nimo, uma jarra fracassada. Sem duvida, ainda seria sempre jar-ra, a saber, urn receptaculo, que recebe, mas, caindo continua-mente, deixaria vazar 0 recebido. E que vazar so pode mesmo urnreceptaculol

Parede e fundo, de que e feita a jarra e com que fica em pe, naoperfazem propriamente 0 recipiente. Caso, porem, este estivesseno vazio da jarra, entao, 0 oleiro, que molda, no torno, parede efundo, nao fabrica, propriamente, a jarra; ele molda, apenas, a argi-la. Pois e para 0 vazio, no vazio e do vazio que ele conforma, na ar-gila, a conforrnacao de receptaculo. 0 oleiro toea, primeiro, e toea,sempre, no intocavel do vazio e, ao pro-duzir 0 recipiente, 0

con-duz a configuracao de receptaculo, E 0 vazio da jarra que de-termina todo tocar e apreender da pro-ducao. 0 ser coisa do recep-taculo nao reside, de forma alguma, na materia, de que consta, masno vazio, que recebe.

Mas, e a jarra, estara realmente vazia?

A fisica nos assegura que a jarra esta cheia de ar e de tudo quecompoe 0 ar. Apoiando-nos no vazio da jarra, apenas nos deixamosseduzir por urn modo de avaliar meio poetico.

Tao logo, porern, acedemos a investigar cientificamente a jarrareal, em sua realidade, surge uma outra conjuntura. Ao vazar 0 vi-nho na jarra, 0 ar, que ja enche a jarra, e deslocado e substituidopor urn liquido, Do ponto de vista da ciencia, encher a jarra equiva-Ie a trocar urn conteudo por outro.

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Estas indicacoes da fisica sao, sem duvida, corretas. Com elas,\J-

a ciencia apresenta 0 real, pelo qual ela objetivamente se rege, porisso, cor-retas. Mas sera que a jarra e este real? - De forma alguma,A ciencia sempre se depara e se encontra, apenas, com 0 que seumodo de representacao, previamente, Ihe permite e Ihe deixa,como objeto possivel.

Diz-se que 0 conhecimento da ciencia e dotado de uma forcaconstrangenje. Mas onde esta e reside esta constrangencia? Emnosso caso, na constrangencia de abandonar a jarra cheia de vi-nho, e por, em seu lugar, urn espaco oco, onde urn Iiquido se espa-Iha. A ciencia faz da coisa-jarra algo negativo, enquanto nao deixaras coisas mesmas serem a medida e 0 parametro.

"< 0 conhecimento da ciencia, que e constrangente em seu am-bito, ou seja, 0 setor dos objetos, ja anulou as coisas, como coisas,muito antes de a bomba at6mica explodir. Esta explosao e, ape-nas, a confirrnacao mais grosseira dentre todas as outras, de quea anulacao da coisa, de ha muito, ja aconteceu. It a afirrnacao deque a coisa, como coisa, virou nada. Esta reducao a nada inquietatanto, por trazer consigo uma dupla cegueira. De urn lado, por in-duzir que, antes de qualquer outra experiencia, ela atinge 0 realem sua realidade; de outro, por criar a ilusao de que, apesar dapesquisa cientifica do real, as coisas pudessem continuar sendocoisas, 0 que pressuporia que elas ja tivessem vigido e estado emvigor, como coisas. Se, porem, as coisas ja se tivessem mostrado,como coisas, 0 ser coisa das coisas, a coisalidade, ja se teria rnani-festado, ja teria reivindicado e preocupado 0 pensamento. Na ver-dade, porem, a coisa, como coisa, continua vedada e proibida,continua reduzida a nada e, neste sentido, anulada. It 0 que aeon-teceu e acontece, de modo tao essencial, que nao somente ja naose permite nem aceita que as coisas sejam, como tarnbern que ja-mais tenham podido aparecer, como coisas.

Em que repousa e se planta este nao-aparecimento da coisa,como coisa? Sera que 0 homem simplesmente se descuidou deapresentar a coisa, como coisa? Ora, 0 homem so se descura do queja Ihe foi destinado. 0 homem so pode apresentar, de qualquer rna-neira que seja, 0 que, antes, ja se iluminou e cIareou, por si mesmoe se Ihe apareceu, em sua propria luz e cIaridade.

