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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03008 A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA ACERCA DOS JOGOS E DOS DIVERTIMENTOS E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS AVANÇO, Leonardo D. (UNESP/CAPES) LIMA, José M. (UNESP) Introdução Atualmente, a ludicidade tem sido considerada um dos objetos de destaque para o pesquisador interessado pelas ciências. Ao contrário do ocorrido no passado da história do pensamento ocidental, o fenômeno recentemente ganhou espaço nos debates científicos e vem sendo teorizado pela psicologia, fisiologia, biologia, sociologia, antropologia, pedagogia, etc. Tal inversão de enfoques provavelmente sugere que a atual sociedade tem propiciado um espaço de vivências onde o lúdico constitui-se em um dos eventos centrais da vida humana, despertando o interesse do pesquisador. Isto não quer dizer que atualmente a ludicidade esteja mais presente do que esteve antes na dinâmica da vida de sociedades pretéritas, pois como bem ressaltaram os especialistas na temática Huizinga (2008) e Caillois (1994), os jogos e as brincadeiras se constituem em práticas presentes nas mais remotas épocas de formação das sociedades, embora sua forma e conteúdo tenham se transformado no transcurso do desenvolvimento da história social. Ocorre que, por diversas razões, atualmente a ludicidade torna-se um dos temas centrais de pesquisas científicas, ao passo que desde os primórdios da filosofia tal tema ocupou regiões periféricas do interesse intelectual do pensador. De acordo com Duflo (1999), desde as considerações elaboradas por Aristóteles até as de Kant e Schiller, isto é, cerca de aproximadamente dois milênios, a temática do jogo pouco evoluiu no âmbito teórico, sendo que o interesse atualmente existente consiste em um fenômeno que não se observa no exame da filosofia e da ciência clássicas, pelo menos no que se refere aos principais nomes que marcam a história do pensamento ocidental.

A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA ACERCA DOS … exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Boa parte dos

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03008

A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA ACERCA DOS JOGOS E DOS

DIVERTIMENTOS E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

AVANÇO, Leonardo D. (UNESP/CAPES)

LIMA, José M. (UNESP)

Introdução

Atualmente, a ludicidade tem sido considerada um dos objetos de destaque para o

pesquisador interessado pelas ciências. Ao contrário do ocorrido no passado da história do

pensamento ocidental, o fenômeno recentemente ganhou espaço nos debates científicos e

vem sendo teorizado pela psicologia, fisiologia, biologia, sociologia, antropologia,

pedagogia, etc. Tal inversão de enfoques provavelmente sugere que a atual sociedade tem

propiciado um espaço de vivências onde o lúdico constitui-se em um dos eventos centrais

da vida humana, despertando o interesse do pesquisador.

Isto não quer dizer que atualmente a ludicidade esteja mais presente do que esteve

antes na dinâmica da vida de sociedades pretéritas, pois como bem ressaltaram os

especialistas na temática Huizinga (2008) e Caillois (1994), os jogos e as brincadeiras se

constituem em práticas presentes nas mais remotas épocas de formação das sociedades,

embora sua forma e conteúdo tenham se transformado no transcurso do desenvolvimento

da história social.

Ocorre que, por diversas razões, atualmente a ludicidade torna-se um dos temas

centrais de pesquisas científicas, ao passo que desde os primórdios da filosofia tal tema

ocupou regiões periféricas do interesse intelectual do pensador.

De acordo com Duflo (1999), desde as considerações elaboradas por Aristóteles até

as de Kant e Schiller, isto é, cerca de aproximadamente dois milênios, a temática do jogo

pouco evoluiu no âmbito teórico, sendo que o interesse atualmente existente consiste em

um fenômeno que não se observa no exame da filosofia e da ciência clássicas, pelo menos

no que se refere aos principais nomes que marcam a história do pensamento ocidental.

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Com efeito, o que pretendemos aqui discutir, de fato, é um assunto pouco

examinado ou retomado historicamente na teoria aristotélica, qual seja, as implicações

pedagógicas de sua concepção acerca dos jogos e dos divertimentos.

