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Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p 1 A CONSTITUIÇÃO DA CENOGRAFIA NA LITERATURA DE TESTEMUNHO: O SONHO DOS PRISIONEIROS, DE PRIMO LEVI Anderson Ferreira* (PUC-SP) RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a construção da cenografia em uma passagem do livro É isto um homem? de Primo Levi, contida no sexto capítulo intitulado As nossas noites. Essa passagem, tomada aqui como discurso, diz respeito à narração de um sonho de conteúdo comum a todos os prisioneiros que estiveram em Auschwitz entre 1943 1944. Trata-se da descrição de uma cena da memória do narrador. A construção da cenografia do sonho envolve o leitor e o coloca num lugar comum, entre as relações familiares e sociais mais corriqueiras, no entanto o leitor é levado a colocar em primeiro plano a cenografia já construída por toda narrativa pela qual se mantém enlaçado como testemunha ao incorporar o mundo ético de um fiador. Privilegiamos como aporte teórico-metodológico a Análise do Discurso de linha francesa, em particular, os estudos propostos por Dominique Maingueneau sobre a noção de cenas de enunciação. A textualização do discurso nos revelou que por meio das cenografias construídas o produtor-autor envolve o leitor em dois mundos incompatíveis, o lugar do campo de concentração de Auschwitz irrepresentável pelo sonho- e o lugar do seio familiar - trivial, desejável e representativo de humanidade. PALAVRAS-CHAVE: Cenografia; Primo Levi; literatura de testemunho. ABSTRACT: This article aims to analyze the construction of scenography in a passage from the book It this a man? By Primo Levi, contained in the sixth chapter titled Our nights. This passage, taken here as discourse concerns the narration of a dream content common to all prisoners who were in Auschwitz between 1943 and 1944. This is the description of a memory scene of the narrator in which he talks about his experience as a prisoner. The construction of the scenery of the dream involves the reader and puts a commonplace among the most ordinary family and social relationships , however the reader is led to place in the foreground the scenery already built throughout the narrative which remains tied as a witness to incorporate ethical world of a guarantor . Privilege as a theoretical and methodological contribution Discourse Analysis of French line, in particular, the studies proposed by Dominique Maingueneau on the notion of scenes of enunciation. The textualization of the speech showed us that through sceneries built the producer -author engages the reader in two incompatible worlds, the place of the concentration camp of Auschwitz - the unrepresentable dream - and the place of the family environment - trivial, desirable and representative of humanity. KEYWORDS: Scenography ; Primo Levi; testimony literature. INTRODUÇÃO

A CONSTITUIÇÃO DA CENOGRAFIA NA LITERATURA DE … · Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p 1 A CONSTITUIÇÃO DA CENOGRAFIA NA LITERATURA DE

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Interletras, volume 3, Edição número 19. Abril, 2014/Setembro, 2014 - p

1

A CONSTITUIÇÃO DA CENOGRAFIA NA LITERATURA DE

TESTEMUNHO: O SONHO DOS PRISIONEIROS, DE PRIMO LEVI

Anderson Ferreira* (PUC-SP)

RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a construção da cenografia em uma passagem do livro

É isto um homem? de Primo Levi, contida no sexto capítulo intitulado As nossas noites. Essa passagem,

tomada aqui como discurso, diz respeito à narração de um sonho de conteúdo comum a todos os

prisioneiros que estiveram em Auschwitz entre 1943 1944. Trata-se da descrição de uma cena da

memória do narrador. A construção da cenografia do sonho envolve o leitor e o coloca num lugar

comum, entre as relações familiares e sociais mais corriqueiras, no entanto o leitor é levado a colocar

em primeiro plano a cenografia já construída por toda narrativa pela qual se mantém enlaçado como

testemunha ao incorporar o mundo ético de um fiador. Privilegiamos como aporte teórico-metodológico

a Análise do Discurso de linha francesa, em particular, os estudos propostos por Dominique

Maingueneau sobre a noção de cenas de enunciação. A textualização do discurso nos revelou que por

meio das cenografias construídas o produtor-autor envolve o leitor em dois mundos incompatíveis, o

lugar do campo de concentração de Auschwitz – irrepresentável pelo sonho- e o lugar do seio familiar -

trivial, desejável e representativo de humanidade.