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Que e, entao, a coisa, como coisa, cuja vigencia ainda nao podenem teve condicoes de aparecer?

Sera que a coisa nunca chegou suficientemente perto da proxi-midade do homem, de maneira que ele ainda nao aprendeu inteira-mente a dar-se conta e a reparar a coisa, coino coisa? Que eproximidade? Esta pergunta ja foi levantada. It, para fazer-lhe a ex-peri encia, que interrogamos a jarra em sua proximidade.

Em que se baseia e assenta 0 ser-jarra da jarra? De repente, 0

perdemos de vista e justamente no momenta em que predominou ailusao de que a ciencia nos pudesse esclarecer sobre a realidade dajarra real. Representamos a acao do receptaculo, 0 que nele ha dereceptivo, a saber, 0 vazio, como urn espaco oco cheio de ar. Tal e,na perspectiva da fisica, 0 vazio real. Mas nao e 0 vazio da jarra.Nao deixamos 0 vazio ser 0 vazio da jarra. Nao levamos em conta 0

que e 0 recipiente no receptaculo, Nao pensamos 0 modo em que apropria recepcao vigora em si mesma. It por isso que tam bern tevede nos escapar 0 que a jarra recebe. Para a representacao da cien-cia, 0 vinho se tornou mero Iiquido, urn agregado universalmentepossivel de substancias, Deixamos de refietir e pensar no que a jar-ra recebe e como 0 faz.

Como e que 0 vazio da jar@? Ele recebe, a_£QLhendo0que nele se vaza. Ele recebe, retendo 0 recebido. 0 vazio recebe dedois modos: acolhendo \!/(etendo. Por iSSQ,o'verbo "receber" earn-biguo. Tanto 0 acolh}(da vaza como 0 reter do v~do pertencem,porem, reciprocarnente urn ao outro. Sua uniao se ae~mina pelovazar com que s/acha em sintonia a jarra, como jarra. Assim, are-cepcao dupla do vazio repousa, portanto, na vaza. Somente comovaza e que-a recepcao se faz e se torna tal como ela e. 0 vazan dajarr~ e do~ It no doar da vaza que vige e vigora 0 recipiente do re-~odo ~ta do vazio, como recipiente. A vi-gencia do vazio recebedor se recolhe e concentra em doar. It quedoar e mais rico do que urn simples dispensar. 0 doar reune em siaquela dupla recepcao e a recolhe a vaza. Chamamos de montanhauma reuniao de montes. Assim tambem chamamos de doacao are-uniao daquela dupla recepcao na vaza, que, em conjunto, constituie perfaz, entao, a vigencia plena e completa da doacao. Ate a jarra

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vazia resguarda e retem sua vigencia a partir e pela doacao, apesarde a jarra vazia nao perrnitir nenhuma doacao, Esta nao-perrnissaoe, contudo, propria da jarra e somente da jarra. Uma foice, ao con-trario, ou urn martelo nao sao capazes de uma nao-perrnissao des-tas, isto e, de nao permitir doacao da vaza.

A doacao da vaza po de ser uma bebida. Entao ela da agua, elada vinho para beber.

Na agua doada, perdura a fonte. Na fonte perdura todo 0 con-junto das pedras e todo 0 adorrnecimento obscuro da terra, que re-cebe chuva e orvalho do ceu. Na agua da fonte, perduram asmipcias de ceu e terra. As nupcias perduram no vinho que a frutada vinha concede e no qual a forca alimentadora da terra e 0 sol doceu se confiam urn ao outro. Na doacao da agua, na doacao do vi-nho perduram, cada vez, ceu e terra. A doacao da vaza e, porern, 0

ser-jarra da jarra. Na vigen cia da jarra, perduram ceu e terra.

