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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA-PPI: MESTRADO Área de Concentração: Constituição do sujeito e historicidade A CONSTITUIÇÃO DO EU NA CULTURA DO SIMULACRO DE SIMULAÇÃO MATHEUS DE FREITAS BRANDÃO MARINGÁ 2010

A CONSTITUIÇÃO DO EU NA CULTURA DO SIMULACRO DE SIMULAÇÃO

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A CONSTITUIÇÃO DO EU NA CULTURA DO SIMULACRO DE SIMULAÇÃO

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA-PPI:

    MESTRADO rea de Concentrao: Constituio do sujeito e historicidade

    A CONSTITUIO DO EU NA CULTURA DO SIMULACRO DE SIMULAO

    MATHEUS DE FREITAS BRANDO

    MARING 2010

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA-PPI:

    MESTRADO rea de Concentrao: Constituio do sujeito e historicidade

    A CONSTITUIO DO EU NA CULTURA DO SIMULACRO DE SIMULAO

    MATHEUS DE FREITAS BRANDO

    MARING 2010

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA-PPI:

    MESTRADO rea de Concentrao: Constituio do sujeito e historicidade

    A CONSTITUIO DO EU NA CULTURA DO SIMULACRO DE SIMULAO

    Dissertao apresentada por MATHEUS DE FREITAS BRANDO, ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia, rea de Concentrao: Constituio do Sujeito e Historicidade, da Universidade Estadual de Maring, como um dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia. Orientador(a): Prof(a). Dr(a).: ANGELA MARIA PIRES CANIATO

    MARING 2010

  • FICHA CATALOGRFICA

    Catalogao na Publicao

    Biblioteca Central da UNICENTRO, Campus Guarapuava

    Brando, Matheus de Freitas

    B817c A constituio do eu na cultura do simulacro de simulao / Matheus de

    Freitas Brando. Maring, 2010.

    xi, 97 f. ; 28 cm

    Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Maring, Ps-

    Graduao em Psicologia (rea de concentrao: Constituio do sujeito e

    historicidade), 2010

    Orientadora: Angela Maria Pires Caniato

    Banca examinadora: Angela Maria Pires Caniato, Jos Sterza Justo, Eduardo

    Augusto Tomanik

    Bibliografia

    1. Psicologia. 2. Psicanlise. 3. Constituio do eu. 4. Subjetividade -

    psicologia. 5. Simulacro. 6. Simulao - psicologia. I. Ttulo. II. Universidade

    Estadual de Maring.

    CDD 150.195

  • MATHEUS DE FREITAS BRANDO

    A CONSTITUIO DO EU NA CULTURA DO SIMULACRO DE SIMULAO

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Angela Maria Pires Caniato UEM

    Prof. Dr. Jos Sterza Justo UNESP Assis-SP

    Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik UEM

    Data de Aprovao

  • Dedico esse trabalho a A.R.M.A.S. e a Mnica. Foram vocs que me alimentaram de amor e me ensinaram que esta a forma de luta.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a minha Orientadora Profa. Dra. Angela Maria Pires Caniato, smbolo de paixo, luta e competncia. Pela preocupao com minha formao intelectual e rigor metodolgico, contribuiu, sobretudo como inspirao para o desenvolvimento desse trabalho

    Agradeo s famlias ligadas a mim: Minha Me, meu Pai, meus Irmos, o apoio e a confiana depositadas por vocs em mim em tudo o que me aventurei enfrentar foi fundamental para chegar at aqui. minha esposa Monica, que com a habilidade de Sutilmente estar sempre ao meu lado os desafios desse processo puderam ser superados. A Nilson e Clia, cuja existncia em minha vida representa fonte de admirao e gratido.

    A meus avs, tios, primos de uma famlia de origem simples que na sua simplicidade sempre acreditou na importncia da formao acadmica.

    Aos Professores Doutores Eduardo Augusto Tomanik e Jos Sterza Justo, membros da banca examinadora, pela ateno, carinho, cuidado nas contribuies tericas e metodolgicas.

    Aos colegas da Faculdade Guairac de Guarapuava-PR, pelo apoio durante todas as etapas do Programa de Mestrado.

    Aos amigos e colegas do Grupo de Pesquisa Phenix, que sempre proporcionaram momentos de Bem Estar sem eles seria demasiadamente difcil suportar o mal estar.

    Finalmente, a todas as pessoas que direta ou indiretamente contriburam durante essa etapa to importante quanto sacrificante de minha vida.

  • No desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivduos, s o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a mudana do egosmo para o altrusmo (Sigmund Freud)

  • RESUMO

    Esta pesquisa parte do pressuposto de que o desenvolvimento tecnolgico, sobretudo nas reas da comunicao, provocam mudanas nas formas de relaes psicossociais entre indivduos e cultura. Tais relaes tem substitudo a presena real/concreta de indivduos e objetos por uma mediao feita, majoritariamente, a partir de simulacros de simulao (BAUDRILLARD, 1991). Nesse sentido, dedicamos o primeiro captulo compreenso do conceito de simulacro de simulao de Jean Baudrillard. Em linhas gerais, trata-se da produo de objetos que se pretendem substitutos do real e o fazem a partir de uma subverso da linguagem tornado-se autnomos, capazes de criar e recriar a realidade, em relao ao ser humano. Alm disso, procuramos investigar a presena de simulacros de simulao como forma de mediao entre indivduos e cultura: a ressurreio artificial da realidade (BAUDRILLARD, 1991), as imagens-sntese (QUAU, 1993; PARENTE, 1993) as tecnoimagens (FLUSSER, 2002; MARCONDES FILHO, 2006), como expresso dos simulacros de simulao, assim como o papel da publicidade como discurso legitimador desses mesmos simulacros indicam a presena macia de mediaes a partir deles como substitutos da realidade. No segundo captulo, recorremos psicanlise para compreender as os processos de apreenso e representao da realidade feita pelos sujeitos. A constituio do eu, segundo Freud (1923), se d, justamente, a partir das relaes entre indivduo e cultura. Freud (1923) afirma que o eu fundado pelo outro. Percorremos a obra seguindo os momentos em que Freud discute a constituio do eu construindo um arcabouo terico que nos permita lanar luz as relaes entre indivduo e cultura no mundo contemporneo. No terceiro captulo, articulando as ideias dos dois anteriores visamos apontar em que medida as relaes mediadas por simulacros de simulao podem influenciar os indivduos e, dialeticamente, a produo da prpria cultura. Conclumos que as relaes mediadas a partir de simulacros de simulao favorecem a fragmentao da realidade internalizada pelos indivduos a partir da capacidade de produo de sentido e de conceitos/modelo desses objetos. Tal modo de funcionamento pode favorecer regresses pulsionais, indicando tambm uma fragilizao subjetiva a que esto submetidos os indivduos na sociedade atual. Indicamos tambm que a temtica ainda demanda novas pesquisas sobre o tema, devido a abrangncia, complexidade e atualidade desses fenmenos, principalmente, pesquisas que auxiliem a desenvolver instrumentos e condies para autonomia dos sujeitos na cultura do simulacro.

    Palavras-chave: Psicanlise; Constituio do eu; Subjetividade; Simulacros; Simulao.

  • ABSTRACT

    This resarch assumes that technological development, particularly in the areas of communication caused changes in the forms of psychosocial relationships between individuals and culture. Such relationships have replaced the real presence/concrete subjects and objects of a mediation, mostly from simulacra of simulation (Baudrillard, 1991). Accordingly, we devote the first chapter to understand the concept of simulacra of simulation by Jean Baudrillard. In general, it is the production of objects which are to be substitutes for real and do it from a subversion of language made them autonomous, able to create and recreate reality in relation to humans. Furthermore, we investigated the presence of simulacra of simulation as a way to mediate between individuals and culture: the resurrection of the artificial reality (Baudrillard, 1991), the image-synthesis (QUEAU, 1993; PARENTE, 1993) the tecnoimagens (Flusser, 2002 ; MARCONDES SON, 2006), as an expression of the simulacra of simulation, as well as the role of advertising as legitimizing discourse of those simulations showed the massive presence of mediations from them as substitutes for reality. In the second chapter, we turn to psychoanalysis to understand the processes of apprehension and representation of reality made by the subjects. The constitution of the I, according to Freud (1923), takes precisely, from the relations between individual and culture. Freud (1923) that "I" is founded by another. So, come to work following the times that Freud discusses the development of I thereby building a theoretical framework that enables us to illuminate the relationship between individual and culture in the contemporary world. In the third chapter, articulated the ideas of the previous two trying to point to what extent the relations mediated by simulacra simulation may influence individuals and, dialectically, the production of culture itself. We conclude that the relations mediated from simulacra simulation favor the fragmentation of reality internalized by individuals from the production capacity of meaning and concepts/model of these objects. This mode of operation may favor instinctual regressions, also indicating a weakening subjective they are submitted to the individuals in society today. Also indicated that the issue still requires further research on the subject, because the scope, complexity and relevance of these phenomena. Mostly, they help to develop research tools and conditions for personal autonomy in the culture of the simulacrum.

    Key-words: Psychoanalysis; constitution of the self, subjectivity; Simulacra, Simulation.

  • SUMRIO

    INTRODUO___________________________________________________________12 CAPTULO 1 - A ERA DA SIMULAO_________________________________________18 1.1- Uma incurso pela teoria do simulacro em Baudrillard________________________________________________________________18

    1.1.1 - (Re)Construindo a espiral dos simulacros na sociedade__________________22 1.2 - A cultura do simulacro: caractersticas das relaes psicossociais________________31

    1.2.1 - Da modernidade ps-modernidade_________________________________32

    1.2.2 - A ressurreio artificial da realidade as mediaes por simulacros de simulao____________________________________________________________39

    1.2.3 - As imagens-sntese como mediao e a publicidade como discurso legitimador___________________________________________________________42

    CAPTULO 2 - ASPECTOS LIGADOS CONSTITUIO DO EU RELEVANTES PARA COMPREENDER AS CONDIES DO INDIVDUO CONTEMPORNEO UM PERCURSO PELA OBRA DE FREUD_________________________________________________________________54

    2.1 - A concepo de eu no Projeto e as contribuies dos Estudos sobre a Histeria: os pressupostos para compreender o funcionamento da distino entre realidade/alucinao, o pensamento e o papel da linguagem____________________________________________55

    2.2 - A concepo de eu a partir da teoria pulsional e a revoluo do narcisismo: a consolidao de uma noo de eu fundado nas relaes____________________________62 2.3 - A concepo de eu em O Ego e o Id: uma sntese das concepes anteriores que levam a concepo final das estruturas id, ego e superego (ideal do eu)________________65

    CAPTULO 3 - A CONSTITUIO DO EU E A SUBJETIVIDADE NA ERA DA SIMULAO____69

    3.1 - Implicaes subjetivas do desamparo pertinentes ressurreio artificial da realidade na cultura do simulacro______________________________________________________71

    3.2 - Relaes entre linguagem/imagens-sntese e a constituio do eu_________________78

    3.3 - Sobre o Inconsciente - implicaes para seu funcionamento na cultura contempornea

    _________________________________________________________________________81

    CONCLUSES___________________________________________________________88 REFERNCIAS___________________________________________________________93

  • 12

    INTRODUO

    Vivemos hoje uma dessas pocas de crise das antigas ordens de representao e dos saberes, e, mais profundamente, de uma grande complexidade em relao as formas de produo da subjetividade (PARENTE, 1993, p. 14). A afirmao de Parente (1993) circunscreve a preocupao geral que conduziu esse trabalho. Diante das transformaes nas formas de produo material, da produo de representaes e saberes, notamos tambm transformaes na produo de subjetividades. A evoluo das mquinas, da informtica, da tecnologia de comunicao, permite atualmente a criao e recriao de objetos at ento inimaginveis.