PALAVRAS-CHAVE: Cenografia; Primo Levi; literatura de testemunho.

ABSTRACT: This article aims to analyze the construction of scenography in a passage from the book It

this a man? By Primo Levi, contained in the sixth chapter titled Our nights. This passage, taken here as

discourse concerns the narration of a dream content common to all prisoners who were in Auschwitz

between 1943 and 1944. This is the description of a memory scene of the narrator in which he talks about

his experience as a prisoner. The construction of the scenery of the dream involves the reader and puts a

commonplace among the most ordinary family and social relationships , however the reader is led to

place in the foreground the scenery already built throughout the narrative which remains tied as a

witness to incorporate ethical world of a guarantor . Privilege as a theoretical and methodological

contribution Discourse Analysis of French line, in particular, the studies proposed by Dominique

Maingueneau on the notion of scenes of enunciation. The textualization of the speech showed us that

through sceneries built the producer -author engages the reader in two incompatible worlds, the place of

the concentration camp of Auschwitz - the unrepresentable dream - and the place of the family

environment - trivial, desirable and representative of humanity.

KEYWORDS: Scenography ; Primo Levi; testimony literature.

INTRODUÇÃO

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A literatura de testemunho tomou grande impulso a partir da segunda guerra mundial.

Narrada pela memória de sobreviventes de grandes acontecimentos históricos

traumáticos, ela é o testemunho de muitos daqueles que nada puderam dizer. As

palavras que não puderam ser pronunciadas estão textualizadas no discurso dessa

literatura.

Convencionamo-nos a descobrir nessa escrita uma ponta de dor acerca daquilo que não

vivemos, e nem acreditamos que alguém possa ter vivido. As palavras que testemunham

esse dilaceramento moral e físico que só o homem pode fazer a seu semelhante são os

registros de algo incompreensível e irrepresentável.

Esse discurso revela-nos algo entre a realidade e a ficção, esta que gostaríamos que

fosse a essência de tal narração, mas não é. Toda literatura de testemunho intriga pelo

viés histórico, não-ficcional e literário. Primo Levi é um bom exemplo desse fenômeno.

Sua escrita transita entre a memória, a realidade e a ficção. Sobrevivemos com ele, por

meio de seu discurso, vagamos por entre o campo de extermínio, junto aos prisioneiros

que ali circulam, marcham, dormem, trabalham, sonham e morrem sem saber o porquê.

Nesse artigo, destacamos um procedimento de construção das cenas da enunciação.

Visamos com isso enfatizar de que forma o narrador/enunciador coloca o leitor/co-

enunciador na marcha, nos dormitórios, na labuta, no sonho e no anonimato de milhares

de vítimas dos campos de extermino. Destacamos, contudo, a cenografia que instaura no

discurso o lugar do homem na humanidade: na fraternidade entre os homens.

Esse artigo divide-se em três partes: Na primeira visamos a considerar as condições de

produção do discurso analisado. Na segunda fizemos alguns apontamentos acerca da

noção de cenografia proposta no quadro da Análise do Discurso de linha francesa em

que destacamos os estudos Maingueneau (2006; 2008; 2011). Na terceira parte, por

meio desse suporte teórico-metodológico e as condições sócio-histórica de produção do

discurso, examinamos um fragmento do livro, tomado aqui como discurso, em que se

destaca um sonho narrado pelo enunciador no campo de extermínio de Auschwitz.

Diante da impossibilidade de apreender a realidade dos acontecimentos, a enunciação

dispõe a cenografias sobrepostas, a cenografia no sonho envolve o leitor naquilo que se

apresenta como a mais natural das condições humanas, ou seja, a humanidade. Essa

cenografia recobre outra, presente durante toda a narrativa, sustentada por sua condição

‘quase’ ficcional: a degradação humana. A cenografia do sonho é um lugar possível,

desejável: a família, os amigos, o lar, enfim, a vida em sociedade.