A doacao da vaza e bebida para os mortais. E ela que lhes re-fresca a sede. E ela que lhes refrigera 0 lazer. E ela que lhes alegraos encontros, a convivencia, Mas, as vezes, 0 dom da jarra se doana e para uma consagracao, Desta vez, a vaza de sagracao naomata a sede, acalenta a celebracao da festa, no aconchego do alto.Aqui a doacao da vaza nem se doa numa tenda nem se faz bebidados mortais. Agora a vaza se torna pocao dedicada aos imortais. Adoacao da vaza encontra, na pocao, 0 dom, em sentido proprio. Eno dom da pocao consagrada que, ao vazar, a jarra vive, como doa-c;ao dispensatriz de dons. Pocao sagrada e 0 que, propriamente,evoca a palavra "Cuss", "vaza", a saber: dadiva e sacriffcio. "Vaza" e"vazar" e, em grego, XEElV, no indo-europeu ghu, com 0 sentido deoferta sacrificial. Consumado na plenitude de sua vigencia, pens a-do no apelo de sua provocacao e dito na fidelidade de sua eloqiien-cia, vazar significa: oferecer, sacrificar e, assim, doar. Tal e 0 unicomotivo porque, ao apequenar-se, em sua vigencia essencial, vazarpode reduzir-se a urn mero derramar dentro ou fora, ate chegar,por fim, a degenerar numa pura e simples venda de bebidas. Vazarnao diz apenas verter para dentro e para fora.

Na doacao da vaza, no sentido de bebida, vivem, a seu modo,os mortais. Na doacao da vaza, entendida, como oferenda, vivem, a

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seu modo, os imortais, que recebem, de volta na doacao da oferla,a doacao da dadiva. Na doacao da vaza, vivem, cada qual de mododiferente, os mortais e imortais. Na doacao da vaza, vivem terra eceu. Na doacao da vaza, vivem, em conjunto, terra e ceu, mortais eimortais. Os quatro pertencem, a partir de sua uniao, a uma con-juncao. Antecipando-se a todos os seres, eles se conjugam numaunica quadratura de reuniao,

Na doacao da vaza, vive a simplicidade dos quatro.

A doacao da vaza doa a medida que deixa morar, numa mora-dia, terra e ceu, mortais e imortais. Mas morar ja nao diz agora asimples perrnanencia de algo meramente dado. Morar apropria pro-priedades. Leva os quatro a clareira do proprio de cada urn. A par-tir de sua simplicidade, eles se recomendam e se confiamreciprocamente uns aos outros. E na reuniao desta reciproca fian-ca que eles se des-velam e des-cobrem que sao 0 que sao. A doacaoda vaza deixa morar, na simplicidade, a quadratura dos quatro.Ora, na doacao da vaza, vive e vigora a jarra, como jarra. A duplarecepcao, 0 recipiente, 0 vazio e a vaza, como libacao de oferenda.o que se recolhe, na doacao, recolhe-se a si mesmo, ao deixar epara deixar morar a quadratura na apropriacao de sua proprieda-de. E neste recolher numa simplicidade multipla de conjuncao, quevive a vigencia e 0 vigor da jarra. Urna antiga palavra(l nossa lin-__.gua evoca esta forca de reuniao e acolhimento - thing. vigenciada jarra reside em morar na reuniao puramente desta qua-dratura de uniao, E a conjuncao de coisa. E 0 que significa dizer: ajarra e jarra, como coisa. Mas como e que a coisa vige e vigora? Acoisa coisifica, no sentido de, como coisa, reunir e conjugar, numaunidade, as diferencas. A coisa, como coisa, reune e conjuga, Estecoisificar nao faz senao recolher. Na apropriacao da quadratura,em sua propriedade, a coisificacao ajunta-lhe a passagem por cadamomenta de duracao: nesta e naquela coisa.

Reservamos 0 termo coisa para a vigencia da jarra experimen-tada e pensada desta maneira. Este termo designa a tarefa da coisa,a saber, a coisalidade, no sentido de duracao da quadratura, numamoradia, que recolhe e apropria propriedades. Na ocorrencia, re-metemos tambem a antiga palavra thing do antigo alto-alemao.Esta referenda a historia da lingua muito facilmente leva a enten-

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der-se mal a maneira em que, aqui e agora, se pensa a vigencia dacoisa. Poderia parecer que a vigencia da coisa, aqui proposta, tives-se sido, por assim dizer, extrafda magicarnente de uma significacaotomada, ao acaso, da palavra thing. E, assim, levanta-se a suspeitade que a experiencia acima tentada da vigencia da coisa, se funde efundamente na arbitrariedade de urn jogo etimologico, Consoli-da-se a impressao, ja corrente, de que, aqui, em lugar de pensar, seusa simplesmente 0 dicionario.