Diante da diversidade de abordagens que atualmente buscam compreender os

problemas que envolvem o estudo do jogo, poderíamos questionar: o que foi produzido nos

primórdios da filosofia influiu no modo hegemônico pelo qual atualmente se entende o

jogo e sua relação com a educação? Se sim, de que maneira? Quais as contribuições da

filosofia aristotélica para o desenvolvimento da temática da relação entre jogo e educação?

Dada a relevância dos trabalhos de Aristóteles para história cultural do Ocidente,

julgamos necessário realizar uma análise do seu pensamento e abordar um dos aspectos da

temática dos jogos e dos divertimentos presente na obra: Ética a Nicômaco. Por

conseguinte, espera-se que tal empreendimento teórico ofereça bases para uma reflexão

mais profunda, por um lado, acerca das relações entre jogo e educação na filosofia

aristotélica e, por outro lado, acerca das conseqüências desta concepção no

desenvolvimento das idéias que a este respeito surgiram no curso histórico.

Referencial Teórico

O presente trabalho parte de diferentes referenciais teóricos, embora possua uma

base de pensamento que se sustente no materialismo histórico.

Assim como propõe Chauí (2002), entendemos que para compreender determinado

tipo de sistema filosófico não podemos nos basear somente na interpretação pessoal que

realizamos das fontes textuais, mas devemos ampliar nossa leitura ao máximo de modo que

acompanhemos o desenvolvimento da filosofia do autor que pretendemos conhecer, por

meio do conhecimento dos debates realizados pelos principais intérpretes, comentadores e

defensores de seu sistema filosófico.

Este tipo de abordagem da pesquisa julga que o movimento e o desenvolvimento

fazem parte da natureza e da sociedade como um todo, inclusive da filosofia e da ciência,

mesmo que não haja uma finalidade ou propósito exterior às próprias relações que o

homem estabelece com a natureza e com a própria sociedade, e mesmo que seja o próprio

homem quem indica os critérios e os parâmetros do desenvolvimento objetivo dessas

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mesmas natureza, sociedade, filosofia e ciência, com as quais entra forçosamente em

relação.

Queremos dizer com isso que, por se tratar de materialismo, entende-se que as

idéias nascem muito posteriormente à matéria, ao passo que por se tratar de história,

compreende-se que o movimento e o desenvolvimento fazem parte tanto da matéria

inorgânica, quanto do ser orgânico e do ser social e, portanto, da cultura como um todo.

Isto quer dizer que um sistema filosófico não se encontra acabado de uma vez por todas

após ter sido escrito por seu autor, mas pode transformar-se na medida em que seja

possibilitado aos homens interpretá-lo na tentativa de encontrar respostas às questões que

elaboram em outras épocas históricas.

De acordo com Politzer (1999), o materialismo, ao contrário do idealismo, é uma

filosofia que se apóia na ciência, ao passo que o materialismo histórico e dialético surge

como uma filosofia que se baseia nos avanços dos saberes produzidos pela ciência do

século XIX, elaborando assim uma nova fase da filosofia materialista. É com base neste

referencial filosófico que apoiamos nossas análises em um âmbito mais geral, valorizando

principalmente a retomada da perspectiva histórica como a possibilidade de se

compreender o presente como um processo que se baseia no passado e que aponta

tendências para o futuro.

No que tange ao âmbito específico do referencial teórico aqui empregado, nos

apoiamos em algumas obras da filosofia de Aristóteles. Contudo, para os fins do presente

trabalho empregamos especial atenção à obra Ética a Nicômaco, uma vez que neste texto

Aristóteles expõe interessantes reflexões sobre o que se deveria entender acerca dos jogos

e dos divertimentos.

Objetivo Geral

O objetivo geral do presente trabalho pode exprimir-se nos seguintes termos:

compreender um específico aspecto da concepção aristotélica acerca dos jogos e dos

divertimentos e as respectivas implicações pedagógicas que por conseqüência derivam

desta concepção.

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Objetivos Específicos

Podemos resumir os objetivos específicos do presente trabalho em dois tópicos

essenciais:

a) suscitar uma reflexão mais profunda sobre a relação entre as teses teóricas de

Aristóteles e as atuais representações que o senso comum elaborou sobre o jogo;

b) resgatar uma temática pouco discutida no âmbito acadêmico e científico, qual

seja, a das contribuições que a filosofia clássica oferece para a ampliação dos debates

acerca das implicações pedagógicas do jogo.

