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O desdobrar da lei: diálogos e ideias para a implementação de uma política habitacional em São Paulo no começo do século XX PHILIPPE ARTHUR DOS REIS 1 Resumo O presente paper apresenta o embate travado entre vereadores da Câmara Municipal de São Paulo no ano de 1907 sobre os diferentes modelos de implementação de uma política para a construção de casas voltadas à população pobre da cidade, dado que se agravou pela indisponibilidade das mesmas o crescente preço dos aluguéis. Como medida de intervenção, o poder público municipal percebe a necessidade de agir por meio da implementação de uma lei que fosse de encontro à problemática. Assim, a lei 1.098 de 08 de julho de 1908, de autoria do vereador Affonso Celso Garcia da Luz, teve como principal eixo a concessão de “favores para a construcção de casas operárias”. Não buscamos tomar esta lei como um objeto pronto, que simplesmente respaldou a intensificação da construção civil na cidade de São Paulo, mas de nos atentarmos aos seus processos de debate e interlocução de ideias dos sujeitos envolvidos na sua elaboração em diálogo com a literatura internacional sobre a moradia para as populações mais pobres. Percebe-se que os sujeitos ligados à Câmara Municipal paulistana do começo do século XX possuíam um profícuo interesse e conhecimento das experiências urbanas de outras cidades, notadamente francesas e alemãs, os quais estabeleceram um intenso diálogo através de ações já realizadas, e como estas poderiam dialogar com os problemas urbanos da capital paulista 2 . A cidade e a lei: questões historiográficas A legislação urbana tem sido encarada como um importante material para a compreensão das ações governamentais acerca da história das cidades, sobretudo por 1 Doutorando em História, Universidade Estadual de Campinas. 2 Este trabalho é resultante do desdobramento do texto “Propostas de habitação para São Paulo: Celso Garcia e os embates na Câmara Municipal” apresentado no III Seminário Urbanismo e Urbanistas no Brasil, em setembro de 2017, na cidade de Recife. Disponível em: <http://www.lup- ufpe.net.br/3suub/anais/3SUUB_anais.pdf>, acesso em 28.04.2018

a concessão de “favores para a construcção de casas ... · Resumo O presente paper ... 2 Este trabalho é resultante do desdobramento do texto “Propostas de habitação para

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O desdobrar da lei: diálogos e ideias para a implementação de uma política habitacional

em São Paulo no começo do século XX

PHILIPPE ARTHUR DOS REIS1

Resumo

O presente paper apresenta o embate travado entre vereadores da Câmara Municipal de

São Paulo no ano de 1907 sobre os diferentes modelos de implementação de uma política

para a construção de casas voltadas à população pobre da cidade, dado que se agravou

pela indisponibilidade das mesmas o crescente preço dos aluguéis. Como medida de

intervenção, o poder público municipal percebe a necessidade de agir por meio da

implementação de uma lei que fosse de encontro à problemática. Assim, a lei 1.098 de 08

de julho de 1908, de autoria do vereador Affonso Celso Garcia da Luz, teve como

principal eixo a concessão de “favores para a construcção de casas operárias”.

Não buscamos tomar esta lei como um objeto pronto, que simplesmente respaldou a

intensificação da construção civil na cidade de São Paulo, mas de nos atentarmos aos seus

processos de debate e interlocução de ideias dos sujeitos envolvidos na sua elaboração

em diálogo com a literatura internacional sobre a moradia para as populações mais pobres.

Percebe-se que os sujeitos ligados à Câmara Municipal paulistana do começo do século

XX possuíam um profícuo interesse e conhecimento das experiências urbanas de outras

cidades, notadamente francesas e alemãs, os quais estabeleceram um intenso diálogo

através de ações já realizadas, e como estas poderiam dialogar com os problemas urbanos

da capital paulista2.

A cidade e a lei: questões historiográficas

A legislação urbana tem sido encarada como um importante material para a

compreensão das ações governamentais acerca da história das cidades, sobretudo por

1 Doutorando em História, Universidade Estadual de Campinas. 2 Este trabalho é resultante do desdobramento do texto “Propostas de habitação para São Paulo: Celso

Garcia e os embates na Câmara Municipal” apresentado no III Seminário Urbanismo e Urbanistas no Brasil,

em setembro de 2017, na cidade de Recife. Disponível em: <http://www.lup-

ufpe.net.br/3suub/anais/3SUUB_anais.pdf>, acesso em 28.04.2018

Page 2: a concessão de “favores para a construcção de casas ... · Resumo O presente paper ... 2 Este trabalho é resultante do desdobramento do texto “Propostas de habitação para

trazer em perspectiva os desdobramentos políticos, econômicos, sociais e culturais que

estavam congregados em sua época de promulgação e vigor. Atrelado a este debate, o

conjunto de leis, decretos e códigos que orientavam os modos de construir e morar nas

cidades foram largamente explorados pela historiografia, sobretudo para se compreender

em que medida estavam interligadas aos processos de transformação do espaço urbano e

de atender aos interesses de determinados grupos.