    O sonho da criao de um ser autnomo, imagem e semelhana do ser humano, a exemplo do rob moderno, atingiu possibilidades para alm da substituio do corpo, ou prteses dos corpo, mas so produzidas mquinas de viso capazes de reconhecer seres e objetos, prteses perceptivas ou automao das percepes (VIRILIO, 1993), a inteligncia artificial, a construo e encadamento de imagens que podem substituir o pensamento ou a imaginao (BAUDRILLARD, 2004; FLUSSER, 2002) como recorrente nas campanhas publicitrias em que as pessoas se misturam a uma projeo fantstica de realizao de desejos mais primitivos, aproximando-as de satisfaes tpicas do mundo dos sonhos (SAFATLE, 2005). As possibilidades de comunicao pela internet oferecem a possibilidade de telepresena, a presena mediada pela tela, em tempo vivo, o papel de produo de modelos identificatrios e conceitos a partir de programas de televiso criando e recriando opinies, identidades, modos de ser e viver. A acelerao da capacidade de produo e distribuio de bens nunca antes registradas na histria, uma compresso do tempo-espao, produo do mximo em tempo mnimo e distribuio global em que os referenciais de distncia so praticamente insignificantes (HARVEY, 2009). Enfim, so inmeras as transformaes na vida cotidiana.

    Transformaes estas que embora abram inmeras possibilidades de desenvolvimento, soluo de problemas etc., tambm nos colocam diante de questes ticas e epistemolgicas (PARENTE, 1993; QUAU, 1993) que abrangem, sem o risco do exagero, todas as reas da cincia: a apreenso da realidade diante a possibilidade de recriao artificial tanto da realidade quanto de faculdades humanas como inteligncia, pensamento, representao e

  • 13

    imaginao; a democratizao do acesso s tecnologias e s solues de problemas oferecidos por elas; as formas de organizao social do trabalho substituio dos seres humanos por mquinas autnomas; formas padronizadas de sentir, desejar so apenas alguns exemplos que ilustram a importncia do desenvolvimento de pesquisas sobre os aspectos envolvidos nesses fenmenos contemporneos.

    O recorte terico-metodolgico adotado nessa pesquisa parte do pressuposto de que as mediaes entre indivduos e entre indivduos e seu mundo, dimenses que compem o que chamaremos de realidade, vem sendo feitas a partir de substitutos de indivduos e tambm substitutos dos objetos que compem o mundo. A presena concreta/real de indivduos ao se relacionarem e tambm a relao destes com os objetos que constituem o mundo externo, ou que pelo menos permitem o reconhecimento da realidade externa, tem sido cada vez menos comum. Essas relaes vem sendo mediadas por rplicas da realidade, ou rplicas de seres humanos rplicas estas que caracterizam o conceito de simulacro: algo que se prope real, ou substituto da realidade, mas no o (BAUDRILLARD, 1996). Tais substitutos, portanto, parecem engendrados a partir de um intencionalidade de substituio da realidade, Sodr (2002) indica que no podemos pensar as novas formas de produo de realidades e subjetividades desligadas dos contextos histricos, sociais, econmicos e polticos em que esto inseridos. Nesse sentido, h subjacente essas transformaes, intencionalidades sociais, polticas e econmicas que devemos procurar entender.

    Essa pesquisa toma, portanto, uma perspectiva dialtica, uma vez que tem a historizao como prerrogativa, priorizando as transformaes ocorridas a partir das contradies decorrentes da relao indivduo/cultura. Seguindo as proposies de Konder (1993), esta pesquisa se caracteriza por uma investigao bibliogrfica que busca oferecer uma possibilidade de interpretao das contradies, propondo uma superao destas a partir de uma tese acerca de um dado emprico que, por sua vez, poder ser submetida novamente ao emprico num momento subsequente.

    A partir desta perspectiva dialtica apresentada acima, o ser humano passa ser sujeito da cultura e ao mesmo tempo produtor da cultura. Mostra uma dependncia em relao ao outro como condio de fundao do sujeito. Da mesma forma, produtor da prpria cultura, uma vez que, embora fundado pelo outro, o sujeito tem papel ativo na busca pela satisfao de seus desejos, como afirma Freud (1923).

  • 14

    Para compreender e historizar essas transformaes recorremos a reas do conhecimento como a Sociologia, Filosofia, Antropologia na medida em que estas lanam luz sobre os fenmenos sociais. Um dos autores que colaborou para compreender as formas de produo de objetos e de produo de subjetividades foi Jean Baudrillard. Esse autor desenvolve uma teoria da sociedade orientada pelo conceito de simulacro de simulao.

    O primeiro captulo trata justamente da construo desse conceito na obra desse autor. Em linhas gerais, entende que simulacros so cpias, rplicas de objetos. Antes de adentrar o incio da espiral dos simulacros, traremos para este texto a discusso proposta por Melo (1988) acerca do conceito de representao e de signo, uma vez que isso nos auxiliar a compreender a proposta de Baudrillard.

    Segundo a autora, representao um termo de definio difusa, como aponta Fernando Gil (citado por MELO, 1988), mas que, em linhas gerais, tem-se que [...] representar significa ser o outro do outro, simultaneamente evocado e cancelado (p. 30). A partir da representao possvel, por exemplo, evocar um objeto ausente e assim, simultameamente, definir sua ausncia. Assim a representao est ligada a processos de pensamento e de linguagem de forma que a representao seria uma percepo interpretada, uma imagem mental. Nesse sentido, o signo faz uma funo de terceiro (mdium): entre aquele que pretende representar e aquele que o interpreta funo esta ligada a um ato de siginificao unificadora da relao. Tomando emprestada a definio de Saussure, temos que o signo composto de duas partes: uma sensvel o significante; e outra que marca a ausncia do objeto para um determinado grupo o significado; tem-se que, da relao entre essas partes, a singificao se torna possvel, se torna possvel atribuir sentido ao signo. De tal forma, a representao expressa um processo mental enquanto o signo expressa um processo

    social. Ou, se quisermos, a representao remete a uma realidade psquica, a um mundo interno, enquanto o signo remete ao mundo externo, embora tendo uma parte sensvel. As relaes entre signo e representao organizam o sistema de pensamento e fazem a distino entre aquilo que representao e aquilo que realidade externa ao indivduo.

    Retornando ao simulacro naturalista, temos que, para Melo (1988), o simulacro, de acordo com Baudrillard, suprime essa alteridade, oblitera a relao entre presena e ausncia, levando o pensamento ao julgamento entre o verdadeiro e o falso mas sem contar o vnculo afetivo ligado a experincia dos indivduos. O simulacro aparece ento como uma rplica da realidade externa mas sem permitir a dialtica da ausncia e presena, aparece como um real

  • 15

    acabado, pronto. Adquire, assim, relativa autonomizao, ou seja, ele prescinde da concretude dos objetos, independe da realidade externa para existir: Baudrillard (1995) fala numa onipotncia do simulacro.

    Para Baudrlillard, o simulacro seria, portanto, um jogo puro de significantes. Isso significa que a parte do signo que se torna sensvel, ligada percepo como dito anteriormente, num fluxo constante, constri algo percebido, mas percebido como uma mscara, algo que, ao mesmo tempo que apresenta algo, esconde outro algo.

    A autora faz referncia aqui obra Massa e Poder, de Elias Canetti, quando este comenta que a simulao est entre a imitao e a metamorfose. Seria algo que separa o que

    aparece preservando algo que deve ser mantido em segredo, oculto. Nesse sentido, a mscara seria a expresso mxima da simulao, pois encerra nela todas as metamorfoses. Se, por um lado, ela torna rgido o jogo livre das metamorfoses, por outro lado defende a sua necessidade incessante. A autora ainda continua explorando a mscara dizendo que, alm de cristalizar todas metamorfoses, a mscara cria uma personagem:

    Assim, a mscara , no s o elemento de mediao entre ator e espectador, mas tambm entre ator e personagem. Essa mediao tem carter duplo e intransponvel: se o espectador teme o que est alm da mscara, o ator teme o desmascaramento. Enquanto personagem, o ator duplo: ele mesmo ou seja, aquele ser que no deve aparecer e a mscara manipulada por ele (p. 58).

    O cdigo, do qual a simulao seria mediadora, seria uma espcie de mscara dos signos, ou seja, cdigo, para Baudrillard, seria um sistema de signos absoluto e generalizado, que suprime toda a ordem simblica, como afirma Melo (1988).

    Outros autores como Harvey (2009), Lyotard (2002), Adorno & Horkheimer (1985), entre outros, colaboraram para ampliar a abrangncia das proposies de Baudrillard e tambm as formas de relaes psicossociais na sociedade contempornea. De forma geral, esses autores entendem que muitas dessas mudanas foram gestadas a partir do desenvolvimento tecnolgico, sobretudo nas reas ligadas comunicao, historicamente localizadas em meados do sculo XX. Uma tentativa de superar os fracassos do projeto de Modernidade, este que fora inspirado pelos ideais iluministas que valorizavam a racionalidade humana como a principal ferramenta para organizao e desenvolvimento da sociedade e dos indivduos, evidenciado principalmente pelas Guerras Mundiais (ADORNO &

  • 16

    HORKHEIMER, 1985), representam a inspirao para a construo de um novo mundo, habitado por um novo indivduo.

    As evolues cientficas oferecidas pela cincia: medicina, qumica, gentica, a

    produo de prteses1, tecnologias comunicacionais, dentre outras - aliadas as novas formas de consumo/consumismo pautadas pelo neoliberalismo so tomadas pelos autores como complicadores do sofrimento psquico. A reproduo imagstica da realidade como forma de representar e compreender o mundo um ponto comum de anlise entre os autores estudados.

    A isso, Debord (1967) d o nome de ideologia materializada na forma de imagens. Diferentemente de outros perodos da histria as imagens so capazes de criar e recriar, autonomamente, a ponto de se tornarem independentes da realidade de que antes dependiam para obter seus referenciais. Alm disso, a publicidade entra em jogo como um discurso legitimador dessa reproduo artificial da realidade (BAUDRILLARD, 1996). Vale acrescentar que tanto para a recriao das imagens quanto para a legitimao do discurso publicitrio, as transformaes operadas a partir da linguagem tem papel fundamental.