Metodologia

Este é um trabalho de natureza teórica e assume o materialismo dialético como

método de compreensão da realidade histórica. Além disso, utilizamos a metodologia

teórico-bibliográfica para a sistematização e análise dos textos.

Segundo Kopnin (1978), o materialismo dialético enquanto lógica e teoria do

conhecimento pode possibilitar à ciência a compreensão dos fenômenos em sua essência

interna, isto é, do movimento real que não se apresenta ao investigador em seu primeiro

contato com a realidade, mas do qual ele vai se aproximando na medida em que reproduz

idealmente este movimento que originariamente é objetivo. Esta reprodução ideal do

movimento da realidade objetiva, que se apresenta a princípio em sua forma fenomênica e

aparente, é explicada pelo autor através da teoria do reflexo.

Esta teoria representa a chave para a compreensão das relações entre as leis do ser e

as leis do pensamento em sua unidade com a teoria do conhecimento. Seu princípio de base

fundamenta-se na tese de que o pensamento é reflexo do mundo objetivo, no entanto, não

se apresenta como uma cópia dele, pois os aspectos subjetivos possuem fundamental

importância na produção do conhecimento: o pensamento e a imaginação criam a realidade

humana de acordo com suas necessidades, porém somente na medida em que se apropriam

do movimento do mundo objetivo e posteriormente se voltam à realidade para transformá-

la por meio da atividade prático-objetiva. A contradição dialética entre objetividade e

subjetividade manifesta-se, portanto, na unidade da práxis humana, isto é, na atividade

prática, consciente, social e transformadora do homem (KOPNIN, 1978, p. 50).

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De forma análoga a Kopnin (1978), Kosik (1976, p. 28) formulou o método de

reprodução espiritual do movimento real-objetivo. Este autor também afirma que as leis do

pensamento refletem as leis da realidade objetiva. Nesta perspectiva, é evidenciado o

caráter dialético da produção do conhecimento na medida em que se compreende este

como um processo de minuciosa reconstrução ideal do movimento real do fenômeno no

interior de uma totalidade que o abrange, isto é, partindo-se do movimento que se processa

das partes para o todo e do todo para as partes.

Os conceitos de essência e verdade, portanto, não assumem para o método

materialista dialético a mesma significação que a lógica formal os emprega, isto é, como

conceitos que possuem as qualidades de imutabilidade, de eternidade, de absolutização.

Pelo contrário, a essência interna e as verdades sobre um fenômeno devem representar o

movimento que parte do fenômeno para essência e da essência para o fenômeno, de modo

que o conhecimento sempre deve se aproximar da totalidade concreta, que por sua vez não

é totalidade absoluta e fechada, mas totalidade que se faz, se refaz e se transforma no

processo histórico: tal é a concepção do materialismo dialético de interpretação dos

fenômenos.

É válido ressaltar que foi por meio do materialismo histórico e dialético que fomos

exortados a estudar os textos debatidos no presente trabalho. Aliás, é com o intuito de

realização de um resgate histórico, característica essencial da teoria e do método em

questão, que tal abordagem teórico-metodológica se afirma, uma vez que se entende que os

novos conhecimentos somente podem surgir na medida em que se apóiam no que já foi

produzido pela história da humanidade. Nesse sentido, a retomada dos textos de Aristóteles

se fez necessária na medida em que notamos uma falta de estudos mais profundos sobre a

contribuição da história da filosofia para a temática das relações entre jogo e educação. O

presente trabalho teórico, apoiado no materialismo histórico e dialético, busca suprir

relativamente parte deste problema, analisando algumas das importantes contribuições da

filosofia aristotélica.

Situemos neste momento o modo como a metodologia teórico-bibliográfica se

desenvolveu no presente trabalho. Segundo Gil (2002, p. 44) a pesquisa bibliográfica é

desenvolvida:

[...] com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja

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exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Boa parte dos estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. As pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que se propõem à análise das diversas posições acerca de um problema, também costumam ser desenvolvidas quase exclusivamente mediante fontes bibliográficas.