Podemos dizer que a legislação urbana se tornou um paradigma para os estudos

históricos urbanos, utilizadas largamente como um “documento fiel” de uma época que

evidencia seus agentes e as intenções relacionadas, o que também permitiu evidenciar

conexões de diferentes sujeitos no processo construtivo e de intervenção nas cidades, seja

ligado ao mundo público e privado. Ao encararmos as leis que regularam as intervenções

urbanas das cidades modernas, percebemos o peso das mesmas sobre a materialidade

construída, a exemplo dos diferentes programas e partidos edilícios, como casas, fábricas

e edifícios comerciais, e mesmo em áreas públicas como ruas, praças e avenidas,

permitindo percebermos sua dimensão como um conjunto de normas regulador da

sociedade, e ao mesmo tempo carregada de ideologias dos grupos que estiveram

envolvidos em seu processo de elaboração.

A historiografia sobre a urbanização das cidades brasileiras avançou

consideravelmente ao trazer em evidência o papel da legislação no processo de

implantação e adequação de serviços sanitários, pagamentos de taxas, compra e venda de

lotes, e principalmente em torno da construção de edifícios voltados à morada, com

regulações, normas e decretos que orientavam suas dimensões, altura, materiais a serem

empregados, utilização de seus espaços. Com a intensificação das migrações e o aumento

populacional nas cidades, a habitação tornou-se o centro das atenções de debates políticos

e científicos na segunda metade do oitocentos, encarada como espaço privilegiado do

aumento de doenças como tuberculose, tifo e febre amarela, e a consequente baixa do

operariado empregado, medo que capitalistas, industriais e mesmo os profissionais da

cidade3 possuíam. Assim, a promulgação de muitas leis ia de encontro às prescrições

médico-científicas, interferindo nos modos de construir e planejar as cidades, como

3 Sobre o conceito, ver CERASOLI, 2004.

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relatado por Peter Hall sobre a cidade de Londres que contou com um extenso conjunto

de normas aprovado ao longo da segunda metade do século XIX, como a “Lei Torrens

(Lei para Moradias de Artesãos e Operários, de 1868), que permitia às autoridades locais

construírem novas moradias para as classes trabalhadoras, e Lei Cross (Lei para a

Melhoria das Moradias de Artesãos e Operários, de 1875)” e mesmo a “Lei para Moradia

das Classes Trabalhadoras de 1885” ou a ampliação da antiga “Lei para Casas de

Cômodos, de 1851” (HALL, 2013: 26). O conjunto de normas londrino recaía sobretudo

em áreas que contavam com as casas habitadas pelas classes trabalhadoras, o que dava a

impressão de que “o parlamento vitoriano iria tolerar o socialismo municipal no setor da

habitação” (WOHL, Apud, HALL, Idem), e assim, resolver os problemas referentes à falta

de moradia na cidade, mas que efetivamente suas autoridades locais não realizaram muito

para suprir as grandes demandas por habitação que havia na Londres do final do

oitocentos4.

São Paulo e outras cidades latino-americanas também estiveram envolvidas no

processo de elaboração de normas jurídicas que fossem de encontro às novas obras e

reformas de edificações realizadas ao longo da segunda metade do século XIX,

principalmente pela atenção ao aumento populacional que a cidade teve, de pouco mais

de 65 mil pessoas passa a 240 mil em menos de três décadas5. Sobre a historiografia que

se preocupou em destacar como o conjunto de leis promulgado na cidade e Província

(posterior Estado) estabeleceram diálogos com as questões sanitárias e de cunho estético,

percebe-se que muitas vezes chamou atenção ao papel de intervenção (e de domínio) das

elites nesse processo, diante de uma suposta passividade da população pobre e mesmo

dos setores médios, interpretados muitas vezes como grupos que aceitavam o conjunto de

normas estabelecidas e não possuíam poder de voz nas dinâmicas sociais e políticas, e

4 É de se destacar que ao mesmo tempo que havia a atenção à situação de moradia das classes pobres, se

construía um discurso de sua identificação como o “perigo da cidade”, sinônimo que se evidencia em

diversas cidades, inclusive brasileiras. Peter Hall coloca que “o verdadeiro terror que dominava a classe

média (...) era de que a classe trabalhadora se sublevasse. E em parte alguma esse medo era maior do que

nos meios governamentais” (HALL, Op. Cit, p. 29). Ver também o capítulo 4 “Os operários, a moradia e a

cidade no século XIX”, em PERROT, 1988. 5 Em 1872 a cidade de São Paulo apresentava uma população de 31.385 habitantes. 18 anos depois, em

1890, alcançou 64.934, e na virada para o século XX, em 1900, 239.820 pessoas, com uma taxa de

crescimento que atingiu a marca de 14%. Em 1940 a cidade já possuía 1.326.261 habitantes, mais que o

dobro de 20 anos antes, com 579.033.

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nesse caso, no processo de elaboração das leis, sem fazer oposição ao baronato do café,

lugar comum para se referir aos grupos com maior poder aquisitivo da cidade.

Estudos como o de Raquel Rolnik (1997), Marta Dora Grostein (1987), Carlos

Lemos (1999) e Cândido Malta Campos (2000) trouxeram ao debate o papel da legislação

no processo de ordenamento urbano de São Paulo, destacando como seus agentes

produtores estiveram envolvidos na construção da cidade e como agiam diante das leis

promulgadas desde o último quartel do século XIX, existindo muitas vezes um caráter

teleológico às interpretações históricas. Segundo Cerasolli e Carpintéro:

“Nesses trabalhos, seus autores se preocupam com o futuro das cidades, ou

seja, o estudo da história constitui um aporte pragmático em apoio de suas

próprias pesquisas sobre “a evolução urbana” nos diferentes momentos das

modificações na arquitetura, nos processos construtivos e no traçado da cidade.