    As questes discutidas por esses autores nos levaram a investigar a constituio subjetiva dos indivduos diante dessas condies que caracterizam a vida contempornea. Para tanto, procuramos na psicanlise os fundamentos para investigar a constituio do sujeito. Recorremos a Freud e a um percurso pela sua obra seguindo a construo do conceito de eu como norteador. Essa a temtica desenvolvida no segundo captulo.

    O que justifica a opo pela psicanlise freudiana como orientao terica reside justamente na concepo de psique como um sistema dinmico [...] um novo conceito de mente o qual inseparvel da cultura (GONZLEZ REY, 2005).

    Assim, seguindo as orientaes de Assoun (1995), principalmente, e tambm de Garcia-Roza (1991;2994), estabelecemos trs momentos da obra que ganharam importncia por permitirem pensar a noo de eu segundo Freud. Primeiramente um perodo inicial, por volta de 1895, em que uma concepo mecnica, tpica das cincias naturais, marca a obra de Freud aparece aqui um eu funcional. Um segundo momento, por volta de 1914, em que a concepo de pulso e o narcisismo marcam a noo de um eu relacional, numa perspectiva

    1 Entendemos por prtese aquilo que se prope substituir o elemento original, propondo-se completar a falta

    deste. Portanto, no se refere exclusivamente prteses ligadas ao corpo fsico, mas tambm se estende ao psiquismo.

  • 17

    metapsicolgica. No terceiro momento, por volta de 1923, em que as relaes ganham estatuto de fundao do sujeito. Ganhou destaque nesse percurso o papel da linguagem como medidora na constituio do eu, que desde o primeiro momento quando a concepo mecanicista ainda marcava a psicanlise, Freud j apontava a linguagem como aquilo que cria condies para um jogo intersubjetivo entre indivduo e cultura.

    No terceiro captulo, procuramos articular os dois anteriores numa tentativa de produzir conhecimento acerca da constituio subjetiva dos indivduos na cultura contempornea. Pudemos discutir um incremento na dificuldade de encontrar amparo no mundo externo, o que costumava ser referncia para constituio do eu, encontrada pelos indivduos na cultura do simulacro de simulao. A saturao perceptiva, a imobilidade dos processos de pensamento e o carter anti-imaginativo das relaes psicossociais a que esto submetidos os indivduos no mundo contemporneo evidenciam o esvaziamento da ordem simblica. Alm disso, diante de tal esvaziamento do mundo externo, a reorientao dos destinos pulsionais parecem encontrar no corpo, uma das formas mais primitivas de representao, uma fonte privilegiada de descarga. Esse conjunto de condies representa o carter fragmentrio tanto da realidade externa quanto do mundo subjetivo dos indivduos.

    Por fim, destacamos o papel dos simulacros de simulao na reconfigurao da linguagem como possibilidade de se fazer discurso e assim produzir e reproduzir a realidade e sujeitos. A fragmentao da realidade abre possibilidades de regresses pulsionais caracterizadas como uma pauperizao da constituio do eu. Os modelos identificatrios disponveis na cultura tambm no oferecem amparo ou referncia uma vez que so engendrados nos mesmos moldes dos simulacros de simulao, a criao de modelos sem origem, existem mas no permitem discernimento entre realidade/iluso. Ainda que sejam inegveis os benefcios que o desenvolvimento tecnolgico e cientfico, no podemos deixar de pensar na intencionalidade econmica, social e poltica subjacentes aos modos de produo que ainda seguem o sistema de produo capitalista que historicamente incorporou os avanos cientficos como forma de atualizao dos mecanismo de dominao e produo de excluso e pobreza.

  • 18

    CAPTULO 1

    A ERA DA SIMULAO

    A concepo de Era, como sugere o ttulo deste captulo, remete ideia de uma demarcao de tempo de onde se processa a contagem dos anos. Dessa forma, o ttulo Era da simulao pretende aludir a um perodo em que se inicia a contagem dos anos a partir da demarcao imposta pela simulao. Essa argumentao circunscreve os objetivos deste captulo. Isto , pretendemos, num primeiro momento, historizar o conceito de simulacro de simulao de acordo com as proposies de Baudrillard. Para tanto, faremos um percurso pela obra desse autor, procurando compreender historicamente a construo desse conceito. Num segundo momento, discutiremos as caractersticas da sociedade contempornea que permitam evidenciar a presena macia de simulacros de simulao como mediadores das relaes entre indivduos e cultura. Para tanto, tomaremos as proposies de Harvey (2009) sobre a ps-modernidade como norteadoras. Vale acrescentar que, para ambos os momentos, tomaremos de emprstimo proposies de outros autores que auxiliam a compreender tanto o momento atual como eventos marcantes da histria da humanidade no geral, mas, mais especificamente, aquilo que esses eventos auxiliam na compreenso das formas de existncia e nas relaes entre os indivduos e cultura na contemporaneidade e, nesse sentido, articulaes com a filosofia, a sociologia, a antropologia e a psicanlise sero efetuadas. Procuramos assim, como orienta Gonzlez Rey (2005), assumir uma perspectiva qualitativa de pesquisa, ou seja, confrontando a teoria (e seus mltiplos desdobramentos) e o emprico, procurando novas zonas de sentido (p. 30).

    1.1 Uma incurso pela teoria do simulacro em Baudrillard

  • 19

    Segundo Melo (1988)2, Jean Baudrillard constri uma teoria sobre a sociedade ocidental a partir de uma associao considerada original em sua obra: associa a ordem do valor ordem da significao. Isto , ele parte de uma relao entre aquilo que organiza as formas de atribuir valor aos objetos (ordem do valor), por exemplo: valor afetivo, valor monetrio, etc. s formas de atribuir significado aos objetos, represent-los (ordem de significao). A autora complementa essa ideia fazendo uma aluso mxima de Baudrillard: O simulacro o segundo batismo das coisas [...] o primeiro a representao (p. 14). Evidentemente essa definio de simulacro ainda preliminar. No decorrer do captulo pretendemos clarear sua compreenso.

    Melo (1988) afirma ainda que essas ordens se associam numa espiral de simulacros cujos movimentos acompanham as diferentes pocas da cultura no mundo ocidental, mais especificamente o Renascimento, a Idade Moderna at final do sculo XX. Torna-se possvel ento aludir s trs etapas do desenvolvimento do simulacro em Baudrillard: a primeira representada pela lei natural do valor, simulacro naturalista, cuja correspondncia histrica seria do Renascimento Revoluo Industrial; a segunda, o simulacro produtivo, seria regida pela lei mercantil do valor, cuja correspondncia histrica seria o perodo da Revoluo Industrial, sua expanso e hegemonia; e a terceira, o simulacro de simulao, esta tpica da contemporaneidade, em que as expresses do capitalismo se encontram em sua forma mais avanada. A partir de ento exporemos os pormenores dessas etapas, dando maior ateno s expresses do simulacro de simulao.

    Assim, iniciamos o percurso na construo do conceito de simulacro, o que nos remete s formas de organizao social primitiva anterior multiplicao dos simulacros. Baudrillard (1972) faz essa incurso histrica uma vez que afirma que o consumo de bens desses povos no corresponde a uma economia individual de necessidades: uma funo social de prestgio e de distribuio hierrquica (p. 12). Aqui, segundo Melo (1988), Baudrillard segue os estudos antropolgicos de Marcel Mauss sobre tribos indgenas do nordeste americano. De acordo com essa perspectiva, as relaes de troca nessas organizaes sociais se do a partir de uma relao entre ddiva e obrigao, que, por sua vez, implica dar e

    2 Em sua dissertao de Mestrado, a autora, Hygina Bruzzi de Melo, atravessa todas as publicaes de

    Baudrillard at 1987, procurando elucidar a lgica do pensamento desse autor. Seu texto est publicado no livro A Cultura do Simulacro: filosofia e modernidade em Jean Baudrillard, pelas Edies Loyola em 1988 e foi de auxlio inestimvel nesta dissertao.

  • 20

    receber presentes. Uma espcie de sistema primitivo sustenta essas trocas simblicas: o potlach e o kula. O primeiro remete ideia de:

    [...] destruio total de bens e objetos, como demonstrao de prestgio e de desafio. Retribuir uma questo de honra, na medida em que a no-retribuio implica na perda da face, do mana, da autoridade [...] tornou-se conhecido como uma espcie de festa solene (MELO, 1988, p. 24).

    O kula representa um grande potlach, uma espcie de circularidade de troca em que o valor que rege essas trocas no o valor fixo monetrio, mas um valor mgico, sagrado, cuja correspondncia se estabelece pela prpria circularidade das trocas entre os membros da tribo um jogo simblico por excelncia, que implica um respeito pelo outro, um movimento de expresso de gratido e de dignidade entre os seres humanos:

    A reversibilidade da ddiva e contraddiva e o ciclo incessante e inelutvel da troca fundam uma ordem agonstica [referente a luta, a competitividade grega]3, na qual a moeda enquanto estalo fixo, a mercadoria e a troca econmica enquanto categoria autnoma esto ausentes. As coisas so portadoras de um esprito o hau , que faz circular e retornar do donatrio ao doador: ret-las significa a convocao de ameaas imprevisveis. Essa fora das coisas uma propriedade intrnseca e independente do valor que lhes possa atribuir o operador da troca, simples intermedirio de um fluxo contnuo (MELO, 1988, p. 25).

    Assim, o que define o objeto no o jogo da mais-valia, do lucro, do valor monetrio, mas, sim, o afeto envolvido na relao, uma obrigao afetiva, uma reciprocidade. Ento as relaes eram atravessadas por uma solicitude que era veiculada pelo objeto e valor afetivo/tico que ele representava.

    Segundo Baudrillard (1972), nessas formas de relao o objeto no pode se autonomizar, pois ele uma mediao por se fundar num pacto transferencial entre indivduos, onde eles, os seres humanos, esto expressos. Nessa ordem de valor no se tem valor de uso, nem mesmo valor de troca econmica, mas, sim, de troca simblica:

    [...] qualquer objecto, contanto que seja dado, pode significar plenamente a relao. No entanto, desde que e porque dado, aquele e no outro. O presente nico,

    3 Grifos nossos.

  • 21

    especificado pelas pessoas e pelo momento nico da troca. arbitrrio e, no entanto, absolutamente singular (p. 60).

    Dessa forma, os objetos da troca marcam a singularizao e a identidade. a diferenciao do outro que marca o vnculo e no a lei geral da economia, nem a padronizao das mercadorias. Nota-se uma integralidade entre o indivduo, o outro e o objeto, alm de um jogo simblico incessante entre os termos, afetivo e representativo. Esse objeto fortalece uma singularidade porque adquire significado simblico diferente para relaes entre indivduos diferentes. Alm disso, parece haver uma forte proximidade entre a realidade e o signo, como um vnculo transferencial propriamente dito, o que favorece o estabelecimento de um sentido de realidade e de identidade.