Na verdade, 0 que ocorre e justamente 0 contrario de todas es-tas suspeitas. Nao ha duvida de que a palavra thing do antigoalto-alernao designa a reuniao convocada, para tratar de urn assun-to em questao, de uma questao em disputa. Em consequencia, asantigas palavras alernas, thing e dine, se tornarn termos para dizerassunto e questao: designarn tudo que, de alguma maneira, atingee concerne 0 homem e que, por isso, esta sempre em debate. Os ro-manos usavam res; eipco (prp:os, pij'tµa, pfiµa) diz em grego: fa-lar sobre alguma coisa, tratar de alguma coisa, negociar uma coisa.Res publica nao significa, para urn romano, 0 Estado, a Republica,mas tudo que tocar, concernir e disser respeito publicamente a to-dos e a cada urn dos cidadaos do povo, sendo, por isso, 0 que Ihe"pertence", 0 que se trata, em praca publica.

Somente por dizer e significar 0 que toea, diz respeito e con-cerne, res pede formar as expressoes latinas res adversae e res se-cundae: a primeira diz 0 que toea e concerne 0 homem, de mododesfavoravel e contrario, enquanto a segunda designa 0 que atin-ge 0 homem, de modo favoravel e benfazejo. Os dicionarios tradu-zem res adversae por desventura e infortunio, e res secundae,por ventura e fortuna. So que os dicionarios nao dizem nada doque dizem as palavras na experiencia originaria de pensamento.Por isso, neste caso, como nos demais, nao e verdade que 0 nossopensamento viva de etimologias. Vive, antes, de pensar a atitudevigorosa daquilo que as palavras, como palavras, nomeiam de for-ma concentrada. A etimologia, junto com os dicionarios, aindapensa pouco demais.

A palavra romana res evoca 0 que toea e concerne 0 homem,diz 0 caso, a questao, 0 que esta em causa. Por isso, os romanosusavam tambern, no mesmo sentido, a palavra causa. Mas este ter-

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mo latino nao significa propria e primordialmente a "causa", nosenti do da causalidade. Causa designa 0 caso e, por isso tambern, 0que esta em jogo e na lide. Somente porque causa, quase sinonimode res, significa 0 caso e que, depois, a palavra causa veio a signifi-car a causalidade de urn efeito. No senti do de reuniao, a saber, dereunir para tratar de urn assunto do interesse de todos, as palavrasthing e dine do antigo alto-alemao sao as mais adequadas para tra-duzir convenientemente a palavra romana res, e assim, 0 que con-cerne e diz respeito. Da palavra latina, que melhor corresponde ares, isto e, da palavra causa, no sentido de caso e assunto de inte-resse geral, derivam-se os termos neolatinos: la cosa, a coisa, 0

frances la chose. 0 alernao diz das Ding. Em ingles, thing conservaainda toda a eloquencia da palavra latina res: he knows his things,ele entende de suas coisas, daquilo que Ihe toea, concerne e diz res-peito; he knows how to handle things, ele sabe como deve tratardas coisas, isto e, do que esta em questao cada vez; that's a greatthing, e uma grande coisa (importante, magnifica, poderosa), istoe, algo que, por si mesmo, toea e atinge 0 homem.

Todavia, 0 decisivo aqui nao e, de forma alguma, esta pequenahistoria da significacao das palavras res, Ding, causa, cosa, coisa,chose, thing, mas algo totalmente diferente que ainda nao levamosem conta. A alavra latina res evoca 0 que, de al u neira in-teressa e diz respeito ao homem. Ora, 0 que assim se faz e se tornaatinente ao homem e 0 real da re -a realitas da res. Os romanos avivem e expenmentam, com atmencia. as os romanos nuncapensaram propriamente 0 vigor e ~ cia do que assim experi-mentavam. Ao contrario, numa representacao herdada da filosofiahelenista, entenderam a realitas da res no sentido do grego ov; ov,em latim, ens, significa 0 "sendo", 0 que e e esta sendo, no sentidode pro-duto. A res torna-se ens, 0 "sendo", enquanto 0 que epro-duzido e representado. ~realitas caracteristica da res, experi-mentada originariamente pelos romanos, a atinencia, fica e perma-nece entulhada, enquanto vigen cia do vigente. Em contrapartida,o termo res serve depois, especialmente na Idade Media, para de-signar todo ens qua ens, isto e, tudo que, de alguma maneira, e eesta sen do, mesmo que seja e esteja sen do apenas na mente, comoens ration is. Igual sorte a da palavra res, teve 0 termo dine corres-