A ênfase recai na busca de respostas e soluções capazes de diminuir as “tensões

sociais” inerentes ao crescimento desmesurado das cidades. Este é o traço que

estrutura também os estudos voltados para a questão da habitação popular no

Brasil” (CERASOLLI e CARPINTÉRO, 2009: 69).

Desde a promulgação do primeiro Código de Posturas da Cidade, em 18736, até o

Código de Obras Arthur Saboya7 em 1929, a historiografia se ateve ao impacto normativo

da construção de casas para as populações mais pobres, também chamadas de “casas

operárias”, em virtude dos padrões mínimos estabelecidos para moradia na cidade8. Essa

preocupação do poder público se manifestava essencialmente pelo déficit habitacional

que existia na cidade, e que era regulado principalmente pelo mercado de aluguéis, visto

que poucos eram os proprietários de residências na cidade. Seria a partir da década de

1930 com a regularização da aquisição e construção de casas pelas Caixas de

Aposentadora e Pensão que a moradia foi encarada como um efetivo projeto de Estado,

ainda que não alcançasse a universalização da habitação, estampou-se um salto na

6 Os códigos de posturas estabeleciam normas que regulamentavam o desenvolvimento urbano e

administrativo dos municípios, de modo que aqueles que infringissem a legislação e seus regulamentos

seriam respondidos com penas. Para a cidade de São Paulo, o primeiro código foi substituído por uma nova

versão em 1875, e em 1886 outro fora aprovado pela Câmara Municipal. 7 Lei n. 3427 de 19.11.1929. 8 Apesar do conceito atribuir o local de moradia ao operariado, não significava necessariamente que tais

habitações serviam exclusivas para esta camada profissional, visto que também atendiam aos mais diversos

profissionais. O conceito ia de encontro ao padrão mínimo que devia ser construído, o que pode ter auxiliado

a forjar a identificação de determinados bairros como “operários”, como o Brás. Ver o item “Entre as casas

de operários, as casas de padrões mínimos e a máxima ocupação do lote” em nossa dissertação de mestrado:

REIS, 2017.

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produção de “estratégias para o enfrentamento da produção em massa de moradias, com

processos construtivos racionalizados” (ARAVECCHIA-BOTAS, 2016: 16).

Outras leis e códigos9 que versavam sobre a construção de moradias em São Paulo

para as populações mais pobres na passagem do século XIX para o XX também foram

exploradas pela historiografia, encaradas muitas vezes como um objeto pronto de

políticos, da elite e dos profissionais da cidade, sem que houvessem conflitos e mesmo

debates até sua promulgação final, além da não manifestação da população diante das

normas estabelecidas. Tais leis, serviram para uma compreensão linear da história da

urbanização paulistana, vistas como exemplos de um projeto vencedor das elites que

estavam no poder, e logo, de uma simples forma de manutenção e controle das massas a

fim de uma suposta uniformidade estética da cidade. Nesse sentido, para Raquel Rolnik,

que procura fazer uma “operação desmonte” da legislação urbanística paulistana, enxerga

que “sua ineficácia em regular a produção da cidade é a verdadeira fonte de seu sucesso

político, financeiro e cultural, em uma cidade em que riqueza e poder estiveram

historicamente bastante concentrados”, denotando ao seu período de estudo (notadamente

entre 1886 a 1936) um profundo anacronismo e não compreensão das relações de poder

e de embates dos sujeitos apresentados, visto que para si, “as bases do populismo e

clientelismo – tão fundamentais para entender a política urbana brasileira até hoje –

[naquele tempo] foram lançadas” (ROLNIK, 1997: 14).

Nesse debate, encaramos a lei 1.098 de 1908 sobre a concessão de favores para a

construção de casas operárias como um dispositivo que buscou favorecer a intensificação

da produção de residências em massa na cidade de São Paulo, atendendo sobretudo os

interesses dos setores médios em explorar esse mercado, e ao mesmo tempo investigar os

indícios de diálogos que o corpo técnico e político ligado à administração pública da

cidade possuíam com outros sujeitos que experenciavam transformações urbanas de

outras partes do Brasil e do mundo. Comumente, as obras que tratam sobre a experiência

de se construir na cidade tomam essa lei exclusivamente como um dos primeiros passos

para a dinamização da construção de habitações na cidade. Rolnik por exemplo a enxerga

9 A exemplo podemos citar os Códigos Sanitários do Estado de São Paulo para os anos de 1894, 1911 e

1918; o já citado Padrão Municipal de 1886; a Lei Municipal nº 315 de 14.08.1897; Lei Municipal nº 498

de 11.12.1900; Lei nº 553 de 14.11.1901; Lei nº 604 de 13.09.1902; Lei 1098 de 08.07.1908.