    Segundo Baudrillard (1972):

    O que constitui o objecto como valor na troca simblica o facto de nos separarmos dele para o dar, para lanar aos ps do outro, aos olhos do outro (ob-jicere); o facto de nos despossarmos dele como uma parte de ns prprios e que se constitui como significante, o qual funda sempre simultaneamente a presena dos dois termos entre si e a sua ausncia (distncia). Da a ambivalncia de todo o material de troca simblica (olhares, objectos, sonhos, excrementos): o mdium da relao e da distncia, um presente sempre amor e agresso (p. 61).

    O conceito de mdium pode ser entendido aqui como um fluxo comunicacional sob o qual se apoia a troca simblica. As concepes de valor de uso ou de valor econmico, monetrio, ainda so ausentes. O que sustenta a troca uma relao afetiva e ambivalente mediada pelos objetos que remetem diretamente experincia desses indivduos o desafio e a troca.

    Essa forma de ordenao dos objetos desaparecer, contudo, segundo Baudrillard (1996), a partir da hegemonia do sistema de produo econmico que passa a ser dominado pela acumulao e pela conservao de bens e objetos, como acontece nas sociedade ocidentais a partir do Renascimento, em que a reversibilidade simblica d lugar ordem de valor monetrio, econmico e multiplicao de simulacros. A experincia do desafio e da troca do lugar a ordenaes de valor monetrio programadas e (re)produzidas industrialmente. O jogo das trocas simblicas d lugar ao jogo econmico. A partir desse momento, Melo (1988) afirma que Baudrillard deixa de retornar s sociedades primitivas e

  • 22

    passa a discutir a primeira ordem dos simulacros, o simulacro naturalista, a partir do Renascimento.

    Ser que a mercadoria no representa o primado do simulacro na contemporaneidade, que penetra nos homens, o esvazia e o domina? Em relao a essa onipotncia do simulacro, Melo (1988) nos leva discusso que Baudrillard faz sobre a caa s representao de Deus durante o sculo XVIII a partir da proliferao de cones que representavam o divino e o temor de que a adorao desses cones pudesse destruir a existncia de Deus na conscincia dos homens. Melo (1988) resume as proposies de Baudrillard:

    Para demonstrar a onipotncia do simulacro, ele invoca como exemplo a querela dos iconolastas. O cone significa a possibilidade de representar o divino. Na interpretao de Baudrillard, a origem da conhecida querela deve-se ao temor de que o cone pudesse adquirir fora de simulacro, substituindo e dispensando aquilo de que era representao; ou seja, o simulacro se instituiria como ardil demonaco com vistas exterminao do divino. O medo de que por detrs das imagens nada existisse desencadeava a caa aos cones que pode, segundo ele, igualmente interpretar-se como uma caa ao simulacro [] A outra face da questo a figura dos iconolatras4. Estes j estariam vivendo, no culto irrestrito s imagens, a morte de Deus. Nesse sentido, aproximam-se do esprito da modernidade, que mantm o puro jogo das aparncias e aperfeioa a arte do simulacro, na convico de que temeroso o desvelamento, pois provvel que as imagens nada mais tenham a ocultar (p. 31).

    Ou seja, o cone passa a representar aquilo ausente e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, evidencia tal ausncia pela presena do mesmo cone. O sistema funciona a partir da autorreferncia sobre um simulacro, uma cpia do objeto em questo: [] ressureio do figurativo onde o objecto e a substncia desapareceram (BAUDRILLARD, 1991, p. 14). Tal a dificuldade de discernimento entre o real e o representado.

    1.1.1 (Re)Construindo a espiral dos simulacros na sociedade

    4 Adoradores dos cones que representavam o divino.

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    Inicia-se a espiral de simulacros. Baudrillard (1972) indica o Renascimento como o perodo que inaugurou a quebra da hierarquia do signo no sistema feudal, substitudo pelo regimento burgus de uma competio agora pelo prestgio social, produto de uma conveno, abstrata e arbitrria, que, quanto mais prolifera, mais se distancia de sua forma original. A obrigao simblica que marcava a relao entre os indivduos nos rituais primitivos substituda por uma competio aberta por prestgio social.

    As transformaes na Europa durante esse perodo foram diferentes em cada lugar devido s suas diferentes histrias e patrimnio cultural. Segundo Thompson (2008), trs dessas transformaes atravessaram, porm, essas diferenas e ganharam expresso mundial durante os anos posteriores: primeiro, a gradativa substituio do sistema feudal pelo sistema capitalista de produo e de troca; segundo, as unidades polticas progressivamente substitudas pelo sistema Estado-Nao e assim controladas por uma unidade central; e, terceiro, a concentrao de poder militar crescente ligado ao Estado-Nao, legitimando a utilizao da fora em seu territrio.

    Em relao progressiva substituio do sistema feudal pelo sistema capitalista temos a produo de excedentes como expresso de acumulao de riquezas -- acumulao essa representada, sobretudo, na arquitetura das chamadas cidades-Estado, cidades que concentravam, alm de instituies produtivas, unidades polticas que regiam um nmero grande de habitantes em relao a outras cidades. Isso requeria um planejamento das cidades tanto para a distribuio das unidades polticas quanto para a distribuio da populao. Harvey (2009) indica como esses projetos arquitetnicos expressavam o iderio burgus, ostentando o acmulo de capital por um lado e, por outro lado, produzindo e reproduzindo sua prpria cultura no cenrio urbano expressa pela arquitetura.

    Alimentados pela crena na racionalidade como a superao do tradicionalismo dogmtico do feudalismo, buscava-se a cidade perfeita, ou seja, a burguesia renascentista representava seus modelos a partir de simulacros agora teatralizados no cenrio urbano. Isso equivale a dizer que os simulacros saem do campo simblico e penetram na materialidade da vida das cidades. Eles serviam como referenciais de prestgio social. Se retomarmos uma das ideias centrais de Marx no Manifesto do Partido Comunista (2002) poderemos notar que ele considera o desenvolvimento da sociedade burguesa como uma continuidade dos antagonismos de classe. Isso nos permite afirmar que a arquitetura das cidades, portanto, ao

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    representarem o iderio burgus, representa tambm os antagonismos de classe. Alm disso, como afirmam Harvey (2009) e Bauman (1999), a diviso do espao territorial das cidades e a periferizao das classes pobres representam um forma de poder exeercida pela classe dominante, que acaba por violentamente excluir uma parcela da populao do equipamento urbano. Esse exemplo auxilia a compreender que as contradies inerentes ao regime capitalista no ficam evidentes ou, pelo menos, ficam disfaradas auxiliadas pelo simulacro. Baudrillard (1976) indica ainda a utilizao do estuque, uma massa preparada com p de mrmore com cal, gesso e areia, similar ao reboco, que, pela plasticidade, permitia como uma expresso arquitetnica produzir replicas, cpias, enfim, simulacros da natureza nas fachadas e nas artes de forma geral. Melo (1988) cita a cidade-Estado de Florena como um exemplo:

    Em face da representao linear, plana e desarticulada do espao medieval, a representao em perspectiva do Renascimento marca a tomada de posio do sujeito-observador a partir de um ponto de vista privilegiado: o efeito de profundidade diretamente proporcional distncia do espectador. Esse perspectivismo atinge sua perfeio cannica na dupla convergncia do espao urbano e da edificao, atravs do edifcio de planta central e da cidade estelar: um edifcio de planta central, em meio a uma cidade estelar, como o observatrio simblico colocado no ponto focal. A cidade estelar grande utopia urbana do Renascimento define-se como um sistema radial que converge para um ponto de fuga identificvel [] Na nova configurao do espao arquitetural renascentista, ressalta o efeito pictrico obtido pelo rigor de uma concepo unitria, da qual resulta, por sua vez, uma perfeita harmonia de proporo e escala. A natureza invocada nos tratados sobre arte de construir como modelo dessa perfeio que a arquitetura deve, por analogia5, atingir (p. 36).

    Embora procurasse reproduzir a natureza por analogia, vale destacar que o homem no participa da criao da natureza, pois ela mais poderoza que ele, mas a tentativa de recri-la imputa aos seres humanos a capacidade/responsabilidade de governar a si e de controlar seus destinos. Tomando aqui o mesmo tom especulativo que Freud utiliza em Totem e Tabu (1913), os seres humanos voltam-se contra seu pretenso criador quando procuram recriar e controlar a natureza, como os filhos o fazem contra o pai absolutista da horda primeva apresentada por Freud (1913), e assumem seu lugar a partir de um pacto de renncia

    5 Grifos contidos no original.

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    coletiva que substitui um mando absolutista. Os humanos valem-se da cincia e da tecnologia para criar um novo mundo, destronando seu pretenso criador.

    Assim, as outras duas caractersticas apontadas por Thompson (2008) acerca das mudanas promovidas pelo Renascimento podem ser relacionadasas. As edificaes ligadas s novas unidades polticas substitutas do antigo regime feudal passam a identificar o Estado-Nao no espao urbano. Da mesma forma, o seu poder militar pode ser acionado em qualquer ocasio em que a nova ordem seja ameaada. O aparato militar pode voltar-se contra seu prprio povo (MARTIN-BAR, 1989), caracterstica que se tornar evidente no incio do sculo XX, com o perodo de guerras. O simulacro naturalista passa a ser usado como estratgia de opresso e de controle sobre os indivduos.

    O Renascimento confunde o falso e o verdadeiro, abre as portas para o individualismo e para o Estado Moderno, como afima Melo (1988). Uma cultura que trabalha com o simulacro naturalista, trabalha com uma confuso entre o falso e o verdadeiro, em outras palavras, trabalha com a ideologia, ou pelo menos aponta para uma sustentao do liberalismo burgus e o consequente indivualsmo a partir da ideologia capitalista.

    No Renascimento, a asceno da burguesia abre possibildades aos indivduos que o regime feudal no conhecia. Bock (2007) afirma que os ideais do liberalismo burgus abriram a possibilidade para o surgimento da subjetividade, uma vez que, no regime feudal, a ordenao da natureza estava submetida divindade. No regime feudal, as caractersticas individuais, as formas de ser, pensar, desejar, etc. eram resultado da vontade de Deus. J o liberalismo burgus permite ao sujeito pensar sobre si mesmo uma vez que possui direitos ligados natureza humana. O indivduo agora tido como responsvel por suas escolhas na produo material de vida. Desenvolve-se o individualismo, a concepo de vida privada, a noo de eu como aquilo que identifica o indivduo. Nas palavras da autora:

    A noo de eu e a individualizao nascem e se desenvolvem com a histria do capitalismo. A idia de um mundo interno aos sujeitos, a existncia de componentes individuais, singulares, pessoais, privados toma fora, permitindo que se desenvolva um sentimento de eu. A possibilidade de uma cincia que estude esse sentimento e esse fenmeno resultado desse processo histrico (BOCK, 2007, p. 19).