1 PRIMO LEVI E A LITERATURA DE TESTEMUNHO

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Agamben (2008), ao analisar o papel do testemunho e sua significação dentro da

constituição discursiva, diz ser Primo Levi um tipo perfeito de testemunha. Para o

filósofo, o fato de Levi, contar a todos o que viveu o faz escritor unicamente para

testemunhar.

Primo Levi (1919-1987) foi um judeu italiano e esteve entre os prisioneiros no campo

de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Logo depois de receber seu título de doutor

em Química pela Universidade de Turim, Levi decide formar um grupo para lutar contra

os fascistas, mas em meados de dezembro de 1943 é preso por milícias fascistas. Nesse

período, outros judeus eram enviados a campos de extermínio. Levi, assim como

centenas de judeus, foi enviado a um campo de extermínio perto de Módena, na Itália.

Contudo, dois meses depois, em 22 de fevereiro de 1944, todos foram deportados para

Auschwitz.

A viagem durou cinco dias dentro de vagões de trem chumbados. Todos já tinham

ouvido falar daquelas viagens de comboios realizadas pelos alemães. A notícia era de

que ninguém nunca voltara delas. De fato, conta Levi, dos 650 judeus deportados

naquele comboio, somente 29 sobreviveram. A morte anônima se baseava na ideia de

que aquele povo era diferente e inferior, Levi relata que aquilo o fez se sentir diferente e

superior, a diferença que lhe foi imposta deu-lhe a condição de afirmar sua identidade

como judeu.

Levi é a testemunha que conta tudo e a todos o que viveu. Quando muitos se calam, ele

decide contar, no entanto não se considera um escritor e, sim, um químico, torna-se,

pois, escritor para testemunhar. Segundo Agamben (2008), Levi é uma testemunha

superstesi, ou seja, é aquele que viveu algo, completou a trajetória desse evento, e,

portanto, pode testemunhar. Por outro lado, Levi não é uma testemunha que pode ser

imparcial (talvez nenhuma o seja), embora ele não se interesse pelo julgamento, não

julga os acontecimentos do ponto de vista da “vítima”. “Aliás, parece que lhe interessa

apenas o que torna impossível o julgamento, as zonas cinzentas em que as vítimas se

tornam carrascos, e os carrascos, vítimas”. (AGAMBEN, 2008, p. 27)

Levi escreveu dezenas de títulos, sua obra é marcada por uma divisão entre a literatura

de testemunho e a literatura que ele se considera despido da qualidade de testemunha.

Focalizaremos em nosso artigo essa primeira produção que no século XX, sobretudo

pós-guerra teve grande penetração na literatura mundial. Dessa produção separamos o

livro É isto um homem? Escrito um ano após sua libertação do campo de extermínio em

1945. Levi relata os onze meses de privação em que sobreviveu no campo de extermínio

Auschwitz.

Essa narrativa contada por um narrador homodiegético revela o processo de

desumanização e degradação que sofreram os prisioneiros. Na verdade, conta-se o

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projeto essencial dos campos de extermínio, a saber: a destruição do ser humano pela

humilhação, pela privação, pela negação de qualquer condição que o faça lembrar-se de

sua humanidade. Como, por exemplo, nessa passagem:

Obviamente, isso não impede que muitos deles [soldados alemães] nos

joguem, de vez em quando, um pedaço de pão ou nos confiem (após a

distribuição da "sopa para trabalhadores externos", na fábrica) as suas

gamelas para raspar e devolver limpas. São levados a isso para não continuar

sentindo sobre si algum importuno olhar faminto, ou por um momentâneo

impulso de humanidade. Ou pela simples curiosidade de nos ver disputando

um com o outro o naco de comida como bichos, sem pudor, até que o mais

forte engula e os demais vão embora frustrados, claudicantes. (LEVI, 1988,

p. 123)

Separamos, para objetivo de nossa análise, uma passagem do livro presente no capítulo

As nossas noites. Esse fragmento relata um sonho do narrador. Este sonho é descrito

como um sonho comum a todos os prisioneiros, a memória onírica os leva para suas

casas, junto a suas famílias, mas como um fantasma, alguém que ninguém ouve e nem

vê. O sonho não é uma ruptura entre a realidade e o mundo onírico, ele se configura

entre um leve sono cujos fatores externos se reverberam em outra dimensão, em outro

lugar muito longe dali, um lugar mais reconfortante no seio familiar. O apito de trem

conduz a viagem entre os dois mundos.