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como um dispositivo simbólico que respaldou o modo de se construir na capital paulista

e que garantiu a exclusividade de determinados espaços serem destinados para as elites,

o que seria a chave para a compreensão de uma demarcação social do território de uma

cidade segregada e feita por e para os integrantes da elite financeira10. Para a arquiteta, “a

Lei, ao definir que num determinado espaço pode ocorrer somente um certo padrão, opera

o milagre de desenhar uma muralha invisível e, ao mesmo tempo, criar uma mercadoria

exclusiva no mercado de terras e imóveis” (ROLNIK, 1997: 47), e desse modo, a lei 1.098

apenas corroborava o lugar comum de ser parte de uma sucessão de outras leis que definia

os lugares das camadas sociais da capital paulista. Já Eva Blay, apesar de se referir aos

debates políticos que estavam em jogo no processo de construção da lei, não percebe as

relações que a lei estabelecia com a situação de moradia de outras cidades, enxergando

ao menos que este tema voltou a ser debatido na Câmara Municipal apenas em 1905,

quando o vereador Celso Garcia alega que a solução da moradia operária caberia ao

Estado, no caso com o projeto nº 40 de sua autoria e que daria origem à lei 1.098, com a

proposta de captação dos “recursos provenientes de fundos reunidos pelos operários, para

seu próprio uso” (BLAY, 1996: 96), no caso, para a construção de vilas operárias.

Nabil Bonduki é quem consegue expandir a discussão acerca dos mecanismos que

estiveram entrelaçados na lei 1.098, percebendo que desde o Império, existiram várias

iniciativas do poder público para facilitar a construção de moradias para operários. Fora

a lei 493 de 1900, que previa isenção de impostos municipais para viabilizar a construção

de vilas operárias fora do perímetro central, o arquiteto enxerga na lei de 1908 a

reafirmação da lei anterior, quando a Câmara Municipal deixa clara sua intenção de

estabelecer diálogo com o Congresso Legislativo Estadual e ao Congresso Federal para

que a medida fosse ampliada e houvesse um maior investimento de outras instâncias fora

a municipal no processo de construção de “casas baratas e higiênicas e às sociedades de

10 Em oposição podemos destacar o trabalho de Paulo César Garcez Marins em torno do processo de

urbanização dos bairros de Higienópolis e Campos Elíseos, considerados de “elite” pela historiografia.

Surgidos a partir da ação dos imigrantes Frederico Glette e Victor Nothmann no final do século XIX, os

bairros foram associados como redutos de pessoas endinheiradas frente ao elemento estrangeiro, discurso

originado a partir de textos de caráter memorialísticos, que foram incorporados na produção historiográfica,

gerando “uma dimensão imaginária relativa à cidade, formada por diferentes circuitos de representações

coletivas somadas”. MARINS (2011: 210). Ainda sobre o debate acerca das disputadas das elites e das

memórias aí construídas, ver MARINS, 2016.

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crédito que facilitassem a compra ou construção dessas casas” (BONDUKI, 1998: 41),

concordando com Blay que a moradia no começo do século XX foi um problema entregue

à iniciativa privada por meio da ação do poder público.

Desdobramentos de uma nova lei para a cidade: troca de ideias e relações com

o urbanismo internacional

A Lei 1.098, de 08 de julho de 1908, decretada pelo prefeito interino Raymundo

Duprat11, tinha em alguns de seus artigos12:

“Art. 1º - As casas destinadas a serem alugadas ou vendidas em prestações a quem

não seja proprietário de casa e não tenha recursos para alugar uma hygienica separada, ficam

isentas, durante 15 annos:

a) De todos os impostos municipaes, sobre aprovação de planta e alvará, sobre a

construcção e reconstrucção, terreno, calçada, alinhamento, andaime e cerca, abertura de

calçamento, da mesma casa;

b) De taxa sanitária;

c) De foros, laudêmios e outras despesas, si os terrenos forem foreiros á

Municipalidade.

Art. 2º - A Camara Municipal, em representação ao Congresso Legislativo do

Estado, pedirá, além de outras concessões que elle julgar convenientes, em favor dessas casas,

isenção, por 15 annos, de impostos (...)

Art. 3º - A Camara Municipal, em representação ao Congresso Federal, pedirá, além

de outros favores que elle julgar conveniente (...)

Art. 4º - Ás associações que construírem maior número dessas casas, a Prefeitura

distribuirá, em prêmios, proporcionalmente vinte contos de réis, sendo o mínimo de vinte

casas

Art. 5º - Para ter direito aos favores desta lei, o proprietário não poderá, á vista do

contracto que será lavrado:

a) Cobrar de aluguel, mensalmente, quantia excedente ao juro anual de 12

por cento sobre o capital effectivamente applicado, descontadas desta, em cada anno, as

amortizações no caso de venda;

b) Cobrar, pela venda, quantia superior ao valor do terreno e da

construcção na data da compra desse terreno e edificação, ou da adaptação do prédio para

a habitação de pobres e operários;

11 Na época o prefeito oficial da cidade era Antônio da Silva Prado, que esteve à frente da administração

municipal entre os anos de 1899 a 1911. 12 O texto pode ser conferido na íntegra em: <https://goo.gl/4o1FRD>, acesso em 28.04.2018. Na

transcrição foram mantidas as referências escritas tal qual no documento.