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    A analogia entre o Homem e a Natureza durante o Renascimento leva, portanto, definio de Baudrillard (1972) para o simulacro naturalista, primeira ordem do simulacro. Este mantm uma relao de nostalgia com o signo anterior, perodo que precede o simulacro (povos primitivos), quando o signo representava uma extenso da natureza, em conformidade com ela. Nesse sentido, o simulacro naturalista estabelece uma oposio ou, pelo menos, uma analogia que pretende superar a natureza pela racionalidade, uma metfora da natureza que se fixa na contrafao, o simulacro naturalista uma representao falsa.

    Nas palavras de Melo (1988):

    A natureza passa a ser considerada e isso decisivo na interpretao de Baudrillard no s como princpio de produo, mas como princpio de significao. Ela o Grande Referente, o princpio de realidade que simultaneamente estrutura a produo e recorta um significado [] a partir da ambiguidade do conceito de produo engendrado pelo pensamento burgus do sculo XVIII que essa passagem pode elucidar-se. A natureza passa a ser o conceito de uma essncia dominada. Para Baudrillard o direito de posse conferido pelo conceito decisivo, pois sobre ele que a Tnica e Cincia se erigem como efetivao dessa essncia abstrada (p. 39).

    Esse argumento parece concordar com o que props Bock (2007) ao indicar o surgimento da noo de eu: A Psicologia se torna necessria (p. 19). Ela j evidencia a necessidade do aprimoramento tcnico-cientfico que recair sobre a natureza como forma de organizao e de controle da produo de bens e consumo. Faz-se possvel, portanto, uma determinada psicologia, aquela que sustenta uma concepo natural de homem. Ocorre que o desenvolvimento tcnico-cientfico no se restringe meramente psicologia, seno Cincia de forma geral, principalmente como organizadora das formas de produo.

    Assim, finaliza Melo (1988), a dupla articulao produo e modelo faz da natureza uma entidade abstrata, como uma metfora da totalidade da liberdade (p. 39). O iderio burgus, dessa forma, abre as portas para a nova etapa da espiral dos simulacros, etapa essa que acompanha as mudanas no sistema de produo: o simulacro produtivista. Uma vez que o objetos produzidos seguem uma tcnica sustentada por um mtodo respaldado pela cincia, que toma a natureza como fonte de foras (e no mais leis), no existe mais a contrafao, uma vez que os objetos so produzidos a partir de um ponto zero. A oposio com a natureza foi superada, afirma Melo (1988). Agora produzidos em srie de tal forma que

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    o que atribui originalidade ou singularidade aos objetos, ainda que numa tentantiva de representar metaforicamente a natureza, se perdeu.

    Baudrillard, segundo Melo (1988), sustenta a segunda ordem do simulacro como um perodo em que o modo de produo capitalista, onde a produco em srie suprime o particular em detrimento do universal, sustentado especularmente pelas prprias teorias que o criticam. Ainda segundo Melo (1988), Baudrillard faz crticas ao materialismo histrico (e tambm a Freud) como teorias que [...] incidem sobre um modelo epistemolgico que, ao eleger suas categorias de anlise, transcendem as determinaes particulares do espao-tempo em que foram geradas, universalisando-as (p. 40).

    Para o autor, a racionalidade que orienta o modelo moderno de produo seria um delrio sistemtico, orientado pelo valor estrutural da operacionalidade tcnica, da economia poltica e dos prprios homens que produzem. Melo (1988) auxilia a compreenso das caractersticas do simulacro produtivo:

    A estratgia do econmico desdobra-se em vrios nveis de atuao. Autonomizando com relao religio e cultura, transforma-se, luz do mito igualitrio, em instncia universal de produtividade. Enquanto campo separado e objetivado, o econmico, por sua vez, pretende-se cientfico, adotando a fico das cincias exatas nos critrios de verdade e objetividade. Se estes no passam de efeitos da parcelizao, tanto da economia poltica enquanto campo separado, como sua metaliguagem ficam impossibilitadas de transcender seu prprio domnio sem recair na ideologia (p. 55).

    A economia poltica se retroalimenta, portanto, de suas prprias idiossincrasias ocultadas pelo simulacro produtivo: No se trata mais de ser si mesmo, trata-se de produzir-se a si mesmo, diz Baudrillard (1973 citado por MELO, 1988). As representaes que regem as relaes entre homem e cultura parecem funcionar como um espelho da produo. Os homens so fruto de um mundo pretensamente objetivo que deve ser investido e transformado, afirma Melo (1988). Estabelece-se uma cumplicidade com o modo de produo, ou seja, os homens se produzem como se produzem as mercadorias. Nesse sentido, Baudrillard (1972) indica um esvaziamento simblico das relaes entre os indivduos e entre os indivduos e a cultura, uma vez que essas relaes so orientadas por modelos tcnico-cientficos. Tanto os seres humanos quanto as coisas esto esvaziados de sentido ou, pelo menos, s encontram sentido no modo de produo. O grande gerador de simulacros o

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    sistema de produo. Esvaziados de sentidos, os objetos se abrem ao consumo. O simulacro passa de um sistema de produo para um sistema de reproduo.

    As formas de expresso dos simulacros que se apresentam at aqui ainda permitem, contudo, que eles sejam reconhecidos pelos indivduos. Ao mesmo tempo em que oprimem, os simulacros naturalista e produtivista evidenciam a confuso entre falso/verdadeiro e a submisso dos indivduos ao processo produtivo. A noo de cumplicidade com o sistema de produo, como ressalta Adorno (1985), indica que os prprios homens produzem o sistema e de tal forma podem tambm subvert-lo, desvelar suas idiossincrasias e recuperar o controle do processo produtivo. Ou seja, ainda existem rastros deixados pelos simulacros que permitem identific-los. A terceira ordem do simulacro, o simulacro de simulao, parace que apaga seus rastros, tornando severamente mais complicado o seu reconhecimento, como indicaremos a seguir.

    A sociedade de consumo, na concepo de Baudrillard (1995), seria o bero da terceira ordem dos simulacros simulacros de simulao , ou seja, nela que eles se desenvolvem. Segundo Baudrillard (1995), o capital portador de uma lgica interna, independente de estruturas determinantes. A sua dominao no se d mais pelas contradies entre fora produtiva e relaes de produo, ausncia e presena, ser e aparncia, mas na ressureio artificial da reversibilidade simblica gerada pela produo indiscriminada de signos.

    Segundo Melo (1988), Baudrillard toma a Segunda Guerra Mundial o momento em que a economia poltica passa do modo de produo para o modo de simulao. O autor prope o Holocausto com um evento televisivo sob o qual recaiu uma sistemtica poltica e pedagogia para dar sentido ao ocorrido. Era uma tentativa de filtrar o ocorrido diante da ameaa de que sasse do esquecimento e sua irracionalidade invadisse o imaginrio (BAUDRILLARD, 1991). Ou seja, o que foi transmitido pela TV no foi uma mera apresentao do fato, mas uma reproduo, uma reconfigurao de signos (mdium fluxo comunicacional) orientados econmico-politicamente, que pretendia uma atribuio de sentido especfica ao ocorrido. Alm disso, o que aparece na TV se prope o real assim ocorreu, o que oblitera uma inverso: a reconfigurao aparece como original, enquanto o original se perdeu para nunca mais se ter a ele acesso.

    Para aprofundar no funcionamento do simulacro de simulao tomaremos de incio as palavras de Melo (1988):

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    Para Baudrillard, luz do simulacro de simulao, o signo esgota-se no puro jogo dos significantes. Assim, fluidez dos personagens observvel na metamorfose ou ao ciclo incessante da troca simblica substitui-se o fluxo ilimitado de signos. Estes, ao circular independentemente e de forma sistemtica, consolidam, na instncia mediadora do cdigo, a rigidez da mscara absoluta (p. 60).

    Nos estgios mais evoludos do capitalismo, como afirma Baudrillard (1995), tanto os objetos quanto os indivdos so controlados por algo alm das necessidades de sobrevivncia: pela necessidade de trocas simblicas que, por sua vez, so substitudas pelo prprio fluxo de signos.

    Nesse sentido, o simulacro de simulao ope-se representao, segundo Baudrillard (1991):

    Esta [a representao] parte do princpio de equivalncia do signo e do real (mesmo que esta equivalncia seja utpica, um axioma fundamental). A simulao parte, ao contrrio da utopia, do princpio de equivalncia, parte da negao radical do signo como valor, parte do signo como reverso e aniquilamento de toda a referncia. Enquanto que a representao tenta absorver a simulao interpretando-a como falsa, a simulao envolve todo o prprio edifcio da reprentao como simulacro (p. 13).

    Sob essa posio, Baudrillard (1991) sustenta a ideia de que o real parece condenado a nunca se refazer a no ser pela ressurreio artifical a partir dos prprios simulacros do real agora simulados. O autor parece ser ainda mais enftico em Telemorfose (2004), ao citar como exemplos os genocdios de Auschwitz e de Hiroshima para definir o que chama de crime perfeito (BAUDRILLARD, 2004, p. 58). Segundo ele, a humanidade no sculo XX viu toda sorte de genocdeos, mas o verdadeiro crime perfeito aquele que apaga seus rastros, no deixa um trao de sangue seria a ressureio desses eventos nas telas que opera e ao mesmo tempo apaga a prpria operao de teatralizao espetacular esvaziando a violncia de forma a torn-la banalizada, domesticada, mas sobretudo por escamotear a noo de que desse assassinato somos todos vtimas e assassinos ao mesmo tempo. A indiferenciao entre a vida ontolgica e a tela incrementada.

    De acordo com Melo (1988), a terceira ordem do simulacro, o simulacro de simulao, trata das oposies binrias, como as das linguagens computacionais, o que permite ainda mais incrementos:

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    [] as palavras dessa nova ordem so o controle ciberntico, a transparncia de todos os circuitos, a gerao pelos modelos, a modulao diferencial, a flexibilidade, a retroalimentao, o sistema estmulo-resposta. Seu modelo reduzido mais geral , segudo Baudrillard, o cdigo gentico (p. 61).

    O cdigo gentico aproximado ao cdigo ligustico. aquilo que organiza um espao, celular no primeiro e comunicacional no segundo, dos quais decorreriam todos os processos vitais. Tomemos como exemplo as ambientaes recriadas por computadores ou pela TV, chamadas de realidades virtuais, que permitem uma interao com indivduos. A ausncia de representaes presentes nesses sistemas, em que conexes ou cdigos numricos j previstos pela mquina levam uma cena outra, aproxima-se da ideia de Meltzer (citado por LEVY, 2002), acerca de um estado desmentalizado. A mente operaria em termos de uma obedincia robtica, sem associao de novos smbolos ou pensamentos. Pelo carter de completude daquilo que se pretende o real, sem as faltas que caracterizam a natureza enigmtica do dado real concreto, a imagem se impe passivamente ao psiquismo, adquirindo um carter anti-imaginrio (BAUDRILLARD, 1999 citado por LEVY, 2002). Nas palavras do prprio autor:

    por isso que pensamos como Baudrillard (1999) que o mundo virtual anti-imaginativo, pois satura de tal forma as percepes que aprisiona a ateno. E, nesse aspecto, concordo com Sylvie Pragier (1995) quando diz que o sujeito, nestas realidades virtuais interativas, estimulado passivamente e, se reage, o faz por meio da ao (p. 63).