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pondente a res; pois dine diz tudo que e, de algum modo. Assim,Mestre Eckhart utilizou a palavra dine tanto para Deus como paraa alma. Deus e "das hoeehste und oberste dine", "a coisa mais ele-vada e suprema". A alma e "ein groz dine", uma coisa grandiosa,Com isto, este Mestre de pensamento nao quer dizer que Deus e aalma sejam urn rochedo de pedra, urn objeto material; dine e aquiurn termo cuidadoso e sobrio para designar tudo que simplesmen-te e. Assim, seguindo uma palavra de Dionisio Areopagita (editor:provavelmente trata-se de Santo Agostinho): "diu minne ist dernatur, daz si den mensehen wan~elt in die dine, die er minnet".

Na linguagem da metafisica ocidental, a palavra coisa diz 0 que,de alguma maneira, e algo. Por isso tam bern se altera a significacaodo termo "coisa", segundo se entenda e interprete 0 "sendo", 0 quee e esta sendo. Kant fala da coisa, do mesmo modo que MestreEckhart, pois entende, por coisa, algo que e e esta sendo. Mas, paraKant, 0 que e e esta sendo e 0Qhleto_darepresentacao que se proces-sa na autoconsciencia do eu humano. A coisa em si designa paraKant: 0 objeto em si. 0 carater de "em si" diz que 0 objeto em si e ob-jeto, independente de qualquer relacao com a representacao do ho-mem, isto e, sem 0 "ob", a contraposicao e oposicao, com que 0

objeto se poe contra, isto e, se opoe a representacao. Pensando, demodo rigorosamente kantiano, a "coisa em si" designa urn obietoque nao e objeto, por dever estar e ser, sem nenhum "ob" possive!,isto e, sem nenhuma oposicao a representacao humana, que the vernao e de encontro.

o termo "coisa", utilizado na filosofia, teve sua slgnificacaoampla muito desgastada, Mas nem esta significacao geral e nem 0

antigo significado em alemao da palavra "thing" nos ajudam, porpouco que seja, neste impasse de fazer a experiencia e de pensar,de modo penetrante, a vigencia ontologica do que, agora, dizemosdo modo de ser da jarra. Por outro lado, 0 que, de fato, acontece eum momenta da significancia do antigo uso da palavra thing, a sa-ber, 0 senti do de "recolher e reunir", correspondente a vigencia dajarra, que se pensou acima.

Ajarra e uma coisa, so que nao no sentido da res dos romanos,nem no senti do do ens da Idade Media e nem, muito menos, no sen-tido do objeto na representacao da Idade Moderna. A jarra e uma

coisa, nao, como objeto, seja da pro-ducao ou de simples represen-tacao. A jarra e uma coisa a medida e enq1!anto cojsjfica, DO sentj-do de reunir e recolher, numa ynjdade, as diferencas. E a partirdesta coisificacao da coisa que se apropria e se determina, entao, avigencia do vigente deste tipo, a jarra.

Hoje todo vigente esta igualmente proximo e igualmente distan-teoHoje domina e reina a falta de distancia. Ora, todo encurtamentoe toda supressao dos afastamentos nao nos trazem nenhuma proxi-midade. Que e proximidade? Para encontrar a vigencia da proximida-de, nos nos empenhamos em pensar a jarra na proximidade.Procuravarnos a vigencia da proximidade e achamos a vigencia dajarra, como coisa. Mas, neste achado, percebemos, ao mesmo tempo,a vigencia da proximidade. Pois a coisa coisifica no sentido de, comocoisa, reunir e conjugar numa unidade as diferencas, Nesta coisifica-~ao da coisa, perduram terra e ceu, mortais e imortais. Perdurandoassim, a coisa leva os quatro, na distancia propria de cada urn, a pro-ximidade reciproca de sua uniao. Este levar consiste em aproximar.Ora, aproximar e a vigencia, a essencia dinamica da proximidade. Aproximidade aproxima 0 distan e iolar-lhe e sim reservan-aO-I~ Proximidade resguarda a distancia. No resguar 0

<raGistal1cia, a proximidade vige e vigora na aproximacao. Aproxi-mando deste jeito, a proximidade se resguarda a si mesma e, assim,de acordo com seu modo de ser, permanece sendo 0 mais proximo.