Page 8: a concessão de “favores para a construcção de casas ... · Resumo O presente paper ... 2 Este trabalho é resultante do desdobramento do texto “Propostas de habitação para

c) Construir casas e mantel-as sem observancia rigorosa das regras de

hygiene, a que seja obrigado, de accordo com as leis em vigor;

d) Alterar os typos ou compartimentos da casa que forem estabelecidos

por lei;

e) Receber dinheiro, a qualquer título que seja, para dar preferencia a um

inquilino;

f) Requerer despejo, sem aviso anterior, no mínimo de sessenta dias;

g) Alugar ou vender a casa a quem não se obrigou expressamente á

observancia desta lei.

Art. 6º - Provada em qualquer tempo a violação de alguma das disposições desta lei,

ficam cassados todos os favores concedidos, mandando a Prefeitura cobrar todos os impostos

municipaes anteriores.

Art. 7º - Fica a Prefeitura autorizada a fazer concessões de terrenos municipaes, em

logares apropriado e salubres, a particulares, empresas ou associações regularmente

constituídas, que se propuserem á construcção de habitações baratas e hygienicas, mediante

contracto, de acordo com as disposições desta lei.

Art. 8º - Os favores criados pela presente lei só serão concedidos ás casa hygienicas

e baratas, que forem construidas posteriormente á promulgação desta lei e que estiverem de

accordo com o padrão municipal.

Art. 9º - A Camara oportunamente legislará sobre a fundação da “Assistencia Publica

Municipal”, para crianças e pobres, á semelhança das instituições-modelo dos paizes

civilizados, solicitando o auxilio do governo do Estado para tão útil instituição. (...)”

Apesar da lei permitir sua compreensão como um dispositivo do poder público

encarar a problemática da habitação, que seria financiada pela iniciativa privada a partir

do usufruto de benefícios fiscais, antes de ser decretada, um intenso debate entre os

vereadores pôde ser observado quando analisamos os pareceres originais da Lei, os quais

evidenciam uma multiplicidade de agentes envolvidos na trama, além dos embates e

discussões travadas na tribuna com os pareceres da Câmara adota sobre o tema. Partindo

da assertiva de Carlo Ginzburg, sobre a necessidade de se “examinar os pormenores mais

negligenciáveis” e da necessidade de se basear “em indícios imperceptíveis para a

maioria” (GINZBURG, 1989: 144-145), encaramos a lei 1.098 com outro prisma além

do que foi abordado: de não interpretá-la sozinha, mas de compreender seus impactos na

produção material da cidade, e não apenas como um desdobramento linear das normas

jurídicas que ora foram encaradas como uma forma de segmentar a população da cidade,

e assim, prever o afastamento da população mais pobre dos ricos, ou como uma criação

exclusiva dos políticos e técnicos ligados à municipalidade, sem que houvesse uma

circulação de ideias entre estes sujeitos pelo mundo.

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A partir da leitura do processo que deu origem à lei nº 1.098 de 30 de junho de

190813, algumas considerações são importantes para situarmos sua complexidade:

1 – Trata-se de um projeto de lei que envolveu uma longa disputa de distintos grupos na

Câmara Municipal de São Paulo;

2 – Teve como base o intercâmbio de ideias do exterior, seja da experiência de outras

legislações que favoreceram a iniciativa privada no processo de construção de moradias

operárias, seja no diálogo com intelectuais, empresários e profissionais da cidade

envolvidos com a questão da moradia popular.

3 – O projeto vai de encontro às relações que os pequenos proprietários de capital privado

tinham com a Câmara Municipal, permitindo a relativização do lugar comum de entender

os primeiros anos da República como um tempo no qual a elite cafeicultora comandava a

política de então.

Buscamos focar no segundo tópico, para que possamos vislumbrar a circulação

de ideias sobre a construção de moradias populares em diversos países, e assim,

encararmos a problemática da habitação como uma questão transnacional, que não se

encerrava na capital paulista no começo do século XX, além de perceber em que medida

estas experiências foram debatidas e possivelmente incorporadas na Câmara paulistana.

Procuramos fugir do lugar comum de que o urbanismo brasileiro simplesmente

incorporou ideias do estrangeiro, mas de compreendermos como a partilha destas ideias

eram comuns entre os profissionais da cidade e mesmo com os políticos de então, visto

que a correspondência de suas produções (escritas, materiais, iconográficas) circulavam

com um grande dinamismo já no começo do século XX. Segundo Maria Stella Bresciani,

“o levantamento dos problemas urbanos e de como foram enfrentados com bons ou maus

resultados pelas autoridades locais de várias cidades do mundo configura um

procedimento protocolar presente em vários autores da segunda metade do século XIX e

século XX” (BRESCIANI, 2014: 256), assertiva que vai de encontro às nossas

preocupações de se compreender a constituição de uma ideologia dos proprietários de

13 Depositada no Arquivo Histórico de São Paulo, Fundo: Prefeitura Municipal de São Paulo; Série:

Legislação; Caixa: 09.

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pequeno capital privado14, associado às experiências de urbanização das cidades do final

do século XIX e começo do XX.