O autor afirma que a grande vantagem da pesquisa bibliográfica é permitir ao

investigador a captação de informações mais amplas sobre o fenômeno, visto que já foram

realizados estudos sobre o assunto, isentando o investigador da captação direta de dados

diversos. Os dados bibliográficos representam, portanto, o produto de estudos maduros ou

não sobre um fenômeno particular. Essa vantagem torna-se importante na medida em que

capacita a reunião de dados diversos exigidos pelo problema da pesquisa. O autor, no

entanto, ressalta a importância da identificação dos dados secundários, uma vez que muitas

pesquisas podem realizar o processo de coleta e de investigação de dados de forma

equivocada.

Durante todo o andamento deste trabalho realizamos o processo de documentação

sistemática. Segundo Severino (1993), a documentação, enquanto organização do estudo e

da produção teórica pessoal, pode ser dividida em três tipos: documentação temática,

bibliográfica e/ou geral. A documentação temática caracteriza-se pela captação de dados e

de elementos específicos a um assunto, sejam dados formais, anotações pessoais,

exposições de experiências vivenciadas no cotidiano, etc., desde que estejam relacionados

a um tema específico. A documentação bibliográfica, por sua vez, caracteriza-se pela

aquisição de dados específicos em fontes específicas, isto é, em fontes bibliográficas tais

como livros, artigos, revistas científicas, etc. Por fim, a documentação geral caracteriza-se

pela reunião de recursos materiais perecíveis, isto é, aqueles recursos sobre os quais o

pesquisador não possui o controle da publicação, que eventualmente podem perder-se com

o tempo ou seu acesso tornar-se complicado posteriormente. Estes podem converter-se em

documentação temática ou bibliográfica na medida em que são utilizados pelo pesquisador

em um trabalho futuro.

No presente trabalho focamos no processo de documentação bibliográfica, visto

que esta possibilita a compreensão do problema e auxilia de forma decisiva o cumprimento

dos objetivos. Assim, realizamos fichamentos sistemáticos de todas as obras aqui

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referenciadas. Contudo, para os fins aqui propostos, estamos nos apoiando como já foi

dito, em especial, na análise da obra Ética a Nicômaco.

Desenvolvimento

Para compreendermos o lugar do jogo na Ética de Aristóteles é fundamental que

situemos, antes de tudo, o princípio da causa final.

Aristóteles (1995) dizia, na Física, que todas as coisas que existem podem ser

analisadas com base em quatro tipos de causas: material, formal, eficiente e final. A causa

material representaria o princípio sensível pelo qual todo objeto é feito: por exemplo, uma

cadeira feita de aço. Porém, do ponto de vista da causa formal, esta mesma cadeira só

poderia tornar-se um dia cadeira por intermédio do modelo Cadeira (forma), que o homem

conhece e aplica ao aço (matéria). Em conseqüência, se é o homem quem conhece a forma

da Cadeira, é ele quem se afirma como a causa eficiente pela qual o aço pode transformar-

se em cadeira. Por fim, a causa final indica o destino, a função do objeto “cadeira”, que no

presente caso teria a finalidade de assento.

Este princípio metodológico da filosofia aristotélica foi utilizado na abordagem de

variados problemas de pesquisa, inclusive sobre os problemas que envolviam as questões

da compreensão do lugar do homem na ordem cosmológica. É necessário esclarecer,

entretanto, que o Homem, para Aristóteles (1985), era o cidadão adulto livre, excluindo as

crianças, as mulheres e os escravos.

Assim, identificava-se a carne e os ossos como a causa material do homem, bem

como a alma intelectual como a causa formal que o distinguia dos outros seres vivos

(ARISTÓTELES, 2003, p. 230-231). Quanto à causa eficiente, entendia-se que o homem

era um ser vivo que participava do gênero dos animais. Com efeito, os animais eram

gerados pelo esperma, que por sua vez seria portador do princípio ativo masculino que

animaria o princípio passivo feminino, culminando na reprodução (ARISTÓTELES, 1994,

p. 84).

A presente análise acerca do homem foi submetida rapidamente ao princípio de três

causas, restando agora examiná-lo com base na causa final. E é justamente neste campo

que se circunscreve o terreno da Ética, buscando respostas à questão: a que está destinada a

existência do Homem? Aristóteles (1984, p. 51) entendia que a maioria das pessoas tinha

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razão ao responder que a felicidade (eudaimonia) seria o fim da vida humana; porém,

julgava que as controvérsias se originavam da tentativa de identificação da questão: O que

é a felicidade?