    O signo contemporneo, portanto, simulacro total e pleno, afirma Melo (1988). Nesse sentido, a simulao adquire caractersticas especficas, dentre as quais se destacam um descompromisso com o prprio real a que pretende substituir, bem como com a verdade. Embora possa parecer paradoxal ou contraditrio, o argumento acima caminha seguindo as proposies de Baudrillard (1991):

    Nesta passagem a um espao cuja curvatura j no a do real, nem a da verdade, a era da simulao inicia-se, pois, com a liquidao de todos os referenciais pior: com a ressurreio artificial nos sistemas de signos, material mais dctil que o sentido, na medida em que se oferece a todos os sistemas de equivalncia, a todas as oposies binrias, a toda a lgebra combinatria. J no se trata de imitao, nem de dobragem, nem mesmo de pardia. Trata-se de uma substituio no real dos signos

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    do real, isto , de uma operao de dissuaso de todo o processo real pelo seu duplo operatrio [...] O real nunca mais ter oportunidade de se produzir tal a funo vital do modelo num sistema de morte, ou antes da ressurreio antecipada que no deixar qualquer hiptese ao prprio acontecimento de morte. Hiper-real, doravante ao abrigo do imaginrio, no deixando lugar seno recorrncia orbital dos modelos de gerao simulada das diferenas (p. 9).

    Tal a destruio do real pela sua fragmentao em operaes nucleares. Como afirma Baudrillard (1991), hiper-real seria a gerao de modelos de um real sem origem, nem realidade.

    Notamos aqui, como prope tambm Melo (1988), um choque entre a racionalidade tcnica dos objetos e irracionalidade das necessidades. A partir da nasce uma proposta no de responder s incoerncias decorrentes desse choque, mas manter um sistema de produo de objetos que supra as sucessivas necessidades (BAUDRILLARD, 1995).

    No so poucos os acontecimentos na histria recente da humanidade em que a lgica dos simulacros de simulao parece ganhar expresso ou, pelo menos, a leitura/anlise de Baudrillard oferece acuidade na compreenso desses acontecimentos. Falta-nos, no entanto, precisar as caractersticas do mundo contemporneo e a presena dos simulacros de simulao como forma privilegiada de mediao na relao entre indivduos. justamente disso que nos propusemos tratar no item a seguir.

    1.2 A cultura do simulacro: caractersticas das relaes psicossociais

    Pretendemos agora apresentar uma viso panormica do mundo contemporneo para destacar a presena de simulacros de simulao como forma privilegiada de mediao entre os indivduos. Para tanto, procuraremos fazer uma contextualizao histrica da passagem da modernidade ps-modernidade (HARVEY, 2009) buscando entender as transformaes nas formas de produo materiais, econmicas e subjetivas, como colaboradoras na criao das condies para a disseminao dos simulacros de simulao (BAUDRILLARD, 1991). Alm disso, procuraremos compreender o que Baudrillard (1995) chama de sociedade de consumo e a coloca como o bero do simulacro de simulao. Nela, ganham destaque o pepel da

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    publicidade, das imagens sntese (PARENTE, 1993) e a reconfigurao da linguagem/discurso a partir dos cdigos informacionais. Ou seja, cabe questionar: -- Quais so as caractersticas das formas de produo, das relaes entre indivduo/cultura? -- possvel afirmar que vivemos num mundo cujas relaes, majoritariamente, so mediadas por simulacros de simulao? -- Caso isso seja possvel, sob quais critrios se sustenta essa afirmao? Das tentativas de responder a essas questes que o item se constitui. Pretendemos, assim, caracterizar as relaes psicossociais no mundo contemporneo sob a ptica dos simulacros de simulao.

    1.2.1 Da modernidade ps-modernidade

    Partiremos de uma discusso sobre a passagem entre modernidade e ps-modernidade como proposto por Harvey (2009), e tambm articulando-a com as proposies de Lyotard (2002). Trata-se dos dois autores mais citados em trabalhos cientficos que procuram esclarecer, dentre tantas utilizaes diferentes do termo, a ps-modernidade, ou, como a chamam os autores, a condio ps-moderna. Essa passagem entre os perodos permitir tanto ampliar a discusso das trs ordens do simulacro de Baudrillard (simulacro naturalista, simulacro produtivista e simulacro de simulao), oferecendo uma perspectiva histrica, quanto, percorrer diferentes perodos histricos e eventos histricos para contextualizar as formas de produo material/subjetivas contemporneas. Isso, pois, sobretudo na obra de Harvey, tomado de uma perspectiva materialista-histrico-dialtica, isto , assim como a perspectiva adotada em nossa pesquisa, compreende que o ser humano e o meio social so constitudos a partir das sucessivas contradies decorrentes das relaes entre os termos pertinentes ao processo de produo material de vida, e que, no caso do regime capitalista, os processos sociais so caracterizados por promover o individualismo, a alienao, a fragmentao [...] (SANTOS, 2001, p. 182).

    A modernidade, segundo Harvey (2009), um termo cuja variao de sentidos em que empregado bem como sua significao so to vastos que merecem esclarecimento. Prope-se, portanto, discutir diferentes empregos do termo a partir de diferentes correntes de pensamento. De forma rigorosa e minuciosa, o autor discute o termo nas diferentes correntes. Modernidade, segundo Harvey (2009), em linhas gerais, se refere a um conjunto de experincias (estticas, econmicas, polticas, artsticas, sociais, psicolgicas) que envolve uma ruptura com os perodos precedentes. Retomamos aqui que os perodos anteriores so

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    aqueles em que as Trevas da Idade Mdia dominavam as formas de obteno de conhecimento, justificando a existncia dos objetos pela vontade divina. O que est ento posto como uma caracterstica geral da modernidade seu aspecto emprico, sobretudo o sensvel, indicando uma ruptura com os perodos anteriores. Uma nova forma de sentir o mundo, mas que no necessariamente inaugura um paradigma, pois, alm dessas linhas gerais, tambm identifica subsequentes rupturas internas, retoma um paradoxo de Baudelaire quando ele refere algo efmero e fugidio e o eterno e imutvel (p. 21) para retratar a modernidade. Ao mesmo tempo, fala do que passageiro, rpido, o que ressalta a ruptura com o antigo regime e tambm projetos para o futuro naquilo que permanente. Trazendo essa transitoriedade paradoxal como uma caracterstica marcante, a modernidade rompe com seu passado histrico e, ao mesmo tempo, projeta um mundo, um novo mundo.

    Harvey (2009) procura entender os dois lados do paradoxo: a transitoriedade/efemeridade versus a imutabilidade/eternidade e, a partir de ento, identificar mudanas paradigmticas no advento da modernidade. Para tanto, busca, na perspectiva de Habermas, compreender seu carter permanente, naquilo que o autor chama de projeto de modernidade:

    [...] entrou em foco durante o sculo XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinrio esforo intelectual dos pensadores iluministas [...] O domnio cientfico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de formas racionais de organizao social e de modos racionais de pensamento prometia a libertao da irracionalidade do mito, da religio, da superstio, liberao do uso arbitrrio do poder, bem como do lado sombrio de nossa prpria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutveis de toda a humanidade ser reveladas (HARVEY, 2009, p. 23).

    Na leitura de Habermas, Harvey (2009) encontram-se as caractersticas dos regimes anteriores, de onde se depreende seu carter sombrio, da trevas, em que predominam a irracionalidade do mito, a religio e a superstio somados opresso imposta pela Igreja, que era a instituio representante do regime. Para essas caractersticas, os pensadores iluministas, que iluminariam as trevas, procuraram desenvolver uma alternativa, um projeto de um outro mundo. Decorrente desses ideais, a modernidade mostrava seu carter eterno e imutvel.

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    Trata-se da conquista de direitos, da constituio de um Estado-Nao (o Estado Moderno), regulamentao desse Estado, dentre outras questes.

    Aqui a concepo de simulacro naturalista de Baudrillard encontra eco. Assim como propunham os pensadores iluministas, a natureza tomada como Grande Referente, como essncia dominada, como afirmou Melo (1988) anteriormente, como caracterstica essencial do simulacro naturalista. O Renascimento, como apresentado no item anterior, junto ao iderio iluminista, abria as portas para a modernidade. A esperana na racionalidade humana e sua capacidade de controlar a natureza e transformar o mundo, tornando-o prximo da perfeio, eram alimentadas por tal projeto de modernidade. Se, no perodo da Idade Mdia, o tradicionalismo dogmtico religioso organizava o mundo porque Deus assim o queria, podemos dizer, ainda que metaforicamente, que, a partir desse novo momento, o homem toma o lugar de Deus, procurando, a partir da razo, dominar a natureza e transformar o mundo sua imagem e semelhana.

    O sculo XX decepciona, no entanto, quanto proposta acima, sobretudo por ser marcado pelas atrocidades das guerras. Essas tragdias alimentam leituras como as de Adorno e de Horkheimer, aponta Harvey (2009), ou seja, leituras de que a racionalidade iluminista era, desde sua origem, instrumento de dominao e de opresso, uma vez que representava interesses de uma classe especfica, a burguesia, mantendo, portanto, as desigualdades subjacentes s suas propostas, encobertas pelo vu da ideologia, uma realidade falseada. Por isso afirmamos que uma sociedade que trabalha com o simulacro naturalista trabalha com a ideologia. Retomando Baudrillard (1972), o simulacro naturalista confunde o falso e o verdadeiro por se tratar de uma representao falsa.

    A universalidade do projeto iluminista d lugar ao que Harvey (2009) considera um processo destruidor da unidade para um vir a ser constante: busca de auto realizao individual diz ele, tomando emprestado a expresso de Daniel Bell (1978). A modernidade marcada pela vanguarda.

    A partir de ento, Harvey (2009) procura compreender o outro lado do paradoxo proposto por Baudelaire: o efmero e o fugidio. O que ilustra essa caracterstica da modernidade o que acontece com a mercadificao e comercializao de produtos que submetida mesma reinveno constante e competitiva. Esses pressupostos faziam parte do iderio burgus, como apresentamos no item anterior: o liberalismo e o individualismo ganham fora (BOCK, 2007; LYOTARD, 2002). Embora os indivduos estivessem livres do

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    carter sombrio do antigo regime, agora so os nicos responsveis por seu prprio sucesso/fracasso, uma vez que so livres para determinar seu destino. Agora preciso desenvolver habilidades, investir em si mesmo para a obteno de sucesso os indivduos se veem cada vez mais isolados, encontrando alteridade nos produtos e nas formas de produo. Os indivduos no mais se reconhecem por uma relao de obrigao e de afeto de um para outro, como dizia Baudrillard (1996) sobre o perodo dos povos primitivos, e nem mais numa analogia com a natureza, como no perodo do simulacro naturalista. Os indivduos encontram agora uma referncia nos produtos e na sua forma de produo.