O projeto de lei é composto por diferentes materiais que tratam da temática da

situação habitacional em São Paulo no ano de 1908: o parecer do prefeito Antônio da

Silva Prado; sua correspondência com o Diretor de Obras e Viação, Victor da Silva Freire;

recortes do jornal carioca A Imprensa; reprodução da lei com todos seus artigos

(parcialmente descritos acima); os originais da lei escritos à mão; e o parecer das

Comissões de Justiça, Obras e Finanças acompanhado de um substitutivo escrito pelo

relator Bernardo de Campos, membro da Comissão de Finanças, que analisaremos com

maior acuidade. Com 49 páginas, o parecer contém uma série de considerações acerca

da situação da moradia no Brasil e no mundo, trazendo à tona experiências urbanas de

intervenções do poder público e privado no que concerne à construção de habitações

baratas nas regiões de Hesse, Prússia, Baden, Baviera, Renânia, Lennep, Saar (Sarre) e

Saxe na Alemanha, além das cidades de Bochum, Sttutgard, Nuremberg, Hamburgo,

Düren, Geldern, Rees, Xanten, Dillingen, Düsseldorf, Aix-la-Chapelle, Berlin, München-

Gladbach, Barmen, Frankfurt, Dantzig, Leipzig, Essen, Kettwig, Schiefbahn, Colônia,

Altena; Paris, Lion, Rouen, Reims, Amiens, Marselha e Mulhouse, na França; Dublin, na

Irlanda; Milão, na Itália; Saint Louis; nos Estados Unidos, Londres, na Inglaterra; Buenos

Aires, na Argentina; e na capital federal, o Rio de Janeiro. O relator apresenta uma série

de dados, contas e referências literárias que dão fôlego à situação habitacional

principalmente nas cidades europeias e que estabelecem diálogo com a demanda por

moradia que havia em São Paulo até o ano de 1908, ocasionada pela intensa leva de

imigrantes que se estabeleciam na cidade.

Encarada como uma forma de moralização do cidadão e “fornecer a necessária

educação moral e intellectual, e favorecel-o com o possível bem estar, doptando sua

habitação com os requisitos da salubridade e hygiene”, o parecer foi o resultado de dois

projetos de leis que tramitaram na Câmara Municipal: um, o projeto número 39, de autoria

dos vereadores Carlos Garcia, João Amarante e Raymundo Duprat, e o número 40, de

Affonso Celso Garcia da Luz, que saiu vencedor por abranger a problemática da habitação

14 Também conhecidos como setores médios, pequena burguesia, setores intermediários, etc.

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como um desafio a ser encarado pelo município, estado e governo federal, por meio da

isenção de impostos por 15 anos àqueles que edificassem as residências voltadas para as

camadas mais pobres, ao contrário do outro projeto que circunscrevia os benefícios fiscais

por cinco anos.

Para a introdução do projeto de construção de casas baratas para “abrigo de

operários e pessoas desfavorecidas da fortuna”, considerada um dos problemas sociais de

“mais palpitante actualidade em todos os paizes prósperos e de maios desenvolvimento

industrial”, como França, Alemanha, Inglaterra, Rússia e Bélgica, pois vinham estudando

o caso com “carinhoso cuidado, procurando cada um dar-lhe uma solução positiva,

prática”, o relatório tece um panorama da situação habitacional nestes e em outros países,

exemplificando como o Estado e a iniciativa privada encararam a situação, sobretudo por

meio da atenção de escritos de economistas, médicos, engenheiros e empresários, o que

indica não apenas o conhecimento daquilo que estava sendo produzido

internacionalmente, mas o aprimoramento e conexão de ideais que estavam em curso.

Apesar de ser o principal ponto de discussão, no relatório de Bernardo de Campos

a moradia está atrelada à outros bens e serviços como alimentação, vestuário, saúde e

transporte, de modo que estes itens estejam acessíveis àqueles que usufruírem das

habitações, e auxiliem na chamada “educação moral e intelectual” dos residentes nas

habitações operárias. A casa, seria então o espaço que congregaria a proteção dos

residentes, e fornecer um possível bem-estar, sobretudo diante dos inúmeros cortiços que

haviam na cidade, e que comumente eram denunciados por Celso Garcia em seus

discursos na Câmara Municipal. Assim, o relatório apresenta como primeira referência

não uma obra que respalde a situação da condição da moradia das populações mais

pobres, mas que reitere a visão de que era necessário ensinar as classes trabalhadoras a

portarem-se pelos modelos de vida burguesa, através das referências ao ensaísta Emílio

Castelar, presidente da Espanha entre 1873 e 1874, que em um de seus textos15

argumentava

15 A referência cita seu discurso sobre a Liberdade e o Trabalho, além do Discurso sobre o Socialismo,

que, entretanto, não encontramos referências externas sobre os mesmos.

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“que o povo, neste século de sua emancipação, precisa antes de tudo alimentar

sua alma com uma moral e sabia educação que lhe mostre, onde se escondeu

as escolhas contra os quais se quebram os seus direitos (...) educar ao operário

e aos filhos do operário é a obra mais meritória que pode cumprir-se aos olhos

de Deus e dos homens”.

Para corroborar os argumentos sobre a condição de vida da população pobre e da

sociedade em geral, Ramalho Ortigão é trazido ao debate por meio do livro Farpas,

escrito conjuntamente com Eça de Queiroz, considerando que em sua época era formada

“evidentemente uma geração apodrecida, uma raça combalida não só em centros nervosos

mas até nas células primordiais da vida pelos effeitos do mais deplorável regimem

municipal nas questões do solo, da alimentação e do ar”. Assim, para respaldar a situação

das populações mais pobres nesse panorama, Pierre Paul Leroy-Beaulieu, economista

francês adepto aos princípios liberais, é trazido ao debate, sobretudo a partir de seu livro

Economia Política, que segundo o parecer da lei “mostra os sérios inconvenientes que

resultam para a classe operaria, quando do rápido augmento do numero de habitantes de

um paiz não corresponde em uma proporção análoga, o desenvolvimento dos capitaes e

das sahidas industriaes”, chamando a atenção para o fato da cidade de São Paulo ser uma

cidade que se mostrava ser um centro receptor de imigrantes e possivelmente não ter um

investimento que os assegure como mão de obra ou como partícipes da economia local.