A coisa nao esta "na" proximidade, como se esta fosse urn con-tinente. Proximidade so se da e acontece na aproximacao cumpridapela coisificacao da coisa.

Coisificando, a coisa deixa perdurar a uniao dos quatro, terra eceu, mortais e imortais na simplicidade da sua quadratura, que uni-fica por si mesmo.

A terra e 0 sustentaculo da construcao, a fecundidade na apro-ximacao, estimulando 0 conjunto das aguas e dos minerais, da ve-getacao e da fauna.

Quando dizemos terra, ja pensamos tarnbem, caso pensemos,nos outros tres, a partir da simplicidade dos quatro.

o ceu e 0 caminho do sol, 0 curso da lua, 0 brilho das constela-coes, as estacoes do ano, luz e c1aridade do dia, a escuridao e densi-

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156 Ensaios e conferencias A coisa

dade da noite, 0 favor e as intemperies do cIima, a procissao denuvens e a profundeza azul do eter,

Quando dizemos ceu, ja pensamos tambem, caso pensemos,nos outros tres, a partir da simplicidade dos quatro.

Os imo~ sao acenos dos mensageiros da divindade. E, na regen-cia encoberta da divindade, que Deus aparece, em sua vigencia essenci-ai, que 0 retira de qualquer comparacao com 0 que e e esta sendo.

Quando invocamos os imortais, ja pensamos tarnbem, casopensemos, nos outros tres, a partir da simplicidade dos quatro.

( Os ~ sao os homens. Sao .assim chamados porque po-dem morrer. Morrer significa: saber a morte, como morte. Somen-te 0 homem morre. 0 animal finda. Pois nao tern a morte nemdiante de si, nem atras de si. A morte e 0 escrfnio do Nada, do quenunca, em nfvel algum, e algo que simplesmente e e esta sendo. Aocontrario, 0 Nada esta vigindo e em vigor, como 0 proprio ser.Escrfnio do Nada, a morte e 0 resguardo do ser. Chamamos aqui demortais os mortais - nao por chegarern ao fim e finarem sua vidana terra, mas porque eles sabem a morte, como morte. Os homenssao mortais antes de findar sua vida. Os mortais sao mortais, porserem e vingarem, no resguardo do ser. Sao a referenda vigente aoser, como ser.

A metaffsica, ao contrario, apresenta 0 homem, representan-do-o, como animal, como ser vivo. Mesmo com a animalitas atra-vessada e regida pel a ratio, 0 ser homem se determina pela vida,seu viver e suas vivencias, E da e pel a vida racional que os mortaisdevem, entao, vir a ser mortais.

Quando dizemos mortais, pensamos tambem, caso pensemos,nos outros tres, a partir da simplicidade dos quatro.

Unindo-se por si mesmo uns com os outros, ceu e terra, mortaise imortais pertencem, em conjunto, a simplicidade da quadraturade reuniao. A seu modo, cada urn dos quatro reflete e espelha devolta a vigencia essencial dos outros. A seu modo, cada urn refletee espelha sua propriedade, dentro da simplicidade dos quatro. Esterefletir e espelhar nao e e nem consiste em expor 0 reflexo de uma

reproducao. Iluminando cada urn dos quatro, 0 refletir e espelharlhes apropria a propria vigencia, na apropriacao de uma unidaderecfproca. E refletindo de acordo com este modo de apropriacao lu-minoso que cad a urn dos quatro combina e realiza urn conjuntocom os outros. 0 refletir de apropriacao libera para sua proprieda-de cada urn dos quatro, a medida que liga e enlaca os, assim, libera-dos na simplicidade de sua recfproca referencia,

o reflexo, que liga e enlaca os liberados com a liberdade, e 0

jogo que cada urn dos quatro confia e deixa a cada outro, confian-do-os ao desdobrar-se da apropriacao. Nenhum dos quatro insistenuma individualidade separada. Ao contrario. Cada urn dos quatrose deixa levar, dentro de sua apropriacao, para 0 que the e proprio.Esta apropriacao apropriadora e 0 jogo de espelho e reflexo daquadratura. E a partir dele que a simplicidade dos quatro se fia,confia e compromete.