Tenho os olhos fechados; não quero abri-los, não, para que o sono não fuja de

mim, mas ouço os ruídos: este apito ao longe eu sei que é de verdade, não é

da locomotiva do sonho. É o apito do trenzinho da fábrica, que trabalha dia e

noite. Uma longa nota firme, logo outra, mais baixa de um semitom, logo a

primeira nota de novo, mas curta, truncada. Esse apito é importante; é, de

certo modo, essencial: tantas vezes já o ouvimos, ligado ao sofrimento do

trabalho e do Campo, que se tornou seu símbolo, evoca diretamente a ideia

do Campo, assim como acontece com certos cheiros, certas músicas. (LEVI,

1988, p. 59-60)

A sequência seguinte a essa será o objeto de nossa análise. Para tanto, discutiremos, na

próxima seção, a noção de cenas da enunciação proposta por Maingueneau (2006; 2008;

2011).

2 CENAS DA EUNCIAÇÃO

Ao falarmos em cenas de enunciação, estamos nos referindo a duas noções contidas na

sentença: cenas de enunciação. A primeira diz respeito ao item lexical cena. Podemos

nos remeter de imediato à cena de peça teatral. Neste caso, temos a concepção de partes

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temáticas que se realizam durante um espetáculo teatral. Cada cena teatral é composta

por uma situação de comunicação, num quadro pré-construído, onde as falas já estão

prontas, bem como já está previsto o desenrolar do enredo. Independente do tema de

cada cena, ou da quantidade de personagens, existe, no interior de cada uma, um

começo, um meio e um fim, pelo menos num tempo físico, que se desenrola entre

rupturas, num lugar onde se realiza o ato.

As cenas, no caso das peças teatrais, já estão construídas pelos seus autores e servem de

guia para diretores, atores e atrizes e toda equipe que trabalha na produçãoii. O que

queremos dizer é que, mesmo com todo o talento do elenco envolvido na peça teatral, as

cenas já estão previstas e descritas pelo autor da peça. Dessa ideia de pré-constituição,

portanto, é que tendemos a inferir o sentido de cenas a um lugar e um momento, dados

pelos marcadores de espaço e tempo (aqui-agora). O que sugere a expressões do tipo:

Ele estava na cena do crime ou Não me lembro dessa cena.

Enunciação, por sua vez, significa o ato do acontecimento. Sua concepção pode ser

tanto linguística como discursiva. No primeiro caso, podemos apreender a enunciação

enquanto prática individual do sujeito falante, pondo em funcionamento a língua. No

segundo caso, a que tomamos como referência nesse trabalho, a concepção de

enunciação pode ser apreendida como fatos, ou seja, como acontecimento em “um tipo

de contexto e apreendido na multiplicidade de suas dimensões sociais e psicológicas”.

(CHARAUDEAU. P; MAINGUENEAU, p.193). Esse acontecimento é constituído de

enunciado(s). Assim, para que se haja enunciação é preciso existir a marca verbal que a

constitui. Desde já, na perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, o

enunciado se opõe a enunciação.

No discurso, as cenas são construídas por meio das marcas linguísticas selecionadas

pelo enunciador e, sobretudo, por uma relação interdiscursiva. Essas marcas, por sua

vez, ancoram os enunciados na situação de enunciação – sistema de coordenadas

abstratas, associadas a toda produção verbal. As cenas de fala são constitutivas do

discurso. Dessa forma, “a situação de enunciação não é uma situação de comunicação

socialmente descritível, mas o sistema onde são definidas as três posições fundamentais

do enunciador, do co-enunciadoriii

e da não-pessoa”. (MAINGUENEAU, 2006, p. 250).

Portanto, a situação de enunciação constrói um conjunto de posições abstratas onde se

estabilizam as atividades enunciativas, sua base é, em particular, a marcação dos

dêiticos. Consideramos, portanto, a enunciação ocorrendo em um espaço instituído, que

o gênero do discurso irá definir e de onde se construirá uma cena no e pelo discurso.