Para o relator, “é incontestável que a questão referente à população se liga a da

indigência ou do pauperismo”, e as causas para seu surgimento estariam intrinsicamente

ligadas segundo as indicações de Leroy-Beaulieu: enfermidades naturais, acidentes e os

vícios humanos, além de considerar que “certos homens nasceriam assim”, e os acidentes

contribuem para “os vícios humanos [que] são, entretanto, as maiores causas geradoras

da pobreza”, acrescentando que “esta chaga cruel é de alguma forma o resgate de nosso

progresso e o castigo de nossa prosperidade”, e que de forma alguma seria culpa dos

industriais, quando no “país mais industrial do mundo, a Inglaterra”, teria menos pobres

que em outros países “considerados como tendo uma vida mais patriarcal, como a

Noruega, a Baviera, o sul da Itália, visto que apresentava 260 pobres por dez mil

habitantes”, reafirmando o caráter de que o trabalho seria a chave para a eliminação da

pobreza, e consequentemente que permitisse a chamada “educação” ao trabalhador para

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que não se tornasse fora dos padrões burgueses, vivendo em “promiscuidade”, conceito

comumente empregado para se referir aos cortiços como um espaço propício para o

desenvolvimento e contágio de doenças e que aos poucos seriam condenados pela

municipalidade.

A associação do espaço urbano como um corpo humano aos poucos se apresenta

no texto, como o exemplo da crença de que na Inglaterra havia a esperança de um dia

“desaparecer a indigência”, “um mal incurável que affecta o organismo social”, e a

solução para se “combaterem as consequências prejudiciais do pauperismo, [seria

encontrada junto aos] publicistas e os poderes públicos [que] estudaram vários remédios,

os quais têm contribuído para a atenção do mal”, sendo um destes “remédios” a

“construção de casas baratas para operários e em geral para os desfavorecidos da fortuna”.

Logo, a casa para operários seria encarada como um espaço de regeneração da

população pobre, assegurando que esta estivesse sempre produtiva e longe dos chamados

vícios e da pobreza encontrados nos cortiços, referenciado por autores conhecidos do

meio intelectual e político paulistano, além de servir de referência ideológica para a

imagem de cidade que crescia e se expandia, sobretudo quando há a lembrança que sua

população estaria crescendo “extraordinariamente em proporção muito superior ao nosso

desenvolvimento industrial”, “crescimento de que dão conta a multiplicação rápida do

número de prédios aqui existentes, o maior consumo de carne verde, do leite, do pão, etc,

que dão elementos da prova a fora aquelle (...) para affirmar o desenvolvimento

progressivo da nossa população”, segundo dados do Annuario Demographico de S. Paulo

para o ano de 1906.

Apesar de existir a referência aos trabalhos de “generosidade e phylantropia de

muitos e por acertadas providencias dos poderes públicos” no tocante à questão da

habitação, promovidas pelas chamadas “innumeras associações de caridade e de auxílios

mútuos aqui fundadas; ás instituições pias, hospitais, abrigos, creches, escolas para

adultos e creanças, etc, etc.”, o problema da falta de moradia existente na cidade devia

ser encarado pela Câmara Municipal, que recorreria à literatura internacional para

“examinar o assumpto, em geral, em face dos exemplos das nações civilisadas e dos

estudos que, a respeito, nos oferecem eminentes publicistas”.

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O primeiro autor referenciado é o economista franco-russo Arthur Raffalovich, a

partir de seu texto Casas operárias, prenunciado como alguém que “estudou os diferentes

meios de se alcançar a construção de casas baratas para os operários e pobres” chamando

a atenção para que existisse uma intervenção das autoridades públicas em encontrar

“remédios para o mal” da falta de moradias. Apropriando-se das frases do economista, o

relator coloca que “entre os fatores mais importantes do desenvolvimento physico, moral

e intelectual deve-se collocar em primeiro logar, a habitação, no seio da qual se

desenvolve a vida do indivíduo e de sua família”, citações enriquecidas por passagens

que se remetem as discussões sanitaristas, ao acrescentar que “ninguém nega os

inconvenientes physicos e morais das habitações insalubres occupadas por classes de

operários e indigentes”. Bernardo de Campos vai mais longe ao comparar as condições

habitacionais como “miseráveis” e onde “a promiscuidade reina com seu cortejo de

moléstias de toda espécie, de crimes e de vícios, os perigos que resultam desse facto,

ameaçando a saúde e a ordem publica, têm sido perfeitamente observados”, um dado que

“não se trata de um mal puramente local, pois parece, que se tornou universal; por toda

parte se encontram os mesmos phenomenos dolorosos”.