Aristóteles (1984, p. 49) dizia que todas as ações do homem tenderiam para um

fim. Deste fim, poderíamos distinguir duas espécies, a saber: por um lado, os fins que

teriam em vista algo exterior à própria atividade que se realiza (por exemplo, os produtos

ou efeitos da atividade); por outro lado, os fins que visariam a si mesmos enquanto

atividade, isto é, as atividades que se justificam em seu próprio processar-se. De acordo

com esta distinção, julgou-se que a segunda categoria de fins deveria ser desejada pelos

homens, pois ela não necessitaria de nada mais além de si mesma para justificar-se e,

portanto, seria completa e perfeita, resultando na felicidade (o sumo bem) caso fosse

devidamente praticada.

Com efeito, a felicidade não poderia corresponder a estados de prazer sensível,

visto que estes sempre procurariam objetos exteriores ao próprio homem, consumando

fatalmente uma espécie de prazer conjugado à exterioridade, ou seja, de prazeres

mesclados e parciais. De acordo com Aristóteles (1984, p. 220), então, o mais genuíno dos

fins seria aquele que o escolhemos por si mesmo e não por uma causa exterior que

condicionaria a nossa escolha.

Algo dessa natureza não poderia derivar do mundo empírico-sensível, donde as

coisas estariam todas misturadas; pelo contrário, a felicidade deveria derivar de um plano

mais sublime, oposto ao meramente corpóreo.

[...] há muitas coisas que devemos desejar com todas as veras, ainda que não nos tragam nenhum prazer, como a vista, a memória, a ciência, a posse das virtudes. Não faz diferença que essas coisas sejam necessariamente acompanhadas de prazer: deveríamos escolhê-las mesmo que nenhum prazer resulta-se daí (ARISTÓTELES, 1984, p. 222).

Os prazeres corporais seriam contrapostos ao fundamento essencial à felicidade,

uma vez que seriam sempre mesclados, admitiriam graus (mais ou menos prazer ou dor) e,

principalmente, se originariam da fonte vil do ser humano, isto é, a fonte da sensibilidade:

“Parece claro, portanto, que nem o prazer é o bem, nem todo prazer é desejável, e que

alguns prazeres são realmente desejáveis por si mesmos, diferindo eles dos outros em

espécie ou quanto às suas fontes”, dizia Aristóteles (1984, p. 222).

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Os prazeres desejáveis por si mesmos, todavia, só poderiam derivar da outra fonte

que constitui o ser humano, a fonte da alma intelectiva. A contemplação, nesse sentido,

constituiria a atividade que os homens deveriam desejar, pois a sua natureza

corresponderia ao conceito de felicidade enquanto um acompanhamento de uma atividade

que possui em si mesma o princípio que justifica seu próprio realizar-se independente e

impassível.

Existiriam, contudo, certos níveis de atividade contemplativa, que por sua vez

formariam uma espécie de hierarquia. Nesta perspectiva, a atividade contemplativa

genuinamente intelectual diferiria das contemplações sensitivas, como por exemplo, da

contemplação visual e auditiva. Com efeito, para o filósofo, a contemplação intelectual

ocuparia o mais alto grau da hierarquia, se identificando com a arte mestra com a qual todo

o homem que sobre ela se deleitasse seria acompanhado pela verdadeira felicidade

(ARISTÓTELES, 1984, p. 222-223).

Aristóteles (1984, p. 226-227) havia chegado então à conclusão de que a atividade

contemplativa intelectual seria a melhor das atividades. Contudo, no livro X da obra Ética

a Nicômaco estabeleceu-se uma comparação entre, por um lado, a atividade contemplativa

intelectual e, por outro lado, os jogos, os divertimentos e as recreações:

Também se acredita que as recreações agradáveis sejam dessa natureza. Não as escolhemos tendo em vista outra coisa, uma vez que antes somos prejudicados do que beneficiados por elas: tais atividades nos levam a negligenciar nossos corpos e nossos bens materiais.