Para desenvolvermos essa estratégia falaremos das três cenas propostas por

Maingueneau (1997; 2006; 2008; 2011).

O que define o quadro cênico do texto, o espaço estável no qual o enunciado tem

sentido, são as cenas de enunciação chamadas cena englobante e cena genérica. A

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primeira corresponde a um tipo de discurso, ou seja, confere ao discurso um estatuto

pragmático, quais sejam: literário, religioso, filosófico etc. A segunda diz respeito ao

gênero do discurso que - como o definiu Bakhtin (2010) – são tipos relativamente

estáveis de enunciados. Há ainda uma terceira cena com a qual o co-enunciador se

confronta: a cenografia. Essa cena não é imposta pelo gênero, mas é construída pelo

próprio texto à medida que a enunciação se desenvolve.

Situando o nosso objeto de estudo nesse quadro cênico, teríamos: o livro de Primo Levi

intitulado É isto um homem? como parte da cena englobante. Essa cena confere ao

discurso um estatuto pragmático, integrando-lhe em um tipo, nesse caso, diz repeito ao

discurso literário. A cena genérica está ligada aos gêneros de discurso particulares,

podemos falar aqui de literatura de testemunho, particularmente, considerando que tal

narrativa não contém fatos ficcionais, como o próprio autor ressalta em seu prefácio. Ou

seja, esse gênero discursivo tem uma função social definida pelo produtor, mas nem

sempre conseguimos especificar uma cena genérica no interior da obra literária, pois

precisaríamos discutir se a literatura tem ou não uma função social, o que não é o

objetivo desse trabalho. Resta lembrar que Primo Levi visou uma função para sua

escrita, a saber: testemunhar. “O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em

primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior”. (LEVI, 1988, p. 7)

Assim, a cena genérica pode ser classificada como relato testemunhal.

Contudo, cada gênero de discurso implica uma cena específica. As duas primeiras cenas

definem o quadro cênico do texto, o espaço estável, por assim dizer, no qual o

enunciado tem sentido. Por fim, a cenografia, instituída pelo próprio discurso nessa

obra, se manifesta mantendo certa distância do seu co-enunciador. Esta distância

implica - pelas condições que cria para se construir uma consciência de identidade e

pelo seu ponto de vista crítico-reflexivo - uma narrativa de história em detrimento a uma

narrativa de relato.

Para Maingueneau (2006), todo enunciado literário está associado com uma cena

englobante literária, pela qual se permite que o autor use pseudônimo e que os estados

de coisas que se propões sejam fictícios. Nesse ponto há uma tensão no que tange a obra

de Primo Levi. O autor, em seu prefácio, faz-nos a seguinte consideração:

Este meu livro, portanto, nada acrescenta, quanto a detalhes atrozes, ao que já

é bem conhecido dos leitores de todo o mundo com referência ao tema

doloroso dos campos de extermínio. Ele não foi escrito para fazer novas

denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de

certos aspectos da alma humana. [...] O livro foi escrito para satisfazer essa

necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação

interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em

sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O trabalho de ligação e fusão foi

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planejado posteriormente. Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos

episódios foi fruto de imaginação. ( LEVI, 1988, p. 7, ênfases nossas).

Ora, como bem disse o autor, os ‘estados de coisas’ relatados no livro não são fictícios,

nem ele se utiliza de um pseudônimo para relatá-los. Tal obra, como sabemos, é tida

como literatura de testemunho - tipo de escrita cujo foco central é narrar um

acontecimento como evento extraordinário cujas ações apresentam uma ruptura com o

cotidiano. Maingueneau (1996; 2006) não se debruça nesse tipo de escrita literária em

seu estudo sobre o discurso literário, uma vez que propõe como possiblidades desse tipo

de discurso a ficcionalidade da obra e o apagamento do autor empírico.