As associações sobre a condição das moradias operárias com a questão sanitária

observadas por Raffalovich avançam, sobretudo por chamar a atenção pelo

“amontoamento extraordinário de seres humanos em commodos que não foram feitos

para conterem tão grande número de pessoas, situação aggravada pelo absoluto despreso

das regras de hygiene e pela imundície accumulada”16. A fim de corroborar suas ideias, e

reafirmar o caráter de intervenção do poder público no processo de urbanização em curso,

o relator descreve situações para a existência do “amontoamento ou promiscuidade” da

cidade:

“pobresa extrema dos habitantes que não lhes permitte procurar dominicios

salubres, mais vastos e sobretudo mais caras, impedindo-os, ao mesmo tempo,

de se affastarem do local, onde ganham a sua subsistência; o augmento de

população devido aos nascimentos e à imigração dos trabalhadores do campo

16 A recorrência de citações às condições sanitárias destas habitações pode ter suas origens a partir das

experiências de conhecimento dos cortiços de Santa Ifigênia (conhecidos pelo relatório elaborado pela

Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias, em 1893) e em outros bairros da cidade

conforme indicações das Séries Intendência e Polícia e Higiene do Arquivo Histórico de São Paulo. Sobre

o tema, ver CORDEIRO, 2010.

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para a cidades ou capitais; a demolição de casas habitadas por operários, por

motivo de hygiene ou embellesamento.”

Logo, a única medida enxergada pelo poder público municipal era em criar

medidas legislativas que fossem de encontro à construção de residências para a população

mais pobre e ao mesmo tempo seguissem as predisposições sanitárias, exemplo observado

em “paizes civilisados, para remediar o mal”, respaldados pela recomendação do

economista franco-russo que considerava plausível uma

“missão de hygiene e de policia, movendo guerra incessante aos dominicilios

insalubres que não se poderia pedir ao Estado fornecer domicílios ou alimentos

gratuitamente ou abaixo do preço corrente, sob pena de se commetter uma

injustiça para os contribuintes que não participam destes favores, além dos

grandes prejuízos ao Estado, que desta forma desanima a iniciativa particular,

paralysa a construcção privada obtendo um resultado contraproducente.”

Logo, a construção das casas para a população mais pobre ganharia respaldo no

plano econômico, ao serem encaradas como uma mercadoria produzida por determinados

sujeitos, até porque no 4º artigo da lei 1.098 promovia-se que as associações que

construíssem conjuntos de ao menos 20 casas, haveria a distribuição de vinte mil réis em

prêmios, valorizando as iniciativas de empreendimento de médios e grandes proprietários

de terras da cidade17. Bernardo de Campos vislumbra, juntamente com muitos de seus

pares na Câmara Municipal, que com “o empenho da indústria privada promover a

construcção de casas modelos, de villas operarias, onde os seus capitaes encontram

colocação segura e remuneradora, o que se tem verificado na Inglaterra, França, Estados

Unidos, Bélgica, Dinamarca, cujos capitalistas se satisfazem com uma renda 4 a 6 por

100, se mostraria uma vantagem segura de aplicação do capital, visto o aumento

populacional da cidade e as ideias de salubridade permitirem que exista uma intervenção

do poder público em determinadas áreas da cidade”.

17 A partir dos projetos de construção remetidos para aprovação da Prefeitura, podemos mensurar o impacto

da lei no processo construtivo destas habitações na cidade. A Série Obras Particulares do Arquivo

Histórico de São Paulo, além de apresentar o nome dos envolvidos no processo construtivo (proprietário

do lote / imóvel, construtor, fiscais e engenheiros-arquitetos), a partir de 1893 apresenta uma planta

descritiva dos projetos a serem realizados. Ver os trabalhos de: LODY, 2015; PARETO JR, 2016;

SCHNEK, 2016; REIS, Op. Cit.

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A referência aos saberes de outros países não se encerra em Arthur Raffalovich,

ampliando-se à estudos e investigações promovidas pela municipalidade francesa sobre

as casas de operários, que “sempre offereceram numerosas causas de insalubridade”.

Assim, citam os relatórios de Villermé, Blauqui, Frégier, Lestiboudois, Kolb-Bernard,

Ebrington, Henri Roberts e Grainger os quais descreveram as condições de moradias da

população mais pobre, sobretudo em cidades como Paris, Lion, Rouen, Reims, Amiens

visto que nestas “encontravam-se desoladores quadros de miséria”, não muito diferente

da observada em São Paulo pelo olhar de seus vereadores.

Considerações finais

Pensar os debates que envolviam o grupo de vereadores da cidade no processo de

elaboração da lei número 1.098 de 1908, nos permite enxergar questões conexas do

processo de urbanização de São Paulo por meio das ideias partilhadas mundialmente entre

os diferentes sujeitos que articulavam interesses no campo da construção de casas

voltadas para as populações mais pobres.

Ao invés de simplesmente aceitarmos as leis como artefatos prontos, percebemos

como são indícios da circulação de ideias na passagem do século XIX para o XX, e seus

desdobramentos na materialidade da cidade são muito mais profundos que as

recomendações dadas em seus artigos, pois inspiram uma maneira de se pensar a cidade

e evidenciar os jogos políticos que buscavam atender aos interesses dos setores médios

em explorar esse mercado, e ao mesmo tempo investigar os indícios de diálogos que o

corpo técnico e político possuíam com outros sujeitos que experenciavam transformações

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