É interessante notar que neste momento da discussão se identificou as “recreações

agradáveis” com as atividades que teriam em si mesmas a razão do seu processar-se. Ora,

com que finalidade, desinteressadamente, um homem joga xadrez ou uma criança brinca de

casinha? Examinando estas atividades “recreativas” não se constata nada que lhes seja

exterior, ou seja, ao final da atividade não se averigua nenhum produto visível, assim como

a contemplação. O motivo da atividade coincide com seu próprio desenvolver-se e,

portanto, coincide com próprio conceito de felicidade proposto na Ética.

Ao contrário da concepção baseada na obra Leis, na qual Platão (1999) asseverava

que os homens deveriam dedicar-se aos jogos, às danças e às recreações mais saudáveis

ligadas aos rituais religiosos, identificando-os conseqüentemente como a causa final da

existência humana, Aristóteles (1984, p. 228) entende esta questão de modo inverso:

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Ora, esforçar-se e trabalhar com vistas na recreação parece coisa tola e absolutamente infantil. Mas divertir-nos a fim de poder esforçar-nos, como se expressa Anacársis, parece certo; porque o divertimento é uma espécie de relaxação, e necessitamos de relaxação porque não podemos trabalhar constantemente. A relação, por conseguinte, não é um fim, pois nós a cultivamos com vistas na atividade.

A concepção ética de Aristóteles (1984) inverteu a finalidade das recreações e dos

jogos transformando-os em um meio, em uma espécie de relaxação. Porém, deve-se

ressaltar que não interessava ao filósofo saber o que o jogo é, mas pelo contrário,

interessava-lhe colocá-lo em seu devido lugar. Era necessário edificar, com efeito, uma

hierarquia de atividades na qual o jogo só poderia obter um valor se ele funcionasse como

um apêndice das atividades verdadeiramente legítimas, isto é, como um descanso ou uma

relaxação para o trabalho ou para a contemplação.

É certo que conceituar os divertimentos baseado somente no que eles devem ser (e

não pelo que de fato o são) constitui um ajuizamento puramente moral, portanto, tal

julgamento contribui muito pouco para compreendermos sobre o significado ontológico

dos jogos ou das recreações. Entretanto, não poderia ser diferente, pois a natureza do

escrito em que esta discussão foi elaborada é embasada pelas questões do dever ser e não

as do ser. Vejamos como Aristóteles (1984, p. 228) se expressava:

Ora, uma vida virtuosa exige esforço e não consiste em divertimento. E dizemos que as coisas sérias são melhores que as risíveis e as relacionadas com o divertimento, e que a atividade da melhor entre as duas coisas – quer se trate de dois elementos do nosso ser, quer de duas pessoas – é a mais séria.

Os divertimentos e as coisas risíveis corresponderiam às atividades que

comprazeriam o elemento sensível (agradável) do homem – o corpo. Por outro lado, a

atividade séria e intelectual corresponderia à satisfação do “elemento sublime”, isto é, o

elemento inteligível (racional). Para Aristóteles (1984), por um lado, as pessoas que

viveriam dos divertimentos levariam uma vida à semelhança daquelas que comprazem aos

tiranos tê-las ao seu lado, nas cortes fazendo-os rir; por outro lado, as pessoas que viveriam

da contemplação intelectual seriam os filósofos. Por fim, o divertimento, para o filósofo,

seria uma atividade secundária e acessória; secundária porque seria menor e inferior,

acessória porque só se justificaria como um meio.

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Considerações Finais

Pelas análises da Ética de Aristóteles chegamos à conclusão de que o jogo se

constitui em uma atividade de valor menor. Ou melhor, só lhe seria atribuído um valor na

medida em que funcionasse como um apêndice, um meio, uma espécie de relaxação para a

posterior retomada das atividades legítimas.

Ao contrário da atividade contemplativa intelectual, os jogos e as recreações,

quando exortadas como atividades que se justificariam a si mesmas, teriam por finalidade o

prazer sensível, sensações estas também experimentadas por outros animais. Com efeito,

na hierarquia das atividades humanas que mais se aproximariam da felicidade, o jogo teria

um valor na medida em que servisse de suporte às atividades que verdadeiramente

conduziriam o homem à vida correta.

Apoiando-nos neste argumento poderíamos nos questionar: para Aristóteles, teria o

jogo uma função pedagógica? Bem, em primeiro lugar ele funcionaria como um descanso

necessário à realização das atividades sérias. E é justamente este o modo como as escolas

estão organizadas na atualidade, destinando, por um lado, horários específicos para o

estudo sério e, por outro lado, um pequeno intervalo de descanso que nomeamos

comumente de recreio. Neste primeiro sentido, em si mesmo o jogo não possui uma

implicação pedagógica direta, mas sim indireta.