Sendo assim, podemos redefinir, para fins didáticos, o quadro cênico da obra de Primo

Levi nos seguintes termos: A cena englobante se refere à literatura de testemunho, a

cena genérica - longe de ser um espaço estático do campo de extermínio - diz respeito

ao contrato associado ao gênero discursivo, logo, o domínio desse gênero é de

fundamental importância para se interpretar e produzir enunciados decorrentes de uma

formação discursiva. No caso, o domínio desse gênero tanto do produtor – sobrevivente

do campo de extermínio- como do leitor que dispõe de algum conhecimento sobre o

fato, firmam o contrato associado ao gênero discursivo que classificamos como relato

de testemunho. Este quadro cênico é afastado e dá lugar a uma cena narrativa construída

pelo texto: a cenografia.

Assim, a cenografia do relato em Primo Levi institui no e pelo discurso aquilo que é

irrepresentável, no momento enunciado, como instância do real. Na verdade, a própria

construção da literatura de testemunho coloca em questão a relação entre a literatura de

ficção e o real. O co-enunciador/leitor está no limiar dessas concepções. A instituição

das cenografias contribui para a reflexão sobre o discurso não ficcional, sobre o discurso

histórico e sua relação com o discurso literário. O ethos do enunciador se especifica e se

valida pelo discurso. O que vale dizer que todo e qualquer enunciado pretende agir

sobre o outro. “Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si”

(AMOSSY, 2011, p. 9).

É, contudo, a cenografia construída que colocará o co-enunciador/leitor no campo de

extermínio. Esse procedimento é suficiente para propor valores. É pela construção da

cenografia que o enunciador valida a posição do autor-produtor, aquela de não ser juiz,

porque “toda obra, por sua própria apresentação, pretende instituir a situação de

enunciação que a torna pertinente”. (MAINGUENEAU, 2006, p. 253)

Proporemos, na análise que se segue, que a pertinência da obra de Primo Levi na

literatura de testemunho, muito se deve processo bem sucedido de textualização do

discurso testemunhal, entre esses mecanismos e procedimentos, destacamos a

cenografia.

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3 AS NOSSAS NOITES

Recorte 1.

Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas.

Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura,

do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de

acordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossa

fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz e

logo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna,

física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa

para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem

indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse.

Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio. Nasce então,

dentro de mim, uma pena desolada, como certas mágoas da infância que

ficam vagamente em nossa memória; uma dor não temperada pelo sentido

da realidade ou a intromissão de circunstâncias estranhas, uma dor dessas

que fazem chorar as crianças. Melhor, então, que eu torne mais uma vez à

tona, que abra bem os olhos; preciso estar certo de que acordei, acordei

mesmo. O sonho está na minha frente, ainda quentinho; eu, embora

desperto, continuo, dentro, com essa angústia do sonho; lembro, então, que

não é um sonho qualquer; que, desde que vivo aqui, já o sonhei muitas

vezes, com pequenas variantes de ambiente e detalhes. Agora estou bem

lúcido, recordo também que já contei o meu sonho a Alberto e que ele me

confessou que esse é também o sonho dele e o sonho de muitos mais; talvez

de todos. Por quê? Por que o sofrimento de cada dia se traduz,

constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre repetida da narração

que os outros não escutam?

LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Dei Re. - Rio de Janeiro:

Rocco, 1988. p. 60.

Insistimos que a cenografia é aquela com a qual o co-enunciador se defronta. É a partir

da própria enunciação que a cena vai sendo construída, portanto, não existe um quadro

construído a priori e independente no interior do espaço. Considera-se aqui o desenrolar

da enunciação, o acontecimento propriamente dito, isto é, a iniciação dentro da própria

progressão do mecanismo de fala.

Temos, então, os seguintes constituintes da cena com a qual se defronta o co-

enunciador/leitor no trecho do sonho comum aos prisioneiros do campo de extermínio:

A irmã e um amigo, e “muitas outras pessoas” essa textualização engendra um lugar

familiar, a casa do narrador. Essas outras pessoas estão lá, talvez por ocasião de uma

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festa, ou uma reunião entre amigos. A cenografia vai sendo construída de forma paralela

com aquele que o co-enunciador já se vê enlaçado. O co-enunciador se vê movido de

um lugar – campo de extermínio – a outro, seio familiar.