Da-se 0 nome de mundo a este jogo em espelho, onde se apro-pria a simplicidade de terra e ceu, de mortais e imortais. Mundo emundo, no vigor que instaura mundo, que, portanto, mundaniza.Mundanizar diz, pois: nao se pode explicar a mundanizacao domundo por urn outro e nem se po de perscrutar-lhe 0 fundamentoem outro ou a partir de outro. Esta impossibilidade nao provem deuma incapacidade de explicar e fundamentar do pensamento hu-mano. E que causa e fundamento estao em desacordo com a mun-danizacao de mundo. Nesta dissonancia, repousa a impossibilidadede explicar e fundamentar a mundanizacao de mundo. Ao exigiraqui uma explicacao, 0 conhecimento humano nao se poe acimamas abaixo da vigencia de mundo. 0 querer explicar do homemnao alcanca a unidade simples da singularidade unitaria do munda-nizar. Ao serem representados, apenas, como urn real particular,fundando-se e explicando-se urn pelo outro, os quatro conjugadossao sufocados em sua vigen cia essencial.

A uniao da quadratura e 0 quarteto. Todavia, 0 quarteto nao seda nem acontece, abracando os quatro e ajuntando-se-Ihes, ao de-pois, nesse abraco. 0 quarteto tambern nao se esvai e esgota, porestarem os quatro, uma vez dados, apenas urn junto dos out ros.

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o quarteto vive na apropriacao do jogo e como jogo de espelhodos quatro, que se fiam e confiam no compromisso reciproco deunir 0 desdobramento. 0 quarteto se da na mundanizacao de mun-do. 0 jogo de espelho do mundo se concentra na roda de danca daapropriacao. E e por isso que a danca nao abarca simplesmente osquatro num aro. A danca de roda e 0 no (der Ring) de luta que setorce, retorce e contorce no jogo de espelho. Apropriando, 0 no deluta ilumina os quatro, no brilho de sua simplicidade. Na luz do bri-Iho, 0 no apropria os quatro, abrindo-os, por toda parte, para 0 mis-terio de sua vigencia. A vigen cia concentrada do iogo de espelhodo mundo assim em luta e 0 no que se concentra em pouco (dasGering). Pelo no do jogo de espelho, que se concentra em pouco,os quatro se dobram e ajustam a sua vigen cia unificante, mas pro-pria de cada urn. Nesta flexibilidade, eles se ajuntam doceis, mun-danizando mundo.

Para dizer flexfvel, ductil, maleavel, docil, facil, 0 antigo ale-mao dizia "ring" e "gering". Mundanizando-se, 0 jogo de espelho ereflexo de mundo dispoe, como no de luta, a reuniao dos quatro,isto e, 0 flexfvel de sua vigencia, para a propria flexibilidade. A coi-sificacao da coisa se da na apropriacao de propriedades, pelo jogode espelho e reflexo do n6 que se concentra no pouco de sua luta.

A coisa leva a quadratura a perdurar. A coisa coisifica mundo,no senti do de concentrar, numa simplicidade dinarnica, as diferen-cas, Cada coisa leva a perdurar a quadratura em cada duracao dasimplicidade de mundo.

Pensar a coisa, como coisa, significa deixar a coisa vigorar eacontecer em sua coisificacao, a partir da mundanizacao de mun-do. Pensando, destarte, nos nos deixamos manejar pela vigenciamundanizante da coisa. Tornamo-nos, entao, no rigoroso senti doda palavra, "coisados", isto e, condicionados pela coisa. Deixamos,entao, para tras a pretensao de todo "incoisado", isto e, de todo in-condicionado pela coisa.

Ao pensar a coisa, como coisa, pouparno-lhe a vigencia de coi-sa, protegendo-a no ambito em que ela vige e vigora. No senti do dereunir e recolher diferencas numa unidade, coisificar e aproximarmundo. Ora, aproximar constitui a vigencia e 0 vigor essencial da

A coisa l!l!)

proximidade. Poupando, pois, a coisa, como coisa, moramos na pro-ximidade. A aproximacao da proximidade e a unica dimensao pro-pria do jogo de espelho de mundo.

A ausencia da proximidade em toda supressao dos afastamen-tos conduziu ao imperio da falta de distancia. Na ausencia da proxi-midade, anula-se, no sentido acima indicado, a coisa, como coisa.Quando, porern, e como as coisas sao, como coisas? E a perguntaque se e levado a fazer, em pleno imperio da distancia.