Por outro lado, Aristóteles (1985, p. 257) entendia que a criança pequena não

possui a racionalidade desenvolvida e que, portanto, a instrução intelectual precoce seria

estéril:

[...] da mesma forma que a alma e o corpo são duas partes distintas, podemos ver que a alma também se compõe de duas partes – a irracional e a racional – e que suas disposições são em número de duas, das quais uma é a parte apetitiva e a outra é a inteligência; como o corpo é anterior à alma no processo de geração, a parte irracional da alma é anterior à racional. Isto é óbvio também porque a irascibilidade e a vontade, e igualmente os apetites, existem nas crianças desde o seu nascimento, mas o raciocínio e a inteligência só se manifestam nelas à proporção que elas crescem.

Assim, as atividades recreativas e os jogos que fortaleceriam o corpo seriam

essenciais a um programa educacional (ARISTÓTELES, 1985, p. 263). Este modo de

abordar a implicação pedagógica do jogo no desenvolvimento infantil sugere que se

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identifique jogo e criança com a parte sensível da alma. A importância dada ao jogo,

portanto, decairia na medida em que a razão fosse se desenvolvendo e ocupando o lugar

que os prazeres sensíveis possuíam na vida infantil. Neste segundo sentido, o jogo possui

uma implicação pedagógica direta.

É interessante notar que, novamente, as idéias do atual sistema educacional se

harmonizam de certa forma aos argumentos de Aristóteles. Um exemplo notável é a

organização das chamadas pré-escolas e o lugar dos jogos e brincadeiras na dinâmica da

vida infantil. Valoriza-se discursivamente, com efeito, o brincar como uma característica

natural da criança e essencial ao seu desenvolvimento. Por considerarem-se os jogos e as

brincadeiras como naturais à criança, foi criado atualmente o direito infantil ao brincar.

Graças aos esforços da atual ciência na tentativa de compreender o jogo infantil, é

possível compreender que não é simplesmente a afinidade entre criança, jogo e parte

sensível da alma que constitui a base de explicação da função do jogo no desenvolvimento

humano. Entretanto, é curioso observar que um dos argumentos mais correntes presente no

senso comum é a justificação da introdução do jogo para as crianças como a atividade que

coincide com a sua natureza, o seu modo de sentir e experimentar o mundo, que, por

conseguinte, não seria racional.

Por fim, conclui-se que a abordagem teórica dos jogos e divertimentos anunciada

por Aristóteles ainda influi sobremaneira no modo hegemônico como os compreendemos.

No que se refere às implicações pedagógicas desta abordagem, por exemplo, é notável o

reflexo de sua concepção orientando teoricamente a organização das instituições pré-

escolares e escolares, bem como instrumentalizado o modo como o senso comum concebe

as relações entre jogo e educação. Partidários da ciência psicológica materialista,

interessados pelo estudo do jogo e suas implicações pedagógicas, atualmente contrariam

relativamente suas teses, embora elas tenham produzido um avanço sem precedentes na

época em que abordavam estes problemas.

REFERÊNCIAS

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ARISTÓTELES. Física. Traducción: Guillermo R. de Echandía. Madrid: Editorial Gredos, 1995. ARISTÓTELES. Política. Tradução: Mario da Gama Cury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. ARISTÓTELES. Reproducción de los animales. Traducción: Ester Sánchez. Madrid: Editorial Gredos, 1994. BROUGÈRE, G. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. CAILLOIS, R. Los juegos y los hombres: La máscara y el vértigo. Fondo Cultura Económica: México, 1994. CHAUÍ, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DUFLO, C. O jogo: de Pascal a Schiller. Tradução: Francisco Settineri e Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008. KISHIMOTO, T. M. Jogos infantis: o jogo, a criança e a educação. 14 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Tradução: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. (Coleção Perspectivas do Homem, vol. 123). KOSIK, K. A dialética do concreto. 7. ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2002. PLATÃO. As leis. São Paulo: EDIPRO, 1999. SEVERINO, A. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 1993.