Trata-se da enunciação colocada num quadro onírico. Na verdade, tal relato enunciativo,

no sonho, não é ficcional. Seu conteúdo é exatamente aquilo que aconteceu durante o

período de aprisionamento, sobrepondo-se a uma memória externa: a reunião familiar. É

o desejo de se contar. O sonho é realização desse desejo. O conteúdo do sonho é

justamente a memória e não a esperança de estar entre os entes queridos. No sonho, o

narrador é um ‘fantasma’ para os outros “ mas bem me apercebo de que eles não me

escutam. Parecem indiferentes”. A enunciação do sonho respeita o fato de serem os

diálogos oníricos imprevisíveis do ponto de vista de seu controle.

O enunciador constrói a cena a partir do lugar familiar. O co-enunciador/leitor se

defronta com essa cenografia peculiar do narrador, uma vez que a narrativa não é

ouvida pelas pessoas no sonho, conta-se algo ‘banal’ em relação ao acontecimento

histórico dos horrores acontecidos nos campos de extermínio, conta-se “da cama dura,

do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é

mais forte que eu”. Essa aparente ‘banalidade’ em relação ao conteúdo do relato, diz

respeito à sobrevivência pelo discurso daqueles que sobreviveram aos campos de

extermínio, testemunhar é a forma de viver com o constrangimento por ter sobrevivido.

Em última instância, o testemunho, como o atesta Primo Levi, tem caráter de impulso

imediato e violento, colocando-se a frente de outras necessidades. “Todos me escutam,

enquanto conto do apito em três notas”.

Da felicidade do sonho a dor da realidade. O sonho, na verdade, confunde-se com a

realidade vivida no campo de extermínio “o sonho está na minha frente ainda

quentinho”. As duas cenografias do sonho e do campo agora se hibridizam. A

cenografia revela dois lugares que se confundem. De um lado, a testemunha que, num

ímpeto, relata sua experiência aos presentes de forma contínua e sem coesão. Dentro

desse relato, aparecem outras cenas, que surgem como fotografias. Temos, então, cenas

sobrepostas. “Conto também a história da nossa fome, e do controle dos piolhos, e do

Kapoiv que me deu um soco no nariz e logo mandou que me lavasse porque sangrava”.

Esse ímpeto de contar é verificado no fluxo contínuo em que se conta sobre o campo de

extermínio. Há uma tendência no sonho de sintetizar todo o acontecimento. Do outro

lado, as pessoas do sonho: “irmã, amigo (qual?), e muitas outras pessoas”. Elas atuam

de forma paralela na cena. Primeiro passivamente, “todas me escutam”; depois a parte,

“falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse”.

Contudo, somente a irmã, o ente mais próximo e, provavelmente, mais querido, age na

cena em favor do narrador. “Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em

silêncio”. A instituição da cenografia aqui funciona para justificar a irrepresentabilidade

do real. Tudo parece estar chegando ao fim, e ao mesmo tempo é impossível ouvir

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aqueles entes queridos, também é impossível que eles acreditassem em tal história, em

tal degradação moral e física do ser humano por seus semelhantes. A cenografia no

sonho perde força conforme a enunciação avança, ela vai sendo comprimida por outra

cenografia que coloca o co-enunciador em um não lugar. “Nasce então, dentro de mim,

uma pena desolada, como certas mágoas da infância que ficam vagamente em nossa

memória”.

O cenografia revela dois mundos impossíveis de serem compartilhados, o co-

enunciador/leitor é enlaçado pelo primeiro mundo, o lugar do campo de extermínio e

nem é preciso descrever o absurdo desse lugar, ele já o sabe pela força narrativa do

texto, mas junto a esse mundo o discurso constrói uma cenografia por meio do sonho,

uma salvação, a família, os amigos, as conversas informais, um lar, a memória ainda

lúcida, o co-enunciador é convocado a participar desse mundo familiar desejável, mas

distante para quem perdeu a condição de humanidade, a cenografia do sonho aos poucos

se afasta, nada há mais possibilidade de narrar, o que resta é um sentimento, “uma dor

não temperada pelo sentido da realidade ou a intromissão de circunstâncias estranhas,

uma dor dessas que fazem chorar as crianças”.