    Paulatinamente, o descompromisso com a coletividade e a preocupao com o desenvolvimento individual passam a marcar as expresses culturais como os movimentos sociais, literatura, pintura, arquitetura e cinema. Trata-se de uma espcie de subjetivismo radical, diz Harvey (2009). Passam a ser valorizadas as produes que procuram inovaes constantemente, assim como a distribuio em massa na maior velocidade possvel. Ganham importncia a fbrica, a linha de montagem, os produtos em srie (fordismo). O processo acelerado pela reconstruo dos pases destrudos pelas guerras. A mquina e a cincia, esta como organizadora e ordenadora do processo, voltam a ser, paradoxalmente, valorizadas:

    A despolitizao do modernismo [...] pressagiou ironicamente sua assimilao pelo establishment poltico e cultural como arma ideolgica na Guerra Fria. A arte era suficientemente plena de alienao e ansiedade, e bastante expressiva da fragmentao violenta, da destruio criativa para ser usada como um maravilhoso exemplo do compromisso norte-americano com a liberdade de expresso, com o individualismo exacerbado e com a liberdade de criao (HARVEY, 2009, p. 43).

    O exemplo americano indica o reacionarismo que agora substitui a proposta revolucionria do modernismo. As artes e a cultura de forma geral tornam-se elitizadas e o papel dos norte-americanos no ps-guerra passa a ser de ditar a essncia da cultura ocidental, o que Harvey (2009) chama de modernismo internacional. A liberdade se expressa sobretudo no liberalismo do consumo agora so livres para o consumo, as relaes entre indivduos e a cultura se abrem ao consumo e o sonho americano, mito autorreferente (HARVEY, 2009), representa o modernismo em meados do sculo XX.

    Uma das transformaes importantes decorrentes desse movimento uma significativa compresso do tempo-espao (HARVEY, 2009, p. 257). O tempo deixa de ser absoluto, como no antigo regime feudal, e agora passa a ser representado (relativo). A

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    produo em srie e a necessidade de distribuio exigem uma nova concepo de tempo-espao, comprimida em relao ao perodo anterior. Mesmo o tempo-espao como princpio fsico natural e constante, ou convencional, como tomado na fsica newtoniana, representado de forma diferente pelos indivduos e, nesse sentido, o tempo-espao pode ser relativo. Por exemplo, o tempo que um arteso levava para construir um veculo e o tempo

    necessrio para a produo de um automvel na era moderna so incomparveis (tempo). Assim, a velocidade de produo e a amplitude da distribuio (espao) aumentam, em que a amplitude de distribuio aumentada pelo prprio uso dos veculos. Harvey (2009) ilustra o encolhimento do mundo em funo do tempo a partir das inovaes no transporte:

    [Anos de] 1500 a 1840 a melhor mdia de velocidade das carruagens e dos barcos a vela de 16 km/h; 1850 a 1930 as locomotivas a vapor alcanavam em mdia 100 km/h, os barcos a vapor 57 km/h; Anos 1950 avies a propulso: 480-640 km/h; Anos 1960 jatos de passageiros: 800-1100 km/h (p. 220).

    possvel produzir mais em menos tempo e distribuir mais em um espao maior. Por esse motivo, Harvey (2009) indica o tempo como uma das importantes formas de controle do perodo moderno (tomemos a linha de montagem do fordismo, por exemplo), sobretudo no final do sculo XIX e incio do sculo XX e sua relao diretamente ligada ao espao. A compresso do tempo-espao est ligada necessidade de obteno de lucro. Os indivduos esto impelidos a uma reconfigurao de suas representaes de tempo-espao. As coordenadas geogrficas espao-temporais so reconfiguradas a partir de uma necessidade de produo, de distribuio e de consumo. Os indivduos do mundo moderno estavam submetidos a uma reconfigurao de unidades fundamentais na definio da realidade, espao e tempo -- a representao do mundo no mais a mesma.

    As caractersticas do simulacro produtivista como uma espcie de atualizao do simulacro naturalista s novas formas de organizao do trabalho e produo podem ser ilustradas com a passagem acima a natureza deixa de ser o referente, dando lugar ao modo de produo e consumo. Alm disso, possvel identificar como o simulacro produtivista abre as portas para a sociedade de consumo, como prope Baudrillard (1995), a partir de um esvaziamento de sentido so as diretrizes tecnocientficas, organizadoras das formas de produo, que determinam a realidade, longe das trocas simblicas fundadas nas experincias dos indivduos.

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    O terreno parece frtil para um levante antimodernista, uma vez que o movimento moderno parece ter internalizado suas idiossincrasias:

    Foi nesse contexto em que os vrios movimentos contraculturais e antimodernistas dos anos 60 apareceram. Antagnicas s qualidades opressivas da racionalidade tcnico-burocrtica de base cientfica manifesta nas formas corporativas e estatais monolticas e em outras formas de poder institucionalizado (incluindo partidos polticos e sindicatos burocratizados), as contraculturas exploram os domnios da auto-realizao individualizada [...] (HARVEY, 2009, p. 44).

    O autor ainda acrescenta que o movimento prolifera a partir das universidades, institutos de arte e s margens culturais da vida na cidade grande (p. 44), e culmina nos eventos de 1968 (1968 a 1972), que tomaram amplitude global: Chicago, Paris, Praga, Cidade do Mxico, Madri, Tquio e Berlim (HARVEY, 2009, p. 44). O autor no comenta os eventos, mas todos eles esto relacionados a manifestaes populares contra a opresso dos governos e seus aparatos militares. Supomos que ele se refira aos seguintes eventos: -- enfrentamento de policiais e estudantes da Conveno democrata de agosto de 1968 em Chicago; -- mobilizao para a criao de sindicatos em Madri, maio de 1968; -- Mxico, estudantes se colocam contra o governo exigindo liberdades polticas em 1968; -- Primavera de Praga, de janeiro a agosto de 1968, tentativa de liberao poltica da ento Tchecoslovquia dominada pela Unio Sovitica aps a Segunda Guerra; -- greve geral na Frana em maio de 1968 e mobilizao estudantil contra a represso policial; -- vrias mobilizaes de estudantes japoneses exigindo liberdade e contra as aes militares americanas entre 1960 e 1969; e -- manifestao estudantil contra o governo em Berlim 1968. Todo esse conjunto de eventos caracteriza manifestaes populares contra os regimes polticos e contra o modelo econmico derivados do projeto da modernidade. Embora aponte os movimentos de 68 como frustrados, Harvey (2009) indica o perodo de 1968 a 1972 como o de emergncia de um movimento antimodernista: o ps-modernismo.

    Talvez aqui caibam as afirmaes de Adorno (1963), de que, embora em conformidade e em cumplicidade com o sistema de produo, os indivduos impregnados pela ideologia ainda podem identificar seu carter falseador e subverter o mesmo sistema produzido por eles:

    Mas, ao mesmo tempo, a teoria dialtica caso no queria cair em mero economicismo e numa mentalidade segundo a qual a modificao do mundo se

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    esgote em aumentar a produo est obrigada a assumir para si mesma a crtica cultural, que verdadeira medida que leve a no-verdade conscincia de si mesma (citado por Cohn, 1986, p. 85).

    Embora os movimentos sociais apontados por Harvey (2009) entre 1968 e 1972 possam ser avaliados quanto a seu sucesso ou fracasso, o que se faz pertinente para o momento a possibilidade de identificar a ideologia e procurar uma alternativa a ela. Mais adiante notaremos que o movimento ps-modernista, como uma crtica ao modernismo, acabar por fragmentar a possibilidade de identificar o carter falseado da ideologia.

    Harvey (2009) inicia a caracterizao desse movimento antimodernista a partir de diferentes autores, mas que concordam com a ideia de que esse foi um perodo em que houve uma mudana de sensibilidade, mudou a estrutura do sentimento. O autor procura explicar essa afirmao, que relativamente ambgua, a partir de uma mudana essencial: enquanto o modernismo procurava na racionalidade uma forma de organizao (das diferenas inclusive) e liberdade numa realidade complexa, o ps-modernismo parece procurar a possibilidade de coexistncia e interpenetrao de realidades radicalmente diferentes (HARVEY, 2009). Nas palavras do autor, o ps-modernismo no se ope fragmentao tpica do modernismo: Mas o ps-modernismo responde a isso de uma maneira bem particular [...] nada, e at se espoja, nas fragmentrias e caticas correntes de mudana, como se isso fosse tudo o que existe (p. 49).

    O que chama a ateno dos autores que discutem o carter fragmentrio da ps-moderno a linguagem e as transformaes nela e decorrentes dela (HARVEY, 2009; LYOTARD, 2002; FOUCAULT, 1987; LEVY, 1996; BAUDRILLARD, 1972; 1991; 1996; SODR, 2006; PARENTE, 1993), e, aliado a isso, enfatizamos a preocupao de Baudrillard com uma ressurreio artificial do sistema de signos como uma caracterstica da sociedade de consumo onde proliferam os simulacros de simulao.

    Lyotard (2002) destaca uma descrena no saber por uma incredulidade nas metanarrativas conjunto de saberes que valorizam outros saberes , como a relao da cincia iluminista procurando explicar e controlar a natureza. Tal a fragmentao na sociedade que ele chama de ps-industrial, marcada pela mquina e pela tecnologia informacional, que, embora a linguagem ainda seja um vnculo entre os indivduos, ela perdeu seu carter universal totalizante. Ela passa a ser inteligvel de modo local e passageiro. Passa a funcionar como um jogo de linguagem, cujas transformaes impostas linguagem so

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    constantes. O que pode inclusive dissolver o sujeito, uma vez que no oferece referenciais suficientemente estveis. Voltando a Harvey (2009), quando esse discute a perspectiva de Lyotard:

    Esses determinismos locais tm sido compreendidos [...] como comunidades interpretativas, formadas por produtores e consumidores de tipos particulares de conhecimento, de textos, com freqncia operando num contexto institucional particular (como a universidade, o sistema legal, agrupamentos religiosos), em divises particulares do trabalho cultural (como a arquitetura, a pintura, o teatro, a dana) ou em lugares particulares (vizinhanas, naes, etc.). Indivduos e grupos so levados a controlar mutuamente no mbito desses domnios o que consideram conhecimento vlido (p. 52).