Quando e como as coisas chegam, como coisas? Nao chegamatraues dos feitos e dos artefatos do homem, mas tambem nao che-gam, sem a vigilancia dos mortais. 0 primeiro passo na direcao des-ta vigilia e 0 passo atras, 0 passo que passa de urn pensamento,apenas, representativo, isto e, explicativo, para 0 pensamento me-ditativo, que pensa 0 sentido.

Esta passagem de urn pensamento para outro nao esta, semduvida, apenas em simples troca de posicao, Algo assim ja naopode acontecer nunca porque as posicoes, junto com seus modosde troca, ja estao presas ao pensamento representativo. 0 passoatras abandona todo nfvel de urn simples posicionar-se, 0 passoatras instala-se numa correspondencia que, interpelada pelo sermundo dentro do mundo, responde-lhe em seu proprio ambito.Uma simples troca de posicoes nao pode propiciar, em nada, 0 ad-vento da coisa, como coisa, da mesma maneira que, agora, tudoque se poe, como objeto, na ausencia da distancia, nunca pode sim-plesmente virar coisa. As coisas nunca chegam, como coisas, pornos desviarmos apenas dos objetos ou por re-cordarrnos antigosobietos de outrora que, talvez, ja estivessem em vias de se torn a-rem coisas ou ate de serem, como coisas.

o pouco do no que se concentra no iogo de espelho do mundo,apropria 0 que se faz coisa. Somente quando, presumivelmente derepente, mundo se mundaniza, como mundo, e que se aperta 0 n6de luta, onde 0 no de terra e ceu, mortais e imortais se conquislapela luta de sua simplicidade.

Segundo esse pouco, a propria coisificacao se torna flcxlvel e acoisa se faz cada vez maleavel, inaparentemente docil a sua vigen-cia. A coisa e pouca coisa: a jarra e 0 banco, a prancha e 0 arado,

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mas, a seu modo, e tam bern coisa a arvore e 0 tanque, 0 riacho e 0

monte. Coisificando cada vez a seu modo, sao coisas garca e corea,cavalo e touro. Coisificando cada vez de modo diferente, sao coisasespelho e broche, livro e quadro, coroa e cruz.

Poucas, porem, as coisas tambem 0 sao em mimero, quandomedidas pelo sem-mimero dos objetos, com igual valor por todaparte, quando medidas pela desmesura da massificacao dos ho-mens, como seres vivos.

Apenas mortais, os hom ens habitam mundo, como mundo.Apenas 0 que de mundo se apouca torna-se coisa, pequeno no desimplicidade.

Traducao de Emmanuel Carneiro Leao

WI

Posfacio

Carta a urn jovem estudante

Friburgo, 18 de junho de 1950

Prezado Senhor Buchner,

Obrigado por sua carta. As suas questoes sao essenciais e a ar-gumentacao justa. Cabe, porem, pensar ainda se elas chegam a to-car 0 essencial.

o senhor pergunta, em resumo, de onde 0 pensamento do serrecebe seu aceno.

o senhor nao identifica "ser" com urn obieto e nem 0 pensamen-to com a mera atividade de urn sujeito. 0 pensamento, que sustentaa conferencia "A coisa", nao e, de modo algum, a representacao dealgo simplesmente dado. "Ser" nao se identifica absolutamente com arealidade ou com 0 real que se acabou de constatar. Ser nao se contra-poe, de forma alguma, ao nao-mais-ser e ao ainda-nao-ser, Tanto 0

nao-mais-ser como 0 ainda-nao-ser pertencem ao vigor de ser. A pro-pria metafisica, de algum modo, ja intui urn pouco disso na sua taopouco compreendida doutrina das modalidades. Segundo a doutrinametafisica das modalidades, ao ser pertence nao so realidade e neces-sidade como tambem possibilidade.

No pensamento do ser, nunca se re-presenta simplesmente urnreal e assume esse representado como 0 verdadeiro. Pensar "ser"significa: co-responder ao apelo de seu vigor. 0 co-responder surgedo apelo e a ele se entrega, Co-responder e retroceder para 0 apelo eassim aceder a sua linguagern. Ao apelo do ser pertence 0 ter-sido jadesvelado ('AA~eEta, A6yoc;" <l>UGU;) bern como 0 advento veladodaquilo que se anuncia, na virada possivel do esquecimento do ser(na verdade de seu vigor). 0 co-responder deve prestar atencao atudo isso, ao mesmo tempo, mediante urn longo recolhimento e urn