É esta a cenografia que dizemos ser irrepresentável dentro de certa instância do real,

embora emergida do real. A narrativa que admite essa enunciação parece-nos carregada

de um paroxismo que reverbera no coenunciador/leitor. Esta narrativa se apresenta

como a mais veemente e verossímil realidade da alma humana. Aqui o co-enunciador,

segundo Maingueneau (1996), coloca em movimento o narrador percebido como

instância que sustenta o ato de narrar. Nesse sentido, é o co-enunciador que “enuncia a

partir das indicações cuja rede total constitui o texto da obra”. (MAINGUENEAU,

1997, p. 32). A cenografia, em questão, invoca a possibilidade de uma atividade do co-

enunciador/leitor na história assumida pela narração. Deixa, portanto, o juízo de valor

para o leitor da narrativa.

Em suma, a cenografia instituída valida o ethos que é incorporado pelo co-enunciador.

Este é chamado a ocupar um lugar na cena da enunciação. Um lugar remoto, onde o

irrepresentável, a impotência, o fracasso do ser humano é intensificado na realidade e no

sonho. O enunciador está aqui na condição de um narrador de uma narrativa das ruínas e

que - segundo Gagnebin (2006), analisando Benjamin - retemos da figura do narrador

um aspecto menos triunfante, comparada àquela figura da narração épica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um ponto alto na narrativa testemunhal de Primo Levi diz respeito à relação que o

narrador mantém com o narrado. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um

narrador homodiegético, presente na ficção, revela, por uma perspectiva privilegiada,

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aquele que não julga as atrocidades sofridas, mas que testemunha por aqueles que foram

calados pela morte e sumiram anonimamente.

A cenografia instituída, por quase toda narrativa, coloca o leitor num lugar abjeto, em

que o homem como ser humano foi reduzido a nada. “Uma parte da nossa existência

está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de

quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro

homem”. (LEVI, 1988, p. 173) A cenografia do sonho vem restituir, ao menos no tempo

narrativo, essa humanidade. Ela coloca o leitor em contato com banalidades mais

humanas que se pode ter na vida “é uma felicidade interna, física, inefável, estar em

minha casa, entre pessoas amigas”.

O leitor é envolvido por meio das cenografias construídas em uma narrativa que se

apresenta como irrepresentável do ponto de vista da realidade que ela reclama para si. A

constituição da cenografia envolve o leitor para que este por si próprio tire suas

conclusões. As atrocidades cometidas nos campos de extermínio foram temas de muitos

livros, filmes, documentário etc.; pós-guerra. Todos procuram um culpado, querem

julgar os carrascos. Primo Levi, por sua vez, embora tenha sido prisioneiro e tenha

sobrevido, como dizia, por sorte, não procura julgar seus algozes. A construção da

cenografia do sonho se mostra eficaz para que esse ‘julgamento’, se houver, seja feito

em cada um de nós.

REFEREÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sacer III) trad. Selvino J. Assmann. – São Paulo: Boitempo, 2008.

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de si no Discurso: a construção do ethos. Ruth Amossy (org). – 2ºed. – São Paulo:

Contexto, 2011.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CHARAUDEAU. P; MAIGUENEUA, D. Dicionário de Análise do Discurso. –

coordenação de tradução Fabiana Komesu. 2 ed. - São Paulo: Contexto, 2008.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006

LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Dei Re. - Rio de Janeiro: Rocco,

1988.

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Fontes, 1996.

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da Unicamp, 1997.

_________. Termos-chave da análise do Discurso. Tradução Márcio Venício

Barbosa, Maria Emília Amarante Torres Lima. – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

_________. Discurso Literário. trad. Adail Sobral – São Paulo: Contexto, 2006.

_________. Cenas da enunciação. Organização: Sírio Possenti, Maria Cecília Péres

Souza-e-Silva. SP: Parábolas Editorial, 2008.

_________. Ethos, cenografia, incorporação. In: Imagens de si no Discurso: a

construção do ethos. Ruth Amossy (org). – 2ºed. – São Paulo: Contexto, 2011.

NOTAS

* Mestrando em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. 1 Uns dos termos em latim para representar testemunha.

2 Essa concepção de cena diz respeito ao teatro tradicional.

3 Tratamos as noções co-enunciador e leitor como sinônimos nesse trabalho.

4 Soldado alemão.