    Assim, portanto, a ps-modernidade, como um movimento antimodernista, tambm indica uma nova forma de experimentar a realidade, uma mudana de sensibilidade, mudana que parece incorporar a fragmentao iniciada pelo modernismo como estratgia de controle sobre as formas de relao entre os indivduos e cultura. Nesse sentido, sustenta-se por uma reconfigurao da linguagem e de transformaes dela a partir de determinantes locais no seu sentido geogrfico, e de uma universalizao do particular num sentido social, o que acarreta uma separao entre a ao poltica dos indivduos distanciados e isolados em suas relaes, colocando-os diante a uma realidade fragmentria que tem ameaada sua funo referencial e de amparo, e bem como de outros indivduos cujas relaes entre eles so mediadas pelos mesmos instrumentos que os separam, sobretudo a tecnologia comunicacional. Assim, as condies para o estabelecimento da sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1995) esto postas e a proliferao de simulacros de simulao tambm encontra condies de expanso.

    1.2.2 A ressurreio artificial da realidade as mediaes por simulacros de simulao

    A noo apresentada acima sugere a formao se subgrupos que contam um conjunto de signos e cdigos especficos. A utilizao de uma nova configurao lxica, usada, sobretudo, por adolescentes na internet, em salas de bate-papo virtuais, em programas de comunicao virtual (como o MSN) ou em weblogs, configura um exemplo contemporneo dessas transformaes. Essa nova configurao lxica se d a partir de uma nova padronizao de uso das terminologias lxicas. Tomemos alguns exemplos de palavras que mostram uma tendncia monossemia ao invs da polissemia: Abraos substitudo por

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    Abcs, Falou por Flw, Firmeza por Fmz, Casa por Ksa, Aqui por Aki, Depois por Dps; Vocs por V6s, Novas por 9as, e tantas outras. Isso implica dois pontos de discusso: primeiro, a utilizao de termos que tendem monossemia caracteriza uma linguagem tcnica, como a da cincia por exemplo e no a linguagem sustentada pelas relaes cotidianas, que tendem polissemia (GALLI, 2009). O risco de um esvaziamento lingustico, empobrecendo a lngua, as formas de expresso de ideias, sentimentos, etc.; segundo, configura-se a utilizao de uma linguagem especfica para um grupo especfico, nesse caso predominantemente adolescentes, que se organiza como aponta Lyotard (2002) logo acima, ou seja, determinismos locais que circunscrevem um grupo de consumidores de um tipo de conhecimento particular. Estamos falando de uma reconfigurao de uma realidade particular, de um fragmento de realidade, ligada a um grupo especfico, em que uma tendncia de esvaziamento da linguagem aparece como um risco. Aquilo que orienta o reconhecimento da realidade -- e a linguagem tem a um de seus papis fundamentais -- se apresenta de forma fragmentria e mutante, parecendo esvaziado de estrutura.

    Segundo Melo (1988), Baudrillard critica a ordem de produo da sociedade contempornea afirmando que o sistema que regula os objetos nesse modelo produtivo no chega a se constituir como linguagem, pois lhe falta sintaxe aquilo que lhe d estrutura. Segundo o autor, a tecnologia faz as vezes da sintaxe, ou seja: a forma que estrutura os modos pelos quais os objetos so falados o sistema tecnolgico (p. 103). Embora se aproxime das proposies de Lyotard (2002), a anlise de Baudrillard (1991) caminha para uma aniquilao da realidade, enquanto Lyotard (2002) ainda indica formas possveis de chegar ao conhecimento. A supresso lxica indicada acima foi possvel justamente pela disseminao das tecnologias de comunicao e informtica (GALLI, 2009). Alm disso, uma das razes apontadas para tal supresso a necessidade de escrever to rpido quanto se fala. Aqui, mais uma vez, a compresso tempo-espao de Harvey (2009) parece se impor aos indivduos. Ou seja, necessrio desenvolver uma espcie de escrita com novos cdigos, mais veloz, mesmo que a custas de seu esvaziamento, transformando-a numa comunicao to rpida quanto a da fala. O tempo da escrita permite pensar durante um perodo maior em relao ao tempo da fala, mas parece que o pensamento no uma faculdade psicolgica valorizada na contemporaneidade. No romance intitulado 1984, George Orwell -- o autor -- antecipa, ainda que ficcionalmente, algo do gnero. Nesse romance, escrito em 1949, o autor apresenta uma viso de como imaginou ser a sociedade em 1984, portanto a sensibilidade do autor parece ter permitido a ela vislumbrar o mundo do futuro. No pas em que vive o

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    protagonista, a Oceania, o regime poltico-econmico Socing, aglutinao de Socialismo Ingls sustentava-se pela expresso de forte vigilncia e represso militar violenta a quem discordasse dos ideais do Partido. Um dos interesses do Partido era a instituio de um idioma oficial em seu territrio: a Novafala como substituto do idioma correntemente usado, ou seja, a Velhafala. Os objetivos primordiais dessa substituio no estavam ligados a uma adaptao, ou a uma forma de adequar o idioma a uma viso de mundo, mas, diretamente a formas de controle dos indivduos, suas formas de pensar, sentir e expressar, que no poderiam ser outras seno aquelas expressas pelos ideais do Socing. A estratgia seria substituir palavras progressivamente, at que conceitos como liberdade, pensamento, honra, moralidade, deixassem de existir por apresentarem uma ameaa ao regime. Os verbos e substantivos continham em si o mesmo valor etimolgico: por exemplo, a palavra cortar deixaria de existir, pois estaria implcita em faca. Os adjetivos eram construdos pela adio do sufixo -oso ao ento substantivo-verbo, e os advrbios pela adio do sufixo -mente. A partir disso, nos diz Orwell: velocidadoso significa rpido e velocidamente significa depressa p. (350). Assim, as escritas literrias, como a poesia, no ofereceriam risco aos interesses do Socing por terem limitadas as suas aplicaes. Alm disso, a partir de estudos sistematizados dos membros do Partido para aprimorar a nova fala, os indivduos que estivessem treinados e habituados a utilizar o novo idioma do Partido adquiriam habilidade em reconhecer se outro indivduo utilizava palavras para indicar formas de pensar ou sentir que estivessem em desacordo com o partido.

    Na fico de Orwell, a substituio do idioma pretendia, portanto, transformar formas de pensar, de sentir e de expressar, limitando-as aos interesses do Partido. Ao caracterizar uma reconfigurao de signos com a inteno de controle dos indivduos, o romance de Orwell ilustra o funcionamento do simulacro de simulao e sua ao como crime perfeito de Baudrillard (2004), isto , os recursos que permitiriam ao homem subverter a realidade opressora apresentam-se inacessveis, pois o simulacro de simulao nem ao menos depende deles e a realidade se apresenta aos indivduos de modo definitivo. O simulacro de simulao parece engolir a ideologia de tal forma que no h rastros dela, visto que so absorvidas as contradies. Segundo Baudrillard (1991), uma sociedade que procura sempre produzir e reproduzir est procurando ressuscitar o real que lhe fora perdido, mas que, como tal, nunca mais se refar, uma vez que o simulacro de simulao se oferece com uma alucinante semelhana com o real propondo substitu-lo.

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    1.2.3 As imagens-sntese como mediao e a publicidade como discurso legitimador

    Dessa forma, diante da problemtica da linguagem ligada a um modo particular de experimentar, interpretar e ser no mundo (p. 56), Harvey (2009) passa a discutir fenmenos psicolgicos ligados a tal problemtica, mais especificamente, uma concepo de personalidade decorrente dessas formas de relao entre indivduos e cultura.

    O autor evidencia um carter esquizofrnico, no como quadro clnico, mas como algo para alm da alienao. Empresta de Lacan a definio de esquizofrenia como desordem lingustica agregado de significantes sem sentido:

    Isso de fato se enquadra na concepo ps-moderna com o significante, e no com o significado, com a participao, a performance e o happening, em vez de com um objeto de arte acabado e autoritrio, antes com as aparncias superficiais do que com as razes [...] O efeito desse colapso da cadeia significativa reduzir a experincia a uma srie de presentes puros e no relacionados no tempo (Hassan, 1975; 1985 citado por HARVEY, 2009, p. 56).

    Os tais presentes puros no relacionados no tempo representam a onipotncia do simulacro de simulao, uma vez que esse se apresenta como acabado/pronto, e oblitera a ao poltica do homem, ou seja, oblitera a ideia de processo de construo, da happening, o acontecimento espetacular/fantstico. A relao entre indivduo e cultura sob esses moldes dificulta a possibilidade de o indivduo se reconhecer na prpria cultura que produz, pois sua funo de amparo esvaziada. Nesse sentido, os autores propem algo para alm da alienao/ideologia eles propem a vivificao do mito.

    Ainda acrescentam as propostas de Derrida naquilo que influenciaram Deleuze e Guatarri em Anti dipo (1984), citados por Harvey (2009), quando os autores afirmam que o capitalismo contemporneo produz esquizofrnicos assim como produz xampu. Em seguida Harvey (2009) encontra uma relao entre a experincia de presente puro e o papel das imagens no ps-modernismo:

    A reduo da experincia a uma srie de presentes puros e no relacionados no tempo implica tambm que a experincia do presente se torne poderosa e aterradoramente vvida e material: o mundo surge diante do esquizofrnico com uma intensidade aumentada, trazendo a carga misteriosa e opressiva do afeto, borbulhando de energia alucinatria (Jameson, 1984, 120). A imagem, a aparncia,

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    o espetculo podem ser experimentados com uma intensidade (jbilo e terror) possibilitada apenas pela sua apreciao como presentes puros e no relacionados no tempo [...] O carter imediato dos eventos, o sensacionalismo do espetculo (poltico, cientfico, militar, bem como diverso) se tornam a matria de que a conscincia forjada (HARVEY, 2009, p. 57).

    Em relao ao espetculo, Debord (1967) oferece contribuies. Segundo ele, o espetculo possui um carter tautolgico, uma repetio da mesma ideia em termos diferentes, uma vez que seus meios so, ao mesmo tempo, sua finalidade, pois ele, o espetculo, no pretende outra coisa seno a si prprio. Nas palavras do prprio autor:

    O conceito de espetculo unifica e explica uma grande diversidade de fenmenos aparentes. As suas diversidades e contrastes so as aparncias desta aparncia organizada socialmente, que deve, ela prpria, ser reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus prprios termos, o espetculo a afirmao da aparncia e a afirmao espetculo descobre-o como a negao visvel da vida; como uma negao da vida que se tornou visvel de toda a vida humana, isto , social, como simples aparncia (10o pargrafo).

    Nesse sentido, o espetculo, a assuno fantstica de uma dada realidade, surge como estratgia de conformar os indivduos e o mundo. Parece preservar uma realidade pacfica, em que as contradies e opresses ficam apaziguadas na aparncia.

    As campanhas publicitrias, de forma geral, parecem funcionar assim no entendimento de Baudrillard (1996): como um discurso legitimador de uma realidade aberta ao consumo, e sustentando no consumo a possibilidade de reconhecimento como indivduo. Saflatle (2005) ilustra esse comentrio ao tomar as campanhas publicitrias que prometem uma rec